SERVIDÃO DE ESCOAMENTO
DESNECESSIDADE
CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Sumário


1 - O caso julgado impor-se-á, por via da sua autoridade, quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação, mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir.
2 - O tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da (segunda) ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação (sem nova apreciação ou discussão), os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão
3 - A autoridade do caso julgado pressupõe, assim, uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva no objeto de uma ação posterior, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

Texto Integral


Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 1109)
Adjuntos: António Figueiredo de Almeida
Afonso Cabral de Andrade

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
           
AA e mulher BB deduziram ação declarativa contra CC e marido DD pedindo que se declare judicialmente extinta por desnecessária a servidão de escoamento de águas pluviais descrita nos artigos 10.º a 12.º da petição inicial constituída por usucapião a favor dos réus, que onera o prédio rústico melhor identificado no artigo 2.º da petição inicial, do qual são proprietários e legítimos possuidores os autores.

Alegaram que, por acórdão transitado em julgado, proferido a 25/05/2023, foi declarado que, em benefício da propriedade dos réus aí identificada e onerando o prédio rústico dos autores, se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de escoamento de águas pluviais, que se processa através do tubo aí também identificado, através do qual a água pluvial que cai sobre o identificado prédio dos réus e que é captada pelo referido tubo é despejada diretamente naquele prédio rústico dos autores, condenando estes a reconhecer a servidão assim constituída e a desobstruírem o tubo em causa.
Mais alegaram que os réus não se servem da referida servidão e que procederam a diversas obras no seu prédio, em virtude das quais as águas pluviais passaram a escoar diretamente pela parte da frente do seu prédio, desaguando no caminho público, não necessitando, assim, da servidão constituída a seu favor pelo prédio dos autores.
Os réus contestaram, excecionando o caso julgado por os factos agora alegados na petição inicial terem sido já objeto de decisão judicial transitada em julgado, que os deu como não provados, sendo que, desde a constituição da servidão de escoamento de águas, nada foi alterado e as obras realizadas pelos réus no seu prédio (já consideradas na anterior decisão) não interferiram com a servidão, que se manteve inalterada, não ocorrendo qualquer alteração da factualidade que esteve na sua origem.
Notificados para tal, os autores responderam à exceção alegando não existir repetição da causa, apenas existindo identidade de sujeitos, mas já não de pedido, nem de causa de pedir. Acrescentam que a desnecessidade da permanência da servidão deve ser aferida pelo momento da introdução da ação em juízo, sendo sempre superveniente em relação à constituição da servidão e que, no caso, os réus continuaram com as obras já iniciadas de ampliação, impermeabilização, compactação do logradouro, que não se encontravam findas à data da sentença proferida na anterior ação e que, com tais obras, as águas pluviais do prédio dos réus passaram a ser escoadas diretamente para a via pública, pelo seu prédio urbano, o que faz com que não necessitem da servidão constituída a seu favor pelo prédio dos autores.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador-sentença que, na procedência da exceção de autoridade do caso julgado, decidiu absolver os réus da instância.

Os autores interpuseram recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

1. Salvo o devido respeito, os Recorrentes entendem que andou mal o Tribunal a quo ao julgar procedente a exceção de caso julgado invocada pelos RR.
2. A nossa lei adjetiva define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado traduz-se na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do despectivo trânsito em julgado (cfr., ainda, artigo 628º do Código de Processo Civil).
3. Ao caso julgado material são atribuídas duas funções: uma função positiva ("autoridade do caso julgado") e uma função negativa ("exceção do caso julgado").
4. verifica-se o caso julgado quando a repetição de uma causa se dá depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (cfr. parte final do nº 1 do artigo 580º do Código de Processo Civil).
5. Nos termos do nº 1 do artigo 581º do Código de Processo Civil a causa repete-se, quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto: aos sujeitos, ao pedido, e à causa de pedir.
6. Esclarecendo o alcance do caso julgado, preceitua o artigo 621º do Código de Processo Civil que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.”
7. Atendendo à natureza da sua eficácia com alcance externo, o caso julgado material está sujeito quer limites objetivos e subjetivos (questão a que diretamente se refere aquela tríplice identidade exigida pelo nº 1 do artigo 581º anteriormente analisada), mas também temporais.
8. O caso julgado é temporalmente limitado, tomando como referência temporal o momento do encerramento da discussão em 1ª. instância, tal como decorre do disposto no nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil, pelo que: “a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.”
9. Já para as partes, o estabelecido naquele nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil significa que têm o ónus de alegar os factos supervenientes, ou a verificação superveniente de factos alegados, que ocorram até ao encerramento da discussão em 1ª. Instância.
10.Nos presentes autos, não se verifica a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir.
11.Na primeira ação, intentada por aqui Recorridos, foi pedido o reconhecimento da constituição de uma servidão de escoamento de águas pluviais, que veio a ser reconhecida por se ter constituída por usucapião.
12.Na segunda ação, as partes encontram-se invertidas, assumindo os aqui recorrentes a posição de Autores e, peticionando a desnecessidade da servidão.
13.A considerar-se a existência de casa julgado nos presentes autos, levará forçosamente a concluir, que àquele a quem foi imposta uma servidão reconhecida judicialmente, por sentença, nunca poderia vir peticionar pela sua desnecessidade, quando confrontado com tal pedido, apresentou a sua oposição, por factos que são posteriores.
14.O que não é verdade, pois o artigo 1569º, n.º2 do Cód. Civil, dispõe que “ As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.
15.Desde a sentença transitada em julgado, até à presente data, os Recorridos continuaram a levar a cabo várias intervenções, que se encontram agora finalizadas e, que vieram alterar completamente a impermeabilização e compactação do logradouro.
16.Tanto que, as águas pluviais do prédio dos Réus, estão a ser escoadas diretamente para a via pública, pelo seu prédio urbano, o que faz com que os Réus não necessitem da servidão constituída a seu favor pelo prédio dos Autores.
17.Os factos a que os Recorrentes invocam reportam-se a uma situação que só se finalizou integralmente, em momento posterior ao encerramento da discussão.
18. A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
19.A eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida invocada.
20.O que não sucede nos presentes autos.
21.As obras não estavam findas no momento do encerramento da discussão no processo anterior.
22.A desnecessidade da servidão é apurada tendo em consideração a realidade fáctica existente no momento em que é instaurada a competente ação.
23.A decisão anterior que reconheceu a existência de uma servidão, apesar de definidora de direitos e efeitos jurídicos, não é um pressuposto indiscutível, no sentido em que a necessidade da servidão tem de ser avaliada casuisticamente.
24.Entendeu ainda o Tribunal a quo, que “Por outro lado, estando em causa, como estão, nesta e na primeira ação, os mesmos factos que aqui constituem a sua causa de pedir e naquela os factos impeditivos do direito invocado pelos então RR. (aqui AA.), sobre estes últimos recaía o ónus de deduzirem reconvenção na primeira ação, pedindo desde logo a declaração da extinção, por desnecessidade, da servidão invocada pelos então AA., isto mesmo sabendo-se que a dedução de reconvenção não é obrigatória”.
25.Salvo o devido respeito, não podem os Recorrentes concordar com esta afirmação.
26.Primeiramente, porque os factos invocados na primeira ação, diziam respeito a procedimentos que estavam a ser levados a cabo pelos Recorridos e, que só terminaram após o encerramento da primeira ação, precludindo, assim, o ónus de os invocar em sede de reconvenção, uma que são supervenientes àquela.
27. Além do mais, os factos que invocados na primeira ação, independentemente, da sua aferição como “provados” ou “não provados”, tem o seu alcance no âmbito daquela determinada pretensão judicial.
28.Não constituem uma verdade material absoluta, impossível de ser novamente aferida.
29.Estão sujeitos à mutabilidade da prova que é produzida no seio da discussão processual e, inevitavelmente, tem de ser avaliados no contexto em que se inserem e, tendo em consideração eventuais mutações, a que estão sujeitos.
30.Pelo que, sobre os factos invocados numa ação anterior não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo.
31.Pelo que, por tudo o quanto exposto, não estão preenchidos os requisitos da autoridade de caso julgado projetada pela sentença judicial proferida no processo n.º 37/22...., de modo que a ação deverá prosseguir os seus termos.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e proferindo-se douto acórdão em conformidade com as alegações supra formuladas.
Com o que se fará JUSTIÇA!

Os réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se por via da autoridade de caso julgado a relação jurídica material definida em sentença proferida em ação anterior se impõe como pressuposto da decisão a proferir nesta segunda ação.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença recorrida e no que diz respeito ao caso concreto – para lá dos considerandos teóricos sobre a exceção do caso julgado e a autoridade do caso julgado (função negativa e função positiva do instituto do caso julgado material) – diz-se o seguinte:
“Debrucemo-nos sobre o caso concreto, analisando, como não poderia deixar de ser, os dois processos em que os RR. assentam a exceção do caso julgado, embora possamos desde já adiantar que não nos encontramos perante uma situação de caso julgado, dado ser inequívoco que não se verifica a tríplice identidade prevista no artigo 581.º, n.º 1, do CPC. De feito, embora as partes sejam as mesmas nas duas ações (embora em vestes diferentes, o que não assume foros de relevância no que tange com o instituto jurídico em apreço), são distintas quer a causa de pedir, quer o pedido. No processo n.º 37/22...., verifica-se que a ação foi instaurada pelos aqui RR. contra os aqui AA., sendo ponto assente que estão em causa os mesmos prédios que foram identificados, na presente ação, pelos AA. No acórdão proferido naqueles autos, que revogou em parte a sentença, decidiu-se, para o que interessa, “que em benefício do prédio propriedade dos apelados (Autores) identificado no ponto 1º da facticidade apurada, onerando o prédio rústico propriedade dos apelantes (Réus) identificado no ponto 8º da facticidade apurada encontra-se constituída, por usucapião, uma servidão de escoamento de águas pluviais, que se processa através do tubo identificado nos pontos 14º, 17º, 18º e 21º dos factos apurados, através do qual a água pluvial que cai sobre o identificado prédio dos apelados e que é captada pelo referido tubo é despejada diretamente naquele prédio rústico dos apelantes”, e condenaram-se os RR. a reconhecerem “a servidão de escoamento de águas pluviais assim constituída e a desobstruírem o tubo identificado em c.1)”.

Na contestação que os aqui AA. apresentaram no citado processo, alegaram o seguinte:

“2º Os AA. estão a proceder a obras de remodelação e ampliação do seu prédio identificado no art. 1º da petição inicial.
 3º Procederam à ampliação da casa original e procederam à construção de um anexo.
4º Procederam a regularização do logradouro com aterro, procederam à compactação do solo, e altearam a cota do mesmo. 5º E procederam à construção de muros em todo o seu perímetro. 6º A cota do prédio dos RR. deixou de ser uniforme: passou a ter uma cota inferior junto ao prédio dos RR. identificado no art. 9º da PI e junto ao caminho público a poente, apresentando-se agora em declive, uma parte para o prédio dos RR. e outra parte para o caminho público.
 7º Com as construções levadas a cabo pelos AA. o seu prédio apresenta áreas de impermeabilização do solo diferentes das que antes possuía.
8º Nomeadamente com a ampliação da moradia, do anexo e a com a construção de passeios.
 10º Pois os AA. pretendem escoar as águas pluviais que caem sobre o seu prédio, conduzindo-as para o prédio dos RR., e que estes suportem essas mesmas águas deixando de poder dispor do seu prédio.
11º Ora, os AA., que estão a ampliar a moradia e a construir anexos, facilmente poderão construir – tal como os AA. o fizeram no seu prédio e os demais vizinhos – uma conduta de águas pluviais para a via pública a poente.
14º Os AA. têm anexos construídos desde 2006 a ladear o prédio dos AA., pelo que é impossível o escoamento das águas sobre o prédio dos RR”. 
Por sua vez, os aqui AA. alegam a seguinte factualidade para estribarem o pedido de extinção, por desnecessidade, da servidão de escoamento de águas que a sentença proferida no processo n. º37/22.... declarou encontrar-se constituída por usucapião:
 “14º Os Réus procederam a diversas obras no seu prédio, que resultaram na construção de vários anexos e na alteração do próprio solo.
15º Os Réu procederam à ampliação da casa original e à construção de um anexo, bem como à regularização do logradouro com aterro e compactação do solo, alteando a cota do mesmo.
16º Com as construções levadas a cabo pelos Réus, o seu prédio apresenta áreas de impermeabilização do solo diferentes das que antes possuía, nomeadamente com a ampliação da moradia, do anexo e com a construção de passeios.
17º Em virtude das quais, as águas pluviais do prédio dos Réus, passou a ser escoada diretamente para a via pública, pelo seu prédio urbano.
18º A águas pluviais do prédio dos Réus, escoam diretamente pela parte da frente do seu prédio, desaguando no caminho público.
29º As alterações a nível de pavimento e a construção de anexos e passeios pelos Réus, alterou o rumo das águas pluviais e, permitiu o seu total escoamento diretamente do prédio para a via pública, sem necessidade de o fazer pelo prédio dos Autores.
30º O prédio dos Autores tornou-se desnecessário ao suprimento das necessidades do prédio dos Réus, para o fim que havia sido onerado com a servidão, o escoamento de águas pluviais, pelas sucessivas beneficiações que, entretanto, obteve. De resto,
31º Atualmente é inquestionavelmente que o escoamento é feito integralmente de forma direta, fácil e eficaz, diretamente do prédio dos Réus, para a via pública”.
(…)
Sucede que, comparando a factualidade alegada pelos AA. na petição inicial com aqueloutra que alegaram na contestação que ofereceram no processo n.º 37/22...., o que se verifica é que uma é idêntica à outra, ao que acresce que não foi alegado um único facto ocorrido posteriormente ao trânsito em julgado da sentença que possa fundamentar o pedido formulado na ação. 
Na primeira ação os RR., aqui AA., defenderam a inexistência da servidão de escoamento de águas (“Os AA. têm anexos construídos desde 2006 a ladear o prédio dos AA., pelo que é impossível o escoamento das águas sobre o prédio dos RR”), enquanto nesta, necessariamente vinculados pelo decidido na sentença proferida na primeira ação – reconhecendo, por isso, a existência daquele direito –, pedem que o mesmo seja declarado extinto por desnecessidade. Todavia, a verdade é que, como fundamento de ambas as pretensões – fosse para obter a improcedência da primeira ação, seja para obter a declaração de extinção da servidão ali reconhecida nos presentes autos –, os aqui AA., ali RR., alegam a mesma factualidade nas duas ações. 
Acontece que a factualidade em causa, como vimos, já foi objeto de discussão na primeira ação. Com efeito, na sentença proferida nesses autos o Tribunal julgou como não provada a seguinte factualidade:
 “a) O facto descrito no número 12 (ou seja, os anteriores proprietários do prédio dos AA. em causa nos autos, construíram um anexo na extrema nascente do mesmo, ao correr do prédio dos RR., o que deu como provado), ocorreu no ano de 1995, e o anexo em causa tem uma extensão de cerca de 7 metros e largura de cerca de 4 metros.
 b) Toda esta situação tem gerado nos AA. muita ansiedade e preocupação, tanto mais pelo aproximar das chuvas de outono e inverno, as quais, não sendo desobstruídos os orifícios em questão, poderão conduzir à inundação do seu imóvel, causando danos no mesmo.
 c) Os Autores tivessem procedido à regularização do logradouro do prédio identificado no ponto 1º dos factos provados com aterro e compactação do solo, alteando a cota do mesmo (este facto foi aditado pelo Tribunal da Relação no acórdão proferido nos autos).
 d) A cota do prédio dos Réus deixou de ser uniforme, passou a ter uma cota inferior junto ao prédio dos RR. e junto ao caminho público a poente, apresentando-se agora em declive, uma parte para o prédio dos RR. e outra parte para o caminho público. 
e) Com as construções levadas a cabo pelos AA. o seu prédio apresenta áreas de impermeabilização do solo diferentes das que antes possuía, nomeadamente com a ampliação da moradia, do anexo e com a construção de passeios. 
f) Os AA. pretendem escoarem as águas pluviais que caem sobre o seu prédio, conduzindo-as para o prédio dos RR., e que estes suportem essas mesmas águas deixando de poder dispor do seu prédio.
 g) Ora, os AA., que estão a ampliar a moradia e a construir anexos, facilmente poderão construir – tal como os AA. o fizeram no seu prédio e os demais vizinhos – uma conduta de águas pluviais para a via pública a poente  
Os Réus tinham anexos construídos desde 2006, a ladear o prédio dos Autores, pelo que é impossível o escoamento das águas sobre o prédio dos Réus” (este facto foi aditado pelo Tribunal da Relação no acórdão proferido nos autos).
 Ou seja, deu-se como não provada precisamente a mesma factualidade que os aqui AA. alegaram na petição inicial e que é coincidente, como vimos, com a que alegaram na contestação que apresentaram na primeira ação (cfr., designadamente, as alíneas c) a e)), sendo certo, repetimo-lo também, que não vem alegada a superveniência – por referência ao trânsito da sentença proferida nos primeiros autos – de nenhum dos factos alegados na petição inicial”.

Vejamos.
Conforme vem explanado no Acórdão do STJ de 04/07/2023, processo n.º 142/15.8T8CBC-C.G1.S1, in www.dgsi.pt, com um resumo claro da jurisprudência do STJ sobre o instituto do caso julgado e seu conexo autoridade de caso julgado e que aqui vamos seguir: “É entendimento dominante neste Supremo Tribunal, que a exceção do caso julgado pressupõe a identidade de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos entre os processos em confronto - cf., entre outros, os Acórdãos, de 22/02/2018 (Revista n.º 18091/15.8T8LSB.L1.S1), de 18/02/2021 (Revista n.º 3159/18.7T8STR.E1.S1) e de 23/02/2021 (Revista n.º 2445/12.4TBPDL.L1.S1).
Por outro lado, relativamente ao efeito positivo do caso julgado, ou seja a autoridade do caso julgado, vem sendo entendimento maioritário neste STJ a dispensa da necessidade da tríplice identidade, conforme se afirma o Acórdão do STJ, de 11/11/2020 (Revista n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1), no qual se conclui que “quanto à alegada ofensa da autoridade do caso julgado formado na segunda ação anterior invocada importa ter presente que a jurisprudência do STJ vem admitindo – em linha com a doutrina tradicional – que a autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, sem dispensar, porém, a identidade subjetiva. Significando que tal dispensa se reporta apenas à identidade objetiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objeto da segunda ação e o objeto da primeira.” - Neste sentido pronunciaram-se também os Acórdãos do STJ, de 26/11/2020 (Revista n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1), de 24/10/2019 (Revista n.º 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2), de 13/09/2018 (Revista n.º 687/17.5T8PNF.S1), de 28/03/2019 (Revista n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1), e de 30/04/2020 (Revista n.º 257/17.8T8MNC.G1.S);
Em termos doutrinários, esta jurisprudência segue o sentido das posições assumidas por Rui Pinto (In Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar Online, Novembro 2018, pp. 28 e ss.), Lebre de Freitas (In Um Polvo Chamado Autoridade de Caso Julgado, pp. 700 e ss. e in A Extensão Subjetiva da Eficácia do Caso Julgado, pp. 613), Miguel Teixeira de Sousa (In Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 581 e ss.), Ferreira de Almeida (In Direito Processual Civil, Vol. II, 2.ª edição, 2020, Almedina, pp. 719 e ss.).
Relativamente à autoridade do caso julgado exige-se, igualmente, que o caso decidido anteriormente seja prejudicial relativamente ao caso que vai ser julgado e bem assim que se mostre ínsito, ainda que parcialmente, no objeto do processo que vai ser decidido.
É este, também, o entendimento na jurisprudência do STJ, que o âmbito objetivo da autoridade do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão, - cf., entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/02/2019 (Revista n.º 3263/14.0TBSTB.E1.S1); de 12/01/2021 (Revista n.º 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1); de 2/12/2020 (Revista n.º 3077/15.0T8PBL.C1-A.S1); de 26/11/2020 (Revista n.º 7597/15.9T8LRS.L1.S1) - Conforme se afirma no Acórdão do STJ, de 22/02/2018 (Revista n.º 3747/13.8T2SNT.L1.S1), a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa e abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
Nas palavras de Lebre de Freitas e de Isabel Alexandre (In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, Reimpressão, pp. 599-590), o efeito positivo do caso julgado conferido pela figura da autoridade “assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…) ou o fundamento da primeira decisão, excecionalmente abrangido pelo caso julgado (…) é também questão prejudicial na segunda ação.”.
Cabe, então, agora, partir para o caso concreto.
Sustentam os apelantes que, nos presentes autos não se verifica a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, motivo pelo qual não ocorre a exceção de caso julgado. Na primeira ação foi pedido o reconhecimento da constituição de uma servidão de escoamento de águas pluviais, que veio a ser reconhecida por se ter constituído por usucapião, enquanto que, na segunda ação, as partes encontram-se invertidas, assumindo os aqui recorrentes a posição de autores e peticionando a desnecessidade da servidão, por factos que são posteriores.
Ora, é aqui que os recorrentes não têm razão.
É certo que o artigo 1569.º, n.º 2 do Código Civil prevê a declaração judicial de extinção de servidões constituídas por usucapião, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante (entendendo-se esta desnecessidade como ausência de qualquer utilidade).
Contudo, como bem ficou demonstrado na sentença recorrida, os factos alegados aqui em sede de petição inicial, são os mesmos que já foram alegados na ação anterior, em sede de contestação, onde os agora autores (e ali réus) defenderam a inexistência de servidão de escoamento de águas e, confrontados com a sentença ali proferida que reconheceu a existência da servidão, pedem, agora, que a mesma seja declarada extinta, por desnecessidade, alegando a mesma factualidade.
Factos esses que já foram objeto de discussão e julgamento na primeira ação e que, em sede de recurso relativo à impugnação da decisão de facto, foram exaustivamente analisados conforme decorre da certidão de tal acórdão junta a estes autos.
Os factos agora alegados não são, portanto, posteriores. Já foram alegados na ação anterior, apesar de com objetivo diferente. Veja-se que até a redação dos diferentes artigos é idêntica nas duas ações, apenas se concluindo diferentemente, em virtude dos diferentes objetivos pretendidos – na primeira obstar à constituição da servidão e, na segunda, pedir a sua extinção.
Certo é, assim, que tais factos já foram objeto de discussão e julgamento na ação anterior, onde foram invocados a título de exceção, aí se tendo concluído pela constituição da servidão por usucapião, após terem sido apreciados tais factos consubstanciadores da exceção alegada, pelo que não podem, sem que se alegue ou demonstre a sua superveniência (até porque são os mesmos), servir de base ao efeito contrário, ou seja a extinção da servidão por desnecessidade.
“O caso julgado impor-se-á, assim, por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação, mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da (segunda) ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação (sem nova apreciação ou discussão), os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão” Acórdão da Relação de Coimbra de 11/06/2019, processo n.º 355/16.5T8PMS.C1 (Catarina Gonçalves), in www.dgsi.pt.
Cabe concluir, portanto, pela procedência da autoridade do caso julgado que pressupõe uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva no objeto de uma ação posterior, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa -  cf. o Acórdão do STJ, de 7/03/2023 (Revista n.º 1628/18.8T8VCT.G1.S1).

Deve, ainda, dizer-se que, como bem vem salientado na decisão sob recurso, “estando em causa como estão, nesta e na primeira ação, os mesmos factos que aqui constituem a sua causa de pedir e naquela os factos impeditivos do direito invocado pelos então RR. (aqui AA.), sobre estes últimos recaía o ónus de deduzirem reconvenção na primeira ação, pedindo desde logo a declaração da extinção, por desnecessidade, da servidão invocada pelos então AA., isto mesmo sabendo-se que a dedução de reconvenção não é obrigatória.  Não o tendo feito, ficou precludida a possibilidade de pedirem tal efeito em ação ulterior, atento o disposto no artigo 573.º, n.º 1, do CPC. Neste particular,  explica Miguel Mesquita (in Reconvenção e Excepção em Processo Civil, págs. 418 e ss., apud Ac. do STJ de 1.10.12) que “o réu que se absteve de alegar direitos acaba por ver precludida a possibilidade de vir a obter uma futura decisão que afete, na prática, o resultado anteriormente alcançado pelo adversário”, ficando, por isso, “inibido de propor uma contra-acção independente, baseando-se em factos anteriores deduzidos sem êxito ou que, podendo ter sido deduzidos em sua defesa, o não foram”, pelo que o réu tem “sempre de jogar, no momento em que contesta, com a possibilidade de vir a ser proferida uma sentença favorável ao autor. Porque sobre esta se forma caso julgado material, o réu não pode, através de uma ação, com base em factos anteriores, vir a afetar o teor da sentença neste proferida”.

Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

***
Guimarães, 16 de janeiro de 2025

Ana Cristina Duarte
António Figueiredo de Almeida
Afonso Cabral de Andrade