TRIBUNAL COMPETENTE
RECONHECIMENTO DE UNIÃO DE FACTO
NACIONALIDADE
TRIBUNAL CÍVEL
Sumário

Sumário (da responsabilidade do relator):
O tribunal competente para tramitação de ação de reconhecimento de união de facto para efeito de Lei da Nacionalidade é o cível;

Texto Integral

Decisão:

I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 1;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Ação de processo comum declarativo;
- Decisão recorrida – Despacho de declaração de incompetência material.
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente (Réu):
- Estado português;
- Recorridos (autores):
- ---;
- ---. –
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I.III. Síntese dos autos:
- Pediram os autores reconhecimento da sua união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa;
- Disseram, em síntese:
- Que vivem em comunhão completa de vida desde o ano de 2001, sendo pais em comum de dois filhos, de nacionalidade portuguesa, nascidos em 2003 e 2007.
- Citado, contestou o réu, representado pelo Ministério Público, impugnando genericamente a matéria alegada.
- O Mm.º juiz a quo proferiu despacho suscitando pronúncia das partes sobre eventual declaração de incompetência do Juízo Cível, em razão da matéria;
- Pronunciou-se o réu Estado no sentido de ser competente o Juízo Cível;
- Pronunciaram-se os autores no sentido de ser competente o Juízo Cível e, caso seja decidido pela incompetência, solicitar remessa dos autos ao Juízo de Família e Menores competente;
- Na sequência, foi proferido o despacho recorrido, cujo dispositivo é: 
- julga-se procedente a excepção dilatória de incompetência, declarando-se incompetente este Tribunal em razão da matéria para conhecer da presente acção, absolvendo, em consequência, o Réu da instância.
- De tal decisão interpôs o réu Estado a presente apelação. –
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II. Objeto do recurso (delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente):
II.I. Conclusões apresentadas pelo recorrente nas suas alegações:
1. O presente recurso incide sobre a sentença proferida em 24 de Maio de 2024, através da qual o Tribunal a quo se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da presente ação declarativa de simples apreciação positiva de reconhecimento de união de facto entre os Autores --- e ---, esta última de nacionalidade brasileira, por entender que o Tribunal materialmente competente para tramitar o presente processo é o Juízo de Família, ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.º 2, al. g) da Lei n.º 62/2013 (LOSJ).
2.  Todavia, não lhe assiste razão.
3. No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 07 de dezembro de 2023, no Processo nº 10055/22.1T8LSB.L1, foi decidido que: “I. Entre as duas normas em confronto, o art. 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade e o art. 122º n 1 al. g) da LOSJ, verifica-se uma relação de especialidade, porquanto a primeira estabelece a competência do tribunal (cível) no caso específico da ação de reconhecimento da união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade portuguesa, enquanto que a segunda tem um caráter generalista, abstraindo-se do fim último da ação. II. O reconhecimento judicial da situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa compete ao Tribunal Cível e não ao Tribunal da Família e Menores”.
4. No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 25 de Janeiro de 2024, disponível em www.dgsi.pt, decidiu-se que é o juízo local cível – e não o juízo de família e menores - o tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir das acções de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa, a que se referem o artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro.
5. Concorda-se, na íntegra, com o decidido nos mencionados Arestos e com os fundamentos aí invocados.
6. Nos mencionados Acórdãos foi decidido que a competência material para o julgamento das ações de reconhecimento judicial da união, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa é dos tribunais cíveis, e não dos tribunais de família e menores, face à atribuição de competência específica constante do artigo 3.°, n.º 3 da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril (Lei da Nacionalidade).
7. Ao atribuir-se especificamente, na Lei da Nacionalidade, a competência material aos tribunais cíveis para conhecer este tipo de ações, norma esta que se manteve com a entrada em vigor da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, impõe-se concluir que a norma constante do art.° 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade é norma especial relativamente às regras gerais de distribuição de competência dos tribunais judiciais.
8. Dessa forma, não pode considerar-se que tal norma da Lei da Nacionalidade, tenha sido tacitamente revogada pela regra geral do art.° 122, n.º 1, alínea g), constante da LOSJ, já que a norma especial prevalece sobre a norma geral.
9. Ao considerar-se materialmente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, a sentença de que ora se recorre padece de erro de julgamento, por parte do Tribunal a quo, no que concerne à norma aplicável no presente caso, uma vez que não aplicou o artigo 3°, n.°3 da Lei da Nacionalidade, norma essa especial face à norma constante do artigo 122.°, n.º 1, al. g), da LOSJ, tendo sido feita, pelo Tribunal a quo, uma errada interpretação e aplicação desta última norma.
10. 10. O Tribunal a quo violou as normas ínsitas nos artigos 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade, e 122.°, n.º 1, al. g), da Lei de Organização do Sistema Judiciário. A sentença de que ora se recorre não deverá ser mantida, devendo ser revogada, ordenando-se o prosseguimento dos presentes autos.
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- Os autores não contra-alegaram.
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II.II. Questões a Apreciar:
A única questão a apreciar no caso é a competência para a tramitação destes autos, em razão da matéria, se da jurisdição cível ou da jurisdição de família.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
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a) Questões prévias – precisão da decisão e omissão:
Antes de avançar para o conhecimento da questão decidenda, cumpre fazer duas referências breves, a primeira para assinalar alguma imprecisão no dispositivo da decisão recorrida ao aludir a procedência (de exceção de incompetência), que não foi suscitada por qualquer das partes e, pelo contrário, foi objeto de pronúncia no sentido oposto por ambas, e a segunda para assinalar que, a despeito do expressamente requerido pelos autores (ainda que em momento anterior à prolação de decisão), o despacho recorrido limitou-se a absolver o réu da instância, não se pronunciando sobre eventual remessa dos autos ao Juízo de Família, ao abrigo do disposto no art.º 99.º n.º 2 do CPC (algo poderia levar a que tivessem seguido a despeito da decisão ou que a questão em apreço tivesse sido dirimida em sede de conflito de competência).
Em todo o caso, face à posição do réu Estado, ainda que tal caminho tivesse sido trilhado, é de presumir que não tivesse sido diferente a solução em termos de tramitação dos autos.
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b) O tribunal competente para a ação de reconhecimento de união de facto em matéria de nacionalidade:
Como consta expressamente da decisão recorrida, esta é uma questão que tem merecido tratamento díspar ao nível da jurisprudência, sendo, manifestamente, matéria a carecer de uniformização.
Invoca o tribunal recorrido, a este propósito, jurisprudência unânime da Relação de Coimbra no sentido da atribuição de competência à jurisdição de família e divergências jurisprudenciais nos outros tribunais superiores.
Pode aduzir-se, reforçando este sentido, que a Relação do Porto, em decisão singular do seu Presidente em sede de conflito de competência relativo a esta questão, tomou partido precisamente pela competência do Tribunal de Família (decisão singular Relação do Porto de 15/2/24, Igreja Matos, ecli.pt), ainda que se encontre abundante jurisprudência desta Relação do Porto em sentido oposto, (vide acórdãos do ano de 2024, de 19/3/24, Alberto Taveira e 26/1/24, Judite Pires, ambos em ecli.pt.)
No Distrito Judicial de Lisboa a orientação dominante tem sido a oposta, como se pode ver, designadamente, pelos acórdãos de 4/7/24 (Laurinda Gemas);  7/7/22 (Inês Moura); 23/6/22 (Anabela Calafate), todos em ecli.pt.
Significativa será a decisão do Vice-Presidente desta Relação, Carlos Castelo Branco, em sede de conflito de competência sobre esta matéria que, designadamente, por decisão de 15/4/24, perfilhou entendimento de atribuição de competência à jurisdição cível (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2024:2052.23.6T8SXL.L1.8.D9/) – vide ampla jurisprudência aí referida e considerada.
Também ao nível do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a questão não tem merecido tratamento uniforme, podendo referir-se, no sentido de atribuir competência à jurisdição de família, o acórdão de 16/11/23 (Clara Sottomayor) e, no sentido de a atribuir à jurisdição cível, o acórdão de 22/6/23 (João Cura Mariano), ambos loc. Cit.
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Antes de avançar com uma tomada de posição firme sobre a questão em apreço, deve salientar-se que esta disparidade jurisprudencial é indutora de insegurança nos utilizadores da justiça ou, apresentando a questão sob perspetiva constitucional, potencialmente violadora do princípio da confiança que os utilizadores do sistema devem ter das instituições judiciais.
Sendo este o caso, a decisão desta questão neste quadro de divergências interpretativas e aplicativas não deve perder esta orientação, procurando assegurar o máximo de confiança e previsibilidade que se mostre possível para a decisão, que é, em última análise, o também correspondente ao grau máximo de garantia de acesso à justiça.
Tal confiança poderia ser buscada na procura da orientação jurisprudencial do tribunal supremo, algo que os dados de jurisprudência conhecida não permitem afirmar.
Não sendo possível estabelecê-lo a tal nível, poderia buscar-se um caminho de confiança com referência ao que pudesse ser uma jurisprudência passível de ser qualificada dominante ao nível das Relações, algo que também não se pode afirmar, com segurança.
Neste caso, a única consideração possível será da orientação dominante ao nível desta Relação de Lisboa, área correspondente àquela em que a questão está a ser tratada. Nesta Relação pode afirmar-se uma clara linha orientadora no sentido da atribuição de competência para a tramitação destas ações à jurisdição cível.
Para tanto, além dos acórdãos referidos (incluindo desta Secção), atente-se particularmente o decidido em sede de conflito de competência, estabelecendo uma orientação clara no sentido da competência da jurisdição cível e um critério que considerado à luz desta orientação de segurança e confiança, que qualquer decisão da questão não deve olvidar (pelo menos enquanto se mantiverem as divergências jurisprudenciais que se verificam).
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Se este um elemento adjuvante da decisão, o essencial, como não poderia deixar de ser, refere-se à materialidade da questão.
A este nível, apesar de existirem argumentos válidos em ambos os sentidos, entende-se que se apresentam mais sólidos os que apontam para a competência da jurisdição cível.
A exegese do preceito em causa (artigo 3.º, n.º 3 Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril - Lei da Nacionalidade) refere expressa e claramente o tribunal cível.
Não se ignora a argumentação que tem sido usada para desvalorizar essa literalidade, face à superveniência da Lei da Organização do Sistema Judiciário  - LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), seja apontando uma imprecisão genética ao legislador (que, eventualmente, teria querido referir-se aos tribunais judiciais-civis, excluindo a jurisdição administrativa e fiscal), seja apontando-lhe esquecimento ou inércia, aquando da aprovação (e alterações) deste regime de organização do sistema de justiça (ao não revogar expressamente esta norma).
Mesmo sabendo das frequentes faltas do legislador, este tipo de argumentação compatibiliza mal com critérios básicos de correta exegese, desde logo com o disposto no art.º 9.º n.º 3 do Código Civil, partindo do princípio precisamente oposto àquele que a lei manda seguir – que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (se de forma acertada, ou não, seria um outro debate).
Este tipo de avaliação também enferma de uma clara petição de princípio, que, consabidamente, é o vício lógico de dar por assente à partida a conclusão que se quer afirmar, ao concluir que a competência é da jurisdição de família e que, portanto, o preceito em causa está errado.
A verdade é que, em termos literais, o preceito é claro e não foi afastado pela LOSJ, sucessivamente revista, e esse elemento de interpretação tem que ser preponderante
Mais relevante, todavia, será uma argumentação a partir de critérios de sucessão de leis no tempo, que também tem sido convocada para este debate.
Neste caso, sustenta-se que o art. 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, ao atribuir aos tribunais de família a competência para decidir todas as ações relativas ao estado civil das pessoas e família, teria revogado aquele preceito da Lei da Nacionalidade.
A reforçar este entendimento, como expressamente convocado pela decisão recorrida, poderiam ser chamados critérios de interpretação conforme à Constituição, que impõe um igual tratamento de todas as situações familiares, independentemente da sua forma de origem, algo que seria desrespeitado caso se retirasse da jurisdição especializada familiar estas únicas ações relativas a união de facto.
Seguindo esta linha que, repete-se, tem valor e vem sendo repetida, a definição da questão tem natureza substantiva familiar e o preceito em causa quis absorver para esta jurisdição todas as questões desta natureza.
É uma argumentação, a despeito do referido valor, salvo devido respeito, passa ao lado de um ponto essencial da questão e que é de direito material – assumir que o legislador tratou esta ação como uma estrita questão familiar. Se se quiser, existe aqui uma outra petição de princípio, que é afirmar, sem qualquer avaliação adicional, que esta questão é estritamente de natureza familiar.
A ação de reconhecimento da união de facto, sendo de declaração de uma situação familiar, é-o para uma finalidade legal muito específica – a atribuição de nacionalidade. A verificação e declaração dessa situação familiar é apenas um requisito para futura atribuição de uma situação jurídica, que é complexa, com elementos de direito privado (do complexo dos direitos de personalidade) e elementos de estatuto jurídico público (incluindo um feixe de faculdades, direitos, permissões, obrigações e deveres na relação com um Estado - pessoa coletiva).
Neste quadro, sobrelevando esta finalidade normativa, que não é familiar (mas é de nacionalidade), pode encontrar-se fundamento material para uma opção legislativa de remeter para a jurisdição cível esta avaliação, área onde são dirimidas as questões relativas a direitos de personalidade.
Neste sentido, dir-se-ia até que uma concorrência mais direta ao conhecimento desta questão pelos juízos cíveis seria da jurisdição administrativa, enquanto esfera de decisão das questões entre os particulares e o Estado e, nesse caso, sobrelevando a componente de estatuto público que encerra a atribuição da nacionalidade, poderia o legislador ter remetido a decisão da questão a esta jurisdição (sendo que, nesse caso, nenhuma dúvida exegética se apresentaria e os argumentos de igualdade perderiam ampla base de sustentação).
O argumento da desigualdade entre situações familiares também não se afigura, a esta luz, decisivo.
Em primeiro lugar, trata-se de uma questão adjetiva e de competência, o que mitiga, à partida, grandemente  a relevância efetiva e substantiva da disparidade .
Mais importante, porém, é a consideração da referida especialidade – trata-se de uma declaração judicial especial e instrumental de uma finalidade extrafamiliar (a atribuição de nacionalidade).
A correspondência efetiva deve encontrar-se, neste caso, entre famílias constituídas formalmente, por contrato de casamento, isto é, aquelas em que existe um ato jurídico voluntário que cria e documenta a situação (e, portanto, permite solicitar imediatamente nacionalidade, sem qualquer processo judicial) e famílias não constituídas por contrato (e, portanto, em que é necessária uma prévia declaração judicial da situação familiar, para aquela específica finalidade, que é jus-privada e jus-pública).
Não se quer com as reflexões anteriores sequer afirmar, ou concluir, que a opção legal é a mais correta.
Está-se apenas a indagar de jure condito a lei que é e não de jure condendo a lei que deveria ser.
A esta luz, seja em termos literais, seja em termos históricos, seja em termos sistemáticos (sendo este o argumento decisivo – lei especial não é revogada por lei geral), a conclusão que se afigura mais correta é a mesma – a competência da jurisdição cível.
Não se vê, por fim, uma entorse relevante à igualdade entre situações familiares que ponha em causa a constitucionalidade do referido preceito da Lei da Nacionalidade e, portanto, conclui-se sem necessidade de maiores considerações, que deve ser provido o recurso, o que se decide. –
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III. Decisão:
Face ao exposto, concede-se a apelação e revoga-se a decisão recorrida, declarando-se competente o Juízo Cível para tramitação dos autos.
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Sem custas  da apelação.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 16-01-2025,
João Paulo Vasconcelos Raposo
Fernando Besteiro
Rute Sobral