CONTRATO DE EMPREITADA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Sumário


I - Em acção que, atenta a sua configuração, apresenta conexão com outra ordem jurídica distinta da ordem jurídica nacional – a A. tem sede em Portugal; o R. reside em França –, a definição da competência internacional é regulada, em primeiro lugar, pelo Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro, atenta a consagração do primado do direito comunitário sobre as normas nacionais de atribuição de competência internacional decorrente da ressalva inicial constante do art. 59º do CPC, em consonância com o disposto art. 8º/4 da Constituição da República Portuguesa.
II - Por força da norma contida no art. 7º do Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro, que estabelece uma competência especial em matéria contratual, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, perante o tribunal onde foi ou deva ser cumprida a obrigação, em alternativa à regra geral da competência do foro do domicílio do requerido, prevista no art. 4º do Regulamento.
III - Em acção fundada na alegada celebração de contrato de empreitada, para condenação do dono da obra no pagamento do preço dos materiais fornecidos pelo empreiteiro A., em França, onde o R. reside e se situa a obra, a competência internacional está atribuída aos tribunais franceses, por força da regra geral da competência do foro do domicílio do requerido (art. 4º do Regulamento) e, igualmente, de acordo com a regra especial prevista no art. 7º, uma vez que, nos termos da sua al. b), na falta de convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação, no caso de prestação de serviços, será o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.

Texto Integral


Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

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1 RELATÓRIO

EMP01... - Mobiliário e Carpintaria, Unipessoal, Lda, com sede na Travessa ..., ..., ... ..., ... intentou contra AA, residente em ..., ...30 ..., França e residente em Portugal quando está em gozo de férias no Lugar ..., ..., ..., acção declarativa de condenação com processo comum[1], reclamando, com os fundamentos devidamente materializados em factos que descreve, o pagamento do montante global de € 5.069,15 (cinco mil e sessenta e nove euros e quinze cêntimos), acrescido de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

Citado o R., defendeu-se por excepção e impugnação, tendo suscitado a incompetência internacional do Tribunal e a ineptidão da petição inicial.

Ouvido o requerente à matéria das excepções, pronunciou-se pela sua improcedência.

O R. ainda foi convidado a concretizar alegados defeitos nos móveis cujo pagamento se discute nos presentes autos, o que fez, tendo a A. exercido o contraditório. Tendo a A. juntado novos documentos com a sua pronúncia, o R. veio impugnar a sua tardia junção, bem como o seu teor.

No despacho saneador, além do mais, aferindo da excepção da incompetência internacional do Tribunal a quo, bem como da ineptidão da PI, a Srª Juiz julgou ambas improcedentes, nos seguintes termos:

- Da exceção de incompetência territorial
Exceciona o réu na sua contestação incompetência internacional deste Tribunal.
A autora respondeu, defendendo a competência do Tribunal.
Cumpre apreciar e decidir da competência deste Tribunal.
As regras de competência internacional destinam-se a delimitar e localizar o Tribunal competente para a causa quando o litígio envolva vários Estados.
Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-10-2022, “Como sucede com os outros poderes e funções do Estado, a jurisdição dos tribunais portugueses tem limites e é demarcada por confronto com a jurisdição dos tribunais de outros países, sendo que para que os tribunais portugueses sejam competentes, no seu conjunto, é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de fator de atribuição de competência internacional para julgar esse litígio.”, proferido no processo nº 533/21.5T8PNF.P1.S1.

Assim, quanto à competência internacional, o Regulamento (UE) n. ° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, estatui no artigo 7º, nº1, al. a) que “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.”

O artigo 62º do CPC, estatui, por sua vez, que: “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Por outro lado, é jurisprudência assente que “A competência internacional dos Tribunais portugueses afere-se pelos termos em que o demandante configura a relação jurídica controvertida, independentemente da apreciação do acerto substancial da sua pretensão, ….” Conforme se afirma no acórdão supra citado.
No caso concreto, estando em causa uma ação para cumprimento de obrigações, concretamente o pagamento do preço, a prestação deve ser efetuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento – que é Portugal –, à luz do disposto no artigo 774º do Código Civil.
Por outro lado, o autor na PI alega que os trabalhos objeto do contrato em causa nos autos foram realizados na sede da autora, em ..., ....
Assim sendo, à luz dos normativos citados, tanto basta para julgar fundamentada a competência dos Tribunais portugueses, havendo que julgar improcedente a exceção deduzida.
Pelo exposto, julgo improcedente a exceção e incompetência territorial deduzida.
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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
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- Da exceção de ineptidão da PI
Argui ainda o réu a ineptidão da petição, sustentando que o pedido é ininteligível.
Cumpre apreciar.
Dispõe o artigo 186º, nº 1 e nº 2, al. a) do Código de Processo Civil, no que ora releva, que é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, sendo-o esta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido.
No caso concreto, a autora pede que o réu lhe pague a quantia de €5.069,15 declarando expressamente os fundamentos do pedido.
É, portanto, um pedido claro e compreensível para qualquer pessoa.
Inexiste, por isso, qualquer ineptidão, julgando-se manifestamente improcedente a exceção deduzida.
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Inconformado com a decisão do despacho saneador que julgou improcedente a exceção de incompetência dos tribunais portugueses para conhecer do mérito da ação em epígrafe, o R. interpôs recurso de apelação contra a mesma, visando a revogação do decidido, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

1. Os factos em litígio nos presentes autos baseiam-se na pretensão de pagamento do Recorrente à Recorrida do valor de € 5.069,15 (cinco mil e sessenta e nove euros e quinze cêntimos), valor este que afirma corresponder ao preço de mobiliário que teria fabricado e fornecido ao mesmo, tendo os referidos bens sido entregues em França, local do domicílio do Recorrente.
2. Existiram, se facto, diversos contactos presenciais entre o Recorrente e a legal representante da Recorrida, todo eles realizados por telefone ou pessoalmente em França, local onde este último também reside e onde a Recorrida também exerce atividade.
3. Tanto assim é que a Recorrida, na pessoa do seu legal representante, deslocou-se a casa do Réu, em França, para tirar medidas e entregar um orçamento relativo a bens móveis, que, aliás, nunca fez.
4. Todos os contactos realizados entre as partes ocorreram fora do território português, bem como todas as negociações (tipo de mobiliário, elementos, medidas, entrega no domicílio do Réu), faltando apenas o orçamento propriamente dito, não havendo qualquer elemento de conexão relevante com Portugal, tendo o douto Tribunal a quo ignorando, completamente, a conexão com outro Estado-Membro da União Europeia.
5. Pelo que o Réu suscitou a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses, nos termos dos artigos 96.º, alínea a), e 99.º, n.º 1, do CPC, requerendo que fosse reconhecida e declarada a sua absolvição da instância.
6. Todavia, assim não entendeu o Douto Tribunal a quo, ao decidir, no despacho saneador, que os tribunais portugueses são competentes para apreciação do litígio, o que não se aceita e motiva o presente recurso de apelação.
7. Estando em causa factos que envolvem elementos de conexão de dois Estados-Membros da União Europeia, não podemos deixar de analisar, primeiramente, o disposto pelo direito europeu, antes de analisar o direito nacional.
8. De facto, o princípio do primado do direito da União Europeia (doravante UE) estabelece que as normas da UE prevalecem sobre as disposições de direito interno dos Estados-Membros, sendo fundamental para assegurar a aplicação uniforme e eficaz do direito comunitário em todos os Estados-Membros.
9. E porque outro raciocínio não é possível, é entendimento maioritário que “Na ordem jurídica nacional vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno; quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, esse regime prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao princípio do primado do direito europeu.”, conforme Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 159312/15.4YIPRT.P1, datado de 23-02-2017, disponível em www.dgsi.pt. (sublinhado nosso)
10. De facto, “Nas causas que envolvam elementos de conexão com diversos Estados-membros da União Europeia, a competência internacional dos Tribunais portugueses deve ser determinada à luz do Regulamento nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e não à luz do disposto nos arts. 60º e segs. do CPC.”, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 25787/19.3T8LSB.L1-7, datado de 10-11-2020, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso).
11. E mais, é entendimento da jurisprudência maioritária que “Nos litígios emergentes de relações transnacionais entre Estados-Membros, em matéria contratual, mormente no âmbito de contratos de prestação de serviços, prevalece o regime comunitário sob o direito interno, pelo que a competência internacional afere-se, salvo convenção em contrário, em face do elemento de conexão relevante, no caso, a sede social, administração central ou estabelecimento principal da sociedade que prestou os serviços ou do lugar do Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou deviam ter sido prestados, relevando apenas e tão só a prestação do serviço e não qualquer outra obrigação emergente desse contrato, mormente o pagamento do preço.”, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa Processo 991/13.1TVPRT.L1-1, datado de 19-04-2016, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso).
12. Pelo que, tendo o Recorrente domicílio num outro Estado-Membro da União Europeia, e, de acordo com a alegação do Recorrido, tendo sido combinado que os bens seriam entregues em França, bem como seu pagamento, sempre será necessário averiguar a competência judiciária tendo em conta o disposto no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação) – doravante designado por Reg. Bruxelas I Bis.
13. Refere o art. 7.º do Reg. Bruxelas I Bis, que “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
— no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
— no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado--Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a);
14. O Estado-Membro onde os bens foram entregues foi a República Francesa e não Portugal, uma vez que o Recorrente pretendia os bens para utilizar no seu domicílio.
15. Acrescendo que todos os contactos presenciais entre Recorrido e Recorrente foram feitos em França, onde reside o Recorrente e o legal representante da Recorrida.
16. Sendo certo que, mesmo que não se entendesse pela aplicação da alínea a), primeiro travessão, sempre se diria que o contrato foi negociado (porque não chegou a ser concluído, ao contrário do que alega o Recorrido) em França e nunca em Portugal!
17. Posto isto, é de aplicar o art. 7.º do Reg. Bruxelas I Bis, 1) alínea b), primeiro travessão, sendo competentes para a apreciação da presente demanda os tribunais franceses e não os tribunais portugueses.
18. Afastando-se, por isso, a aplicação do direito nacional em razão do primado do Direito da União Europeia.
19. O que, aliás, foi já outrora decidido pelo Douto Tribunal a quem, “Os Tribunais portugueses não dispõem de competência internacional para os litígios em matéria contratual se, no caso de venda de bens, estes foram, por força do contrato celebrado, entregues noutro Estado.”, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 2313/11.7TBFLG.G1, datado de 22-01-2013, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso).
20. Nesse seguimento, e nos termos dos artigos 96.º a) e 99.º, n.º 1 do CPC, “determinam a incompetência absoluta do tribunal (…) a infração das regras de competência internacional;”, sendo certo que tal “(…) implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar.”, exceção que deveria ter sido conhecida pelo Tribunal a quo.
21. Não pode o Douto Tribunal a quo, com uma parca argumentação, ignorar todos os elementos de conexão que existem entre os dois Estados-Membros da União Europeia.
22. Só “Não se aplicando fonte europeia ou internacional, qualquer delas com prevalência sobre o direito do Estado, a competência internacional dos tribunais portugueses é regulada pelo disposto nos arts.59º, 62º, 63º e 94º, todos do CPCivil”, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 28028/21.0T8LSB.L1-8, datado de 11-05-2023, disponível em www.dgsi.pt.
23. Ou seja, apenas se aplicaria o disposto no art. 62.º CPC, caso não prevalecesse sobre esta qualquer normativo europeu – o que não é o caso!
24. Todavia, e mesmo que assim não se entendesse, nem pela aplicação do art. 62.º do CPC seriam competentes os Tribunais portugueses.
25. A alínea a) do art. 62.º do CPC refere que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando “a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
26. Nos termos do n.º 1 do artigo 71.º do CPC, relativo à competência para o cumprimento da obrigação, “a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.
27. Ora, não tendo o Recorrido domicílio na área metropolitana de Lisboa nem do Porto, e estando em causa o cumprimento de obrigações (alegadamente) assumidas pelo Recorrente, pessoa singular, nunca poderia ser competente o tribunal do domicílio/sede da Recorrida.
28. Ainda nos termos do mesmo artigo, no seu nº 2, “Se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu”.
29. Sucede que, não estando em causa uma ação baseada em qualquer facto ilícito ou fundada no risco, mas antes no (alegado) incumprimento contratual, tampouco cabe a aplicação deste nº 2, afastando-se, assim, a aplicação do art. 71.º do CPC.
30. Já no que concerne à alínea b) do artigo 62.º do CPC, refere que é competente o tribunal português quando o tenha “sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram.
31. Assim, em causa está a alegada compra de bens móveis pelo Recorrente à Recorrida, que afirma terem sido entregues em França e que não foram pagos.
32. Contudo, e conforme já mencionado, todos os contactos entre as partes ocorreram exclusivamente em França, por telefone ou presencialmente.
33. O representante legal da Recorrida deslocou-se à casa do Recorrente, em França, para alegadamente tirar medidas e apresentar orçamento, o que nunca foi efetivamente concretizado.
34. Não foi acordado entre as partes que o fabrico dos bens seria realizado em Portugal, sendo esta uma alegação não demonstrada pela Recorrida, sendo certo que tampouco era obrigação do Recorrente conhecer o local de fabrico, uma vez que este não foi expressamente contratado como tal.
35. Acresce que a documentação apresentada pela Recorrida (Declaração de Expedição) encontra-se incompleta e inconsistente, não comprovando nem a origem da mercadoria em Portugal nem a entrega do alegado mobiliário ao Recorrente em França.
36. O fundamento da ação baseia-se no alegado incumprimento contratual de um contrato negociado inteiramente em França, não havendo qualquer contacto ou conexão relevante com Portugal.
37. O simples facto de a Recorrida alegar, sem prova, que o pagamento deveria ser feito na sua sede em Portugal não é suficiente para justificar a aplicação da alínea b) do artigo 62.º do CPC, dada a ausência de um elo significativo entre a ação e a jurisdição portuguesa.
38. Em razão da verdade, não parece minimamente credível que, estando Recorrente e Recorrida (na pessoa do seu legal representante) em território francês, ambos se deslocassem propositadamente a ... para realizar o pagamento.
39. Não se tratando, senão, de uma alegação irrazoável, numa tentativa de atribuir competência aos tribunais portugueses!
40. No contexto concreto da factualidade alegada, não há um elo suficientemente intenso entre a acção e o foro escolhido, visto que, o Recorrente reside em frança, a Recorrida exerce atividade em França, o orçamento foi solicitado em França e este seria o lugar da entrega dos bens.
41. Não olvidando que admitir a competência do foro português com base em tais alegações abriria precedentes para o abuso de direito, permitindo que empresas se sediassem em jurisdições mais favoráveis, prejudicando os direitos dos consumidores e clientes, especialmente quando pessoas singulares.
42. Por último, no que concerne à alínea c) do artigo em análise, refere que “quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”.
43. Sendo a Autora uma sociedade comercial, residindo o seu legal representate em França, tendo facilidade de envio de mercadoria para França e tendo sido a própria a realizar a entrega naquele país, inexiste qualquer dificuldade na propositura da ação no estrangeiro, nem a efetivação do direito apenas se poderá fazer em Portugal, não se aplicando a alínea c) do art. 62.º CPC ao caso concreto.
44. Tampouco existe um “elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real” entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa, pelas razões já supra referenciadas.
45. Face ao exposto, deve o despacho recorrido ser revogado e, em consequência, ser o mesmo substituído por decisão que conheça e declare a incompetência absoluta dos tribunais portugueses, absolvendo o Recorrente da instância.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Ex.ªs doctiloquamente suprirão, deve:
a) Ser o presente recurso recebido e julgado procedente;
b) Consequentemente ser o despacho saneador recorrido revogado, substituindo-o por decisão que determine a incompetência dos tribunais portugueses, absolvendo o Réu/Recorrente da instância.                                   
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Notificada das alegações de recurso do R., foram apresentadas contra-alegações pela A., que finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

A- Na Petição Inicial, a Recorrida alega o seguinte: “a A. e R. celebraram um contrato de empreitada de carpintaria para a A. proceder à fabricação de uma mesa e seis cadeiras, na sede desta, pelo preço de € 3.100,00, acrescido do IVA à taxa legal em vigor de 23%.”
B- O contrato em causa nos presentes autos é um contrato de empreitada, previsto e regulado no artigo 1207.º e seguintes do Código Civil.
C- Conforme resulta da Petição Inicial, a mercadoria foi produzida em Portugal.
D- Na realidade, uma vez que o contrato foi celebrado em Portugal, redigido em língua portuguesa, e teve por outorgantes uma sociedade de direito português que labora com cidadãos residentes em Portugal, é consabido que a atribuição de jurisdição a um Tribunal em função de uma certa área territorial, tem em vista facilitar o exercício da sua atividade, com o mínimo de custos materiais e humanos, sendo que o propósito das Convenções e Regulamentos Comunitários é, pois, o de tutelar o interesse da justiça, eximindo as partes ao ónus de superar dificuldades práticas à condução de uma lide em país estrangeiro.
E- Não se poderá ignorar que há normas de direito supraestadual em matéria de recolha de provas, a sua obtenção, nomeadamente, a inquirição de testemunhas (operários da fábrica em Portugal), recolha de documentos junto das instituições bancárias portuguesas, guias dos transportadores.
F- Ora, para apreciação dos litígios emergentes deste tipo de contratos, são competentes, os tribunais do Estado onde se situa o local em que o serviço foi prestado; ou seja, neste caso, o local do fabrico, foi Portugal.
G- Tais questões são pacíficas em termos jurisprudenciais.

TERMOS EM QUE, deverá julgar-se, de todo o modo, improcedente o mesmo Recurso, assim se alcançando
BOA E SÃ JUSTIÇA!
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A Exmª Juíz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, providenciando pela subida dos autos.
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Facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pelo apelante, este pretende que se revogue a decisão recorrida e se determine a incompetência dos tribunais portugueses, absolvendo o Réu/Recorrente da instância.
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3OS FACTOS

Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede.
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Vejamos, então, a questão da competência internacional do Tribunal a quo para conhecer do pedido da A.
Pretende o apelante R. ter sido incorrecto o entendimento do tribunal a quo que julgou improcedente a deduzida excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para o julgamento da acção.
Invocou, para tanto:
- não haver qualquer elemento de conexão relevante com Portugal;
- estando em causa factos que envolvem elementos de conexão de dois Estados-Membros da União Europeia, não se pode deixar de analisar, primeiramente, o disposto pelo direito europeu, antes de analisar o direito nacional;
- Nas causas que envolvam elementos de conexão com diversos Estados-membros da União Europeia, a competência internacional dos Tribunais portugueses deve ser determinada à luz do Regulamento nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, e não à luz do disposto nos arts. 60º e segs. do CPC;
- tendo o Recorrente domicílio num outro Estado-Membro da União Europeia, e, de acordo com a alegação do Recorrido, tendo sido combinado que os bens seriam entregues em França, bem como seu pagamento, sempre será necessário averiguar a competência judiciária tendo em conta o disposto no Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação) – doravante designado por Reg. Bruxelas I Bis;
- é de aplicar o art. 7.º do Reg. Bruxelas I Bis, 1) alínea b), primeiro travessão, sendo competentes para a apreciação da presente demanda os tribunais franceses e não os tribunais portugueses;
- mesmo que assim não se entendesse, nem pela aplicação do art. 62.º do CPC seriam competentes os Tribunais portugueses;
- O fundamento da ação baseia-se no alegado incumprimento contratual de um contrato negociado inteiramente em França, não havendo qualquer contacto ou conexão relevante com Portugal.
Com o que discorda a apelada A., que entende estar aqui em causa um contrato de empreitada, tendo o contrato sido celebrado em Portugal e redigido em língua portuguesa, sendo a mercadoria produzida em Portugal.
Quid iuris?

É efectivamente jurisprudência assente, como assertivamente é afirmado na decisão recorrida citando o Ac. do STJ de 27-10-2022[2], que “A competência internacional dos Tribunais portugueses afere-se pelos termos em que o demandante configura a relação jurídica controvertida, independentemente da apreciação do acerto substancial da sua pretensão, (…)”.
A questão da competência internacional dos tribunais portugueses apenas se coloca quando a acção, atenta a sua configuração, apresenta conexão com outra ordem jurídica distinta da ordem jurídica nacional.
In casu, tal conexão está presente, uma vez que a A., sociedade portuguesa com sede em Portugal, demanda um R. com residência em França. Com efeito, a A. indicou na petição inicial (art. 552º do CPC), que o R., cuja condenação no pagamento da quantia indicada pretende obter através da acção, intentada num tribunal português, tem residência em França, sem prejuízo de mencionar uma residência em Portugal quando está em gozo de férias. E o R. foi efectivamente citado em França, sendo esse o país onde reside.
O art. 59º do CPC consagra a norma geral sobre a competência internacional dos tribunais portugueses, nos seguintes termos: «Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.».
Da ressalva inicial desta disposição resulta a consagração do primado do direito comunitário sobre as normas nacionais de atribuição de competência internacional, em consonância com o disposto no nº 4 do art. 8º (Direito internacional) da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que «As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.». Ou seja, uma vez que Portugal e França são Estados-Membros da União Europeia, a definição da competência internacional é regulada, em primeiro lugar, pelo Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro (Regulamento que veio substituir o Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho de 22 de Dezembro de 2000, o qual, por sua vez, tinha vindo substituir a convenção de Bruxelas, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, entre os Estados – Membros da Comunidade), prevalecendo tais disposições sobre as normas reguladoras da competência internacional do regime nacional, uma vez que, como resulta do disposto no art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o regulamento tem carácter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros, pelo que, no seu âmbito de aplicação, substitui os regimes das leis internas de cada Estado-Membro.
Ora, atendendo ao regime fixado pelo mencionado Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de dezembro, relevam, para o caso aqui em apreciação, os arts. 4º, 5º e 7º do Regulamento.

Dispõe tal regulamento nesta parte, nos seguintes termos:
CAPÍTULO II
COMPETÊNCIA
SECÇÃO 1
Disposições gerais
Artigo 4.º
1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.
2. As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais.
Artigo 5.º
1. As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.
2. Em especial, as regras de competência nacionais notificadas pelos Estados-Membros à Comissão nos termos do artigo 76.º, n.º 1, alínea a), não se aplicam às pessoas a que se refere o n.º 1.
(…)
SECÇÃO 2
Competências especiais
Artigo 7.º
As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
— no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
— no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a);
2) (…)
Destas disposições resulta, em termos resumidos, o seguinte, quanto ao âmbito subjectivo de aplicação do Regulamento – cfr. Marco Carvalho Gonçalves[3], que aqui seguimos de perto:
– O critério geral de competência, estabelecido no art. 4º, nº 1, é o do domicílio do requerido, ou seja, tendo o R. o seu domicílio ou sede num dos Estados-Membros da União Europeia, deve ser demandado nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente da sua nacionalidade.
– Esta regra geral é complementada pelas regras especiais de competência previstas nos arts. 7.º a 25.º do Regulamento, das quais resulta que, verificando-se um dos critérios especiais de competência nelas previstos, ainda que tenha o seu domicílio num Estado-Membro, o requerido também possa ser demandado no foro decorrente da subsunção a uma dessas regras especiais. Trata-se de uma competência alternativa, ou seja, tendo o requerido domicílio num Estado-Membro e preenchendo-se ainda a previsão legal de uma destas normas que consagram competências especiais, o autor pode optar entre demandar o requerido nos tribunais do Estado-Membro do domicílio daquele ou nos tribunais do Estado-Membro competente nos termos de um desses critérios especiais.
– Estando em causa matéria contratual (como sucede no caso em apreciação), o art. 7.º do Regulamento, no seu n.º 1, consagra a competência do tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação, estabelecendo a sua al. b) que, na falta de convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação, no caso de compra e venda de bens, será o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues e, no caso de prestação de serviços, será o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
Logo, em acção fundada na alegada celebração de contrato de empreitada, para condenação do dono da obra no pagamento do preço dos materiais fornecidos pelo empreiteiro A., em França, onde o R. reside e se situa a obra, a competência internacional está atribuída aos tribunais franceses, por força da regra geral da competência do foro do domicílio do requerido (art. 4º do Regulamento) e, igualmente, de acordo com a regra especial prevista no art. 7º, uma vez que, nos termos da sua al. b), na falta de convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação, no caso de prestação de serviços, será o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
Como assim, o presente tribunal português é internacionalmente incompetente para a tramitação destes autos, por serem competentes para o efeito os tribunais franceses.
A verificada incompetência internacional resulta na incompetência absoluta do Tribunal a quo, nos termos do disposto no art. 96º, a) do CPC, o que se declara. Tal excepção é dilatória [cfr. arts. 576º/1 e 2 e 577º, a) do CPC], pelo que, em consonância, se impõe absolver o R. da instância.
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Todavia, e como também bem lembra o recorrente, mesmo que assim não se entendesse, o que não é o caso em face da indubitável aplicabilidade do adequado regulamento europeu, mas não lhe tendo as partes atribuído competência nos termos do art. 94º do CPC, nem pela aplicação do art. 62º do CPC seriam competentes os Tribunais portugueses.
Com efeito, como já supra referido, o art. 59º do CPC dispõe que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas nos arts. 62º e 63º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do art. 94º, sem prejuízo do que se achar estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais.

Dirimindo, agora, o caso exclusivamente pelo disposto no art. 62º do CPC, há a ponderar que:
a) - a ação deva ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);
b) - tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);
c) - não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou constituir para o A. dificuldade apreciável a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).

Decorre do disposto no art. 62º do CPC que basta a verificação de alguma das descritas circunstâncias ou factores (princípio da autonomia ou da independência) para que ao tribunal português seja atribuída a competência, sendo certo que esta se fixa no momento em que a acção se propõe[4].
Ora, in casu, atendendo à factualidade e causa de pedir alegados pela A., como bem lembra o recorrente nas suas alegações, para onde se remete e aqui se dá por reproduzido a fim de evitar repetições, deve afastar-se a aplicabilidade de todas as alíneas do mencionado art. 62º, desde logo a al. a), face ao disposto no art. 71º do CPC, que atribui competência ao tribunal do domicílio do R., inexistindo qualquer conexão relevante com Portugal para a aplicabilidade da al. b) e não se aplicando a al. c), inexistindo qualquer “elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real” entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa.
Não se verificando, pois, qualquer dos critérios de conexão a que alude o art. 62º do CPC.
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A recorrida sucumbe na acção e no recurso. Deve por essa razão, satisfazer as custas deles (art. 527º/1 e 2 do CPC).
 
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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação procedente, pelo que revogam a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julga os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para o conhecimento desta acção e, em consequência, absolvem o R. da instância [arts. 576º/1 e 2 e 577º, a) do CPC].
Custas pela apelada, por ter decaído na acção e no recurso (art. 527º/1 do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 16-01-2025

(José Cravo)
(Carla Maria da Silva Sousa Oliveira)
(Paulo Reis)


[1] Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Braga, ... - ... - Juiz ....
[2] Prolatado no Proc. nº 533/21.5T8PNF.P1.S1 e acessível in www.dgsi.pt.
[3] In Competência Judiciária na União Europeia, Scientia Iuridica, N.º 339 – Setembro/Dezembro, 2015, pág. 417 e seguintes.
[4] Acórdão do STJ de 25-11-2004, relatado pelo Consº Araújo de Barros, que mantém a sua plena aplicação no âmbito do novo regime processual civil.