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CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ALTERAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário
I - Sendo a atribuição da casa de morada da família um incidente de jurisdição voluntária, as suas resoluções podem ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que o justifiquem, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adotando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna. II - Para o efeito, aquele que pretende obter a alteração deve alegar as circunstâncias que existiam no momento em que foi acordada ou decidida a atribuição da casa de morada de família e as circunstâncias verificadas no momento em que vem requer a alteração dessa atribuição. III - A alteração da atribuição da casa de morada de família só deve ser determinada quando se tenha produzido uma alteração substancial, que evidencie sinais de permanência que permitam considerá-la, em princípio, como definitiva, no conjunto de circunstâncias ou de representações que foram consideradas ao tempo da adoção das medidas, e que seja de molde a afetar as circunstâncias que foram tidas em conta na sua adoção e que influíram essencial e decisivamente na sua determinação.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I. Relatório
AA intentou, por apenso ao processo especial de divórcio por mútuo consentimento com o n.º ......, contra BB, o presente incidente de alteração da atribuição de casa de morada de família, pedindo a atribuição a si da casa de morada de família do extinto casal, a saber, a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ..., sito na Praça ..., ..., assim se alterando a atribuição ao requerido da mesma habitação ocorrida com o acordo homologado no processo principal.
Alega em síntese que o imóvel correspondente a casa de morada de família do extinto casal foi provisoriamente atribuída ao Requerido no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento e que acedeu a que o Requerido vivesse na aludida fração única e exclusivamente com o intuito dele aceitar o divórcio e não protelar a questão, tendo requerido a partilha, mas o inventário continua pendente, sendo que a questão relativa à natureza da fração para efeitos de partilha foi remetida para os meios comuns, com a morosidade devida à prova que tais processos acarretam.
Mais alega que na sequência do divórcio, e aguardando a partilha, vivia provisoriamente em casa de um tio, ..., que de boa vontade lhe emprestava a casa, mas que faleceu em ../../2022 e, devido ao falecimento, os herdeiros pretendem o imóvel para o rentabilizar, e /ou proceder à sua venda, tendo concedido à Requerente 1 ano para sair definitivamente da casa, o que veio a acontecer a 30/06/2023.
E que, desde então, por não ter onde viver, pernoita em casa de vários familiares, andando com as malas às costas, o que, aliado à idade, lhe causa instabilidade emocional, vive triste e desiludida designadamente por não ter um lar para acolher os netos, não tendo outro sítio onde viver e carecendo de meios para arrendar outra casa, atento o valor das rendas que se praticam no mercado.
Alega ainda que o Requerido é dono e legítimo proprietário da fração autónoma designada pela letra ..., ... andar, sito na Rua ..., ..., a qual está arrendada, sendo que por o inquilino não pagar a renda tem fundamento para pedir a resolução do contrato de arrendamento, só não o fazendo para poder alegar que não tem onde viver;
Que, quando aceitou o acordo nunca projetou que decorridos 3 anos não tivesse logrado obter a partilha dos bens comuns, nem o reconhecimento dos bens próprios, e/ou sequer saber nesta data quanto mais tempo se perspetiva a pendência do processo de partilha, face ao acordo extrajudicial inviabilizado, só tendo aceite o acordo subjacente à atribuição da casa de morada de família ao Requerido na perspetiva que a situação estaria finda, num prazo máximo de 1 ano.
Alega por fim que o Requerido possui rendimentos que ascendem, em média, a cerca de €950,00, a que acresce o valor mensal de €200,00/renda, vivendo de forma desafogada, e que a Requerente aufere €750,00/mês e consome o rendimento para fazer face às despesas básicas com os custos com energia elétrica, alimentação, transportes, telecomunicações, vestuário e higiene.
Realizada tentativa de conciliação não foi possível chegar a acordo.
Regularmente notificado para contestar, o Requerido deduziu oposição pugnando pela manutenção da atribuição da casa de morada de família a si, invocando a falta/inexistência de causa de pedir e impugnando matéria de facto alegada na petição inicial.
A Requerente apresentou resposta à contestação impugnando a factualidade alegada pelo Requerido e pugnando pela improcedência da exceção da inexistência da causa de pedir.
Foi proferido despacho a julgar improcedente a exceção invocada.
Foi proferida decisão que julgou o pedido improcedente e não alterou o acordo sobre o destino da cada de morada de família.
Inconformada, a Requerente interpôs o presente recurso em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
“I) Não se conforma o ora recorrente com a douta sentença proferida em 28-06- 2024, que, decidiu: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se o pedido deduzido nos autos improcedente e, consequentemente, decide-se não alterar o acordo sobre o destino da cada de morada de família homologado no processo principal por sentença de 04.02.2020”.
II) Entende a Recorrente que foram incorretamente julgados alguns pontos da matéria de fato, sendo que - com o devido respeito – a prova testemunhal produzida pela Autora em sede de audiência de julgamento impunha que fosse proferida decisão em sentido oposto: a alteração do acordo sobre a casa de morada de família!
Alem do mais,
III) Com o devido respeito a Recorrente entende que há uma clara contradição entre os factos provados e a decisão final. Verificando-se assim um vicio da sentença previsto nos termos do artigo 615º n.º 1 c) do Código de Processo civil.
IV) Entende a jurisprudência que a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
V) A nulidade da sentença contemplada nesse preceito pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.
I. DA CONTRADIÇÃO DE FACTOS:
VI) De facto, entendeu o Tribunal a quo que “Com relevo para a decisão da causa, considerou o Tribunal a quo provado que: consideram-se provados os seguintes factos: 9 - Na sequência do divórcio, bem assim, a celebração do acordo quanto à atribuição da casa demorada de família, a requerente passou a residir provisoriamente em prédio de, ..., seu tio, sita na Rua ..., ... - ..., filho de CC e de DD, faleceu no passado dia ../../2022, no estado de casado com EE, com última residência habitual na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... – cfr. certidão junta a fls. 30, cujo teor dá-se por reproduzido para os devidos e legais efeitos. 11- Após o óbito do tio, os herdeiros deste, solicitaram a entrega do imóvel à requerente;12 - Pelo menos desde junho/julho de 2023 que a requerente tem vindo a pernoitar em casa de familiares;
VII) Ou seja, o tribunal a quo dá como provada toda a factualidade alegada da alteração superveniente das circunstancia da vida da Recorrente, no entanto, na decisão final, faz tabua raza dessas circunstancias e desvaloriza a precaridade da Recorrente.
II. DA CONTRADIÇÃO DE FACTOS:
VIII) Outros dos factos em contradição com o provado é o seguinte: deu como provado o tribunal a quo que : “16 -O requerido, em 2022, auferia do CNP, a título de pensão por velhice, o montante de mensal de € 977,88 (doc. junto com o requerimento de oposição de 25.09.2023); 17 -A fração descrita anterior foi objecto de acordo de contrato de arrendamento; 18 - O requerido, pelo menos nos últimos dois anos, aufere o valor de € 200,00/mensal decorrente de renda da fração autónoma ...;
IX) No entanto, mais tarde na motivação alega que “Ainda que tal não se entenda, sempre se dirá que não resultou apurado que o requerido dispões de situação financeiramente bem mais favorável que a da requerente”.
X) Ou seja, o tribunal a quo dá como provado que o Requerido tem outro apartamento arrendado e que aufere rendas desse apartamento, no entanto, na argumentação final alega que o Requerido não tem melhor condição financeira do que a Requerente, o que é contraditório, uma vez que, relativamente à Autora apenas ficou provado que aufere a pensão mensal de cerca de 958,00€, enquanto que o Requerido para além da reforma de 977,88€ aufere ainda de rendas do apartamento arrendado.
XI) Existe assim uma clara evidencia que a situação económica do Reu é muito superior à Autora.
XII) Assim, apesar de o Tribunal a quo dar como provada a situação precária da Autora, a alteração superveniente das circunstâncias de vida da mesma, pelo falecimento do Tio avô, a instabilidade que a mesma vive com as malas às costas e como foi referido pela testemunha BB “parece uma sem abrigo” e que o Reu tem outro apartamento e outras fontes de rendimento, no final, dá como decisão final a não alteração.
Além do mais,
XIII) Entende a recorrente que face as testemunhas apontadas deveria ter sido dado como provado que: d) A requerente, quando aceitou o acordo fê-lo na perspetiva que a situação estaria finda, num prazo máximo de 1 ano;
XIV) Veja-se declarações da Testemunha BB (cfr. ata da sessão de 13.06.2024 da audiência de julgamento, minuto 11:19)
Mandatária: Sabe porque é que a sua mãe aceitou que o seu pai ficasse la a viver?
FF: Sei por duas razões, uma porque a minha mãe é um doce de pessoa e deixa as coisas fluírem e não pensa nisso. A segunda é uma muito simples, a minha mãe achou que o caso, as partilhas iriam demorar muito menos tempo e teve uma solução que era o tio avo dela tinha uma habitação, segunda habitação, que a permitiu morar la.
XV) Tal facto foi ainda mencionado pela testemunha GG, veja-se Veja-se declarações da Testemunha GG (cfr. ata da sessão de 13.06.2024 da audiência de julgamento, minuto 11:19)
Dra: Sabe se havia uma condição se a casa de morada de família ficava atribuída ao pai até uma determinada data?
GG: Na altura o que ficou acordado seria que, para ele aceitar o divórcio, seria o acordado que ele ficaria na casa até às partilhas, o que não era expectável é que… Dra: Mas sabe se a mãe já pediu partilha?
GG: Sim, as partilhas não são aceites pela outra parte nunca Dra: Ou seja, foram feitas várias propostas, várias tentativas?
GG: E não há abertura da outra parte para ser aceite qualquer tipo de acordo.
Dra: Sente que é uma forma de ganhar tempo para também estar no apartamento? GG: É uma forma de ganhar tempo e confesso que o que sinto é que não é só, é ali uma vingança (03:37 – 12:33).
XVI) Além do mais, Todas as testemunhas foram uninimes em mencionar que o Recorrido tem outra habitação a quem pode recorrer, alem de que, o tribunal a quo dá como provado que o mesmo tem outro apartamento arrendado.
XVII) Veja-se declarações da Testemunha HH (cfr. ata da sessão de 13.06.2024 da audiência de julgamento, minuto 11:30)
Dra: Sabe se o Sr. BB terá outra casa para viver?
HH: O Sr. BB tem uma casa lá muito perto, tem lá um apartamento, para além da irmã ter uma casa que comprou maravilhosa, que nem sequer lá vive que ela deixou uma casa lá
Dra: Mas comprou quando, recentemente?
HH: Agora à pouco tempo, para aí à um ano.
Dra: A irmã que vive em Lisboa?
HH: Sim, a irmã dele. E ele tem um apartamento mesmo a 50 metros do sítio onde ele está a viver
Dra: Sabe se o apartamento está arrendado?
HH: Está, está arrendado. (05:05 – 10:23)
Ora,
XVIII) Alega o tribunal a quo que “compete ao cônjuge o que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade atual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso e ponderados os interesses acima mencionados (cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 24-06-2010 (processo n.º 461/09.2TBAMD.L1-6, acessível em www.dgsi.pt).
IX) Ora foi precisamente isso que a Requerente fez, demonstrar uma necessidade concreta e atual.
XX) O tribunal a quo dá como provada a necessidade da Requerente mas posteriormente não altera a casa de morada de família.
XXI) Entendeu ainda o Tribunal a quo que “a matéria vertida nos pontos 9 a 12, ou seja, residência da requerente na sequência e após o divórcio, bem assim, de há cerca de um ano esta parte, encontra-se demonstrada pelos depoimentos das testemunhas que a ela se reportaram, todos coincidentes entre si no sentido da sua verificação”.
Ora,
XXII) Existe uma clara contradição entre o que foi provado e posteriormente a decisão final.
XXIII) De facto, não podemos aceitar o argumento de que, porque a Autora já se encontrava numa situação precária (casa emprestada), não existe ma efetiva alteração das suas circunstancia de vida.
XXIV) O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de outubro de 2008 (Proc. n.º 08...): “A cláusula rebus sic stantibus, embora não consagrada expressamente no Código Civil, pode ser invocada quando ocorram alterações de circunstâncias imprevisíveis e extraordinárias que tornem a situação inicial completamente diferente, exigindo-se, nesse caso, uma reavaliação do acordo inicialmente estabelecido.”
XXV) Uma mudança significativa na situação de vida da requerente, como o falecimento do tio e a perda da habitação, configura uma alteração imprevista e extraordinária que justifica a revisão do acordo.
Até porque,
XXVI)A jurisprudência específica que trate da morte de um familiar que dava habitação provisória, levando à alteração da atribuição da casa de morada de família, embora não seja comum, pode ser enquadrada nos princípios gerais de alteração de circunstâncias supervenientes.
E ainda,
XXVII) Entendeu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de julho de 2017 (Proc. n.º 1049/13.3TBFIG.C1.S1):“ A perda do local de habitação de um dos ex-cônjuges, seja por razões económicas ou pela cessação de apoio de familiares, constitui motivo válido para requerer a alteração da atribuição da casa.”
XXVIII) Neste excerto, o STJ reconhece a importância de revisar a atribuição da casa de morada de família quando ocorre a perda do apoio habitacional por parte de familiares, que tinha inicialmente suprido a necessidade de habitação de um dos cônjuges, como sucede no presente caso com a Requerente, que se enquadra na perda do apoio habitacional por parte dos herdeiros do tio.
XXIX) Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de dezembro de 2018 (Proc. n.º 672/17.9T8PBL.C1): “O falecimento de um familiar que prestava auxílio habitacional ao cônjuge não beneficiário da casa de morada de família pode constituir uma alteração substancial de circunstâncias, justificando uma nova ponderação sobre a atribuição da casa.
XXX)
XXXI)O Acórdão do TRL de 28 de fevereiro de 2017 (Proc. n.º 5764/12.1TBSXL-B.L1-7) aborda a questão da alteração das condições de habitação, nomeadamente em casos de atraso na partilha. Foi entendido que a revisão do acordo de adjudicação da casa de morada de família pode ser pedida quando existam motivos supervenientes que coloquem em risco o direito de habitação.
Assim,
XXXII) O facto de o Requerido ter problemas cardíacos, embora seja um argumento a considerar, não implica automaticamente que a casa de morada de família deva permanecer atribuída a este, particularmente se a Requerente, que perdeu o familiar que a alojava, estiver agora desalojada e sem habitação adequada. A decisão judicial deve equilibrar vários fatores e necessidades de ambas as partes respeitando o princípio de equidade e de boa-fé, e o direito à habitação digna é um dos direitos fundamentais.
XXXIII) Os problemas cardíacos do Requerido podem ser uma circunstância atenuante, mas o tribunal não deve limitar-se a esse facto isolado. Deve avaliar se o Requerido tem alternativas de habitação e se a sua condição de saúde pode ser gerida adequadamente noutra residência, sem que isso o prejudique gravemente. O Requerido tem capacidade financeira ou familiar para garantir uma alternativa habitacional adequada, isso permite a reatribuição da casa à senhora”.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e, consequentemente, pela revogação da decisão recorrida e pela alteração da atribuição da casa de morada de família a favor da Recorrente.
O Requerido contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão proferida pela 1ª instância.
O tribunal a quo pronunciou-se quanto à nulidade invocada nos seguintes termos: “- Requerimento de interposição de recurso com arguição de nulidade da sentença proferida: Não obstante, o Tribunal não ser alheio ao disposto nos nº4 do artigo 615º, do Código de Processo Civil, no que concerne à invocada nulidade relativa decisão objecto do presente recurso, cumpre esclarecer. A recorrente invoca a nulidade decorrente do nº1, alínea c) do artigo 615º, porquanto entende existir contradição entre os factos provados e a decisão final. O Tribunal, tal qual decorre da argumentação apresentada em sede de decisão, fez o enquadramento jurídico que se lhe afigurou cabível aos autos, face aos factos que considerou demonstrados, atenta a natureza e objecto dos mesmos, nos termos ali referidos. Deste modo, e sempre salvaguardando o salvo o devido respeito por opinião diversa, entende-se que a decisão em apreço não padece do vício que lhe é apontado. Contudo, Vªs Exªs analisando e decidindo farão como sempre a acostumada Justiça. D.N.”
Foram colhidos os vistos legais. Cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do Objeto do Recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:
1) Saber se a decisão recorrida é nula;
2) Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto;
3) Saber se deve ser alterada a atribuição da casa de morada de família.
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III Fundamentação
OS FACTOS Factos considerados provados em Primeira Instância:
1- A requerente, AA, e o requerido, BB, contraíram entre si casamento católico, com procedência de convenção antenupcial no regime de comunhão geral de bens, no dia ../../1978.
2- No âmbito do processo nº 1363/19...., em 04.02.2020, foi proferida sentença homologatória de acordo, tendo sido decretado o divórcio entre a Requerente e o Requerido;
3- No âmbito daqueles autos de divórcio, requerente e requerido, acordaram quanto à atribuição da casa de morada de família, nos seguintes termos: “A casa de morada de família fica atribuída ao réu até à partilha”;
4- A casa de morada de família no âmbito da ação de divórcio foi indicada com sendo a fração autónoma designada pela letra ..., sita na Praça ...., ... – cfr. alegações, despacho saneador, constante de dos autos de proc. de divórcio de que este incidente é apenso;
5- Está pendente processo de inventário que corre termos com o nº 5557/20....;
6- (…) no âmbito daqueles autos de inventário, em sede de incidente de reclamação à relação de bens, por despacho de 16.02.2022, foi decidido, além do mais, remeter para os meios comuns a discussão quanto ao prédio ali relacionado sob a verba 10 (fração ...);
7- O presente incidente de alteração da atribuição da casa de morada de família deu entrada em Tribunal a 04.07.2023 – cfr. fls. 2;
8- A aqui requerente instaurou ação que corre termos sob o proc. nº 278/23...., contra o requerido, que tem por objeto da identificada fração (O);
9- Na sequência do divórcio, bem assim, a celebração do acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, a requerente passou a residir provisoriamente em prédio de, ..., seu tio, sito na Rua ..., ..., ...;
10- ..., filho de CC e de DD, faleceu no passado dia ../../2022, no estado de casado com EE, com última residência habitual na Avenida ..., freguesia ..., concelho ... – cfr. certidão junta a fls. 30, cujo teor dá-se por reproduzido para os devidos e legais efeitos.
11- Após o óbito do tio, os herdeiros deste, solicitaram a entrega do imóvel à requerente;
12- Pelo menos desde junho/julho de 2023 que a requerente tem vindo a pernoitar em casa de familiares;
13- A titularidade do direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra ..., para habitação, ... andar, sito na Rua ..., ... ..., inscrito na matriz sob o artigo ...78 da União de freguesias ..., ... e ..., encontra-se inscrita a favor do requerido, junto da Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...17/... e inscrito no artigo matricial com o nº ...78, mediante aquisição por doação de 29.11.2012 – cfr. certidão de fls. 30 vs e segs. e fls. 32 vs. e 33.
14- A requerente em sede de requerimento para benefício de apoio judiciário, formulado em 09.09.2022, no âmbito do proc....22 (APJ), declarou que o rendimento liquido anual do seu agregado familiar ascendia ao montante de € 11.366,00 (doc. junto com o requerimento de oposição de 25.09.2023);
15- A requerente é acionista e sócia de várias empresas, a saber: EMP01..., S.A.; EMP02..., Lda.; EMP03..., Lda.; EMP04... – Sociedade de Investimentos Imobiliários ..., Unipessoal, Lda. (documentos juntos com o requerimento de oposição de 25.09.2023);
16- O requerido, em 2022, auferia do CNP, a título de pensão por velhice, o montante de mensal de € 977,88 (doc. junto com o requerimento de oposição de 25.09.2023);
17- A fração descrita anterior foi objeto de acordo de contrato de arrendamento;
18- O requerido, pelo menos nos últimos dois anos, aufere o valor de €200,00/mensal decorrente de renda da fração autónoma ...;
19- O requerido padece de problemas de saúde de foro cardíaco.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:
a) Aquando do divórcio, a requerente residia em Lisboa com a filha do dissolvido casal de nome GG, tendo decidido, voluntariamente, sair da casa da filha, em Lisboa, para ir morar de favor na casa do tio acima melhor identificado;
b) Nos últimos anos de vida em comum, requerente e requerida, residiam em Lisboa com a filha, sendo ali que estabeleceram a casa de morada de família;
c) Tendo sido indicado prédio em causa nos autos como casa de morada de família, aquando do divórcio, quando já não o era, tendo ficado a fração com apenas alguns bens pessoais das partes;
d) A requerente, quando aceitou o acordo fê-lo na perspetiva que a situação estaria finda, num prazo máximo de 1 ano;
e) O requerido usa aquela fração para “xingar” a requerente, sabendo que a sua situação é fruto de vergonha e mau-estar na família;
f) Os rendimentos da requerente são consumidos para fazer face às despesas básicas com os custos com energia elétrica, alimentação, transportes, telecomunicações, vestuário e higiene;
g) A requerente aufere lucros, dividendos, entre outros, pelo facto de ser acionista e sócia de várias empresas acima identificadas;
h) O requerido, por falta de pagamento de rendas, tem fundamento para intentar ação de despejo tendo por objeto o prédio correspondente à fração autónoma ..., só não o fazendo para poder invocar que não tem onde ficar;
i) Ainda que a fração ... estivesse livre e desocupada precisaria de obras, atento o estado de degradação em que se encontra;
j) A requerente tem o seu pai, com quase 90 anos, a morar sozinho em habitação de luxo e com vários quartos, em ... – ..., sendo desejo daquele que a filha vá para junto de si e lhe faça companhia.
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3.2. Da nulidade da sentença
A Recorrente veio alegar que a sentença recorrida é nula nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
Vejamos.
Dispõe o n.º 1 do referido artigo 615º que é nula a sentença quando: “a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.
Conforme é consabido as decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º.
As nulidades taxativamente previstas neste preceito não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável; a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, são coisas distintas.
Não deve, por isso, confundir-se o erro de julgamento, e muito menos o inconformismo quanto ao teor da decisão, com os vícios que determinam as nulidades em causa.
Como se afirma no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021 (Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Relatora Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt) “I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma”.
No que agora aqui releva, importa decidir se se verifica a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do referido artigo 615º.
Segundo a Recorrente está em causa a contradição entre os factos provados e a decisão final.
Vejamos então se lhe assiste razão.
A nulidade prevista na referida alínea c) pressupõe que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A este propósito pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/02/2022 (Processo n.º 3504/19.8T8LRS.L1.S1, Relatora Conselheira Rosa Tching considerando que “[n]o que concerne à causa de nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do citado art. 615º, vem a doutrina e a jurisprudência entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão. No dizer de Alberto dos Reis e de Antunes Varela, trata-se de um vício que ocorre quando os fundamentos indicados pelo juiz deveriam conduzir logicamente a uma decisão diferente da que vem expressa na sentença. Dito de outro modo e na expressão do Acórdão do STJ, de 02.06.2016 (proc nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1), «radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso». Ou seja, refere-se a um vício lógico na construção da sentença: o juiz raciocina de modo a dar a entender que vai atingir certa conclusão lógica (fundamentos), mas depois emite uma conclusão (decisão) diversa da esperada”.
Analisando a decisão recorrida, com a qual a Recorrente não concorda, direito que naturalmente lhe assiste, a verdade é que nela não detetamos, em nosso entender, qualquer divergência lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão e nem que os fundamentos desta indiquem um determinado sentido decisório e tenha sido proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso.
Na verdade, a Recorrente também o não alega, o que invoca é a existência de contradição entre os factos provados e a decisão final, ou seja, os fundamentos por si invocados reportam-se, não a vícios formais decorrentes de erro de atividade (error in procedendo), a vícios de formação ou atividade referentes à inteligibilidade e à estrutura do acórdão recorrido, mas, antes, ao seu mérito, a uma errada subsunção dos factos ao direito como expressamente refere a Recorrente. Contudo, o erro de julgamento (error in judicando), resultante de uma alteração/deformação da realidade factual ou na aplicação do direito, manifestando-se na apreciação da questão em desconformidade com a lei, não determina a nulidade da sentença.
Neste sentido veja-se (entre muitos) o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/04/2021 (Processo n.º 3167/17.5T8LSB.L1.S1, Relatora Leonor Cruz Rodrigues, também disponível para consulta em www.dgsi.pt) em cujo sumário se afirma: “I. A nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão contemplada no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. II. Consiste tal nulidade na contradição entre os fundamentos exarados pelo juiz na fundamentação da decisão e não entre os factos provados e a decisão” (sublinhado nosso).
Ora, como já referimos, as nulidades da sentença não se confundem com o chamado erro de julgamento, não padecendo a sentença recorrida da apontada nulidade.
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3.3. Da modificabilidade da decisão de facto
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Sustenta a Recorrente que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto ao ponto d) dos factos não provados, que em seu entender deve ser julgado provado, e invoca a existência de contradição nos pontos 9), 10) 11) e 12) e 16), 17) e 18) dos factos provados.
Vejamos se lhe assiste razão.
O ponto d) dos factos não provados tem a seguinte redação: “d) A requerente, quando aceitou o acordo fê-lo na perspetiva que a situação estaria finda, num prazo máximo de 1 ano”.
Da motivação da decisão recorrida consta o seguinte: “(…) No que concerne à matéria de facto dada como não provada e referida nas alíneas a) a j), que acima se fez referência, considerou-se a ausência de elementos de prova que apontem para a sua verificação. Ou seja. A matéria referida é tida como não demonstrada por ausência de elementos de prova que evidenciem com segurança, sendo certo que os depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidasem audiência de julgamento (únicos elementos de prova carreados para os autos que se reportam à matéria em referência, ainda que conjugados com os elementos documentos juntos) mostraram-se insuficientes para a sua demonstração e evidenciaram ausência de razão de ciência ou comprometimento na forma como foram prestados (conforme referido supra em sede de análise do depoimento prestado). Refira-se ainda que a matéria referida na alínea d) foi dada como não provada por se entender que os depoimentos prestados quer pelos filhos do dissolvido casal, quer pelas amigas da requerente em audiência de julgamento, no sentido da sua verificação, se mostram insuficientes para a sua demonstração, bem como o conteúdo do acordo em apreço nos autos, que aponta, face a critérios de normalidade, para uma ocupação prolongada do imóvel pelo requerido”.
Quanto ao ponto d) dos factos não provados
Sustenta a Recorrente que das declarações prestadas pelos seus filhos GG e BB decorre que a matéria de facto em causa deve ser julgada provada.
Relativamente às declarações do filho invoca a sua resposta à pergunta que lhe foi feita sobre os motivos porque a mãe aceitou que o pai ficasse a viver na casa: “(…) por duas razões, uma porque a minha mãe é um doce de pessoa e deixa as coisas fluírem e não pensa nisso. A segunda é uma muito simples, a minha mãe achou que o caso, as partilhas iriam demorar muito menos tempo e teve uma solução que era o tio avo dela tinha uma habitação, segunda habitação, que a permitiu morar la”.
Quanto às declarações prestadas pela filha GG (conforme transcrito pela Recorrente) são no sentido de que “na altura o que ficou acordado seria que, para ele aceitar o divórcio, seria o acordado que ele ficaria na casa até às partilhas, o que não era expectável é que…”
Daqui não decorre, naturalmente, que a Recorrente aceitou o acordo na perspetiva que a situação estaria finda, num prazo máximo de 1 ano; o que resulta da conjugação das declarações prestadas pelos filhos da Recorrente é que o acordado quanto à casa de morada de família foi uma forma do Recorrido aceitar o divórcio e este ficar resolvido de forma mais célere, e o facto da Recorrente ter uma alternativa (“uma solução”) relativamente à habitação até ser concretizada a partilha.
De todo o modo, como bem refere o tribunal a quo, a propósito da Recorrente estar alegadamente convencida de que a partilha seria mais célere, que “tal argumento não colhe porquanto a demora é uma situação previsível, tanto mais, tendo em atenção a alegada postura processual do ali (e aqui requerido) já então evidenciada. Aliás, impõe-se antes concluir, que tal afigurava-se como previsível face ao comportamento processual por ambos assumido em sede de divórcio (note-se que o acordo surgir após percorridas as várias fases processuais, ou seja, aquele foi realizado no dia designado para julgamento). Dito outro modo. O risco da demora no que à partilha respeita terá sido ponderado aquando da celebração do acordo de atribuição da casa de morada de família”.
A Recorrente invoca ainda as declarações das testemunhas HH e II, de onde entende resultar claramente demonstrada uma situação de instabilidade emocional e que o Recorrido tem outra habitação a que pode recorrer; tais circunstâncias, contudo, em nada relevam para que se possa julgar provado que a Recorrente quando aceitou o acordo fê-lo na perspetiva que a situação estaria finda, num prazo máximo de 1 ano. Inexiste, por isso, fundamento para dar como provada a matéria constante do ponto d) dos factos não provados.
Quanto à existência de contradição quanto aos pontos 9), 10) 11) e 12) e 16), 17) e 18) dos factos provados
Sustenta ainda a Recorrente, sob a epigrafe “Da contradição de factos” que o tribunal a quo deu como provados os pontos 9), 10), 11) e 12), ou seja dá como provada toda a factualidade alegada da alteração superveniente das circunstancia da vida da Recorrente e na decisão final, faz tabua rasa dessas circunstancias e desvaloriza a precaridade da Recorrente; e que deu como provados os pontos 16), 17) e 18), ou seja, dá como provado que o Requerido tem outro apartamento arrendado e que aufere rendas desse apartamento, e na argumentação final alega que o Requerido não tem melhor condição financeira do que a Requerente, o que é contraditório, uma vez que, relativamente à Autora apenas ficou provado que aufere a pensão mensal de cerca de €958,00, enquanto que o Requerido para além da reforma de €977,88 aufere ainda de rendas do apartamento arrendado, existindo uma clara evidencia que a situação económica do Reu é muito superior à Autora.
Ora, da simples leitura da alegação da Recorrente resulta manifesto que a mesma não invoca nenhuma concreta contradição entre os referidos pontos da matéria de facto, mas tão só o que entende ser uma incorreta interpretação dos mesmos e uma errada aplicação do direito no que se refere à verificação dos pressupostos para alteração da atribuição da casa de morada de família (o que adiante também iremos apreciar); de todo o modo dir-se-á que da análise dos mesmos resulta de forma linear inexistir qualquer contradição.
Assim, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida, mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª Instância.
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3.3. Da alteração da atribuição da casa de morada de família
Cumpre, agora, analisar se estão reunidos os pressupostos para alteração da atribuição da casa de morada de família efetuada por acordo em 4 de fevereiro de 2020.
Prevê o referido artigo 990º do CPC que aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família nos termos do disposto no artigo 1793º do Código Civil deduz o seu pedido indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
Estabelece o referido artigo 1793º do Código Civil que o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal (n.º 1), ficando tal arrendamento sujeito às regras do arrendamento para habitação, podendo o tribunal definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem. (n.º 2) e que o regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária (n.º 3).
Assim, sendo o objetivo da lei proteger o ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar, o critério geral para atribuição da casa de morada da família na sequência de ação de divórcio é o de que a mesma deve ser atribuída ao ex-cônjuge que mais precise dela.
Como se afirma no Acórdão desta Relação de 17/09/2020 (Processo n.º 114/14.0TCGMR-A.G1, relatado pela Desembargadora Ana Cristina Duarte, aqui 2ª Adjunta, disponível para consulta em www.dgsi.pt) “[a] necessidade da casa será, assim, o facto principal a atender, devendo o tribunal ter em conta, tanto a situação patrimonial dos cônjuges, como o interesse dos filhos, para além de outras razões atendíveis como, a idade e o estado de saúde dos ex-cônjuges, a localização da casa, o facto de algum deles dispor de outra casa em que possa viver, etc.”
Será com base nestes elementos que se irá apurar se a necessidade ou premência da necessidade de um dos ex-cônjuges será consideravelmente superior à do outro, de forma a que o tribunal atribua o direito ao arrendamento da casa de morada da família àquele que mais dela necessitar.
O artigo 1793º n.º 3 do Código Civil (na redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31/10) veio admitir expressamente que o regime fixado, seja o resultante da homologação do acordo dos cônjuges, seja o resultante de decisão do tribunal, possa ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária. Aliás, já assim pensava grande parte da doutrina e da jurisprudência antes da redação introduzida pela Lei n.º 61/2008 (v. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/02/2007, Processo n.º 0657165, Relator Pinto Ferreira, disponível em www.dgsi.pt, com extensa argumentação nesse sentido).
Temos, pois, de concluir que tal como preceituado no n.º 3 do artigo 1793º do Código Civil o regime fixado pode ser alterado nos termos gerais de jurisdição voluntária.
Tal significa que as resoluções tomadas no mesmo, sejam resultantes da homologação do acordo dos cônjuges, seja de decisão do tribunal, podem alteradas com base desde logo em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão proferida não acautelem devidamente os interesses de um dos ex-cônjuges, devendo o tribunal reponderar a situação dos mesmos, caso se alterem os pressupostos de facto (emprego, habitação, situação dos filhos, etc) que fundamentaram a decisão ou estiveram na base do acordo.
E conforme já referido é atualmente direito vigente a possibilidade de se alterar o regime (cfr. ainda o artigo 988º do CPC), sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adotando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna (cfr. artigo 987º do CPC).
Assim, tal como nos processos de jurisdição voluntária, o regime fixado é alterável sempre que se alterarem as circunstâncias, estando em causa “uma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula rebus sic stantibus ou seja um caso julgado com efeitos temporalmente limitados” (v. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/11/2023, Processo n.º 3202/18.0T8VIS-D.C1, Relatora Teresa Albuquerque, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Não está em causa, contudo, reapreciar a bondade da solução anterior, mas sim averiguar se houve alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a alteração do que então foi acordado/decidido.
Para o efeito, aquele que pretende obter a alteração deve alegar as circunstâncias que existiam no momento em que foi acordada ou decidida a atribuição da casa de morada de família e as circunstâncias verificadas no momento em que vem requer a alteração dessa atribuição.
De acordo com Salter Cid (A Proteção da Casa de Morada da Família no Direito Português, p. 314 a 316, apud o citado Acórdão desta Relação de17/09/2020) para que ocorra tal alteração é necessário: “a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adoção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...); b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...); c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...); d) E, finalmente, que a alteração ou variação afete as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adoção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).”
Analisemos então o caso concreto.
Conforme decorre da matéria de facto provada em 04/02/2020, foi proferida sentença homologatória de acordo, tendo sido decretado o divórcio entre a Requerente e o Requerido, tendo estes acordado, quanto à atribuição da casa de morada de família, que ficaria atribuída ao Requerido até à partilha.
Tal situação mantém-se, sendo que, estando já pendente o processo de inventário, foi aí decidido remeter para os meios comuns a discussão quanto à fração ... (indicada no âmbito da ação de divórcio como a casa de morada de família).
A Recorrente instaurou contra o Recorrido ação (que corre termos sob o proc. nº 278/23....) que tem por objeto da identificada fração ... e deduziu incidente de alteração da atribuição da casa de morada de família, pretendendo que a mesma lhe seja a si atribuída.
O tribunal a quo julgou improcedente a pretensão da Recorrente por entender que a “precaridade da habitação era uma situação que já existia, pelo que, temos que concluir que a possibilidade de perder o local onde passou a residir já era um risco antecipado. Em conclusão, ressalvando o devido respeito por diversa opinião, temos que todo o circunstancialismo agora invocado já se mostrava previsível à data da celebração do acordo homologado por decisão judicial. Entende-se assim que tal alteração não é idónea, por si só, a legitimar a pretendida alteração ao acordo celebrado entre as partes, no sentido da cessação do direito de o requerido ocupar a casa de morada de família. Na verdade, atentando na economia do acordo em referência, constata-se que as partes previram a ocupação prolongada do aludido imóvel pelo requerido, tanto assim que fizeram aquela corresponder à ocorrência da partilha, por um lado. Por outro, a permanência da requerente em casa emprestada pelo tio, revestia, face a critérios de normalidade, uma situação previsivelmente precária, sujeita à ulterior necessidade da mesma por parte dos seus proprietários, pelo que o óbito daquele com o fim do respetivo “empréstimo” não se mostra circunstância não acautelada pelas partes. É certo que resultou apurado que a requerente na sequência e após o divórcio ficou em casa emprestada do tio e, há cerca de um ano (desde junho/julho de 2024), tem vindo a ficar em casa ora de cada um dos filhos ora de uma irmã. Importa, porém, reter que tal precaridade corresponde ao previsto e existente na altura da celebração do acordo cuja alteração se discute nos autos – note-se, além do mais, que aquela alega que, aquando do divórcio, o casal tinha a casa de morada de família em Lisboa, o que acontecia desde 2013, junto da filha em casa arrendada –, o que obsta a que a sua alegação releve para legitimar a alteração pretendida pelo requerente ao acordado com o requerido”.
É contra este entendimento que se insurge a Recorrente sustentando que efetivamente ocorreu uma alteração das suas circunstâncias de vida, com a morte do tio e a entrega aos herdeiros do imóvel daquele, que deve ser considerava válida para efeitos de alteração da atribuição da casa de morada de família.
Vejamos se lhe assiste razão.
É inequívoco que ocorreu, após a celebração do acordo no processo de divórcio, uma alteração de circunstâncias, consubstanciada no óbito do tio e na necessidade de entrega do imóvel aos seus herdeiros, no qual a Recorrente, na sequência do divórcio, e bem assim, da celebração do acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, passou a residir provisoriamente, determinante da Recorrente (pelo menos desde junho/julho de 2023) vir a pernoitar em casa de (outros) familiares.
Porém, o que aqui se tem de questionar é se estamos perante uma alteração substancial (importante ou fundamental) relativamente às circunstâncias consideradas no acordo, de tal forma que a mesma afeta as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes nesse momento (do acordo) e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto determinante do mesmo.
Ora, do que resulta dos autos não vemos que se tenha alterado de forma substancial, o circunstancialismo que foi determinante para o acordo celebrado.
Vejamos.
Conforme a Recorrente alegou no requerimento inicial do presente incidente, o prédio em causa foi indicado como casa de morada de família quando já não o era, pois nos últimos anos de vida em comum, Requerente e Requerido viviam com a filha em Lisboa; ou seja, a Recorrente vivia com a filha.
Posteriormente, sabemos apenas que na sequência do divórcio, e bem assim, da celebração do acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, a Recorrente passou a residir provisoriamente num prédio de ..., seu tio, cuja entrega foi solicitada pelos herdeiros após o óbito do mesmo e que pelo menos desde junho/julho de 2023 que tem vindo a ficar em casa de familiares (ora de cada um dos filhos ora de uma irmã).
Em face de tal circunstancialismo temos de concluir que, tal como afirmado na decisão recorrida, “a precaridade da habitação era uma situação que já existia” e “a possibilidade de perder o local onde passou a residir já era um risco antecipado”. No momento da celebração do acordo que previu a atribuição da casa de morada de família ao Recorrido, até ao momento da partilha, já a Recorrente vinha residindo com familiares (a filha), passando na sequência do acordo a residir provisoriamente em casa de um tio e, com o óbito deste, a residir com os filhos ou com uma irmã.
Assim, concordamos com a decisão recorrida quando considerou que a alteração ocorrida não é idónea, por si só, a legitimar a alteração do acordo celebrado entre as partes, no sentido da cessação do direito de o Recorrido ocupar a casa de morada de família (que a Recorrente até alega que o não era) e de tal direito lhe ser a si atribuído.
Impõe-se, pois, julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade da Recorrente em face do seu integral decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 16 de janeiro de 2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Raquel Baptista Tavares (Relatora) António Figueiredo de Almeida (1º Adjunto) Ana Cristina Duarte (2ª Adjunta)