I - Os critérios na determinação da pena única traduzem-se na apreciação, em conjunto dos factos e da personalidade do arguido, tendo presente a pena única é fruto “das exigências gerais de culpa e de prevenção”, e que “tudo deve passar-se… como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global”
II - Quanto à totalidade dos factos importa averiguar se sobre entre eles ocorre ou não ligação ou conexão e indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos e da motivação que lhes subjaz, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas parcelares aplicadas
III - Quanto à personalidade importa apreender se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, ou antes se é fruto tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na sua personalidade, e atender ao seu modo e condições de vida, tendo em conta quer a inserção laboral, social, familiar e o seu nível educacional como fatores de reconhecimento e vivencia pessoal dos valores sociais protegidos ou a proteger pela sociedade e legalmente expressos.
IV - Deverá ponderar-se ainda em que medida a pena concreta terá efeito dissuasor e reintegrador, pois a pena única, há-de ser encontrada, tendo em conta as exigências de prevenção (da reincidência), traduzidas na proteção dos bens jurídicos e de reinserção social (reintegração) – artº 40º CP – como finalidades de toda a pena, e o efeito previsível da pena no comportamento futuro do arguido em vista da sua ressocialização, nomeadamente se a última condenação emitiu um prognóstico favorável suspendendo a pena de prisão.
Acordam, em conferência, os juízes, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
No Proc. C. C. nº 153/21.4GGCBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Central Criminal de ... - Juiz 1 em que é arguido AA, foi por acórdão de 8/5/2024, decidido condenar o arguido, na sequencia do cumulo jurídico ali efetuado, nos seguintes termos:
“Em face do exposto, este tribunal coletivo decide condenar o arguido AA, em cúmulo, englobando as penas impostas no processo 153/21.4GGCBR e no processo 409/18.3... na pena única de 7 (sete) anos e 9 (nove) meses de prisão.
Mantêm-se as sanções acessórias anteriormente fixadas, ou seja, proibição de contactos com a vítima BB, com afastamento da residência e local de trabalho, pelo prazo de 3 (três) anos, fiscalizada pelos meios técnicos de controlo à distância (quando em liberdade) e pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 10 (dez) anos”
Recorre o arguido, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
21. No entender do recorrente a medida da pena conjunta que lhe foi aplicada surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.
2. Designadamente, mostram-se violados os artigos 77º, 1 71º, n.º 1 e 40º, n.º 2 do CP.
3. Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena, elegendo uma teleologia essencialmente preventiva, todavia, temperada pelo princípio da culpa.
4. Sendo certo que tal principologia – e, bem assim, a necessidade imposta pelo n.º 1 do artigo 77 de avaliar a personalidade e os factos conjuntamente – rege a determinação da pena conjunta a fixar em sede de cúmulo jurídico.
5. Assim, tal pena aplicada emerge em distonia com os preceitos invocados.
6. Até porque as razões preventivas de natureza especial não se alcandoram a níveis de especial exigência, dado o grau de inserção familiar e social do recorrente que, além do mais, é delinquente primário,
7. Sendo certo que não poderá ser a prevenção geral, dada a sua conformação positiva caracterizada por uma ideia de reiteração da confiança da comunidade nas normas jurídicas violadas, a legitimar a aplicação de medida de pena tão exacerbada,
8. Na verdade, não obstante os factos censurados ao recorrente serem inquestionavelmente censuráveis não adquirem contornos de ilicitude quanto ao modo de execução nem gravidade de consequências que legitimem pena tão robusta.
9. Atente-se, por exemplo, que no presente processo onde se realiza o cúmulo, o arguido foi condenado em pena de prisão suspensa, necessariamente em consequência do juízo de que a simples advertência traduzida pela pena de prisão satisfaria as exigências de prevenção colocadas pelos factos e personalidade do arguido.
10.Violado se mostra, também, o artigo 77º do CP, na medida em que a pena conjunta a aplicar deverá ser sensivelmente menor que aquela aplicada.
11. Nomeadamente, atendendo aos circunstancialismos concretos em que o recorrente agiu.
12. Não podendo deixar de se valorar o pregresso comportamento social do arguido e a sua inserção social e laboral.
13. Assim, todo esse condicionalismo e a consideração da orientação dimanada dos incisos legais convocados impõe que o recorrente veja a pena conjunta fixada em patamar inferior ao determinado no Acórdão recorrido.
Termos em que julgando o presente recurso, deverão V. Ex.ªs revogar a decisão proferida, e exarar Acórdão que reflicta a materialidade fluente das conclusões supra elaboradas …”
O Mº Pº respondeu defendendo a improcedência do recurso
Neste Supremo Tribunal de Justiça o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artº 417º2 CPP,
O recorrente respondeu mantendo as razões do seu recurso.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta do acórdão recorrido (transcrição):
“Fundamentação de Facto
Estão provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. O arguido foi condenado neste processo comum coletivo 153/21.4GGCBR, que correu termos neste Juízo Central Criminal de ..., Juiz 1, por decisão datada de 29.011.2023, transitada em julgado em 02.01.2024, pela prática de um crime de violência doméstica, pp. pelos artigos 152.º, n.º 1, alínea b) e c) e n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa pelo prazo de 4 anos, com regime de prova, que inclua de programas específicos de prevenção da violência doméstica e na sanção acessória de proibição de contactos com a vítima BB, com afastamento da residência e local de trabalho, pelo prazo de 3 (três) anos, fiscalizada pelos meios técnicos de controlo à distância – artigo 152.º, n.º 4 e 5 do Código Penal.
2. Ficou provado neste processo que o arguido manteve uma relação análoga à dos cônjuges com BB, desde ... de 2017 até ... de 2021, coabitando na Rua ..., Urbanização ....
3. Desta união nasceu, no dia ... de ... de 2018, CC, com eles residente, assim como DD, nascido no dia ... de ... de 2006, filho da ofendida.
4. Em data não apurada de 2018, encontrando-se BB no final da gravidez de CC, o arguido tirou-lhe uma fotografia e depois exibiu-lha, comentando “pareces uma porca parideira, nem te consegues mexer, estás cada vez mais gorda”.
5. No dia 10 de setembro de 2019, de madrugada, no interior da residência comum, no decurso de uma discussão motivada pelo facto de a ofendida não pretender manter relações sexuais, o arguido desferiu uma bofetada na face de BB, empurrou-a e tirou-lhe a roupa toda dos armários, espalhando-a pelo chão.
6. Nestas circunstâncias, também lhe disse que ela era “doente” ou tinha “amantes”, para não querer ter relações sexuais consigo.
7. Amiúde, quando discutiam, o arguido dizia à ofendida BB que a culpa era dela e que “ela era apenas mais um problema na sua vida”.
8. Igualmente a controlava, exigindo-lhe que lhe dissesse onde e com quem estava.
9. Em data prévia não determinada, a ofendida BB disse ao arguido que a sua mãe os tinha convidado para, no dia 23 de outubro de 2021, irem ao seu jantar de aniversário no restaurante “V.. ......”, sito em ..., e, depois, à danceteria “E. ......”, ao que retorquiu que iria ao jantar, mas não sair.
10. Dizendo, contudo, à ofendida BB que esta podia ir à vontade.
11. Assim, no dia ... de ... de 2021, como o arguido, que tinha ido conviver com os amigos à tarde, não regressou a casa a horas, a ofendida BB deslocou-se sozinha até ao restaurante, onde chegou às 20.05 horas.
12. Pelas 20.10 horas, o arguido telefonou a BB a perguntar onde estava, e, quando esta passou o telemóvel à sua mãe, o arguido disse-lhe “ela anda a dar umas fodas com outros”, e que, por isso, “durante um ano ele só deu duas fodas com a companheira” e que “no fim-de-semana que lá foi almoçar a casa e veio ao jardim com a CC, agarrei nela, espetei-a em cima da cama e dei-lhe uma foda”.
13. Cerca das 20.25 horas, o arguido chegou, nervoso e agitado, ao restaurante, na companhia da filha CC, onde jantaram.
14. Findo o jantar, a ofendida BB disse ao arguido que iria até à referida casa de diversão noturna, circunstância a que este não se opôs, afirmando que ia para casa com a filha.
15. Contudo, quando, pelas 22.30/23.00 horas, a ofendida BB seguia no seu carro, no IC..., junto à localidade de ..., o arguido telefonou-lhe e disse-lhe para parar imediatamente a viatura, caso contrário abalroá-la-ia.
16. Com receio, a ofendida abrandou a marcha e ligou para a GNR.
17. Neste momento, o arguido embateu com o seu carro, onde transportava a filha menor, na traseira da viatura da ofendida, tendo esta imobilizado o carro, tirado o cinto, com o intuito de falar com o arguido.
18. Antes que esta o pudesse fazer, aquele abeirou-se do seu carro e puxou-a pelos cabelos e pelo braço para o exterior, arrastando-a, de seguida, pela via.
19. Aproveitando o facto de BB estar caída no chão, atingiu-a com diversas chapadas na zona da face, dos braços e das costas, enquanto a menor permanecia no carro a chorar.
20. Por via da sua conduta, no dia ... de ... de 2021, o arguido causou à ofendida BB as lesões constantes do exame de fls. 63 e 64, que se dão aqui por reproduzidas, designadamente, no membro inferior direito: equimose arroxeada no terço distal da face anterior da perna, medindo 3cm de comprimento, por 1,5cm de largura, e várias escoriações na região maleolar lateral, medindo a maior 1cm de diâmetro e a menor punctiforme, que lhe determinaram 5 dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.
21. Devido ao desgaste do relacionamento passaram, em 2020, a dormir em quartos separados.
22. No processo comum coletivo 409/18.3..., do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 4, por decisão datada de 31.05.2022, transitada em julgado em 28.11.2023, foi o arguido condenado pela prática de três crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma consumada, pp. no artigo 172.º, n.º 1, por referência ao disposto no artigo 171.º, n.º 1 e 2, ambos Código Penal, e por cada um desses três crimes, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão; três crimes de atos sexuais com adolescentes, na forma consumada, pp. no artigo 173º., n.ºs 1 e 2 Código Penal, e por cada um desses três crimes, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
23. O arguido foi ainda condenado na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 10 (dez) anos.
24. Operando-se o cúmulo jurídico pertinente, foi o arguido condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
25. Dicou assente neste processo que a assistente nasceu em ... de ... de 2001 e é filha de EE e de FF.
26. Os pais da assistente já se encontram separados entre si de há diversos anos a esta parte.
27. A assistente nasceu na ..., mas com 3 anos de idade veio viver com as suas tias paternas, GG e HH, que moravam juntas na Rua ..., na localidade de ..., na área do concelho de ....
28. No decorrer do ano de 2010, a mencionada HH casou-se e foi viver para o lugar de ..., na área da União de Freguesias de ... e do concelho de ....
29. Nessa altura, a assistente foi viver com aquela sua tia.
30. No entanto, no decorrer do ano de 2015, a mesma HH divorciou-se e iniciou um relacionamento amoroso com o arguido.
31. Então, o arguido e a HH foram viver para uma casa de habitação sita na aldeia de ..., na área da União de Freguesias de ... e do concelho de ....
32. A assistente, por seu turno, passou a residir novamente com a sua tia GG, em casa desta.
33. Aos fins de semana, quando a referida GG trabalhava no turno da noite, que decorria das 00 horas às 08 horas da manhã de sábado, ou no turno que decorria das 16 horas da tarde às 00 horas de sábado, a assistente dormia na casa na altura ocupada pela sua tia HH e o seu então companheiro, ora arguido.
34. Nessas ocasiões, a assistente dormia sempre no sofá da sala da casa daqueles (HH e arguido).
35. Sucede que, todos os sábados, a HH saía de casa para ir trabalhar no seu salão de ... e assim a assistente e o arguido ficavam sozinhos em casa até ao momento em que a HH regressava, após ter terminado o seu dia de trabalho.
36. A partir do mês de ... de 2016, o arguido formulou o propósito de se aproveitar da fragilidade da assistente e de abusar sexualmente dela.
37. Em data não concretamente apurada, mas durante o período de tempo compreendido entre o mês de ... de 2016 e o dia ... de setembro de 2016, em uma manhã de sábado, após a assistente ter pernoitado em casa da sua tia HH e do arguido, este chamou aquela ao seu quarto.
38. Logo após, o arguido disse à assistente para tirar uma t-shirt da cómoda ali existente.
39. Nessa sequência, a assistente acatou o pedido do arguido, pelo que tirou a referida t-shirt da aludida cómoda e deu-lha.
40. Nessa altura, o arguido puxou a assistente por um braço e deitou-a ao seu lado, na cama ali existente.
41. No entanto, por não ter gostado da atitude do arguido, a assistente insistiu com este para que a deixasse ir embora, o que veio a suceder passados alguns minutos.
42. A partir de então, em algumas manhãs de sábado em que a assistente se encontrava na casa do arguido, este chamava-a sempre para ir ter com ele ao quarto.
43. Nessas alturas, a assistente fingia estar a dormir porque não queria ir ter com o arguido.
44. Certa vez, ao ver que a assistente não ia ter consigo, o arguido abeirou-se dela e deitou-se, ao seu lado, no sofá da sala e, em ato contínuo, o arguido começou a passar as mãos no corpo da assistente, por cima do pijama, e, bem assim, nos braços.
45. Posteriormente, em algumas manhãs de sábado em que a assistente se encontrava em casa do arguido, no período de tempo compreendido entre o mês de ... de 2016 e o mês de ... de 2016, o arguido ia ter com a assistente quando a mesma se encontrava a dormir no sofá da sala.
46. Aí chegado, o arguido deitava-se ao lado da assistente e passava-lhe as mãos, por cima da roupa, nas mamas, na vagina e nas nádegas.
47. Em outras ocasiões, o arguido deitava-se ao lado da assistente, colocava uma mão por baixo das calças de pijama e das cuecas que aquela tinha vestidas e estimulava-a no clitóris e, em ato contínuo, introduzia-lhe os dedos na vagina.
48. A assistente, por conhecer o carácter violento do arguido e ter receio deste e do que o mesmo, se irritado, lhe pudesse fazer, fingiu algumas vezes continuar a dormir.
49. Embora em outras situações haja procurado libertar-se e tentado encontrar desculpas para sair de ao pé dele.
50. Certa vez, a assistente conseguiu sair, mas o arguido foi atrás dela e levou-a novamente para o sofá.
51. Em outra ocasião, o arguido entrou na casa de banho, quando a assistente ali se encontrava a tomar banho e, em ato contínuo, o arguido despiu-se, abriu a porta da cabine de banho e entrou na mesma.
52. Nessa sequência, o arguido conseguiu fechar a porta da cabine, apesar de ter contado com a resistência da assistente, que tentou evitar aquela entrada do arguido e o fecho da porta.
53. Logo após, o arguido “colou” o seu corpo ao corpo da assistente, passando-lhe as mãos por esse mesmo corpo (da assistente), introduzindo-lhe os dedos na vagina e mexendo-lhe nas nádegas.
54. Ainda não satisfeito, o arguido pediu à assistente para o lavar.
55. No entanto, a assistente procurou encontrar desculpas para não fazer o que aquele lhe pedia, mas só após ter insistido com o arguido, por várias vezes, para sair daquele local é que o mesmo a deixou ir embora.
56. Sucede que, noutras ocasiões para além das acima mencionadas, mas também aos sábados (quando a tia da assistente, GG, se encontrava a trabalhar nos seus turnos da manhã, que decorriam das 8 horas às 16 horas), e pelo menos por três vezes, o arguido se deslocou à casa que a assistente partilhava, durante a semana, com a sua tia GG.
57. Ali chegado, o arguido dizia à assistente que precisava de asticot para a pesca e aquela abria-lhe a porta.
58. Passados poucos instantes, e após ter ido buscar o referido asticot, o arguido chamava a assistente para falar com ele, no sofá da sala.
59. Nessa sequência, em todas aquelas três ocasiões, o arguido colocou as mãos por baixo da roupa e das cuecas que a assistente tinha vestidas e estimulou-a no clitóris e, em ato contínuo, introduziu-lhe os dedos na vagina, sendo que, em uma dessas vezes, exibiu também o arguido o seu pénis à assistente, manipulando-o com a mão (dele, arguido) e acabando por ejacular.
60. No decorrer do mês de ... de 2016, no sábado de ... desse mês, na parte da manhã, no interior da casa de habitação que o arguido partilhava com HH, aquele chamou a assistente ao seu quarto.
61. Logo de seguida, o arguido despiu-se e tirou a roupa da assistente e, em ato contínuo, o arguido passou as mãos pelo corpo da assistente e introduziu-lhe os dedos na vagina.
62. Após, o arguido colocou a assistente de lado e deitou-se, também ele, de lado, atrás dela.
63. Após, o arguido agarrou os braços da assistente por trás e aproximou o seu corpo do dela, seguidamente, o arguido, através de movimentos de vaivém, esfregou o seu pénis entre as nádegas da assistente.
64. Sucede que, nessa altura, tocou o telefone móvel do arguido, pelo que a assistente aproveitou o momento para sair daquele local.
65. Os factos acima descritos, ocorridos na casa do arguido e da tia da assistente, HH, tiveram lugar em um número não concretamente determinado de sábados, mas nunca inferior a três, entre o início de ... de 2016 e o final de ... de 2016.
Mais se provou:
66. AA é natural de ..., sendo o único filho de um casal em que o pai era comerciante e a mãe, após um período em que foi operária fabril, dedicou-se exclusivamente às atividades domésticas e à educação do filho.
67. O processo de desenvolvimento do arguido terá decorrido sem problemas significativos, no seio de uma família com bom relacionamento interpessoal, onde os pais procuraram transmitir ao filho valores socialmente ajustados.
68. Iniciou a escolaridade na idade própria e abandonou os estudos com 18 anos, após a conclusão do 12.º ano de escolaridade na área de eletrotecnia.
69. Após abandonar os estudos, começou a trabalhar numa empresa de ..., em ... e, posteriormente, na ..., tendo desenvolvido esta atividade durante cerca de 6 anos.
70. Trabalhou, em seguida, numa empresa de ..., em ..., onde permaneceu 2 anos, a trabalhar preferencialmente em ... e ....
71. Em 2010, entrou para a ..., onde se encontrava a trabalhar à data da sua reclusão, na ..., como responsável técnico.
72. O arguido casou em 2009, após uma relação longa de namoro, e divorciou-se em 2014.
73. Foi nesta altura que se envolveu afetivamente com HH, tia da ofendida do processo de abuso sexual porque cumpre pena de prisão, que estava também em processo de divórcio, tendo esta relação terminado em 2016.
74. Conheceu BB, no inicio de 2017, e tem desta relação uma filha de 5 anos de idade.
75. Esta relação terminou em outubro de 2021.
76. O arguido estabeleceu uma nova relação afetiva, em dezembro de 2021, com II, que ainda hoje mantém.
77. À data da reclusão o arguido vivia sozinho, em apartamento próprio, em ....
78. Mantém relacionamento afetivo com II, de 41 anos, que tem dois filhos, de 11 e 5 anos, e que vive no ....
79. Têm uma relação de grande proximidade e afeto, manifestando a companheira toda a disponibilidade para o apoiar nesta fase da sua vida.
80. A nível profissional, era funcionário da ... e trabalhava como responsável técnico da ..., com excelentes informações sobre o seu desempenho e relações profissionais.
81. Mantém apoio por parte dos seus pais, que vivem a situação de reclusão do filho de forma muito dolorosa, por continuarem a considerar que este está a ser vítima de uma grande injustiça.
82. O arguido tem uma filha de 5 anos, CC, que está impedido de ver por determinação do Tribunal de Família e Menores, devido a uma queixa apresentada pela mãe da menor de abuso sexual e que foi arquivada.
83. Os pais do arguido referem ter contactos com a neta três vezes por semana, num local público.
84. Em termos sociais, o arguido não tem problemas de integração, sendo referido pela sua postura discreta e respeitadora.
85. AA encontra-se no EP de ..., onde deu entrada a ........2024, para cumprimento de uma pena de 6 anos e 6 meses à ordem do processo 409/18.3...
86. No estabelecimento prisional tem vindo a manter comportamento adaptado aos normativos internos, sem registo de qualquer infração.
87. Solicitou colocação laboral e encontra-se a aguardar disponibilidade.
88. No âmbito do processo de violência doméstica, iniciou, a ........2024, a frequência do Programa “VIDA”, destinado a agressores de violência doméstica, como havia sido determinado no seu Plano de Reinserção Social.
89. O arguido está a viver a situação de reclusão com muita angustia, agravada ainda mais pelo facto de não poder ter qualquer contacto com a sua filha.
*
Não existem factos não provados.
Os factos dados como provados assentam na decisão proferida nos autos e certidão do processo 409/18.3..., CRC e relatório social.”
Medida da pena única
Conhecendo:
Dispõe o art. 77º, n.º 1 do CP que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, e na determinação dessa pena, há que ter em conta o disposto no art. 77º, n.º 2 do CP, segundo o qual, “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (…) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, tais normativos são aplicáveis no caso de concurso superveniente expresso no artº 78º CP “1 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.”
É a situação dos autos em que o arguido sujeito dos dois processos em análise cometeu vários crimes, sendo:
-No processo comum coletivo 409/18.3..., do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 4, por decisão datada de 31.05.2022, transitada em julgado em 28.11.2023, foi o arguido condenado pela prática de três crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma consumada, pp. no artigo 172.º, n.º 1, por referência ao disposto no artigo 171.º, n.º 1 e 2, ambos Código Penal, e por cada um desses três crimes, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão; três crimes de atos sexuais com adolescentes, na forma consumada, pp. no artigo 173º., n.ºs 1 e 2 Código Penal, e por cada um desses três crimes, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
- Neste processo nº 153/21.4GGCBR, do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 1, por decisão datada de 29.011.2023, transitada em julgado em 02.01.2024, pela prática de um crime de violência doméstica, pp. pelos artigos 152.º, n.º 1, alínea b) e c) e n.º 2, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa pelo prazo de 4 anos, com regime de prova, que inclua de programas específicos de prevenção da violência doméstica e na sanção acessória de proibição de contactos com a vítima BB, com afastamento da residência e local de trabalho, pelo prazo de 3 (três) anos, fiscalizada pelos meios técnicos de controlo à distância – artigo 152.º, n.º 4 e 5 do Código Penal.
Importa por isso averiguar se a pena única em que foi condenado é ou não excessiva, ofendendo as regras sobre a sua determinação, regras essas que fixam os seus limites e os critérios a observar para encontrar a medida justa, como decorre do artºs 77º 1 e 2 CP ao estabelecer “1…Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
Quanto aos limites, ela deve ser encontrada entre os 3 anos e 9 meses e os 18 anos e seis meses de prisão, que constitui a moldura do concurso, para o que não releva a pena única em que foi condenado pelos crimes de abuso, sob pena de violação do principio da legalidade expresso no artº 77º2 CP.
No que respeita aos critérios da sua determinação, traduzidos na apreciação, em conjunto dos factos e da personalidade do arguido há a considerar que a pena única é fruto “das exigências gerais de culpa e de prevenção”5 a coberto do artº 40º CP, e que se exige uma apreciação dos factos, na sua globalidade, e da personalidade do arguido neles revelada artº 77º1 CP), e como se expressa F. Dias “ tudo deve passar-se… como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global … “6, - o que é interpretado pelo STJ no ac. 18/6/2014 www.dgsi.pt/jstj7 como “A explanação dos fundamentos que, à luz da culpa e prevenção, conduzem o tribunal à formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. Na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os factos que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele “pedaço” de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respectiva personalidade.”- e também no ac. STJ de 03/04/2013 www.dgsi.pt8, onde se defende que “…importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos e da motivação que lhes subjaz, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele” - e na “avaliação da personalidade – unitária- do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutivel a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade … “9, - sendo que esta (pluriocasionalidade) como se escreve no texto do Ac STJ 12/9/2007 www.dgsi.pt/10 “verifica-se quando a reiteração na prática do crime seja devida a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, que não se radicam na personalidade do agente, em que não se está perante a formação paulatina do hábito enraizada na personalidade, tratando-se antes de repetição, de renovação da actividade criminosa, meramente ocasional, acidental, esporádica, em que as circunstâncias do novo crime não são susceptíveis de revelar maior culpabilidade, em que desaparece a indiciação de especial perigosidade, normalmente resultante da reiteração dum crime.
A pluriocasionalidade fica atestada, certificada, face à mera constatação da «sucessão» de crimes”.
Visto o exposto, e analisando a decisão recorrida verifica-se que na determinação da pena única de 7 anos e 9 meses o tribunal recorrido, na sua ponderação, expressou-se do seguinte modo:
“Quanto aos factos, temos que atender que as circunstâncias que rodeiam a prática dos crimes são muito graves, pois as vítimas são pessoas que viviam com o arguido numa relação de forte proximidade afetiva e, ao invés de as proteger, o arguido, violentou-as de forma não insignificante e em casa, onde estas se deviam sentir seguras. Há ainda a considerar que as agressões (físicas e psíquicas) se prolongaram no tempo, ficando mais gravosas com o esse decurso temporal. Nem a idade da vítima CC nem a gravidez da companheira o impediram de praticar os factos.
O arguido evidencia, com estes comportamentos, um afastamento profundo do dever ser e das regras sociais, não obstante estar integrado em termos profissionais e não ter outras condenações criminais.
Não deixa também de ser relevante as elevadas exigências de prevenção geral, dada a frequência com que com são praticados este tipo de crime na nossa sociedade e o alarme social que provocam, há que ter rigor punitivo para desincentivar o seu cometimento.”
Por sua vez o recorrente entende que na fixação da pena única é exagerada por valoração em demasia das exigências de prevenção especial, face à inserção familiar e social do arguido sendo delinquente primário, e ao grau de necessidade de prevenção geral e nem é exigida pelo grau da sua ilicitude e suas consequências.
Como em qualquer pena a justa medida, limitada no seu máximo pela culpa,- suporte axiológico de toda a pena - da pena única, há-de ser encontrada, tendo em conta as exigências de prevenção (da reincidência), traduzidas na protecçao dos bens jurídicos e de reintegração social (ressocialização) – artº 40º CP – como finalidades preventivas e positivas de toda a pena – ponderando as penas aplicadas a cada facto, o conjunto desses factos e a personalidade do arguido neles manifestada como um comportamento global 11 a apreciar no momento da decisão.
Assim em termos de prevenção geral há a ponderar a natureza dos crimes, ambos de grande abrangência e relevo social atual (violência domestica e abuso sexual) sobre pessoas que convivem com o agente em casa (ainda que de modo não permanente - crime de abuso sexual), a exigir uma maior atenção preventiva como factores desagregadores da sociedade, reafirmando energicamente a validade das normas jurídicas violadas.
Se em termos de integração social e laboral esta se mostra efetivada, e que é o que se espera de qualquer cidadão, tendo inclusive o apoio familiar actual, o certo é que foi no seio familiar que os factos ocorreram, embora num curto período de tempo, a exigir um maior cuidado na sua prevenção e por essa razão não podem ser menorizadas as razões de prevenção especial no que aos factos ilícitos concretos respeita, tendo presente que os factos na sua globalidade e na sua génese são despoletados por ausência de relacionamento intimo do casal e falta de confiança na fidelidade conjugal ( nºs 5,6 e 21 dos factos provados no ilícito de violência doméstica) e os demais têm conteúdo sexual directo e exclusivo.
Na ponderação da personalidade do arguido revelada nos factos há que ponderar o modo e condições da sua vida, quer em termos laborais, sociais, familiares e educativos apurados, salientando a instabilidade dos relacionamentos afectivos, e o seu nível educacional potenciadores de uma atitude ou percepção inadequada sobre a convivência familiar e social e os deveres de igualdade e liberdade, e os demais direitos e obrigações que a devem reger, e a que os conviventes se vinculam a observar, e cuja denegação é causa de conflitualidade.
Nessa medida há ainda que ponderar que não se pode considerar a primariedade, neste âmbito, do arguido, em termos criminais (mas apenas que além destes não se conhecem outros ilícitos), e ter presente que a pena única emergente do proc. 409/18.3..., não releva12, e que nestes autos a pena de prisão foi substituída por pena suspensa, numa ponderação positiva sobre o comportamento futuro do arguido, que importa ter em conta, como salienta Figueiredo Dias ao considerar que “De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.”13, pois o quantum exacto da pena deverá ser determinado também em função das exigências de prevenção especial.
Visto o exposto em tendo em conta a moldura do concurso, e apreciando os factos na sua globalidade e a personalidade do arguido neles revelada e as penas parcelares aplicadas, as exigências de prevenção quer geral quer especial, a mediana ilicitude dos factos (em confronto com as condutas mais gravosas que caiem no âmbito dos ilícitos em causa) e a culpa do arguido, e sua reinserção social e capacidade de observar as regras sociais, numa vivência sem cometer crimes, afigura-se-nos proporcional, adequada e justa a pena única de sete anos de prisão
Procede assim esta questão e com ela o recurso.
Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, e em consequência revogam a decisão recorrida e condenam o arguido na pena única de sete anos de prisão.
Sem custas (artº 513º1 CPP)
Notifique
DN
José A. Vaz Carreto (relator)
António Augusto Manso
Horácio Correia Pinto
____________
1. Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335
2. in DR I-A de 11/12/94 e DR. I-A de 28/12 / 95
3. G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742,
4. - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100
5. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2005, pág. 291,
7. Proc. 585/09.6TDLSB.S1 Conselheiro Santos Cabral
8. Proc. 789/11.1TACBR.C1.S1 Conselheiro Oliveira Mendes
9. Figueiredo Dias, ob. loc. cit.
10. Ac. STJ de 2007-09-12 (Proc. nº 07P2601) Conselheiro Raul Borges
11. Ac. STJ de 16/05/2019, proc. 765/15.5T9LAG.E1.S1 (Conselheiro Nuno Gonçalves), in www.dgsi.pt ;
12. Cfr. por todos 14/09.5GBRMZ.E2.S1, de 6/10/2016 www.dgsi.pt Cons. Helena Moniz