I. A omissão de pronúncia ocorre quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que deva apreciar, sejam suscitadas no recurso ou sejam de conhecimento oficioso
II. Na apreciação das questões de que cumpre conhecer o tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais ( artº 369º1 CPP e artº 608º1 CPC), pelo que deve começar pelas questões processuais e só depois as materiais
III. Não constitui omissão de pronuncia a não apreciação de questões suscitadas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras que lhe sejam prévias (artº 608º2 CPC ex artº 4ºCPP)
IV. A questão da admissibilidade do recurso é prévia à apreciação sobre a legitimidade para recorrer e sobre ela não tem de se pronunciar se o recurso não for admitido
V. A alegação de inconstitucionalidade normativa de uma dada interpretação não pode ser invocada em sede de reclamação do acórdão que rejeitou o recurso, face às finalidades da reclamação (artº 379º e 380º CPP)
Acordam, em conferência, os juízes, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
No Proc. C. C. nº 39/14.9TASCF.L1 a correr termos no Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo, do Tribunal Judicial da Comarca dos Acores em que são arguidos:
AA,
BB
Castanheira & Soares, Ld.ª,
Foi por acórdão de 24/11/2022 decidido:
“1. Não admitir neste processo crime o pedido de indemnização civil deduzido pelo Município das Lajes das Flores contra os arguidos/demandados AA e BB e absolver os demandados AA e BB da instância.
2. Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artigos 256.º, n.º 1, al. d), e n.º 4, 386.º, n.º 1, al. b), 26.º, 28.º, n.º 1, 11.º, n.ºs 2 e 7, e 12.º, todos do Código Penal, e art.º 5.º da Lei nº 34/87, de 16 de julho, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
3. Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, e artigo 28.º do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 5 (cinco) meses de prisão e de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), no total de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros).
4. Em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão referidas em 2 e 3 do dispositivo, condenar o arguido AA, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por (5) cinco anos, e de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), no total de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros).
5. Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artigos 256.º, n.º 1, al. d), e n.º 4, 386.º, n.º 1, al. b), 26.º, 28.º, n.º 1, 11.º, n.ºs 2 e 7, e 12.º, todos do Código Penal, e art.º 5.º da Lei nº 34/87, de 16 de julho, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
6. Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, e artigo 28.º do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão e de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), no total de € 600,00 (seiscentos euros).
7. Em cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão referidas em 5 e 6 do dispositivo, condenar o arguido BB, na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 (quatro) anos e 3 (três) meses, e de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), no total de € 600,00 (seiscentos euros).
8. Condenar a arguida Castanheira & Soares, Ld.ª pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos artigos 256.º, n.º 1, al. d), e n.º 4, 386.º, n.º 1, al. b), 26.º, 28.º, n.º 1, 11.º, n.ºs 2 e 7, e 12.º, todos do Código Penal, e art.º 5.º da Lei nº 34/87, de 16 de julho, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de € 100,00 (cem euros), o que perfaz o total de € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
9. Não declarar perdida a favor do Estado a quantia de € 521.145,96 e não condenar os arguidos ao pagamento ao Estado de tal quantia.
10. Condenar os arguidos AA, BB e Castanheira & Soares, Ld.ª nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC’s para cada arguido (cfr. art.º 8.º n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa).
Após trânsito em julgado, remeta boletins ao Registo Criminal.
Após trânsito em julgado, nos termos do disposto no art.º 8.º, nº 2, da Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro, proceda à recolha de ADN dos arguidos AA e BB, nos moldes previstos no mencionado diploma legal.”
Desta decisão recorreram os arguidos BB e Castanheira & Soares, Ld.ª e ainda o Ministério Público e a assistente Município das Lajes das Flores, para a Relação de Lisboa a qual por acórdão de 11/4/2024 a Relação de Lisboa decidiu:
“1) Declarar a incompetência do tribunal criminal, em razão da matéria, para apreciar o pedido de indemnização civil formulado e consequentemente decidir manter a decisão recorrida de absolvição dos demandados da instância civil enxertada nos autos, ainda que com diverso fundamento, considerando prejudicada a apreciação dos fundamentos do recurso interposto pelo demandante civil/assistente Município das Lajes das Flores;
2) Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o acórdão recorrido na parte em que não declarou perdida a favor do Estado a quantia de € 521.145,96 (quinhentos e vinte e um mil, cento e quarenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos) e condenar os arguidos AA, BB e Castanheira & Soares, Lda., a pagar, solidariamente, ao Estado tal quantia, a título de perda de vantagem;
3) Negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos BB e Castanheira & Soares, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes BB e Castanheira & Soares, fixando-se em 4 UC´s a taxa de justiça devida por cada recorrente.”
Do assim decidido recorrem para este Supremo Tribunal de Justiça o arguido AA e o assistente Município das Lajes das Flores,
- O arguido AA coloca em causa a condenação proferida da perda de vantagem,
- O Município, coloca em causa a declaração de incompetência do tribunal civil /penal para conhecer do pedido de indemnização civil deduzido
Neste Supremo Tribunal de Justiça por acórdão de 31/10/2024 foi decidido:
- Rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA.
Condena o arguido no pagamento da quantia de 6 Ucs (artº 420º3 CPP).
- Julgar procedente o recurso interposto pelo assistente Município Lages das Flores e em consequência revoga parcialmente o acórdão da Relação de Lisboa e admite a dedução de pedido civil de indemnização pela assistente contra os arguidos /demandados AA e BB, e determina o seu conhecimento;
Determina o envio do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa, em face da admissão do pedido civil a fim de dele conhecer ou determinar, se não for possível, o seu conhecimento e apreciação pelo tribunal de 1ª instância;
Veio agora o arguido AA arguir a nulidade do acórdão por omissão de pronuncia ao mesmo tempo que alega que a interpretação feita no acórdão do artº 400º 1 c) CPP pelo STJ é ofensiva da Constituição.
O ilustre PGA pronunciando-se é de entendimento que não ocorre tal nulidade nem é legalmente admissível nesta fase alegação de inconstitucionalidade.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
O arguido recorrente vem arguir a nulidade, com base no artº 379º 1c) CPP, por omissão de pronuncia, para tanto alega que “o tribunal ao ter rejeitado por inadmissibilidade legal nos termos do artigo 400.0 n. 0 1 alínea c) do CPP, com respaldo no entendimento de que essa condenação insere-se na parte criminal da decisão, como sua consequência, e não tendo sido questionada a parte criminal, a decisão da Relação tornou-se definitiva, em face do que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal, sendo por isso de rejeitar o recurso do arguido, sem ter curado de se pronunciar se assistia ao arguido legitimidade e/ou interesse em agir para esse efeito, donde por rectas contas se tem por verificado no presente acórdão a nulidade de omissão de pronuncia prevista no artigo 379. 0 n. 0 1 alínea c) do CPP, nulidade que vem a defesa prontamente arguir para os devidos e legais efeitos.”, donde resulta que o recorrente entende que o tribunal antes de decidir da irrecorribilidade deveria pronunciar-se sobre a legitimidade do recorrente para o fazer.
Proferida a decisão, para além da interposição de recurso ( se admissisvel) pode a mesma ser arguida de nula ou sujeita a correcçao nos termos dos artºs 379º e 380º CPP aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores ex vi do artº 425º4 CPP.
Nos termos do artº 379º 1 c) CPP “É nula a sentença: (…)
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” donde decorre que a omissão de pronúncia ocorre quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que deva apreciar, in casu, sejam suscitadas no recurso ou sejam de conhecimento oficioso
Sobre o conhecimento das questões a conhecer pelo tribunal rege o artº 608º2 CPCivil ex vi artº 4º CPP, que dispõe o seguinte:
“ 2-O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
e por seu lado a Jurisprudência é unânime em que “ … a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença. E não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou.” - Ac. STJ 11/12/2008 www.dgsi.pt/jstj proc. 08P3850 Cons. Simas Santos
Apreciando:
Resulta da arguição apresentada que é entendimento do reclamante que antes de decidir sobre a recorribilidade da decisão da Relação o STJ devia ter-se pronunciado sobre a legitimidade do recorrente, e ao não o fazer omitiu uma questão sobre que devia pronunciar-se.
Em complemento do infra exposto sobre as questões a apreciar, dispôs o artº 608º1 CPP, que “1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.”
Por sua vez o artº 368º1 CPP dispõe: “1 - O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.”
Daqui decorre que na decisão/ sentença/ acórdão, a ordem da questões a conhecer são, as questões formais ou processuais e só depois as questões materiais ou de fundo submetidas à apreciação do tribunal, segundo uma ordem lógica.
Ora as questões sobre legitimidade na interposição de um recurso (quem pode recorrer) é posterior à apreciação sobre a recorribilidade. Se o recurso não é admissível, não importa quem recorre, porque do recurso não se pode conhecer.
Assim a questão da recorribilidade é anterior à da legitimidade do sujeito processual que interpôs o recurso, e sendo a decisão irrecorrível fica prejudicada a questão de saber se o sujeito processual podia recorrer.
Há omissão de pronuncia quando o tribunal “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar” ora sendo apreciada a questão prévia sobre a recorribilidade do recurso, ficou prejudicada a apreciação sobre a legitimidade do recorrente, ou de outro modo, só ocorre omissão de pronúncia, fundamento da nulidade, quando o acórdão deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão dessa questão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra. É este o caso.
Daqui decorre que não existe omissão de pronuncia que constitua causa de nulidade da decisão / acórdão.
No que respeita à alegação de inconstitucionalidade da interpretação normativa havida por este STJ no acórdão, é questão sobre a qual o tribunal não tinha de se pronunciar porque não alegado e por isso sobre ela não tinha o dever de se pronunciar, não existindo por isso omissão de pronuncia e como alegação/ questão nova sobre ela também não se pode pronunciar pois não pode ser objecto de reclamação, sendo que sobre as questões levantadas em recurso o tribunal já se pronunciou no acordão arguido de nulo. Como alegação nova não pode este tribunal agora ponderar tal invocação em sede de apreciação da bondade ou não da decisão recorrida, a qual depois de proferida, apenas está sujeita à reclamação nos termos dos citados artºs 379º e 380º CPP. Tem aqui cabimento o expresso no acórdão do STJ de 04.05-2023, proc. nº 96/20.9PHOER.L1.S1 “Após ser proferida uma decisão final, e inexistindo a possibilidade de se interpor recurso ordinário, os interessados apenas poderão reagir contra as nulidades da sentença/ acórdão expressamente indicadas no artigo 379.º CPP, bem como solicitar a correção da decisão, quando não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º CPP, ou na situação de a mesma conter erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
É manifesto que a alegação de uma inconstitucionalidade, nesta fase, não é processualmente admissível, não se integrando na previsão de nenhum dos mencionados normativos (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de outubro de 2016, processo n.º 1642/15.5YRLSB-A.S1). Mais concretamente, no que respeita às eventuais nulidades da decisão, importa clarificar que a hipotética aplicação de uma norma inconstitucional não consubstancia qualquer uma das causas de nulidade da decisão previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.”
Em mero obter dictum há que assinalar que o art º32.º1 da CRP não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição, sendo que a existência de um grau de recurso satisfaz tal garantia, e a questão foi objecto de apreciação, amplamente discutida, em duas instâncias sendo uma de recurso.
Improcede a arguição de nulidade.
+
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça decide:
Julgar improcedente a arguição de nulidade do acórdão suscitada pelo arguido AA
Condena o mesmo arguido no pagamento da taxa de justiça de 3UC´s e demais custas devidas.
Notifique.
Dn
+
Lx e STJ 4/12/2024
José A. Vaz Carreto (relator)
António Augusto Manso
Carlos Campos Lobo