RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
MEDIDA DA PENA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PENA SUSPENSA
JUÍZO DE PROGNOSE
INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
Sumário


I - Ponderando-se na medida concreta da pena as circunstâncias agravantes que o tipo já comporta na moldura da pena abstrata, mostra-se necessária a intervenção corretiva do STJ pois não podem ser valorados duplamente, as mesmas circunstâncias na medida concreta da pena.
II - Entre as circunstâncias a ponderar nos termos do artº 71º CP tem também lugar o nível cultural e educacional dos intervenientes e suas vivências, por poder condicionar as exigências e capacidades de socialização e, aliado aos factos, as exigências de prevenção geral que se mostrem comuns ao tipo criminal.
III -Não é possível emitir um juízo de prognose favorável à suspensão da pena  se em face das condições de vida do arguido, que se traduziram num arrastar durante anos de atos ilícitos integradores dos crimes em apreço, contra o seu núcleo familiar, a natureza dos atos e seus efeitos, aliada à sua personalidade e dificuldade na perceção da censurabilidade da sua conduta, não ser crível que em face de idênticas circunstâncias o arguido não adote atitudes /condutas de igual natureza.
IV- Há que proceder a uma intervenção corretiva do quantum indemnizatório  por danos não patrimoniais se a decisão não atentou nas circunstâncias económicas do lesante e das lesadas (que viviam em economia comum) pessoas de condição social humilde e modesta condição económica como resulta dos dados económicos apurados e das suas atividades profissionais.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

No Proc. C. C. nº 391.22.2PIRT do Tribunal Judicial da Comarca de Porto - Juízo Central Criminal do ... - Juiz ... em que é arguido AA, e assistentes BB e CC,

foi por acórdão de 9/4/2024 proferida a seguinte decisão:

Pelo exposto, decide este Tribunal Colectivo:

Condenar AA pela prática, em autoria material, na pessoa de BB, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP, na pena parcelar de 4 (quatro) anos de prisão.

Condenar AA pela prática, em autoria material, na pessoa de CC, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a) do CP, na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão.

Em cúmulo jurídico condenar AA na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.

Condenar AA, ao abrigo do disposto, no art. 152º, n.ºs 4 e 5, do CP, nas penas acessórias de:

- Obrigação de frequentar um programa específico de prevenção da violência doméstica, a indicar e fiscalizar pela DGRSP, e a ter início logo que a presente decisão transite em julgado;

- Proibição de contacto com as vítimas – BB e CC -, por quatro anos, com afastamento da residência actual ou futura das vítimas, afastamento do local de trabalho das vítimas e proibição de contactos em qualquer local ou por qualquer meio, quer presencial, quer por telefone, quer por carta ou por quaisquer outros meios de comunicação, cujo cumprimento, deve ser fiscalizado no EP e caso o arguido seja restituído à liberdade, deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

Independentemente das penas impostas, desde logo, a Lei nº 38-A/2023 de 02.08 não é aplicável, por força do seu art. 2º, n.º 1 (à contrário) e art 7º, al. a/ii).

Absolver AA dos demais crimes imputados.

Condenar, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4UC.

Julgar procedente por provado os pedidos de indemnização deduzidos e, em consequência, condenar AA ao pagamento da quantia de € 22.000,00 (vinte e dois mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela assistente BB e ao pagamento da quantia de €16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela assistente CC, a que acrescem os respectivos juros de mora, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil, à taxa legal, sem prejuízo de eventuais alterações da referida taxa, até efectivo e integral pagamento.

Custas cíveis pelo demandado.”

Recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Porto, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:

“B.1. Desde logo, o recorrente pretende dar nota do seu veemente dissídio relativamente às penas que lhe foram aplicadas.

B.2. Com efeito, as medidas concretas das penas surgem claramente desfasadas dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.

B.3. Designadamente, mostram-se violados os artigos 71º, n.º 1 e 40º, n.º 2 do CP.

B.4. Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena, elegendo uma teleologia essencialmente preventiva, todavia, temperada pelo princípio da culpa.

B.5. Assim, as penas aplicadas emergem, salvo o devido respeito, como draconianas e em distonia quer com os preceitos invocados, quer com os princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e proibição do excesso decorrentes do n.º 2, do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa,

B.5. Na exacta medida em que consubstanciam penas com um grau de severidade disruptivos relativamente a tal principologia, de onde dimanam as ideias matriciais de que as medidas restritivas de direitos devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, não podendo adoptar-se medidas excessivas e desproporcionadas em relação a tais fins.

B.6. Até porque as razões preventivas de natureza especial não se alcandoram a níveis de especial exigência, dado o grau de inserção laboral e social do recorrente que, além do mais, é delinquente primário,

B.7. Sendo certo que não poderá ser a prevenção geral, dada a sua conformação positiva caracterizada por uma ideia de reiteração da confiança da comunidade nas normas jurídicas violadas, a legitimar a aplicação de sanções tão exageradas,

B.8. Na verdade, quer as penas parcelares quer a pena única fixada assumem-se moldadas numa intencionalidade de castigar o arguido e, como tal, absolutamente desgarradas da normatividade aplicável.

B.9. Não é, de facto, possível compreender a grandeza de pena face aos factos repontados ao arguido.

B.10. Não obstante os mesmos serem inquestionavelmente censuráveis não adquirem contornos de ilicitude quanto ao modo de execução nem gravidade de consequências que legitimem penas tão robustas.

B.11. Violado se mostra, também, o artigo 77º do CP, na medida em que das novas penas a aplicar deverá resultar uma pena única sensivelmente menor que aquela aplicada.

B.12. Nomeadamente, atendendo ao circunstancialismo concreto em que o recorrente agiu.

B.13. Assim, o sobredito condicionalismo e a consideração da orientação dimanada dos incisos legais e constitucionais convocados imporia que o recorrente, a manter-se a condenação nos exactos moldes emergentes da Douta decisão recorrida, visse a sua pena fixada em patamar inferior ao determinado.

Sem prescindir,

B.14. A pena aplicada e fixada em quantum inferior a cinco anos, de acordo com a regra dimanada do art. 50.º do Código Penal, deverá ser suspensa na sua execução.

B.15. Na verdade, o sobredito preceito estatui que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

B.16. Ou seja, a suspensão da execução da pena não obedece a qualquer ideia de discricionariedade, decorrendo, ao invés, do exercício de um poder-dever vinculado, que impõe que seja decretada sempre que se verifiquem os pressupostos legalmente enunciados.

B.17. Com efeito, são as razões preventivas de natureza especial que se alcandoram a um patamar de indesmentível relevância no que tange ao funcionamento do sobredito mecanismo, sem que se possa, todavia, olvidar a prevenção geral.

B.18. No entanto, sob pena de violação irremissível do disposto no n.º 1 do mencionado artigo 50º do CP deve a pena aplicada ao recorrente – fixada que seja em quantum igual ou inferior a cinco anos – ser suspensa na sua execução.

B.19. Efectivamente, a personalidade do agente, o seu comportamento anterior aos crimes, o facto de estar privado da liberdade em função da medida de coacção da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação há mais de 18 meses, permitem o juízo de prognose que a ameaça da pena e a censura traduzida nesta ameaça realizam integralmente as finalidades da punição.

B.20. Na verdade, no que ao recorrente diz respeito – em função da privação da liberdade já sofrida – o espectro da pena efectiva tem uma densidade e um peso admonitório específicos que facilitam a emissão do juízo de prognose quanto à efectividade preventiva dessa punição.

B.21. Que poderá também adquirir espessura e vinculatividade desde que seja condicionada a pressupostos especialmente vocacionados para a prevenção deste tipo de crimes,

B.22. Afigurando-se curial a submissão do recorrente ao cumprimento de um programa de prevenção da violência doméstica, com acompanhamento e fiscalização pela DGRSP

B.23. E, bem assim, a proibição de contactos com as vítimas, a fiscalizar através de meios de fiscalização electrónica, durante o período integral da suspensão da execução da pena.

B.24. Por outro lado, outra condição que poderá ser fixada – esta de marcado pendor vitimológico – passará pela a fixação de um valor obrigatório e proporcional de reparação das vítimas, determinado de acordo com as possibilidades económicas do recorrente.

B.25. Na verdade, a suspensão da execução da pena única de prisão – fixada em quantum igual ou inferior a cinco anos – condicionada a tais deveres servirá de suficiente admonição para o recorrente e contribuirá eficazmente para a prevenção de crimes, bem como possibilitará a reparação das vítimas das condutas por ele perpetradas.

B.26. Finalmente, é convicção do recorrente que os montantes indemnizatórios fixados emergem à revelia da Lei aplicável.

B.27. Com efeito, o art. 496º, 1 do CCivil estatui que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

B.28. São, assim, elementos de incontornável valor heurístico a gravidade do dano, dado que só aqueles de natureza dos graves merecem a tutela do direito.

B.29. Sendo certo que o montante da reparação deve ser proporcional à dimensão do dano, devendo apelar-se a critérios de bom senso, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação e equilíbrio das realidades da vida.

B.30. De facto, a reparação terá de obedecer a juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada caso (remissão feita pelo art. 496º, 3 para o art. 494º, ambos do CCivil).

B.31. Isto é, no cálculo desta tipologia de danos, há que atender, pois, ao disposto no nº 3 do já citado art. 496º, segundo o qual o montante da indemnização por danos não patrimoniais será fixado equitativamente pelo tribunal e tendo-se em consideração a culpa do agente, a sua situação económica e a do lesado, bem como quaisquer outras circunstâncias que no caso se justifiquem.

B.32. É, por outro lado, indiscutível que o ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial é marcadamente compensatório, ao invés de indemnizatório.

B.33. As consequências das condutas perpetradas pelo recorrente adquirem gravidade e merecerem a tutela do direito, nomeadamente a título de danos não patrimoniais.

B.34. No entanto, já não se adere à fixação dos montantes indemnizatórios determinados pelo Tribunal a quo.

B.35. Segundo se crê, a melhor hermenêutica a exercer sobre os preceitos legais convocados – maxime aqueles dimanados do Código Civil – aconselhará a que os valores encontrados pelo Tribunal sejam diminuídos.

B.35. Na verdade, os montantes eleitos pelo Tribunal a quo afiguram-se inflacionados face à legalidade aplicável e ao comum sentido de equidade,

B.36. Pelo que os mesmos devem ser fixados em patamares substancialmente mitigados, deixando-se a respectiva fixação ao prudente critério do Tribunal ad quem.

Termos em que julgando o presente recurso, deverão V. Ex.ªs revogar a decisão proferida, e exarar Acórdão que reflicta a materialidade fluente das conclusões supra elaboradas, assim fazendo a costumada Justiça!”

O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

As assistentes responderam pugnando pela improcedência do recurso.

O ilustre PGA na Relação do Porto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

O Tribunal da Relação do Porto, conhecendo do recurso, por acórdão de 15/7/2024 decidiu:

“Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em no parcial provimento do recurso interposto pelo arguido/demandado AA:

. revogar parcialmente o acórdão ora recorrido, decidindo-se, em substituição, reduzir a pena aplicada pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do CP na pessoa de BB a 3(três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

Em cúmulo jurídico desta pena de prisão com a pena de 3 (três) anos de prisão que lhe foi aplicada pela prática de um crime de violência doméstica p.p. pelo 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a) do CP, na pessoa da ofendida CC condenar o arguido na pena única de 4(quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão efectiva;

Sem tributação artº 513º nº1 do CPP.

.Revogar os montantes indemnizatórios fixados a título de danos não patrimoniais decidindo-se, em substituição, condenar o arguido/demandado a pagar à ofendida/demandante BB a quantia de 16.000€ (dezasseis mil euros) e à ofendida CC a quantia 12.500€ (doze mil e quinhentos euros), acrescidos respectivamente de juros de mora legais desde a notificação do pedido até integral pagamento, absolvendo no mais o arguido demandado.

Custas por demandantes e demandado na proporção do decaimento.”

Deste acórdão veio o arguido reclamar, arguindo a sua nulidade, por omissão de pronuncia, na sequencia do que, por acórdão de 28/8/2024 foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

Nos termos do artº 119º nº1 al. e) do CPP declarar nulo o acórdão proferido por esta Relação em 15/7/2024;

. Declarar esta relação incompetente nos termos do artº 33º nº1 do CPP para o conhecimento do recurso interposto pelo arguido e determinar a remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça.”

Neste Supremo Tribunal de Justiça o ilustre PGA apôs o seu visto

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.

Cumpre apreciar

Consta do acórdão da 1ª instância (transcrição):

“Fundamentação.

De facto.

Factos Provados.

Instruída e discutida a causa resultaram apurados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

1.O processo de desenvolvimento de AA decorreu integrado no seio do agregado familiar de origem, composto pelos progenitores e pelos 4 irmãos, subsistindo sem dificuldades financeiras, contudo em condições habitacionais modestas.

2. AA integrou a escola em idade apropriada para o efeito, tendo concluído o 4º ano de escolaridade, com cerca de 11 anos de idade, sendo que nessa altura abandonou as actividades lectivas para integrar o mercado laboral, em funções agrícolas, para presar auxilio económico ao agregado familiar que devido à emigração do progenitor para ..., viu as condições económicas agravarem-se.

3.Quando contava cerca de 14 anos o arguido, em conjunto com os restantes elementos do núcleo familiar, emigrou para ..., reintegrando o núcleo familiar do progenitor.

4. Em ... o arguido integrou o sistema de ensino até por volta dos 16 anos de idade, altura em que abandonou, vindo a integrar o mercado laboral com o progenitor, na área da ..., na qual passou toda a sua vida profissional.

5.O arguido autonomizou-se do núcleo familiar de origem quando estabeleceu relação marital, com cerca de 23 anos de idade, relacionamento do qual tem 3 filhos, actualmente com 42, 41 e 37anos de idade, com quem mantém um relacionamento próximo, ainda que dois residam em ... e outro na .... O arguido é tido, neste núcleo familiar, como pessoa educada, tranquila e um avô presente.

6. Este relacionamento do arguido durou aproximadamente 14 anos e cessou no ano de 1994, uma vez que o núcleo familiar decidiu regressar à aldeia de naturalidade do arguido e, devido à falta da adaptação da esposa (de nacionalidade Francesa) esta optou por regressar a ..., cessando assim a relação.

7. O arguido e a assistente BB iniciaram uma relação de namoro em 1995, sendo que ainda nesse ano passaram a viver juntos, na residência da assistente, sita na Rua ..., nesta cidade do ..., que era arrendada, pela qual o núcleo familiar pagava, à época, o equivalente a 400€/mês, partilhando assim cama, mesa e habitação.

8. O arguido e a assistente casaram um com o outro no dia ... de ... de 2001.

9. O casal veio a residir na Rua de ..., ..., e posteriormente passaram a residir na Rua ..., ....

10. Em ........2003 nasceu a filha do casal, CC.

11. O casal tinha também uma casa na aldeia, mais precisamente em ..., local para onde se deslocavam com regularidade, nomeadamente aos fins-de-semana.

12. Em data não concretamente apurada, quando a filha CC tinha 3 anos de idade e estavam na aldeia, a assistente BB insistia para que a menor comesse, o que aquela recusava; o arguido, ao invés de colaborar com a esposa, criticou a sua conduta e desferiu-lhe duas bofetadas na face, provocando-lhe dores, vergonha/ tristeza e desorientação/angústia.

13. Desde então o arguido passou a controlar as horas da assistente BB, sendo que quando esta se atrasava o mesmo dizia-lhe que “andava com outros homens”, bem como não queria conviver com a família daquela e amigos, nem aceitava que a assistente convivesse com aqueles, pelo que a assistente para não agastar o arguido não o fazia.

14. Era a assistente, que era empregada doméstica, quem arcava, pelo menos, com as despesas básicas do agregado familiar.

15. O arguido, pelo menos uma vez por semana, dizia à assistente “puta, vaca, égua, filha da puta, vai para a puta que te pariu”.

16. Em 26 de Maio de 2020, a assistente foi para a Praça ..., nesta cidade, vender legumes. Quando aí chegou constatou a presença do arguido no local. Nesse dia, quando chegou a casa o arguido apelidou a assistente de “puta, que andava nos cafés e que, por isso, era uma puta.

17. Em data não concretamente apurada do ano de 2021, o arguido disse à assistente BB que a regava a ela e à filha com gasolina, colocava-as nas casas e deitava-lhes fogo.

18. No dia 07.10.2021 a assistente decidiu pintar uma parede da casa do ..., facto que enfureceu o arguido, pelo que disse àquela que não fazia nada de jeito e que tudo era dele.

19. Nesse mesmo dia, o casal deslocou-se para a aldeia e durante o percurso foram em discussão.

20. A assistente não queria trabalhar na agricultura e na construção civil como o arguido exigia.

21. Ao chegarem à casa da aldeia, sita em ..., continuando o casal em discussão, o arguido agrediu fisicamente a assistente, desferindo-lhe bofetadas e pontapés e, de seguida tirou-lhe o telemóvel.

22. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido a assistente BB sofreu, pelo menos, escoriação no lábio, vermelhidão na cara/face, no membro superior direito, na face posterior do terço médio do braço duas escoriações verticais, paralelas entre si, lineares, cada uma com 5 cm de comprimento; no membro inferior direito na face anterior do terço médio da coxa, equimose com 1,5cmx1cm; no membro inferior esquerdo, na face lateral do terço superior da coxa, escoriação linear com 1,5cm obliqua, distal e medialmente à anterior, escoriação com 2,5cm de comprimento e na face lateral do terço médio da coxa, escoriação horizontal, com 3cm de comprimento e 0,2cm de espessura. Tais lesões demandaram 7 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho geral e profissional.

23. No dia 9 de Outubro de 2021, quando regressavam para o ..., na zona de ..., o arguido disse à assistente que era “uma desgraçada que não tinha nada”, e que por causa dela tinha deixado de falar com os irmãos, mais a apelidou de “puta”.

24 A assistente pediu ao arguido que parasse o veiculo, mas como o mesmo não acedeu logo ao seu pedido, aquela abriu, com o veículo em andamento, a porta. Nessa altura, o arguido imobilizou o veículo e a assistente, em desespero, saiu da viatura e fugiu do local; em tal ocasião o arguido solicitou a intervenção da GNR; a assistente veio a ser localizada decorridos 20/30 minutos, apresentando ferimentos, dizendo que iria voltar para o ..., a pé, que não iria ao hospital e que queria morrer, o que repetiu por varias vezes; por tal foi a assistente conduzida ao Posto da GNR e posteriormente deu entrada na urgência do Hospital de ..., por reacção aguda ao stress e risco moderado de auto-agressão, tendo sido vista por psiquiatria, medicada, teve alta.

25.A grande maioria dos conflitos entre o casal foram presenciados pela filha CC, menor de idade, que ficava ansiosa e assustada com as condutas do progenitor.

26. No dia 9 de Outubro de 2021, a assistente BB foi para casa da sua irmã onde permaneceu cerca de uma semana, sendo que a filha do casal, CC já aí se encontrava desde 07.10.2021 e aí permaneceu cerca um mês, por força das condutas do arguido.

27. Durante a referida semana o arguido e a assistente mantiveram contactos por telefone, tendo no final da aludida semana a assistente BB regressado à casa de morada de família.

28. Após ter sido constituído arguido, no inquérito 83/21.0..., o que ocorreu em 10.11.2021, o arguido manteve-se mais calmo, não tendo sido violento, mas convenceu a assistente BB a escrever o manuscrito de fls. 109/110 do referido processo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, datado de 29.11.2021, o que a mesma fez, mercê do ascendente que o arguido exercia sobre si.

29. No dia 1 de Janeiro de 2022, quando voltavam da aldeia, mais uma vez o arguido adoptou condutas agressivas dizendo à assistente que “desejava que ela morresse e a filha também, que era uma puta, que a filha era filha do ...”, pelo que a assistente BB voltou a abrir a porta do veiculo, estando este em andamento. Nessa altura, o arguido imobilizou o veículo e a assistente saiu do mesmo.

30. A assistente deslocou-se para a linha de ..., com a ideia de se matar, mas afastou-se de tal local, por ter contactado com uma amiga que a dissuadiu por ter uma filha para criar, pelo que foi encontrada pela GNR quando estava a deambular em ... e conduzida ao hospital de Penafiel, onde deu entrada no serviço de urgência por alto risco de auto-agressão, ideia de ruina e de morte.

31. Desde 9 de Janeiro de 2022 que a assistente deixou de partilhar o quarto com o arguido.

32.A assistente passou então a dormir no chão do quarto da filha (pois a cama da mesma é individual e, não obstante, ser de estrado duplo o espaço no quarto não permite aproveitar o colchão debaixo).

33. No dia 3 de Março de 2022 a assistente foi ao quarto onde se encontrava o arguido e levou o édredon que estava na cama; o arguido foi atrás da assistente e desferiu na mesma um pontapé na canela e um soco no peito, lado direito. O arguido acabou por se fechar no quarto.

34. No dia 16 de Março de 2022 a ofendida BB deslocou-se para os anexos onde estão colocados os painéis solares; verificou então que o canhão da fechadura tinha sido trocado impedindo-a de ter água quente, quando questionou o arguido o mesmo disse-lhe que não tinha direito a ter água quente.

35. Já em datas anteriores o arguido havia desligado o aquecimento da água obrigando as assistentes BB e CC a fazer a higiene em casa de familiares.

36. No dia 18 de Março de 2022 a assistente BB tentou entrar no quarto de casal, para tirar as suas roupas, o que não logrou, pois, a porta estava trancada.

37. Quando a assistente CC tinha 12 anos de idade, no decurso de uma viagem para a aldeia, o arguido disse-lhe “vou deixar-te na serra”, o que provocou medo na menor.

38. Quando a assistente CC tinha 16 anos de idade, em data não concretamente apurada de Setembro de 2019, por aquela ter chegado a casa depois da hora prevista, o arguido agrediu-a, com o pau de uma vassoura, desferindo-lhe pancadas nas pernas, costas e no rosto/cabeça, provocando-lhe dores e incómodos.

39. Em data não concretamente apurada do ano de 2020, estava a assistente CC, no interior da residência, a assistir a aulas online, quando o arguido a interrompeu pedindo-lhe para realizar uma tarefa que não foi possível apurar, a assistente respondeu que não podia, o que enervou o arguido que empurrou a filha, fazendo com que a mesma caísse pelas escadas abaixo, tendo na queda descido um número de degraus não concretamente apurados, e de seguida desferiu-lhe, pelo menos um murro na cara e pontapés no tronco. Em consequência sofreu a assistente pisaduras e dores.

40. A partir dos 16/17 anos da assistente CC, o arguido, pelo menos aos fins-de-semana, dizia à filha “és uma puta, uma drogada, uma alcoólica, não és minha filha”.

41. O arguido sempre tentou isolar a filha de familiares maternos e amigos, com efeito, o arguido não gostava que a assistente CC fosse a casa de amigos ou recebesse amigos em sua casa, pois quem saia era “uma puta, uma vadia”.

42. O arguido não apoiava a ida da assistente CC para a faculdade, porque nenhum dos outros seus filhos prosseguiu os estudos, pelo que para tanto não prestaria qualquer auxilio.

43. Após ter tido conhecimento que a filha do casal prestara declarações no processo, o arguido passou a dizer-lhe “cada vez a odeio mais, não posso vê-la” e que “não era filha dele”.

44. Mercê das condutas de que foi vitima a assistente CC, por ingestão medicamentosa, tentou o suicídio em 13 de Março de 2023, tendo sido assistida no Hospital... onde deu entrada por sobredosagem de medicação/envenenamento, com discriminador de mortalidade moderada; após realização de exames não necessitou de cuidados médicos e foi encaminhada para psiquiatria.

45. Com receio das condutas que o arguido pudesse vir a adoptar as assistentes optaram por sair da casa de morada de família no dia 20.03.2022, tendo sido acolhidas uma delas (assistente CC) por uma tia e outra (assistente BB) por uma amiga, sendo o arguido quem se manteve na residência.

46. No dia 26 de Março de 2022 a PSP acompanhou as assistentes à residência a fim que a mesmas retirassem os seus bens pessoais.

47. No dia 12 de Abril de 2022 a assistente BB dirigiu-se à casa de morada de família, mas não logrou entrar pois o arguido já havia trocado as fechaduras.

48. No dia 16 de Abril de 2022 a assistente BB logrou entrar na residência, ao se aperceber da presença da mesma o arguido abeirou-se dela e desferiu-lhe vários murros/socos na cabeça, pernas, braços e peito, o que lhe provocou dores.

49. No dia seguinte a ofendida foi assistida no Centro Hospitalar ... apresentando escoriações no 5º dedo e no dorso da mão esquerda, no braço esquerdo, no dorso da mão esquerda, na fronte e escoriação, edema e rubor do joelho direito, com dificuldade de na movimentação do mesmo, bem como dor na grade costal do braço direito.

50. Examinada no INML a 18.04.2022, a assistente apresentava no membro superior direito múltiplas áreas escoriadas com crosta hemática espessa de diâmetro pericentimétrico sobre a face dorsal da mão; no membro superior esquerdo múltiplas áreas escoriadas com crosta hemática espessa de diâmetro pericentimétrico sobre a face dorsal da mão; no membro inferior direito escoriação linear com crosta hemática húmida com 2cm de comprimento no terço proximal da face posterior da coxa e escoriação com crosta hemática húmida com 2cm por 1 cm sobre a face anterior do joelho; no membro inferior esquerdo equimose arroxeada com 9 por 3 cm no terço distal da face medial da coxa, bem como dores. Estas lesões foram causa directa e necessária de 7 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.

51.O casamento entre o arguido e a assistente BB foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença do Tribunal de Família e Menores do ... datada de 04/05/2022, tendo o uso da casa de morada de família sido atribuído ao arguido até à venda ou partilha.

52. Em 27.06.2022 o arguido foi submetido a interrogatório judicial e foram-lhe aplicadas as medidas de coacção de obrigação de afastamento da residência das assistentes e proibição de as contactar por qualquer meio, medidas a serem fiscalizadas por meios técnicos de controle à distância.

53. No dia 04.11.2022, cerca das 6h00, o arguido perseguiu a assistente até junto do ..., nesta cidade do ..., local onde a mesma se refugiou junto do vigilante e solicitou a intervenção da PSP; já nos dias anteriores o arguido tinha ido em perseguição da ofendida pois o mecanismo de vigilância foi accionado por diversas vezes, deixando a assistente em pânico.

54. Por via de tal incumprimento, a 05.11.2022, foi aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, a qual veio a ser substituída pelo Tribunal da Relação do ..., por permanência na habitação com VE, medida de coacção que o arguido cumpre de forma ajustada.

55. Só a partir de 05-11-2022 o arguido não mais incomodou as assistentes.

56. Durante o tempo em que partilharam a mesma casa e mesmo posteriormente o arguido quis provocar lesões físicas, humilhar e maltratar a assistente, sua cônjuge e mãe da sua filha, provocando-lhe receio e fazendo-a viver em constante sobressalto, servindo-se da privacidade da vida familiar para o efeito, pretendendo que a mesma se sentisse menorizada e humilhada, o que conseguiu, bem sabendo que a afectava na sua saúde psíquica e ..., querendo ainda atingi-la na sua dignidade enquanto ser humano, o que logrou, praticando tais actos na presença da filha menor de ambos, violando a relação de confiança que deveria manter com a sua esposa, atento o projecto de vida que tinham em comum.

57. O arguido quis ainda atentar contra a menor CC, sua filha, cuja idade bem conhecia, sabendo que com tais condutas punha em causa o são desenvolvimento da mesma, bem sabendo que a afectava na sua saúde psíquica e ..., o que concretizou, atentando, dessa forma, contra o seu bem estar psíquico e o seu normal desenvolvimento emocional.

58. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal.

59. A assistente BB, mercê das condutas de que foi vitima por parte do arguido, passou a sofrer de mal-estar psíquico, baixa auto estima e autoconfiança, instabilidade emocional e impulsividade, tendo sido diagnosticada com quadro depressivo.

60. Em consequência da conduta do arguido, a assistente BB vivia desassossegada/intranquila, coarctada na sua liberdade, sentia-se humilhada, angustiada e intimidada, sentia ansiedade, sofrimento, vergonha e tristeza.

61. Em consequência da conduta do arguido, a assistente BB sentia-se ofendida na sua honra, consideração e o bom nome, bem como sentiu dores, medo e pânico.

62. Em virtude das condutas do arguido, a assistente BB desenvolveu uma depressão, manifestou ideação auto-lesiva, encontrando-se a ser acompanhada e medicada pelos serviços de Psiquiatria, do Hospital ....

63. Em consequência da conduta do arguido, a assistente BB padeceu de dificuldades em adormecer e de crises de ansiedade pelo que teve de recorrer ao uso de antidepressivos e ansiolíticos, por forma a controlar a ansiedade e conseguir descansar devidamente.

64. A assistente BB que se sempre fora uma pessoa bem-disposta, comunicativa, que gostava de conviver com as outras pessoas, passou a fechar-se em casa, a isolar-se, deixando de privar com as pessoas que lhe eram próximas, perdendo a alegria de viver.

65. Por sua vez, a assistente CC desenvolveu sentimentos de medo e insegurança pela submissão ao contexto hostil e ameaçador, adoptou estratégias de isolamento e fuga ao longo dos anos, iniciando quadro clinicamente significativo pelos seus 17 anos, evidenciando psicopatologia predominante da esfera ansiosa (medo com ataques de ansiedade e pânico) e comportamentos autolesivos; medicada após ataque de pânico que levou a ingestão medicamentosa e sujeita tratamento psiquiátrico regular; mantém quadro psicopatológico centrado nas vivências traumáticas e com características clinicas compatíveis com perturbação de stress pós traumático.

66. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a assistente CC sentiu dores, tristeza, humilhação, vergonha, angústia, ansiedade e nervosismo.

67. A assistente teve de recorrer ao uso de antidepressivos e ansiolíticos, por forma a controlar a ansiedade e conseguir dormir.

68. A assistente que se sempre fora uma jovem bem-disposta, comunicativa, sociável, passou a isolar-se em casa, a ter ataques de choro, deixando de conviver com as pessoas que lhe eram próximas, perdendo a alegria de viver, tendo já tentado o suicídio.

69. AA actualmente com 66 anos de idade, encontra-se presentemente a residir sozinho, usufruindo do suporte que uma vizinha lhe presta apoio na aquisição de géneros alimentares e refeições já confeccionadas.

70. O arguido desempenhava funções por conta própria na área da construção civil e a ofendida trabalhava como empregada doméstica o que permitia ao núcleo familiar manter uma condição de vida sem dificuldades significativas.

71. O núcleo familiar viria a alterar alguma vezes de local de residência, uma vez que foram adquirindo alguns imoveis, nomeadamente um apartamento de tipologia T1, com capitais próprios e empréstimos de amigos, no qual a família manteve residência durante 11anos. Posteriormente vieram a adquirir duas moradias, onde foram realizadas obras de reabilitação, tendo fixado residência numa delas.

72. Actualmente o arguido AA, está reformado, subsiste com a pensão de reforma que aufere de ... e da ..., num toral aproximado de 420,00€ mensais, que lhe permitem subsistir sem dificuldades de maior, embora tenha que proceder a uma gestão altamente criteriosa do orçamento disponível.

73. AA aparenta capacidade de descentração, demonstra entendimento para identificar e analisar situações sociais desadequadas, pese embora evidencie dificuldades ao nível do sentido crítico da gravidade e censurabilidade dos seus comportamentos e subsequente minimização do impacto dos mesmos face ao outro.

74. Nada consta no certificado de registo criminal do arguido.

75. O arguido e a assistente BB, a 23.09.2019, arrendaram uma casa na ... pela renda mensal de €400,00.

76.A assistente BB, em 07.10.2013 arrendou uma casa na ..., pela renda mensal de €250,00.

77. O arguido e a assistente BB tinham contas bancárias conjuntas, sendo os respectivos cartões multibanco de uso comum.

78. O arguido e a assistente BB têm um apartamento no ..., em co-propriedade sito à ... com o artigo matricial 9530 e com o valor tributável de €20.482,70.

79. O arguido e a assistente BB têm um imóvel no ..., em co-propriedade sito à ..., com o artigo 6014 e com valor tributável de €20.902,20.

80.O arguido e a assistente BB têm um imóvel no ..., em co-propriedade sito à ... com o artigo 6013 e com o valor tributável de €30.348,50.

81. O arguido é proprietário do imóvel sito em ..., lugar de ... com o artigo rústico 1466 e com o valor tributável de €3,13.

82.O arguido é proprietário do imóvel sito em ..., lugar de ... com o artigo rústico 2330 e com valor tributável de €0,90.

83.O arguido perante terceiros é uma pessoa simpática, calma e correcta, bem como é tido por honesto e trabalhador.

Factos não provados.

Não se provaram quaisquer outros factos dos alegados nos autos ou em audiência, nem outros, não escritos, contrários, prejudicados ou incompatíveis com os provados e nomeadamente que:

A) Durante a coabitação com a assistente BB, o arguido em ..., vivia com outra mulher, facto que era do conhecimento da esposa, razão pela qual a mesma se sentia humilhada e desprezada.

B) Apesar de ser o arguido quem mantinha um relacionamento fora do casamento, sempre que vinha a ... o mesmo dizia à esposa “és uma puta”, “qualquer dita fodo-te”.

C) No dia 26 de Maio de 2020, nas circunstâncias referidas em 16), o arguido perseguiu a assistente BB.

D)O arguido dirigia-se à assistente apelidando-a de “mula, há uns tempos não és a mesma mulher, estás uma velha, não fazes nada de jeito, não prestas para nada, só te preocupas com os outros e não com os de casa”.

E)Em data não apurada mas situada no ano de 2021 a assistente foi pressionada a manter relações sexuais com o arguido tendo o mesmo dito “estás diferente, já não fazes com gosto”, com o intuito de a humilhar, o que logrou.

F) No dia 4 de Julho de 2021, o arguido disse à assistente “és uma puta, a tua filha não é minha filha, é filha do ..., és uma puta”.

G) Nas circunstâncias descritas em 21), o arguido trancou a assistente num quarto da habitação.

H) Nas circunstâncias descritas em 23), o arguido disse à assistente “vaca, és uma má pessoa, gostava de ver-te morta, não serves para nada, a filha não é minha, também quero vê-la morta.”

I) Nas circunstâncias descritas em 24), a assistente saiu do veículo em andamento.

J) Nas circunstâncias descritas em 29), a assistente saiu do veículo em andamento.

K) Nas circunstâncias descritas em 34), o arguido desferiu na assistente BB um murro no peito e um pontapé na perna esquerda, provocando-lhe dores e incómodos.

L) Por diversas vezes, quando a assistente CC ia em defesa da progenitora o arguido insultou-a dizendo-lhe “és uma puta”. Em tais ocasiões também lhe desferia empurrões por forma a afastá-la da mãe.

M) Para além disso, em datas não apuradas, por varias vezes, quando seguiam no interior do veiculo automóvel o arguido agrediu a filha, à data menor de idade.

N) No dia ...de Setembro de 2020 o arguido deixou a menor numa rua escura tendo a mesma ficado em pânico e regressado a casa, sozinha.

O) No dia ... de Outubro de 2021 o arguido disse à filha que a havia de matar.

P) Por várias vezes, o arguido disse à assistente CC que quando fizesse 18 anos a poria fora de casa.

Motivação.

A convicção do Tribunal teve por base a análise critica e comparativa da globalidade da prova produzida, a saber:

Desde logo valoraram-se os seguintes documentos dos autos principais:

- Assento de nascimento de BB com o averbamento do casamento de fls. 30-31.

- Assento de nascimento de BB com o averbamento do casamento e do divórcio de fls. 933.

- Relatório de perícia médico-legal de fls. 69 -70 realizado à assistente BB a 21.03.2022, onde a mesma não apresenta lesões ou sequelas.

- Entrevista social de fls. 74 a 80 a relevar as suas conclusões na medida da análise e ponderação do depoimento prestado pela examinada/assistente nestes autos (BB), em sede de audiência de julgamento, já que as conclusões retiradas se baseiam precisamente nos factos expostos pela examinada;

- Registo clínico do Centro Hospitalar ..., de 17.04.2022, a fls. 175 a 177.

- Acta da dissolução do casamento por divórcio de 04.05.2022 de fls. 261 a 263.

- Relatório de urgência de 07.01.2021 onde BB apresentava hematoma na hemiface esquerda, escoriações membro superior direito e dor do 5º dedo da mão esquerda, de fls. 278.

- Relatório de urgência de 01.01.2022, tendo BB dado entrada por alto risco de auto-agressão, ideia de ruina e de morte, de fls. 290-291.

- Relatório de perícia médico-legal de fls. 310 a 312 realizado à assistente BB em 18.04.2022, referente ao dia 16.04.2022, onde a mesma apresenta escoriações e equimoses nos membros superior direito e inferior esquerdo.

- Registos clínicos do Hospital ... referentes a BB no período de 16.11.2021 a 19.07.2022, a fls. 354 a 358.

- Relatório de urgência do Hospital e ..., de 13.03.2022, tendo CC dado entrada por sobredosagem de medicação/envenenamento, com discriminador de mortalidade moderada; após realização de exames não necessitou de cuidados médicos e foi encaminhada para psiquiatria, de fls.472 a 475.

- Relatórios de urgência do Hospital de ..., de 29.04.2020, 09.10.2021 e de 02.01.2022, referentes a BB, por ideação suicida; por reacção aguda ao stress e risco moderado de auto-agressão; por alto risco de agressão e ideação suicida, observada e medicada, concluiu o médico não existir ideação autolesiva estruturada, respectivamente, como resulta de fls. 476 a 480.

- Entrevista social de fls. 841 a 844 a relevar as suas conclusões na medida da análise e ponderação do depoimento prestado pela examinada/assistente nestes autos (CC), em sede de audiência de julgamento, já que as conclusões retiradas se baseiam precisamente nos factos expostos pela examinada;

- Relatório de perícia médico-legal (psicologia) de fls. 882 a 885 realizado à assistente BB.

- Relatório de perícia médico-legal (psicologia) de fls. 887 a 890 realizado à assistente CC.

- Relatórios de perícia médico-legal (psiquiatria) de fls. 901 a 909 realizados a BB e CC.

Medida de coacção imposta ao arguido em sede de primeiro interrogatório a 27.06.2022 - obrigação de afastamento da residência e proibição de contactos, com VE (fls. 258).

O aparelho de VE foi colocado ao arguido no dia 18.07.2022 (fls. 350).

A 19.07.2022 o aparelho de teleassistência que foi atribuído à vítima começou a emitir um alarme de presença nas proximidades, do arguido (fls. 351)

Informação de fls. 491 referente ao dia 04.11.2022.

Mais se valoraram os documentos do Apenso E (processo 83/21.0...), a saber:

- Auto de notícia de fls. 3 a 5, referente ao dia 07.10.2021, elaborado pela testemunha DD, no que concerne aos seus dados objectivos.

- Assento de nascimento da assistente CC de fls. 28-29.

- Aditamento de fls. 44, referente ao dia 09.10.2021, elaborado pela testemunha EE.

- Entrevista social de fls. 56 a 60 a relevar as suas conclusões na medida da análise e ponderação do depoimento prestado pela examinada/assistente nestes autos, em sede de audiência de julgamento, já que as conclusões retiradas se baseiam precisamente nos factos expostos pela examinada;

- Auto de constituição de arguido a 10.11.2021 de fls. 92, relevando na medida do alegado na acusação.

- Relatório de perícia médico-legal de fls. 103 -107 realizado à assistente BB a 11.10.2021, referente aos factos ocorridos a 07.10.2021, onde a mesma apresenta lesões e sequelas.

- Manuscrito da assistente BB de fls. 109 a 110, datado de 29.11.2021, na medida do que se mostra alegado na acusação e tendo em conta as declarações da assistente.

- Relatório Médico do Hospital de ... datado de 18.01.2022, atestando o acompanhamento de BB desde 16.11.2021, por sintomatologia ansiosa, períodos de humor disfórico e alterações do padrão de sono, de fls. 168

- Relatório de urgência do Centro Hospitalar de ..., de 09.10.2021, na sequência de mandados de condução para internamento compulsivo, sendo que observada BB, concluiu o médico ser aquela uma paciente em situação vivencial adversa, com agitação nesse contexto, sem doença mental grave e sem necessidade de mais cuidados por psiquiatria, para além da medicação ministrada pelo grau de agitação, tendo tido alta na companhia da irmã (fls. 169-170).

Mais se valoraram os documentos juntos com o pedido de indemnização civil de 24.05.2023, com a referência ......71 e com a contestação de 06.07.2023, com a referência ......96.

Por fim teve-se em conta o certificado de registo criminal do arguido de 18.03.2024, refª ......41 e o respectivo relatório social de 24.08.2023 com a refª ......44.

Da prova por declarações e da prova testemunhal.

O arguido referiu como no inicio do relacionamento residiram em habitação da assistente BB, sita na Rua ... e só depois nas moradas constantes da acusação.

Confirmou ter uma casa em ... onde o casal ia aos fins-de-semana.

Esteve emigrado em ..., onde teve uma companheira e filhos, sendo que quando conheceu a ofendida BB tal relacionamento já havia terminado, o que foi confirmado pela assistente.

Relativamente ao episódio em que, na aldeia, a assistente insistia para que a filha comesse, disse que a ofendida BB tinha a mania de por a menina na banheira a tomar banho e aí dava-lhe a sopa. Nessa ocasião, ouviu a assistente a aflita e foi ver, sendo que a filha estava, sem sentidos, na banheira, pelo que teve de a socorrer. Ralhou à assistente por não dever dar à filha a comida na banheira, mas não a agrediu.

Quanto á economia do casal referiu que semanalmente colocava dinheiro em casa, sendo que uma parte era destinada ao seu trabalho (compra de materiais), mas o restante ficava disponível.

Relativamente ao dia 09.10.2021, disse que a assistente pediu parar o carro para urinar, o que não podia fazer de imediato. Então a assistente BB decidiu sair do carro (sem qualquer discussão), pelo que começou a abrir a porta do veículo em andamento. Perante tal imobilizou o veículo e a assistente saiu do mesmo. Chamou a GNR que veio, depois, a encontrar a assistente.

Desconhece se a assistente apresentava ferimentos.

A assistente acabou por ir para o Hospital de ... e passou a semana fora de casa, mas estiveram sempre em contacto telefónico.

Passado essa semana quer a assistente BB quer a sua filha voltaram para casa.

No dia 01.01.2022 (foram passar o final de ano na aldeia) saíram a seguir ao almoço e nas bombas de ..., a assistente voltou a abrir a porta do veículo para sair com o mesmo em andamento. Conseguiu imobilizar o veículo, tendo sido auxiliado por um funcionário da “...” que seguia atrás dele. Igualmente estiveram presentes militares da GNR. A assistente tinha ido para a linha de ....

Justificou a conduta da assistente por causa de umas botas que o filho comprou, tendo o arguido dado o dinheiro corresponde ao valor das botas ao neto, o que deu lugar a discussão.

À noite era sempre uma guerra em casa, por culpa da assistente BB.

Deixaram de partilhar o mesmo quarto em ... de 2022.

Imputa à assistente danos no seu veículo, tudo por causa de conflitos de dinheiro. A assistente queria todo o dinheiro para ela, nomeadamente o valor das rendas das casas.

Quanto ao episódio do édredon, referiu que a assistente tirou o que estava na sua cama.

Fechou a porta do quarto.

A assistente estava a dormir no quarto da filha, mas cama tem dois colchões.

Trocou o canhão do anexo onde estavam os painéis solares, porque tinha lá as máquinas dele e as roupas de trabalho. Se a assistente não tinha água quente em casa ele também não.

Repreendeu a filha uma vez (... de 2021), quando comiam à mesa, por força das exigências da mesma que haviam sido satisfeitas pela mãe (não gostava da comida e a mãe mandou vir uma francesinha), no entanto a francesinha também não foi apreciada, pelo que advertiu a sua filha que se assim era, um dia tinha de ir embora.

Quanto à violação das medidas de coacção de obrigação de afastamento da residência das assistentes e proibição de as contactar por qualquer meio, medidas a serem fiscalizadas por meios técnicos de controle à distância, disse que o aparelho apitava devido ao percurso que tinha que fazer para ir para casa, mais precisamente num cruzamento., sendo que não havia alternativa.

Referiu que passou junto ao ..., mas fê-lo por ter estado a fazer um serviço na ribeira e se estar a deslocar com o cliente FF.

Negou o arguido todos os factos integradores de responsabilidade criminal e referiu que as escadas de que se fala na acusação e por onde a sua filha alegadamente caiu, têm cerca de 4 metros, são de cimento e têm 12 degraus.

BB, ofendida e assistente, ex-mulher do arguido, referiu a factualidade vertida em 12), negando colocar a filha no banho para lhe dar a sopa, antes a menina tomava as refeições sentada numa cadeira.

O arguido não gostava que fosse a casa da sua irmã ou da sua mãe.

O arguido não a proibida propriamente de sair de casa, mas tinha de ter em conta as horas, senão ele dizia que andava com outros homens e que não tinha tempo para isso. Para não agastar o arguido deixou de conviver com a sua família e amigos.

O arguido não contribuía em termos monetários para as despesas básicas do agregado familiar, havia uma gaveta onde aquele guardava dinheiro, mas o mesmo era contado.

A 26 Maio de 2020 foi vender legumes para a Praça ... (...), o arguido não a perseguiu, antes estava no local quando chegou.

Depois, quando chegou a casa, o arguido disse-lhe “que era uma puta, que andava nos cafés e que era por isso uma puta.”

Mais tarde teve um ataque de pânico.

O arguido, pelo menos uma vez por semana, dizia-lhe “puta, vaca, égua, filha da puta, vai para a puta que te pariu”.

Em 2021, em data que não recorda o arguido disse-lhe que a regava a ela e à filha com gasolina, colocava-as nas casas e deitava-lhes fogo.

No dia 07.10.2021 pintou uma parede da casa, sendo que o arguido lhe disse que não fazia nada de jeito e que era tudo dele.

Foram para a aldeia, sendo que no percurso ocorreu uma discussão.

A assistente não queria trabalhar na agricultura e na construção civil como o arguido exigia.

Em casa, já na aldeia, a discussão prosseguiu, sendo que telefonou à sua filha a pedir socorro, tendo esta falado com o arguido e dito “espera aí que vais ter uma prenda.”

Então, no quarto, o arguido agrediu-a com pontapés e bofetadas e tirou-lhe o telemóvel.

Sofreu lesões físicas.

Na viagem de regresso, o arguido dizia-lhe que “era uma desgraçada que não tinha nada”, apelidou-a de “puta”, e que “por causa dela deixou de falar com os irmãos.”

Negou o demais alegado na causação.

Ficou farta de tal comportamento, pelo que pediu ao arguido para parar o veículo, como este não o fez, abriu a porta do mesmo e saiu do carro em andamento.

Vagueou a pé, cerca de meia hora, até ser encontrada pela GNR.

A sua irmã foi busca-la ao hospital, tendo ido uma semana para casa daquela.

O arguido ligava-lhe todos os dias, mais que uma vez por dia, a pedir desculpas.

Ao fim de uma semana regressou a casa, a filha é que ficou um mês em casa da irmã.

O arguido, depois de ter sido constituído arguido ficou mais calmo, no entanto confirmou a assistente ter escrito a carta de fls. 109/110 do Apenso E, a pedido do arguido, sendo que o seu teor não correspondia à realidade. Fê-lo por estar debilitada.

Quanto ao dia 01.01.2022, referiu que no regresso da aldeia, durante a viagem ocorreu mais uma discussão, tendo o arguido afirmado que “desejava que ela morresse e a filha também, que era uma puta, que a filha era filha do ...”.

Pediu para ao arguido para parar o carro, mas como o mesmo não o fez, abriu a porta e saiu com o veículo em andamento.

Deslocou-se para a linha do comboio, com a ideia de por fim à vida, mas acabou por ligar a uma amiga que lhe disse para se afastar porque tinha uma filha para criar, o que acabou por fazer, tendo sido encontrada pela GNR.

O arguido tomou conhecimento que a filha havia prestado declarações no processo, pelo que disse àquela “cada vez a odeia mais, não a posso ver”.

A 09.01.2022 deixou de partilhar o quarto com o arguido, tendo passado a dormir no chão, no quarto da filha.

Explicou que a cama da filha é individual, mas, não obstante, ser de estrado duplo o espaço no quarto não permite aproveitar o colchão debaixo.

Relatou a factualidade vertida em 33), tal como a mesma resultou provada.

Relatou a factualidade vertida em 34), tal como a mesma resultou provada, negando ter sido então agredida.

Confirmou a factualidade vertida em 35).

No dia 18 Março de 2022 saiu de casa definitivamente, mas quando foi retirar as coisas do quarto, este estava trancado.

Voltou a casa para retirar as sua coisas, altura em que o arguido foi a correr sentar-se ao pé de casa do inquilino, dizendo, ao mesmo tempo, que lhe estavam a bater, motivo pelo qual o apelidaram de mentiroso.

A factualidade vertida em 48) teve por base o declarado pela assistente, que referiu ter sido agredida com socos nas pernas, nos braços e no peito, em conjugação com os registos clínicos do Centro ..., de 17.04.2022.

Referiu a violação por aparte do arguido da medida de coacção a que estava sujeito, tendo referido que, cerca das 6h30m, o seu aparelho não parava de tocar, dando a alerta da proximidade do arguido, tendo-se refugiado, por medo, no edifico Mapfre.

Encontram-se divorciados e desde que o arguido foi preso, nunca mais o viu, pelo que não foi mais incomodada.

Trabalhou contra a sua vontade na construção civil, a pegar em tijolo e a fazer massa, sendo que o arguido lhe chamava de “moça”, o que para si era insultuoso pois os “moços” são aqueles que trabalham na construção civil sem qualquer tipo de qualificação, servindo para todo o trabalho.

Sentia-se triste, angustiada, sem vontade de viver, quis suicidar-se, sendo que ainda hoje anda em acompanhamento médico.

Confrontada com as fotos juntas na contestação, identificou três momentos distintos, sendo todos de convívio com a família do arguido.

Às vezes a filha convivia com a sua família, mas tal era ocultado do arguido

Trabalhou como empregada doméstica durante 20 anos, com um horário das 08h às 17H.

O casal tinha contas bancárias conjuntas e o cartão multibanco era de uso comum.

Referiu que quando a assistente CC tinha 12 anos de idade, no decurso de uma viagem para a aldeia, o arguido disse-lhe “vou deixar-te na serra”.

Ambas tinham medo do arguido.

A sua filha presenciava as atitudes do arguido, mas para ela tudo piorou a partir dos 16 anos de idade.

Em ... de 2019, por a filha CC ter chegado a casa depois da hora prevista, o arguido agrediu-a, com o pau de uma vassoura nas pernas e costas.

Igualmente empurrou a filha por umas escadas e agrediu-a.

O arguido batia na CC e a assistente não se podia manifestar.

Os domingos o arguido apelidava a filha de “puta/drogada”.

Quando a CC saiu de casa, o arguido não lhe disse que a havia e matar; mas dizia que ela não era filha dele.

A filha ingeriu medicamentos para por fim à vida.

CC, filha do arguido, ofendida e assistente nos autos, referiu a factualidade vertida em 38).

Relatou a factualidade vertida em 39) explicando que estava a ter aulas online, quando o arguido lhe pediu para fazer qualquer coisa, tendo respondido àquele que não podia por estar em aulas. O arguido enervou-se e empurrou-a por as escadas abaixo, pelo que ficou pisada nos braços e nas pernas. Na altura ainda lhe deu socos na cara (ficou com um olho pisado) e pontapés no tronco.

A sua mãe presenciou a situação.

Em ... de 2020 tinha passado uma semana fora de casa, em ..., em casa de uns primos maternos, facto que o arguido desconhecia.

Quando regressou de ..., ficou à espera do pai, mas ele não apareceu.

O arguido nunca a deixou sozinha numa rua escura..

A partir dos seus 16/17 anos de idade o arguido regularmente apelidava-a de “alcoólica, drogada, puta, não és minha filha”.

No dia 07.10.2021 recebeu uma chamada da mãe, sendo que só ouviu os gritos da assistente BB que dizia “ele vai-me matar”.

Ligou ao pai a pedir para ele parar e ligou para a GNR. Teve medo e foi para casa de familiares onde passou um mês.

Negou que no dia 07.10.2021 o arguido a tivesse ameaçado de morte.

Não era de livre de sair e conviver com terceiras pessoas, o arguido não gostava que fosse a casa de amigos ou que tivesse amigos dentro de casa, pois quem saia era “uma puta, uma vadia”.

A mãe também não convivia com a sua família.

Do lado da família do pai havia convívio.

Queria ir para a faculdade e o arguido não queria porque nenhum dos seus filhos prosseguiu os estudos, por ele não estudava mais, não a impediu de estudar, mas não prestou qualquer auxilio.

Tentou o suicídio por força das diversas situações que teve com o pai e por ver a mãe a sofrer.

Confirmou que o arguido mudou a fechadura do anexo onde estava o cilindro, pelo que, sem água quente, tiveram de ir tomar banho a casa da tia.

A sua mãe foi dormir para o seu quarto e por causa do édredon o arguido agrediu a assistente BB com um pontapé na canela esquerda e um murro no peito.

Saiu de casa em ... de 2022, numa situação de desgaste.

Foram buscar as coisas a casa, mas o arguido havia mudado as fechaduras.

Na Páscoa de 2022, foi com a sua mãe, de novo, a casa, tendo o arguido agredido a assistente BB, pelo menos, com murros no tronco e cara. A mãe foi receber tratamento hospitalar.

O arguido, quando estava zangado frequentemente apelidava a mãe de “égua, vaca, puta”

O arguido controlava a assistente BB, em ... de 2020, estava aquela na escola de condução e o arguido ligou-lhe muitas vezes para saber onde estava, o que ouviu.

A mãe geria o dinheiro que ganhava para as despesas necessárias.

Viu muitas vezes a mãe a chorar, tinha ataques de pânico.

O pai dizia à mãe que ela não prestava.

Tentava intervir, agarrando o pai, para que este não batesse na mãe.

EE, militar da GNR, referiu como recebeu uma comunicação via rádio dando conta que uma senhora que tinha saltado de uma viatura em andamento, na zona de ....

Confirmou o aditamento de fls. 44 do Apenso E, referente ao dia 09.10.2021

Chegado ao local, encontrava-se o arguido e passado cerca de 20 minutos viram uma senhora a dizer que queria ir a pé para o porto.

A senhora apresentava sangue nos braços e uma perna e as mãos arranhadas. Dentro do veículo não havia sangue. A senhora ter-se-á arranhado nas silvas.

Face ao estado em que a senhora se encontrava foi conduzida ao hospital.

O arguido estava alterado pelo comportamento da ofendida, e indicou o sitio por onde ela teria ido, ou seja, para o mato

DD, militar da GNR, que elaborou o auto de fls. 3 a 5 do Apenso E, referente ao dia 07.10.2021.

Referiu que se deslocou ao local, em ....

Ninguém atendia, mas depois veio uma senhora da rua que se aproximou do portão de casa e que tinha marcas de agressões físicas – ferimentos – braços arranhados, escoriações nos lábios e vermelhidão na cara e encontrava-se descalça.

A assistente estava visivelmente nervosa, sendo que a mesma disse que fez os arranhões nos braços ao saltar um murro.

Identificou a assistente, sendo que o arguido se encontrava na cozinha.

GG, ..., irmã da assistente BB e tia da assistente CC.

Referiu que em 2019, na casa do casal, no ..., num domingo á tarde, o arguido que tentava ligar ao filho, virou-se para a assistente BB e disse-lhe “sua puta, sua vaca, andas sempre com os cornos no ar”.

Entre o casal não houve qualquer discussão e por causa do que assistiu não mais foi a casa da irmã.

Referiu que acolheu em sua casa, em 07.10.2021, a sua sobrinha CC e, em 09.10.2021, a sua irmã.

A sua irmã apenas permaneceu uma semana em sua casa, sendo que nesse período manteve sempre contacto com o arguido.

A sua sobrinha esteve um mês em sua casa.

A sua irmã e sua sobrinha iam a sua casa tomar banho quando não tinham água quente em casa.

A assistente BB era uma pessoa alegre, comunicativa e sociável, tendo ficado muito deprimida.

Muitas vezes viu as assistentes a chorar e com dificuldades em adormecer.

No demais, relatou o que a sua irmã lhe contava, o que irreleva pois a assistente prestou declarações.

HH, que acolheu em sua casa a assistente BB, referiu que esta se apresentava muito nervosa, não conseguia dormir, tinha medo de sair à rua e sentia-se insegura.

II, vigilante no ..., referiu que eram umas 6h00, quando a assistente BB que fazia limpeza na ... e ia trocar de roupa no dito edifício, apareceu muito nervosa/assustada, a dizer que o marido estava perto ou a persegui-la.

O aparelho que trazia tocava e enquanto a senhora lá esteve, aquele esteve sempre a tocar, até quando a policia chegou, cerca de 10 a 15 minutos após, estava a tocar.

O depoimento em causa revelou-se sério, isento e credível.

JJ, inquilino do casal desde 2019, referiu que assistiu a um barulho junto à porta de casa (é vizinho), tendo visto o arguido sentado, de cócoras e encostado à parede de casa. A mulher e a filha diziam que ele era aldrabão e mentiroso.

A policia apareceu no local.

Disse ainda que as assistentes disseram que o arguido queria por a testemunha na rua de forma ilegal.

Note-se que a assistente confirmou ter, na ocasião, apelidado o arguido de mentiroso e deu a sua explicação.

Mais referiu que ambos os membros do casal sempre foram agradáveis no tracto.

A assistente BB pediu-lhe para dar o dinheiro da renda em mão, o que recusou. Mais lhe pediu para não dizer nada ao arguido.

O arguido é uma pessoa simpática e calma, mas exaltava-se com a BB.

Quando arrendou a casa a BB só dizia bem do arguido.

Nada mais revelou a testemunha saber.

KK, nora do arguido, referiu que juntamente com o seu marido tem uma casa de férias, em ..., no ....

Referiu que o casal chegou a estar, nessa casa, uma semana de férias sozinhos, em Junho ou Julho de 2021.

Houve um ano em que a assistente CC também ali foi passar férias.

Também passavam o Natal e passagem de ano juntos.

Quando vinham a Portugal estavam sempre com o casal.

Conhece o arguido desde criança, sendo o mesmo uma pessoa educada, tranquila e um avô presente.

LL, que conhece a assistente BB, há 5/6 anos, da venda de cerejas e o casal por viver perto, referiu que o arguido prestou serviços de ... na sua habitação, tendo-se revelado uma pessoa calma e educada.

Do que se apercebia, da compra das cerejas, havia um bom relacionamento entre o casal.

Ora, desta afirmação nada se pode concluir, pois, como nos ditam as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, não será da pontual convivência numa compra e venda de cerejas, que terceiros se inteiram do bom ou mau relacionamento entre um casal.

FF, referiu que tem um restaurante na ... e precisou dos serviços de ... do arguido, o que durou dois meses, até aquele ser detido.

Todos os dias passavam de carro perto no ... entre as 9h/9h30, e podiam parar num semáforo.

O arguido é pessoa honesto e tranquila.

O depoimento em causa não tem a virtualidade de infirmar a factualidade vertida em 53) face ao relatado pela II e ao teor de fls. da informação de fls. 491.

MM, que conhece o arguido porque era amigo do seu pai e trabalhou em sua casa como ....

No dia em que foi detido, o arguido foi para sua casa trabalhar, cerca das 14h/14H30m, não foi mais cedo porque estava com a testemunha o NN.

O arguido é um excelente profissional, uma pessoa correcta, compreensiva e paciente.

Vejamos agora.

A questão relativa à deficiente descrição e concretização dos factos imputados ao arguido na acusação têm sido objecto de apreciação por parte da jurisprudência sobretudo quanto à narração dos factos relativos aos crimes habituais e aos crimes de trato sucessivo, que se caracterizam por as condutas do agente se prolongarem no tempo. Ou seja, situações em que a conduta do agente se repete, com contornos muito semelhantes ou até da mesma forma, por um período considerável de tempo, dificultando o processo da sua memorização por parte daqueles que posteriormente tenham necessidade de relatar os factos em tribunal, com o necessário rigor, o mesmo é dizer, localizando-os no tempo e no espaço, por forma individualizada, especificada e contextualizada. Desta circunstância decorrem naturais dificuldades de prova desses factos, que não podem ser ultrapassadas por via de um menor rigor na narração dos factos, em prejuízo do direito de defesa do arguido.

Assim, a propósito do crime de tráfico de produtos estupefacientes, segundo o Ac. STJ de 15.12.2011, processo 17/09.0TELSB.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt, “Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante deste STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o imputado comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.” No mesmo sentido, vide v.g. Ac. STJ de 21.02.2007, processo 06P4341, disponível em www.dgsi.pt.

No que concerne ao crime de violência doméstica, como se refere no Ac. TRP de 08.07.2015, processo 1133/13.9PHMTS.P1, publicado em www.dgsi.pt, estamos no âmbito do direito penal, o qual revestindo quanto ao processo natureza acusatória, e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade quanto ao crime impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos actos imputados de tal forma que o arguido acusado deles se possa eficazmente defender, e daí que a própria norma processual imponha a narração dos factos imputados e sendo possível “ o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica…” artº 283º 1b) CPP, o que é relevante não apenas para eficazmente o arguido/acusado poder exercer o seu direito de defesa (porque no dia X estava no local Y e não no local A, etc …), mas também para averiguar da ausência de condições de procedibilidade (v.g exercício do direito de queixa) ou factos extintivos do procedimento criminal (v.g. prescrição) ou até da existência de crime. (…) Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados/ imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele”.

Relativamente ao crime de violência doméstica, vide ainda, no mesmo sentido, v.g. Ac STJ de 20.02.2019, processo 25/17.7GEEVR.S1; Ac RP de 13.11.2019, processo 109/19.7GAARC.P1 e Ac RC de 17.01.2018, processo 204/10.8GASRE.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

A necessidade de concretização e especificação dos factos imputados ao arguido, com indicação das respectivas circunstâncias de tempo e de lugar decorre, desde logo, de serem asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa por imperativo constitucional (artigo 32º, nº 1 da CRP). Na verdade, o arguido só poderá efectivamente defender-se se puder contraditar as provas que sejam oferecidas contra ele e que o possam prejudicar. Para tanto, o arguido terá de conhecer, com o necessário rigor, os factos que lhe são imputados, descritos de forma a que não subsistam dúvidas no seu espirito sobre qual o “pedaço de vida” em discussão. Pois pior do que não poder defender-se é não saber do que defender-se.

Todavia, do acima transcrito nº 3, al. b), do artigo 283º do CPP, quanto aos factos que devem constar da acusação e/ou sentença/acórdão, decorre não ser obrigatória a indicação do lugar e da data dos factos, da motivação e do grau de participação do agente, e das circunstâncias relevantes para a determinação da pena. Com efeito, como decorre expressamente da letra da lei, tais indicações apenas serão de efectuar no caso de ser possível.

Porém, impõe-se que a indicação dos limites temporais da acção se mostrem suficientemente demarcados, adstritos a um concreto período de tempo, circunstância que conjugada com a descrição dos actos integrantes da actividade, dos respectivos intervenientes e local onde ocorreram não conduz a uma compressão inadmissível do exercício dos direitos de defesa do arguido ou da sua posição processual, em suma posto que transpareça devidamente enquadrada pelos demais elementos na norma referidos e que em caso de dúvida sustentada sobre a concreta data do «evento», mostrando-se tal relevante, adopte o tribunal a posição [fáctica] que menos prejudica, ou dito de outro modo, mais beneficia o agente do crime”, cfr. Ac TRC de 25.02.2015, processo 369/13.7GAMGL.C1, disponível em www.dgsi.pt

Nesta ordem de ideias, no âmbito penal, o nosso ordenamento jurídico acolheu o princípio do processo justo e equitativo, que por imposição constitucional decorre dos artigos 20º, nº 4 e 32º, nº 1 e 5 da CRP, consubstanciado em princípios fundamentais do processo penal, como seja o contraditório, do acusatório e da igualdade de armas, consagrados no CPP e em instrumentos de direito internacional, cfr. v.g. artigo 6º da CEDH, que fazem parte do direito português, cfr. artigo 8º da CRP.

Do que vai dito, decorre não só ter o Tribunal procedido à prévia comunicação dos factos indiciados, a configurar uma alteração não substancial dos factos, após a produção da prova, como ponderar os depoimentos das ofendidas, tendo em conta o longo lapso de tempo em que decorreram os factos, pelo que relatos incompletos ou a ausência de uma certeza absoluta quanto a um mesmo facto, não têm a capacidade de beliscar a credibilidade das declarações.

Com efeito, as declarações das assistentes BB e CC quanto aos factos e quanto às circunstâncias de tempo, lugar e modo como ocorreram, afiguraram-se sinceras e imparciais, complementando-se. Os factos foram relatados na exacta medida da percepção e recordação dos mesmos, independentemente de corresponderem ou não à versão da acusação e sem qualquer pretensão de empolamento do sucedido. Com efeito, a factualidade não provada decorre das próprias assistentes a terem negado.

Por isso, as declarações das assistentes mereceram crédito e mostram-se corroboras pela prova documental analisada.

E se as declarações das assistentes se complementam, merecem crédito e mostram-se corroboras e complementadas pela prova documental analisada, cumpre referir que quando a assistente BB afirma ter aberto a porta do veículo em que seguia e dele ter saído em movimento, temos de considerar que, naturalmente, esta é a percepção com que a assistente ficou tendo em conta o provado desequilíbrio emocional em que se encontrava.

Como decorre das regras da experiência comum e juízos de normalidade sair de um veículo a circular a 40/50 Km/h acarretaria para a assistente lesões físicas muito graves, podendo mesmo ser causa de morte.

Assim, neste aspecto, teve-se em conta o declarado pelo arguido, que, necessariamente teve de imobilizar o veículo para a assistente sair.

Mas tal incongruência da assistente não retira credibilidade ao demais relatado.

Acresce que temos de enquadrar o descrito pela assistente BB tendo em conta que estamos perante um casal de origens humildes, sendo ambos pessoas simples, sobressaindo ainda restos de uma cultura que em Portugal imperou durante o século XX, por muitos e longos anos, em que a família era a unidade básica da sociedade, cabendo à mulher e ao marido esferas de actividade separadas e independentes.

Ser do outro sexo, era estar em segundo plano, ou mesmo em terceiro, ter um papel definido por uma sociedade patriarcal, onde um dos princípios basilares era a obediência. A cartilha era longa e passou de mães para filhas, numa herança disciplinada e castradora. Na história das mulheres em Portugal há desigualdade, discriminação e muita violência. A libertação, a luta pelos mesmos direitos humanos, é dura e longa e, ainda hoje não chega ou não chega como devia a todas as casas, nem a todas as mentalidades – consultar “A revisão do Código Civil e os Direitos das Mulheres (1977)”, in https://www.parlamento.pt.

Posto isto, temos que apenas as assistentes revelaram conhecer os factos por os ter vivido.

Quanto aos depoimentos das testemunhas, temos os militares da GNR, cujos depoimentos se revelaram sérios e credíveis, a irmã da assistente e HH, na medida das respectivas razões de ciência e as testemunhas II, este quanto ao dia 04.11.2022 e JJ que referiu que o arguido se exaltava com a assistente BB, e que contribuíram, na medida dos respectivos depoimentos, para reforçar as declarações das assistentes.

As demais testemunhas revelaram-se meramente abonatórias e o arguido negou os factos integradores de responsabilidade criminal.

Acresce que, a demonstração dos elementos psicológicos constitutivos de um tipo legal de crime, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta e assim só são passíveis de apreensão através dos factos materiais comuns conjugados com as regras da experiência e os juízos de normalidade.

Para tanto, impõe-se descortinar com objectividade e detalhe o evento histórico de onde se retira a possibilidade de imputar uma infracção criminal ao agente, o que será alcançado pela conjugação daqueles dados objectivos com a regra da experiência comum do modo normal de agir livre, consciente e deliberado de um ser humano adulto e desde que se verifique a coincidência entre o objecto da vontade do agente com o fim ou objecto da acção externa, do referido evento histórico.

Ora, in casu, desde logo, os dados objectivos fornecidos pela globalidade da prova em conjugação com as regras da experiência comum e os juízos de normalidade, apenas permitem a conclusão positiva da verificação de uma actuação dolosa.

Assim, conjugando de forma crítica e analítica, a globalidade da prova produzida, nomeadamente o declarado pelo próprio arguido (não obstante a negação dos factos), as declarações das assistentes, os depoimentos das testemunhas ouvidas, nos termos supra analisados, os documentos juntos aos autos supra elencados, bem como o relatório social do arguido e respectivo certificado de registo criminal, sempre tendo em conta as regras da experiência comum e juízos de normalidade, dúvidas não se suscitaram quanto à veracidade dos factos levados à matéria de facto provada.

A matéria de facto não provada teve por base a produção de prova em contrário.

Nenhuma outra prova foi produzida.”


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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), sem prejuízo de ponderar os vícios da decisão e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 e 7/95 de 19/10/ 95 este do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” , sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100, constituindo a “revista alargada”.

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Como resulta do artº 414º3 CPP, a decisão que admita o recurso não vincula o tribunal superior pelo que nada impede a apreciação destas questões ou outras que se suscitem. In casu, está em causa a declaraçao de incompetência do Tribunal da Relação.

Conhecendo.

A competência deste Supremo Tribunal, resulta das normas atributivas dessa competência nos termos expressados no Código de Processo Penal e dele resulta que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito (artº 434ºº CPP), apenas podendo conhecer dos vícios do artº 410º2 CPP (da matéria de facto) oficiosamente (artºs 410.º, n.º 2, 426.º e 434.º, CPP e Ac. FJ n.º 7/95 e 10/2005, e apenas podendo ser alegados pelo recorrente nas situações recursivas previstas no artº432.º, n.º 1, a) e c), CPP (em que o STJ intervém como 2ª instância).

Dispõe o artº 434º CPP: “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”

Por sua vez o artº 432º CPP diz-nos que:

“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;

d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.

2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”

Dispõe por sua vez o artº 400º CPP sobre a não admissibilidade dos recursos:

“1 - Não é admissível recurso:

a) De despachos de mero expediente;

b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;

c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;

d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

g) Nos demais casos previstos na lei.

2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”

Tendo em conta que a decisão condenatória de 5 anos e 2 meses de prisão o foi em 1ª instância pelo tribunal coletivo, mostra-se preenchido um primeiro requisito atributivo da competência ao STJ. Importa verificar se o recurso é restrito a matéria de direito.

Vistas as conclusões do recurso do arguido, ele questiona a medida das penas parcelares, a medida da pena única e a sua substituição por pena suspensa, e ainda os montantes indemnizatórios atribuídos às ofendidas / assistentes, e não é colocada em causa a matéria de facto sendo por isso o recurso restrito à matéria de direito. Podemos assim concluir pela competência deste Supremo Tribunal, tendo presente também a doutrina do Acórdão Fixação Jurisprudência n.º 5/2017 – in DR n.º 120/2017, Série I de 2017-06-231 sobre o conhecimento das penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão que integrem o cumulo jurídico

Donde as questões a apreciar suscitas pelo arguido recorrente são:

- a medida das penas parcelares,

- a medida da pena única e a sua substituição por pena suspensa,

- os montantes indemnizatórios atribuídos às ofendidas / assistentes


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Conhecendo.

Entende o recorrente que as penas parcelares e a pena única são excessivas, porque quanto às primeiras, haverá que atentar nos factos provados expressos nos nº 69º, 70º, 72º, 73º, 74º e 83º, tendo sido valorizadas em excesso as exigências de prevenção geral, e descorando a desnecessidade de socialização do arguido e bem assim os limites impostos pela culpa.

Diz-se no acórdão recorrido:

“A moldura penal abstrata para o crime de violência doméstica é de prisão de dois a cinco anos.

Pondera-se, pois:

•O elevado grau de ilicitude dos factos consubstanciado no grave desvalor das acções e no gravíssimo desvalor do resultado;

•O dolo manifestado, relativamente a ambos os ilícitos, consubstanciado na forma mais intensa da vontade criminosa;

•As fortes e acutilantes exigências de prevenção geral que se fazem sentir – reposição dos valores violados - pelo grave alarme social que o crime de violência doméstica é gerador, dadas as suas nefastas consequências para as vítimas e para a sociedade em geral;

•As consequências da conduta do arguido nas assistentes, das mais gravosas, porquanto as levou a equacionar o suicido e mesmo a tentá-lo.

•A ausência de antecedentes criminais;

•O período de tempo em apreço, as circunstâncias em que os factos ocorreram, nomeadamente na(s) casa(s) de morada de família, domicilio comum do casal e na presença da filha, menor de idade e sobre esta, o que faz elevar as exigências de prevenção especial;

•O percurso de vida do arguido e as suas actuais condições pessoais, económicas e sociais plasmadas na factualidade provada;

•O facto de o arguido ser tido por terceiros como uma pessoa simpática, calma e correcta, bem como é tido por honesto e trabalhador.

Assim, ponderadas todas as circunstâncias que influem na determinação da medida da pena – art. 71º –, afigura-se razoável e equilibrado aplicar ao arguido por o crime de violência doméstica praticado na pessoa da assistente BB a pena parcelar de 4 anos de prisão e pelo crime de violência doméstica praticado na pessoa da assistente CC a pena parcelar de 3 anos de prisão.”

Na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido, há que ponderar os fins das penas expressos no artº 40º CP consistentes na “protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” tendo em conta todas as circunstâncias que nela possam influir e que artº 71º CP exemplifica, devendo atender-se que “a aplicação da sanção ou a sua ameaça são simplesmente um modo de prevenir as violações futuras (teorias utilitárias) – e isto quer na medida em que a ameaça ou a execução desse mal agem sobre a generalidade das pessoas, intimidando-as e desviando-as da prática do crime (prevenção geral); quer na medida em que actuam sobre o agente num sentido segregador – afastando-o ou eliminando-o da sociedade – reeducativo ou correctivo – adaptando-o à vida social – ou intimidativa – dando-lhe consciência da seriedade da ameaça penal (prevenção especial)”2, e que tal se encontra plasmado no Código Penal, por virtude do disposto nos artºs 40º e 71º CP, ao imporem que na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido se atenderá à sua culpa, como suporte axiológico de toda a pena, sendo que “A culpa é o pressuposto e fundamento da responsabilidade penal. A responsabilidade é a consequência ou efeito que recai sobre o culpado. (...) Sendo pressuposto e fundamento da responsabilidade deve ser também a sua medida, (...). O domínio do facto pelo agente é o domínio da sua vontade racional e livre, e é esta que constitui o substrato da culpa”3 e ainda que o princípio da culpa é a “consequência da exigência incondicional da defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa”4, - e às exigências de prevenção quer geral quer especial, e que (assim Figueiredo Dias5) as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização.

Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (artº 40º2 CP “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”

Tal doutrina foi no essencial condensada pelo STJ no ac.17/4/2008 Proc 08P571 Cons. Henrique Gaspar) in www.dgsi.pt/jstj onde se expende: “A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.

Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.

O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.

O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.).

A medida da prevenção, que não podem em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.”

Do transcrito se vê não apenas que os fatores elencados pelo recorrente se mostram ponderados, bem como a observância das regras e princípios sobre a determinação da medida da pena e ainda que foram observadas as circunstâncias provadas do artº 71º CP. Todavia ponderam-se na medida da pena concreta as circunstancias agravantes que o tipo já comporta na determinação da pena abstrata (como os factos ocorrerem no domicilio conjugal ou na presença da filha) pelo que não podem ser valorados duplamente, e assim tendo em conta os fatores provados e descritos a valorar no âmbito do artº 71º CP, mostra-se necessária uma intervenção corretiva, nas penas concretas, tendo não apenas em conta o grau de intensidade dos factos e seus efeitos nas ofendidas, mas também a moldura penal (2 a 5 anos de prisão), o nível cultural e educacional dos intervenientes e suas vivências, o que condiciona as exigências e capacidades de socialização, e aliado aos factos as exigências de prevenção geral que se mostram comuns a este tipo criminal. Nessa perspetiva, na ausência de outros fatores a que haja de atribuir relevo atenuativo cremos ser adequada a pena de 3 anos e 6 meses para o crime em que é ofendida a então esposa e 2 anos e 6 meses em que é ofendida a filha.

Quanto à pena única entende que deve ser fixada em medida inferior a 5 anos de prisão, pois a “fixação da pena única deve olhar para a imagem global do facto e atentar nas conexões de sentido espaciais, temporais e normativas passíveis de serem estabelecidas entre os factos e penas em concurso” e que o passado do arguido, sem antecedentes criminais, e a sua inserção social que aqui não foram adequadamente sopesados.

Na decisão recorrida ponderou-se:

“Assim, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.

No que concerne à personalidade do agente importa avaliar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência, (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.

In casu, a imagem global dos crimes levados a cabo pelo arguido permite concluir que o conjunto dos factos cometidos é reconduzível a um particular contexto da vida, mas com consequências para as vítimas muito graves, tanto mais que ambas tentaram o suicídio, tiveram ideação de suicídio e de ruina.

Em consequência das condutas do arguido, a assistente BB desenvolveu uma depressão, manifestou ideação auto-lesiva, encontrando-se a ser acompanhada e medicada pelos serviços de Psiquiatria, do Hospital ....

Por sua vez, a assistente CC desenvolveu sentimentos de medo e insegurança pela submissão ao contexto hostil e ameaçador, adoptou estratégias de isolamento e fuga ao longo dos anos, iniciando quadro clinicamente significativo pelos seus 17 anos, evidenciando psicopatologia predominante da esfera ansiosa (medo com ataques de ansiedade e pânico) e comportamentos autolesivos; medicada após ataque de pânico que levou a ingestão medicamentosa e sujeita tratamento psiquiátrico regular; mantém quadro psicopatológico centrado nas vivências traumáticas e com características clinicas compatíveis com perturbação de stress pós-traumático.

Impõe-se também ponderar que só com a imposição ao arguido da privação da liberdade, a assistente BB não mais foi incomodada.”

Conhecendo:

Dispõe o art. 77º, n.º 1 do CP que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, e na determinação dessa pena, há que ter em conta o disposto no art. 77º, n.º 2 do CP, segundo o qual, “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (…) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Importa por isso averiguar se a pena única em que foi condenado é ou não excessiva, o que em face da alteração das penas parcelares se mostra necessário corrigir, face às regras sobre a sua determinação, regras essas que fixam os seus limites e os critérios a observar para encontrar a medida justa, como decorre do artºs 77º 1 e 2 CP ao estabelecer “1-Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”

Quanto aos limites, ela deve ser encontrada entre os 3 anos e os 5 anos e 6 meses de prisão, que constitui a moldura do concurso.

No que respeita aos critérios da sua determinação, traduzidos na apreciação, em conjunto dos factos e da personalidade do arguido há a considerar que a pena única é fruto “das exigências gerais de culpa e de prevenção”6 a coberto do artº 40º CP, e que se exige uma apreciação dos factos, na sua globalidade, e da personalidade do arguido neles revelada artº 77º1 CP), e como se expressa F. Dias “ tudo deve passar-se… como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global … “7, - o que é interpretado pelo STJ no ac. 18/6/2014 www.dgsi.pt/jstj8 como “A explanação dos fundamentos que, à luz da culpa e prevenção, conduzem o tribunal à formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. Na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os factos que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele “pedaço” de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respectiva personalidade.”- e também no ac. STJ de 03/04/2013 www.dgsi.pt9, onde se defende que “…importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos e da motivação que lhes subjaz, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele” - e na “avaliação da personalidade – unitária- do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutivel a umas tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade … “10, - sendo que esta (pluriocasionalidade) como se escreve no texto do ac STJ 12/9/2007 www.dgsi.pt/11 “verifica-se quando a reiteração na prática do crime seja devida a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, que não se radicam na personalidade do agente, em que não se está perante a formação paulatina do hábito enraizada na personalidade, tratando-se antes de repetição, de renovação da actividade criminosa, meramente ocasional, acidental, esporádica, em que as circunstâncias do novo crime não são susceptíveis de revelar maior culpabilidade, em que desaparece a indiciação de especial perigosidade, normalmente resultante da reiteração dum crime.

A pluriocasionalidade fica atestada, certificada, face à mera constatação da «sucessão» de crimes”.

Como em qualquer pena a justa medida, limitada no seu máximo pela culpa,- suporte axiológico de toda a pena - da pena única, há-de ser encontrada, tendo em conta as exigências de prevenção (da reincidência), traduzidas na proteção dos bens jurídicos e de reintegração social (ressocialização) – artº 40º CP – como finalidades preventivas e positivas de toda a pena – ponderando as penas aplicadas a cada facto, o conjunto desses factos e a personalidade do arguido neles manifestada como um comportamento global 12 a apreciar no momento da decisão.

Assim em termos de prevenção geral há a ponderar a natureza dos crimes, ambos de grande abrangência, duração e relevo social atual (violência doméstica) sobre pessoas que convivem com o agente em casa (esposa e filha), a exigir uma maior atenção preventiva como fatores desagregadores da sociedade, reafirmando a validade das normas jurídicas violadas.

Se em termos de integração social e laboral esta se mostra efetivada, e que é o que se espera de qualquer cidadão, o certo é que foi no seio familiar (que ora se mostra desagregado) que os factos ocorreram, e se mostram interligados revelando uma linha de conduta permanente, a exigir um maior cuidado na sua prevenção e por essa razão não podem ser menorizadas as razões de prevenção especial no que aos factos ilícitos concretos respeita.

Na ponderação da personalidade do arguido revelada nos factos há que ponderar o modo e condições da sua vida, quer em termos laborais, sociais, familiares e educativos apurados, o seu nível cultural e educacional potenciador de uma atitude ou perceção inadequada sobre a convivência familiar e os deveres, direitos e obrigações que a devem reger, e a que os conviventes se vinculam a observar, tendo presente que estamos perante um defeito de socialização, traduzido na necessidade de prevenir a prática de futuros crimes. Ter presente que a sua atuação se traduziu num modo de vida quase permanente e por isso revelador de uma formação inadequada aos valores sociais, e que apresenta “dificuldades para adquirir consciência sobre a censurabilidade das condutas que determinaram que fosse submetido a julgamento...”.

Visto o exposto em tendo em conta a moldura do concurso, e apreciando os factos na sua globalidade e a personalidade do arguido neles revelada e as penas parcelares aplicadas, as exigências de prevenção quer geral quer especial, a ilicitude dos factos e a culpa do arguido, e sua reinserção social e capacidade de observar as regras sociais, numa vivência sem cometer crimes, afigura-se-nos proporcional, adequada e justa a pena única de quatro anos de prisão.

Em face da sua pretensão recursiva, pretende o arguido a substituição da pena de prisão por pena suspensa.

Importa analisar esta questão em face da pena única aplicável, pois se mostra satisfeito o requisito formal exigido pelo artº 50º 1 CP, que dispõe: “1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” pelo que importa averiguar do preenchimento do requisito material: a existência de um prognostico favorável à suspensão da pena, na ponderação daqueles fatores ali expressamente indicados.

Se em face da conduta anterior e posterior aos factos nada há a salientar face à ausência de antecedentes criminais e não conhecimento de outros factos ilícitos, tendo o arguido cessado a sua conduta, até pela imposição das medidas de coação, o certo é que as condições da sua vida, que se traduziram num arrastar durante anos de atos ilícitos integradores dos crime em apreço, contra o seu núcleo familiar, a natureza dos atos e seus efeitos, e aliada à sua personalidade e dificuldade na perceção da censurabilidade da sua conduta, levam-nos a considerar que não é possível a existência de um prognostico favorável à suspensão da pena, por não ser crível que em face de idênticas circunstancias o arguido não adote atitudes /condutas de igual natureza, pois foram atos que repetiu no tempo, e apesar da advertência em que sempre se traduz a existência de um processo crime ou a intervenção das autoridades policiais, isso não foi bastante para o inibir de continuar com as condutas lesivas, sabedor dos efeitos nefastos que provocou.

Apesar de para a substituição da prisão por pena suspensa se dever assumir na maior parte das vezes um risco prudencial, a verdade é que a suspensão da pena só pode ser decretada se a tal não se impuserem razoes de prevenção geral. Figueiredo Dias, expressando a doutrina comum, expende: “Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime (…) estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa”13; no que foi seguido pela demais doutrina e pela jurisprudência - Cf. por todos o ac. STJ de 18/12/2008, www.dgsi.pt, onde expressando uma jurisprudência constante, se escreve “…não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.

Como escreve Figueiredo Dias, “Havendo razões sérias para duvidar da capacidades do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada”14

Em face dos factos e seu prolongamento no tempo, em situações similares de convivência familiar, e face à personalidade do arguido, e à sua (in)capacidade de perceber adequadamente a censurabilidade da sua conduta , não é possível emitir um juízo favorável à suspensão da pena, no convencimento de que o arguido não repetirá as suas ações, pelo que por razões de prevenção especial e razões de prevenção geral estas aliadas ao sentimento da comunidade perante tais atos e valorização da norma proibitiva, não pode a pena única aplicada ser suspensa.

Procede assim parcialmente o recurso, quanto à parte criminal, alterando as penas parcelares e fixando a pena única em 4 anos e 6 meses de prisão efetiva

Questiona o arguido o montante indemnizatório arbitrado às assistentes, não pondo, nem sendo de colocar, em causa o dever de indemnizar os danos causados, mas considerando-os desadequados aos danos sofridos e aos critérios de equidade, equilíbrio e bom senso.

Após considerações doutrinárias e legais, que se consideram corretas o tribunal recorrido conclui que “em face ao supra elencado circunstancialismo do caso vertente, com especial incidência no grau de culpa do arguido, na gravidade do sofrimento físico e psicológico das assistentes, na sua duração, num juízo de equidade, considera-se ser justo, equilibrado e adequado à reparação de tais danos, o montante indemnizatório para a assistente BB de € 22.000,00 e o montante indemnizatório para a assistente CC de €16.500,00.” que corresponde aos valores peticionados.

Como norma legal orientadora rege na fixação do montante dos danos de natureza não patrimonial, que aqui estão em causa, o artº 496º 4 CC, que dispõe: “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º;” que por sua vez estabelece que a equidade na fixação da indemnização deve ter em conta “ o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”, o que implica ter-se em conta critérios de proporção, adequação às circunstâncias, objetividade e razoabilidade tendo em atenção o pedido formulado, pois são comuns a todos os juízos de equidade.

Assim, há que ponderar tais critérios e os demais previstos no art.º 494º CC como sejam o dolo do arguido direto, o modo como agiu, o tempo durante o qual agiu, os atos a ponderar, as consequências que daí emergiram, as situações económicas do arguido como lesante e das ofendidas como lesadas tal como emergem dos factos apurados e em face do estilo, condições e modo de vida que levavam e que os factos e respetivas profissões deixam antever aliado ao seu nível educacional e cultural e as demais circunstancias do caso, com o seja os locais e momentos das ações lesivas e sua intensidade, as razões e motivos da sua ocorrência e as repercussões e os valores catuais fixados pela jurisprudência (Acs. STJ 6/6/93 CJ Ano I, II, 186, 11/10/94 CJ STJ, 94, III, 89 entre outros) a que se deve atender a fim de afastar a subjetividade (Ac. STJ 23/10/79, RLJ 113º 91 com anotação concordante de Vaz Serra, cit. no Ac. STJ 26/5/93 CJ Ano I, II, 130).

Atendendo assim às particularidades do caso, nos termos expostos e que o quantum indemnizatório deve ser suficiente, ressarcidor e compensador dos danos causados a este nível, constituindo “uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem ou, em todo o caso, compensem esse dano" 15, ou que se traduza numa compensação «insusceptível de avaliação em dinheiro e representa a dor corporal sofrida, bem como o prejuízo de equilíbrio anímico ou espiritual» Ac. S.T.J. de 28 /2/1969, R.L.J. ano 103º, pág. 176, mas tendo presente a lição de Antunes Varela et alli, Cod. Civil Anot. I Vol., notas ao artº 494º CC, no sentido de que os tribunais de recurso devem “limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida ”16 o certo é que na presente circunstancia o tribunal recorrido, que fixou as indemnizações nos valores peticionados, não atentou nas circunstancias económicas do lesante e das lesadas (que viviam em economia comum) pessoas de condição social humilde e modesta condição económica como resulta dos dados económicos apurados e das suas atividades profissionais, não podendo, neste momento, ir mais além no apuramento do como e do porquê nas circunstâncias do caso (ou seja na contribuição de cada um para os mesmos ou as razões da sua permanência ao longo do tempo), pelo que se nos afigura justo e equitativo fixar a indemnização por tais danos na quantia de quinze mil e dez mil euros para a ofendida BB (ex-esposa) e CC (filha) respetivamente.

Não há outras questões de que cumpra conhecer procedendo parcialmente, o recurso


+

Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça, decide

Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA, e em consequência revogando parcialmente a decisão recorrida:

Condena o arguido AA pelos crimes de violência doméstica, na pessoa das assistentes BB e CC nas penas de três anos e seis meses e, de dois anos e seis meses de prisão respetivamente, e operando o cúmulo jurídico na pena única de quatro anos e seis meses de prisão efetiva, e mantem o demais decidido quanto à parte criminal;

Sem custas

Condena o arguido AA a pagar às ofendidas BB e CC a quantia de quinze mil euros e dez mil euros respetivamente, pelos danos não patrimoniais causados, mantendo-se o demais decidido quanto à parte cível.

As custas cíveis serão suportadas pelo arguido e assistentes na proporção do vencimento.

Notifique


+

Lisboa e STJ, 2/10/2024

José A. Vaz Carreto (relator)

Antero Luís

Horário Correia Pinto

_______




1. «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»

2. Eduardo Correia in Direito Criminal, Vol. I, 2001, pág. 41.

3. Cavaleiro Ferreira, Lições de Dto. Penal, I, págs. 184 e 185;

4. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 84,

5. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 227 e sgt.s)

6. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2005, pág. 291,

7. ob. loc. cit.

8. Proc. 585/09.6TDLSB.S1 Conselheiro Santos Cabral

9. Proc. 789/11.1TACBR.C1.S1 Conselheiro Oliveira Mendes

10. Figueiredo Dias, ob. loc. cit.

11. Ac. STJ de 2007-09-12 (Proc. nº 07P2601) Conselheiro Raul Borges

12. Ac. STJ de 16/05/2019, proc. 765/15.5T9LAG.E1.S1 (Conselheiro Nuno Gonçalves), in www.dgsi.pt ;

13. As Consequências juridicas… cit. pág. 344

14. Idem, ibidem

15. – Pinto Monteiro, Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro 1992, nº 1, 1º ano, APADAC, pag. 20).

16. Cfr. também ac.s STJ de 13/07/2006, 17/06/2004 e de 29/11/2001 todos disponíveis em www.dgsi.pt].