A providencia de habeas corpus, atentos os seus fundamentos ( artº 222º nº2 CPP), não serve para solicitar a alteração da pena, pedir benevolência ou clemência para arguido condenado com trânsito em julgado e em cumprimento da pena de prisão.
Acordam, em audiência, os Juízes na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
No Proc. nº 67/23.3GAPFR-G do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este -Juízo Central Criminal de ... - ... 4 em que é arguido / condenado AA, em cumprimento de pena no E.P. de ..., apresentou petição de Habeas Corpus, manuscrita e em língua francesa, que se transcreve, após tradução na parte que releva:
“Volto a si porque me encontro numa situação de suicídio social, sem dignidade, na esperança de encontrar ajuda para pôr em ordem a minha vida complicada, onde sofri torturas e abusos de poder e ninguém fez nada para me ajudar a sair dessa situação.
O Tribunal não quis conceder-me a pena suspensa, a pena imposta é pesada e injusta, dado que assumi a responsabilidade dos factos, pedi perdão e também fui torturado pela GNR para além de ter tido invasão de domicílio e da vida privada e até agora não fui tratado.
Precisei de realizar um Habeas Corpus, importante e completamente legal nesta situação em que me encontro, com todo o respeito pelo Código Penal, pela ciência humana pelos direitos humanos pela dignidade, pelo direito à oportunidade e ao perdão, a fim de reintegrar o indivíduo que comete infrações na sociedade, infrações essas cometidas por viver longe da família, sem ajuda social, mas também que as assume e que deseja mudar de personalidade.
À espera de uma resposta favorável da sua parte,…”
Da informação enviada, nos termos do artº 223º1 CPP consta (transcrição)
“- O arguido AA está preso à ordem destes autos, no Estabelecimento Prisional Central de ..., em cumprimento de uma pena de prisão efetiva de seis anos e três meses de prisão.
- O arguido foi arguido foi detido no dia 29.01.2023 (cfr. fls. 33 a 39) e, submetido a 1º interrogatório judicial, por decisão proferida a 30.01.2023, foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva, por existirem fortes indícios de ter cometido, juntamento com os coarguidos nos autos, em concurso real, um crime de furto qualificado, um crime de condução perigosa e um crime de resistência e coação sobre funcionário e por se verificarem os perigos de fuga, de perturbação do inquérito, de continuação da atividade criminosa e da perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, nos termos dos art.ºs 191.º a 196.º, 202.º, n.º 1, al. d) e 204.º, als. a), b) e c), todos do C. P. Penal (cfr. fls. 210 e segs.).
Foram estas as condições em que a prisão foi efetuada.
Efetuadas as competentes revisões, a medida de coação de prisão preventiva foi sempre mantida até ao trânsito em julgado do acórdão condenatório.
- Realizada a audiência de julgamento, foi o arguido AA condenado, por acórdão de 22.11.2023, nos seguintes termos:
“(…) c) Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material e concurso real, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.º e 204.º, n.ºs 1, als. a) e e) e 2, al. e) do C. Penal (loja Te...), na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
d) Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material e concurso real, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203.º e 204.º, n.ºs 1, als. a) e 2, al. e) do C. Penal (loja T.........), na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
e) Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material e concurso real, de um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art.º 291.º, n.º 1, al. b) do C. Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art.º 69.º, n.º 1, al. a) do C. Penal, pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.
f) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.ºs 1 e 2 do Dec.-Lei n.º 2/98, de 03.01, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
g) Em cúmulo jurídico das penas aplicadas em c), d), e) e f), condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art.º 69.º, n.º 1, al. a) do C. Penal, pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.
h) Ao abrigo do disposto nos art.ºs 2.º, n.º 1, 3.º, n.ºs 1 e 4 e 7.º, n.º 3 da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, declarar perdoado 1 (um) ano de prisão na pena de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão em que o arguido AA vai condenado, sob a condição resolutiva a prevista no art.º 8.º, n.º 1 da mesma Lei” (cfr. fls. 1124 a 1155).
- O arguido interpôs recurso, tendo o C. Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 17.04.2024, devidamente transitado em julgado, julgado improcedente o recurso interposto e confirmado a decisão da 1.ª instância (cfr. 1243 a 1267).
- Foi efetuada a liquidação da pena do arguido, computando-se o seu início a 29.01.2023, metade a 15.03.2026, dois terços a 29.03.2027, cinco sexto a 13.04.2028 e fim da pena a 29.04.2029.
São estas as condições em que a prisão se mantém.”
Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário/ defensor do arguido, procedeu-se à realização da audiência, com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.
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Finda a audiência o coletivo reuniu para deliberar, o que fez, apreciando o pedido nos termos seguintes:
Os factos relevantes para a decisão mostram-se condensados na petição de Habeas Corpus e na informação do tribunal requerido e documentos com ela juntos que aqui se dão por transcritos incluindo a decisão sobre a liquidação da pena e deles resultam que as questões a decidir se prendem com:
- a apreciação do requerimento apresentado, e suas consequências para o pedido de Habeas Corpus
Conhecendo e apreciando:
O pedido de habeas corpus é uma “providência [judicial) expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344)”1
O direito à liberdade é um direito fundamental dos cidadãos expresso no artº 27º 1 CRP que dispõe “1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.”, esclarecendo no nº2 que “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. Todavia há exceções também constitucionalmente consagradas, no mesmo normativo, no seu nº3, fora das quais as restrições à liberdade, através da detenção ou prisão, são ilegais, juízo que se tem afirmado em jurisprudência reiterada, quando ocorram fora dos casos previstos neste mesmo normativo (cf. por todos, o ac. de 2.2.2022, Proc. n.º 13/18.6S1LSB-G, em www.dgsi.pt)2.
O arguido/ requerente encontra-se atualmente preso no E.P. de ... a cumprir uma pena única de 7 anos e 3 meses de prisão, que por força do perdão de um ano (sob condição resolutiva) se fixou em 6 anos e 3 meses.
Tal resultou da condenação proferida pelo em 22/11/23, pelo Juízo Central Criminal de ... (juiz 4) que foi confirmada por acórdão do STJ de 17/4/2024 transitada em julgado, e posterior despacho de aplicação do perdão.
Detido em 29/1/2023 e em prisão preventiva desde 30/1/2023, a pena a cumprir terminará em 29/4/2029 sendo que o meio da pena apenas ocorrerá em 15/3/2026.
Estes os factos relevantes.
A providencia de Habeas Corpus como dispõe o artº 223º 4 CPP, visa a libertação imediata do arguido / detido em virtude de uma prisão ilegal em conformidade com a imposição constitucional expressa no artº 31º 1 CRP “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal,”.
Nos termos do artº 222º2 CPP, a petição a apresentar no Supremo Tribunal de Justiça deve fundar-se em prisão ilegal, por ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente (al. a) ou ser motivada por facto que a lei não permite (al. b), ou manter-se para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial (al. c).
Visto que o arguido se encontra em cumprimento de uma pena de 6 anos e 3 meses de prisão (após perdão de 1 ano), cujo termo ainda não ocorreu nem a lei impõe a obrigatoriedade da sua libertação antecipada, não se mostra que estejamos perante uma prisão ilegal, tanto que foi ordenada por um tribunal / juiz competente (e não por “incompetência da entidade donde partiu a prisão” no dizer do ac. STJ 26/6/2003 www.dgsi.pt) na sequencia da condenação do arguido em processo penal que transitou em julgado, e por facto que a lei permite (pratica de ilícitos criminais) e não por “motivação imprópria”, e não se mostra decorrido qualquer prazo, fixado por força da lei ou o fixado no acórdão condenatório que imponha a sua libertação “excesso de prazos”.
Estes são os fundamentos do habeas corpus, de caracter taxativo (ac. STJ de 19/5/2010 CJ STJ, 2010, T2, pág. 196) e como tal são só os fixados nas alíneas do nº2 do artº 222º CPP (numerus clausus) que podem ser invocados.
Ora o arguido/ requerente não alega sequer a existência de uma qualquer prisão ilegal, e nada que tenha por fundamento a ilegalidade da prisão. O que questiona é a pena em que foi condenado e pede benevolência pelo facto de o tribunal não lhe ter concedido a pena suspensa, e pela situação em que se encontra, pois que alega “ O Tribunal não quis conceder-me a pena suspensa, a pena imposta é pesada e injusta, dado que assumi a responsabilidade dos factos, pedi perdão e também fui torturado pela GNR para além de ter tido invasão de domicílio e da vida privada e até agora não fui tratado”, o que não se enquadra no pedido de habeas corpus – a libertação imediata – nem esta é possível, pois foi condenado, com transito em julgado, em pena de prisão, que se encontra a cumprir.
Assim estando o arguido preso em cumprimento de pena de prisão emergente de uma condenação judicial transitada em julgado e não tendo sido excedido qualquer prazo de cumprimento da pena e não sendo obrigatória a sua libertação, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça ordenar a libertação do arguido por não estar perante uma prisão ilegal, torna-se manifesto que o habeas corpus, para libertação do detido - não pedido e que devia ser formulado - não pode ser emitido, pelo que a providencia de habeas corpus não pode proceder, e tem de ser indeferida (artº 223º 4 a) CPP).
- Indeferir a providencia de habeas corpus formulada pelo requerente AA, por falta de fundamento.
- Condenar o requerente na taxa de justiça de 4 UC e nas demais custas
Notifique
José A. Vaz Carreto (relator)
Carlos Campos Lobo
Jorge Raposo
Nuno Gonçalves (Presidente da Secção Criminal)
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1. Cf. ac. STJ 4/6/2024, Proc. 1/22.8KRPRT-K.S1 Cons. Lopes da Mota www.dgsi.pt