HABEAS CORPUS
EXTRADIÇÃO
ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRAZO
DETENÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS PELO ESTADO REQUERENTE
INDEFERIMENTO
Sumário


I - Decidindo o STJ que a extradição dependeria de garantias a prestar pelo Estado requerente, importava que a Relação validasse as já prestadas o que ainda não havia efetuado e bem assim impunha a concretização no momento da entrega da garantia de devolução sempre que necessário em face do processo judicial pendente em Portugal.
II - Só após este acórdão da Relação transitar em julgado é que se inicia o prazo de entrega.
III - Não se havendo ainda iniciado o processo de entrega e o inicio do decurso do respetivo prazo, previsto nos artºs 9º e 10º do Acordo Simplificado celebrado entre Portugal e Argentina, a detenção do requerente não se mostra ilegal.

Texto Integral

Acordam, em audiência, os Juízes Conselheiros na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

No Proc. de Extradição nº 321/24.7YRLSB-D.S1 do Tribunal da Relação de Lisboa – ...Secção Criminal, em que é requerido é requerido/ extraditando AA, em prisão preventiva no E.P. ... desde 28/10/2024, apresentou petição de Habeas Corpus, para o que alegou:

1º - Em 26/01/2024 o Ministério Público deu início ao pedido de Extradição do Senhor AA.

2º - Em 14/02/2024 teve lugar a “Audiência de Extraditando”.

3º - Pelo Requerido foi declarado que “… não dá o seu consentimento à sua entrega ao Estado requerente.…

Mais declarou que não renuncia ao princípio da especialidade.”

4º - Em 14/02/2024 foi proferido douto despacho, no qual se decidiu:

“Tendo em vista o não consentimento do requerido e o requerimento de prazo para deduzir oposição, concede-se o prazo de 10 dias para esse efeito.”

5º - Em 04/06/2024 foi proferido Acórdão nos seguintes termos:

1. Por todo o exposto, acorda-se neste tribunal em deferir o requerido e, consequentemente, em autorizar a extradição, para a República Argentina, do cidadão espanhol e colombiano AA, devidamente identificado nos autos, para procedimento criminal pelos factos descritos nos Processos n° ...50/2014 e n°...75/2017 do Juzgado Nacional Criminal Federal nº....

2. Deferir a entrega do mesmo à República da Argentina quando a sua permanência em território nacional já não interesse para efeitos do Processo n.º 197/20.3..., sem prejuízo de o mesmo “ser entregue temporariamente para que seja submetida a procedimento criminal, com a condição de que seja devolvida no prazo estabelecido de comum acordo e sempre que exista autorização judicial” (artigos 10.º e do Acordo sobre Extradição entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, o Reino de Espanha e a República Portuguesa e artigos 35.º e 36 da Lei n.º 144/99), caso sejam entregues as devidas garantias pelo Estado requerente e tal seja aceite pelo juiz titular do Processo 197/20.3...”

6º - Em 24/06/2024 o Requerido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.

7º - Em 11/07/2024, o Supremo Tribunal de Justiça dando parcial provimento ao Recurso do Requerido decidiu:

“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto por AA, aditando-se aos pontos 1 e 2 do dispositivo do acórdão impugnado, que se mantêm sem alterações, o seguinte ponto:

“3. A extradição fica condicionada ao dever de as autoridades argentinas, concomitantemente com as diligências necessárias à execução da entrega, definitiva ou temporária, do extraditando, antes da sua concretização e dentro dos prazos estabelecidos nos artigos 9º e 10º do Acordo, submeterem à apreciação e validação do Tribunal da Relação de Lisboa um plano detalhado da sua receção e reclusão na República

Argentina, enquanto nela permanecer em consequência deste procedimento, sob pena de a entrega ser recusada”.

8º - Em 25/07/2024 o Requerido apresentou Recurso para o Tribunal Constitucional, porquanto considera que, no caso sub judice, não poderia ser aplicado Acordo sobre Extradição Simplificada entre a República Argentina, a República Federativa do Brasil, o Reino de Espanha e a República Portuguesa.

9º - Em 20/09/2024 foi proferida Decisão Sumária n.º .57/2024;

10º - Não se conformando com a decisão proferida o Requerente Reclamou para a Conferência.

11º - Em 30/10/2024 o Tribunal Constitucional proferiu o Acórdão n.º .83/2024, o qual indeferiu a Reclamação apresentada pelo Recorrente.

12º - Assim, o Acórdão que decidiu a extradição do Requerido transitou em julgado em 14 de novembro de 2024.

13º - Em 19/11/2024 as Autoridades Portuguesas notificaram as Autoridades Argentinas da decisão de extradição.

14º - Até ao presente momento não foi dado cumprimento ao disposto na douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça:

“3. A extradição fica condicionada ao dever de as autoridades argentinas, concomitantemente com as diligências necessárias à execução da entrega, definitiva ou temporária, do extraditando, antes da sua concretização e dentro dos prazos estabelecidos nos artigos 9º e 10º do Acordo, submeterem à apreciação e validação do Tribunal da Relação de Lisboa um plano detalhado da sua receção e reclusão na República Argentina, enquanto nela permanecer em consequência deste procedimento, sob pena de a entrega ser recusada”.

II – DO HABEAS CORPUS

15º - No caso Sub Judice foi aplicado o Acordo Sobre Extradição Simplificada entre a República Argentina, A República Federativa do Brasil, o Reino de Espanha e a República Portuguesa.

16º - Estipula o artigo 9º do Acordo, nos seus n.º2 e 3 que:

“2 – Uma vez concedida a extradição, a entrega deverá efetuar-se no prazo de trinta dias contados a partir da receção pela Parte requerente da decisão de extradição.

3 – No caso da parte requerente se vir impossibilitada de receber o extraditando no prazo estabelecido no parágrafo anterior, a Parte requerida poderá prorroga-lo, por uma única vez, por mais quinze dias.”

17º- No caso SubJudice não existiu qualquer pedido de prorrogação do prazo de entrega do Requerido.

18º - Por outro lado estipula o Artigo 60.º, n.º2, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto que:

2 - Após o trânsito em julgado da decisão, o Ministério Público procede à respectiva comunicação aos serviços competentes do Ministério da Justiça para os efeitos do artigo 27.º, disso dando conhecimento à Procuradoria-Geral da República. A data da entrega é estabelecida até ao limite de 20 dias a contar do trânsito.

19º - Ora, no caso Sub Júdice não foi estabelecida qualquer data para entrega do Requerido, sendo certo que, decorreram já desde a data do trânsito em julgado do Acórdão que decidiu a Extradição do Requerido mais de 30 (trinta) dias.

20º - Não existiu qualquer pedido para prorrogação da entrega do Requerido nem à luz do Acordo de Extradição celebrado entre Portugal e a República Argentina, quer á luz da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.

21º - Pelo que, em ambos os casos, quer se considere um prazo inicial de 20 dias, na Lei n.º 144/99, quer se considere um prazo de 30 dias no Acordo celebrado ambos os prazos se mostram ultrapassados.

22º - Como é reconhecido unanimemente na nossa jurisprudência dos Tribunais Superiores:

“A detenção para extradição é uma das restrições do direito fundamental à liberdade admitida pela Constituição da República.”

23º - O direito à liberdade pessoal – liberdade ambulatória - é um direito fundamental da pessoa individual, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

24º - A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

25º - Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

26º - No artigo XXIX (29º) admite-se que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

27º - O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra: “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

28º - Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

29º - A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

30º - Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

31º - O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos “enfatiza desde logo que o artigo 5º consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. o Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163).

32º - Interpreta: “no que diz respeito à “legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.

33º - E que a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma – da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França , em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série An º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º114).

34º - Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.

35º - A Constituição da República Portuguesa, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos.

36º - À semelhança da CEDH, a Constituição da República Portuguesa, no art.º 27º n.º2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.

37º - Entre estas sobressai, desde logo “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de (c) à “prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeito a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra quem esteja em curso processo de extradição ou de expulsão”.

38º - Das medidas cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a detenção para extradição (como a prisão preventiva) é a mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência dos pressupostos da necessidade, adequação e proporcionalidade.

Mas mais,

39º - Conforme referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, Coimbra Editora, pág. 480:

“Em qualquer caso, as medidas privativas da liberdade estão sujeitas a uma dupla reserva: reserva de lei e reserva de decisão judicial.”

40º - Conforme se decidiu no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 1113/22.3YRLSB-A, da 5.ª SECÇÃO, em que foi Relator o Senhor Conselheiro ANTÓNIO GAMA, 26-05-2022, disponível em www.dgsi.pt:

I – A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excecional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade.

II – A detenção de pessoa «contra a qual esteja em curso processo de extradição» é uma as limitações ao direito à liberdade consagradas na Constituição (art. 27.º/3/c, CRP) e na lei (arts. 38.º/1/2/5, 39.º Lei144/99).

III – A circunstância de o despacho que «manteve a sua detenção extradicional» não admitir recurso ordinário, não implica que esteja vedado o pedido de habeas corpus. Mesmo nas situações excecionais, como a em apreço, em que o despacho que mantém a detenção não admite recurso para o STJ, como foi entendido pelo relator no TR, na esteira de entendimento que vai prevalecendo neste Supremo Tribunal de Justiça (a título de mero exemplo) ac. 24.11.2004, Proc. n.º 3488/04 - 3.ªSecção SASTJ; ac. 22.07.2005, Proc. n.º 2645/05 -5.ª Secção SASTJ; ac.16.02.2017, Proc. n.º 216/16.8YRPRT-B.S1 - 5.ª Secção, SASTJ), o uso do procedimento de habeas corpus é admissível, na dimensão em que está consagrado na Constituição e na lei, isto é nas situações típicas previstas no art. 222.º/2/a/b/c, CPP. Agora, o habeas corpus não pode ser o sucedâneo do recurso que a requerente interpôs, mas que não foi admitido por inadmissibilidade legal.…

VI – A ultrapassagem dos prazos de detenção (arts. 38.º/5 e 52.º, Lei 144/99), porque configura prisão para além dos prazos fixados pela lei (222.º/2/c, CPP), pode ser fundamento de pedido de habeas corpus.”

41º - Conforme realça a jurisprudência do Tribunal Constitucional – máxime: acórdão n.º 228/97: “O legislador regulamentou os pressupostos, as condições, a duração e as respectivas garantias da detenção por forma a realizar a finalidade que a mesma pretende realizar com o mínimo de constrangimentos e procurando realizar o máximo de garantias do visado pela detenção. Designadamente, estabeleceu prazos de detenção sensivelmente mais reduzidos do que aqueles que se aplicam à prisão preventiva.”

42º - Conforme se decidiu no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 2385/18.3YRLSB-B, proferido pela 5ª Secção, em 06-06-2019, disponível em www.dgsdi.pt:

I - Os prazos previstos nesses arts. 60.°, n.º 2 e 61.°, n.ºs 2 e 3, da Lei 144/99, de 31-08, tidos pelo legislador como razoáveis para entrega e remoção do extraditado do território nacional, têm como fundamento a protecção dos direitos individuais e dignidade da pessoa visada, no sentido de que, após o trânsito em julgado da decisão de extradição a mesma não pode ficar sujeita, por tempo indeterminado, a medidas de coacção, ainda que não detentivas, e à possibilidade de ser privada da sua liberdade para ser entregue à autoridade estrangeira.

II - São, portanto, prazos máximos para a remoção do extraditado do território português quer este esteja sujeito a medida de coacção detentiva, quer não detentiva.

III - No caso em apreço - em que a extraditada se encontra sujeita a TIR e à obrigação de apresentações semanais ao OPC da área da sua residência, medida esta que sempre observou, o que permite concluir pela facilidade em deter a extraditada com vista à sua entrega, em tempo, ao Estado requerente - tudo indica não ter sido acordada qualquer data para a entrega.

IV - Nos termos dos citados arts. 60.º, n.º 2 e 61.º, n.ºs 1 e 2 da Lei 144/99 (e afastada a prorrogação do n.º 3 deste último normativo) o prazo para entrega e remoção da extraditada do território português consumou-se 40 dias após o trânsito do acórdão que deferiu a extradição, ou seja, em 15-05-2019.

V - Ainda que houvesse que ser contado o prazo de 40 dias a partir da notificação, em 15-04-2019, ao Estado requerente da data do trânsito em julgado da decisão, o prazo para remoção da extraditada ter-se-ia esgotado, igualmente.

VI - Uma vez detida, para entrega, após tal data, concretamente em 30-05-2019, sempre a sua detenção se mantém para além do prazo limite fixado pela lei, sendo assim fundado o pedido de “habeas corpus”, nos termos da al. c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP.

Assim, em face do que ficou exposto resulta, claramente, que a detenção do Recorrente é manifestamente ilegal, pelo que se requer a V. Exa., o deferimento do presente pedido de Habeas Corpus, e em consequência que seja ordenada a imediata libertação do Recorrente AA.

Na informação, nos termos do artº 223º1 CPP, da Relação de Lisboa consta que o processo se encontra neste Supremo Tribunal, e refere-se que o requerente se encontra detido à ordem dos autos de extradição desde 28/10/2024;

Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário/ defensor do arguido, procedeu-se à realização da audiência, com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.


+


Finda a audiência o coletivo reuniu para deliberar, o que fez, apreciando o pedido nos termos seguintes:

Os factos relevantes para a decisão mostram-se condensados na petição de Habeas Corpus e documentos juntos supra reproduzidos e que aqui se dão por transcritos incluindo a informação e consulta do processo de extradição no Citius e deles resulta ainda que:

O requerente encontra-se detido à ordem do processo de extradição desde 28/10/2024;

Após a prolação do acórdão do STJ de Em 11/07/2024, em que o Supremo Tribunal de Justiça dando parcial provimento ao Recurso do Requerido decidiu:

“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto por AA, aditando-se aos pontos 1 e 2 do dispositivo do acórdão impugnado, que se mantêm sem alterações, o seguinte ponto:

“3. A extradição fica condicionada ao dever de as autoridades argentinas, concomitantemente com as diligências necessárias à execuçãoda entrega, definitiva ou temporária, do extraditando, antes da sua concretização e dentro dos prazos estabelecidos nos artigos 9º e 10º do Acordo, submeterem à apreciação e validação do Tribunal da Relação de Lisboa um plano detalhado da sua receção e reclusão na República Argentina, enquanto nela permanecer em consequência deste procedimento, sob pena de a entrega ser recusada”, e rejeitado o recurso interposto pelo requerido para o Tribunal Constitucional, o acórdão do STJ transitou em julgado em 14/11/2024

Após foi proferido acórdão pela Relação de Lisboa em 19/11/2024 que decidiu:

“1. Determinar a entrega temporária do requerido AA à República Argentina, com as seguintes condicionantes:

a) A entrega, dentro dos prazos estabelecidos nos artigos 9.º e 10.º do Acordo Simplificado de Extradição, do plano detalhado da sua receção e reclusão na República, concretizando os termos já elencados na informação prestada a estes autos em 20.08.2024;

b) A prestação das garantias pela República Argentina que o requerido será entregue ao Estado Português sempre que seja solicitada a sua entrega para comparência em diligência processual em que a sua comparência seja obrigatória, no âmbito do Processo n.º 197/20.3... ou para eventual cumprimento de pena privativa da liberdade a que o mesmo possa vir a ser condenado no âmbito do referido processo (artigo 10.º e 35.º, n.º 1, 36.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99).”

Deste acórdão interpôs o requerido recurso para este Supremo Tribunal, que se encontra pendente.

As questões a decidir se prendem com:

- saber se a detenção do arguido é ilegal por já haver decorrido o prazo para a sua entrega (seja de 20 ou 30 dias após o transito da decisão de extradição) em cumprimento da decisão de extradição


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O pedido de habeas corpus é uma “providência [judicial) expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344)”1

O direito à liberdade é um direito fundamental dos cidadãos expresso no artº 27º 1 CRP que dispõe “1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.”, esclarecendo no nº2 que “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. Todavia há exceções também constitucionalmente consagradas, no mesmo normativo, no seu nº3 (que são:

a) Detenção em flagrante delito;

b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;

c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;

d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;

e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;

f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;

g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;

h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.) fora das quais as restrições à liberdade, através da detenção ou prisão, são ilegais, juízo que se tem afirmado em jurisprudência reiterada, quando ocorram fora dos casos previstos neste mesmo normativo (cf. por todos, o ac. de 2.2.2022, Proc. n.º 13/18.6S1LSB-G, em 2www.dgsi.pt)3.

Não se questiona a jurisprudência sobre a admissibilidade do habeas corpus no processo de extradição.

O requerente encontra-se detido à ordem do processo de extradição e com vista ao seu cumprimento.

Argumenta que se encontra ilegalmente detido por já haver sido ultrapassado o prazo para ser entregue ao país requerente (Argentina) desde que transitou o acórdão do STJ

Ora o acórdão do STJ em causa, após o acórdão do Tribunal Constitucional que rejeitou o recurso para o mesmo transitou em julgado em 14/11/2024.

De acordo com o requerente deveria ser entregue à Argentina no prazo de 20 ( Lei 144/99) ou de 30 dias ( acordo de extradição) após o transito e esses já decorreram.

Cremos que não tem razão.

Desde já a salientar que o prazo de entrega já foi estabelecido pelo ac. STJ de 11/7/2024 transitado que decidiu que “3. A extradição fica condicionada ao dever de as autoridades argentinas, concomitantemente com as diligências necessárias à execução da entrega, definitiva ou temporária, do extraditando, antes da sua concretização e dentro dos prazos estabelecidos nos artigos 9º e 10º do Acordo, submeterem à apreciação e validação do Tribunal da Relação de Lisboa um plano detalhado da sua receção e reclusão na República Argentina, enquanto nela permanecer em consequência deste procedimento, sob pena de a entrega ser recusada”

No mais esquece o requerente que o acórdão do STJ que refere condicionou a extradição à prestação de garantias, para além das existentes nos autos, que o tribunal da Relação não havia validado.

Após o acórdão do STJ e do recurso rejeitado pelo Tribunal Constitucional a Relação proferiu novo acórdão com vista à execução da decisão de extradição, onde para além da apreciação das garantias apresentadas, e que o STJ considerara insuficientes e por isso determinara acrescentar outras mais concretas a apresentar no momento da entrega sob pena de não ser efetivada, visava a execução dessa decisão do STJ.

Assim só após o trânsito deste acórdão da Relação, que o requerente não deixou transitar, interpondo recurso de novo para o STJ, é que se iniciava o processo de entrega ao Estado requerente, a efetivar pelo Mº Pº (artº 60º2 Lei 144/99), e se iniciava o respectivo prazo para o efeito o qual pode estar sujeito a prorrogação, nomeadamente por causa de força maior (artº 61º Lei 144/99).

Não se tenho iniciado o processo de entrega, ainda não decorreu o prazo respectivo.

Ora a providencia de Habeas Corpus, como dispõe o artº 223º 4 CPP, visa a libertação imediata do detido em virtude de uma prisão ilegal em conformidade com a imposição constitucional expressa no artº 31º 1 CRP “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal,”.

Nos termos do artº 222º2 CPP, a petição apresentada no Supremo Tribunal de Justiça funda-se em prisão ilegal, por ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente (al. a) ou ser motivada por facto que a lei não permite (al. b), ou manter-se para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial (al. c) sob pena de inadmissibilidade / indeferimento.

Visto que o arguido se encontra detido no âmbito do processo de extradição, que admite essa detenção (artºs 38º, 41º, 52º Lei 144/99) e apesar do trânsito em julgado do primeiro acórdão do STJ e do TC, que autorizou a extradição sob condição que importava validar, e que por virtude da interposição do recurso pelo requerente do acórdão da Relação que apreciava as condições apresentas pelo Estado requerente, e sem prejuízo da sua concretização aquando da entrega/ remoção do território nacional, o processo de entrega não se iniciou, pelo que o requerente aguarda pelo trânsito da decisão da Relação à ordem do qual se encontra, para que a Relação dê inicio ao processo de entrega. Não se tendo iniciado o processo não ocorreu o respetivo prazo para o efeito.

Não se mostra, por isso, que estejamos perante uma prisão ilegal, tanto que foi ordenada por um tribunal / juiz competente (e não por “incompetência da entidade donde partiu a prisão” no dizer do ac. STJ 26/6/2003 www.dgsi.pt) na sequência da ordem de detenção com vista à sua extradição e por facto que a lei permite e não por “motivação imprópria”, e não se mostra decorrido qualquer prazo, fixado por força da lei “ excesso de prazos” que ainda não se iniciou.

Aqueles são os fundamentos do habeas corpus de caracter taxativo (ac. STJ de 19/5/2010 CJ STJ, 2010, T2, pág. 196) e como tal são só os fixados nas alíneas do nº2 do artº 222º CPP (numerus clausus), e nenhum deles se verifica, pelo que não podendo o Supremo Tribunal de Justiça ordenar a libertação do requerente por não estar perante uma prisão ilegal, torna-se manifesto o uso abusivo e indevido do pedido de habeas corpus, omitindo o requerido a existência do acórdão da Relação de 19/11/2024 e do recurso para o STJ que dele interpôs, para libertação do detido o qual não pode ser emitido, tem de ser indeferido (artº 223º 4 a) CPP)

+

Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide:

- Indeferir o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente AA, por falta de fundamento, julgando o pedido manifestamente infundado.

- Condenar o requerente na taxa de justiça de 4 UC e nas demais custas

- Condenar o requerente no pagamento da some de 8 UC nos termos do artº 223º 6 CPP.

Notifique


+


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 02/01/2025

José A. Vaz Carreto (relator)

Carlos Campos Lobo

António Augusto Manso

Maria Olinda Garcia (Presidente de turno)

_______


1. Cf. ac. STJ 4/6/2024, Proc. 1/22.8KRPRT-K.S1 Cons. Lopes da Mota www.dgsi.pt

2. idem

3. idem