I - Pela Lei 94/2021 de 21/12, a possibilidade de o STJ conhecer da matéria de facto emergente dos vícios e nulidades não sanadas do artº 410º 2 e 3 CPP, é restrita aos recursos referidos nas al. a) e c) do artº 432º CPP em que o STJ funciona como 2ª instância (funcionando a Relação como 1ª instancia, ou o Tribunal coletivo / ou de júri).
II - Estas normas ( artº 432º, 1a) e c), 434º e 400º 1 e) CPP (esta ao abrigo da qual o presente recurso para o STJ é admissível) foram introduzidas pela mesma Lei nº 94/2021, pelo que é inequívoca a intenção legislativa de admissão de recurso sobre a matéria de facto (no que respeita aos vícios da decisão e nulidades do artº 410º CPP) apenas aos casos das al. a) e c) do artº 432º CPP, pelo que é de rejeitar o recurso interposto ao abrigo dos artºs 400º 1e) e 432º 1b) que invoque os vícios do artº 410º CPP
III - Não é de optar pela aplicação da pena de multa, ao abrigo do artº 70º CP, se atenta a situação económica da arguida, tal redundaria num simulacro de condenação, face às regras relativas ao cumprimento de tal pena, pondo em causa as exigências de prevenção.
IV - O dever imposto no artº 50º1a) CP não está dependente da existência de pedido de indemnização, nas trata-se de uma condição de natureza penal constituindo um complemento integrante da sanção penal, alertando o arguido para a consciência do mal causado, fazendo jus ao brocardo “o crime não compensa” e repondo a situação em que o lesado se encontrava.
V - A substituição de uma pena de prisão por pena suspensa sem condição de reparação dos danos causados nos crimes em que estão em causa valores patrimoniais é completamente ineficaz em termos preventivos gerais e especiais e impedem uma verdadeira ressocialização do arguido.
Acordam, em conferência, os juízes, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
No Proc. C. S. nº 1109/21.2PSLS do Tribunal Judicial da Comarca de Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de ... - Juiz ... em que é arguida AA foi por sentença de 31.10.2023 decidido absolver a arguida pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1, do Código Penal.
Interposto recurso pelo Mº Pº o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23/4/2024 proferiu a seguinte decisão: “Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogando a sentença recorrida condenam AA, pela prática de um crime de recetação. p. e p. pelo nº 1 do artº 231º do Código Penal, na pena de dezasseis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de pagamento a BB da quantia de dois mil e oitocentos euros, no prazo de um ano.”
Desta condenação recorre a arguida, para o Supremo Tribunal de Justiça, a qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
“1.º O presente recurso tem como objeto matéria de facto e de direito proferida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que condenou a Arguida, ora Recorrente, na prática de um crime de recetação p.p. pelo n.º 1 do art.º 231.º, do C.Penal, na pena de 16 meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de pagamento a BB da quantia de dois mil oitocentos euros, no prazo de um ano.
2. O Tribunal da 1.ª Instância deu, designadamente, como provado que:
- Em ... de 2021 BB colocou à venda no OLX um sofá,
- Nessa sequência recebeu uma chamada telefónica de indivíduo, afirmando que estava interessado no artigo.
- Por forma não concretamente apurada, o individuo veio a remeter-lhe dados que lhe transmitiu e que aquela teria de inserir e pedir-lhe outros, associando desta forma, a conta bancária ao nº de telemóvel na aplicação MBway.
- Por essa via, veio aquele a lograr efetuar transferências de 750 e uma transferência de 250, no total de 2500 para o nº MBWay .......17, associado à conta com o IBAN PT ......................55, titulada pela arguida.
- A arguida levantou, pelo menos, parcialmente, tais quantias para entregar a pessoas não identificada.”
3. Entende o Tribunal da Relação de Lisboa que “ resta pois saber se efetivamente desses factos dados por provados, à luz das regras da experiência comum e segundo o que dispõe o artigo 127.º do CPP, se retira ou não a presunção sobre a factualidade da acusação tida por indemonstrada, eventualmente, ou não, com a modificação sugerida no recurso”
4. Evidenciando e definindo o que é a prova indireta, e a sua admissibilidade no processo penal, o Tribunal da Relação de Lisboa conclui que a Sentença da 1ª Instância padece de “erro notório que ressalta do texto da própria sentença.”.
5. Porquanto “Como não considerar, segundo elementares regras da experiência comum e à luz da normalidade expectável dos comportamentos humanos, que a arguida não soubesse o que anteriormente se tinha passado, ou, pelo menos, de semelhante realidade não tivesse conhecimento geral.”
6. Presumiu o Tribunal da Relação de Lisboa que o burlão que logrou enganar a vítima não iria depois confiar o produto da sua “habilidade” a quem não confiasse plenamente, arriscando ficar sem dinheiro e ainda ser denunciado.
7. Com todo o respeito, entende a Recorrente que da leitura do texto da Sentença proferida pela 1ª Instância não ressalta qualquer erro notório.
8. O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando são dados como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida não se poderiam ter verificado, ou são contraditados por documentos. Há um vício de raciocínio na apreciação da prova, evidenciado pela leitura do texto da decisão, evidencia que salta aos olhos do leitor médio.
9. De igual modo, quando as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada.
10. Face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida é legítimo concluir que pelo facto de o burlão confiar na Arguida, não significa que ele a tenha informado da origem “ilícita” da proveniência do dinheiro.
11. Assim, como concluir que a Arguida só consentiu que as transferências de dinheiro entrassem na sua conta bancária, porque sabia do esquema enganoso de que a vítima foi objeto.
12. O crime de recetação, p.e p. no n.º 1 do art.º 231.º, do C.Penal, apenas pune a recetação doloso.
13. Nesta medida, exige-se que o agente tenha conhecimento efetivo, de “ciência certa”, de que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, com dolo direto ou necessário.
Para o preenchimento do n.° 2 basta que o agente admita a possibilidade de a coisa ter tal origem, conformando-se com a dita possibilidade, não se assegurando da sua proveniência legítima – dolo eventual.
14. De frisar que ao longo de toda a sua inquirição em momento algum a Meritíssima Juíza nem a Exma. Senhora Procuradora colocaram questões à Arguida/Recorrida se esta, por acaso, não tivesse achado estranho o pedido formulado pela tal CC, ou se lhe levantava alguma desconfiança séria.
15. Nem tão pouco a Arguida foi questionada sobre a idoneidade nem o caracter da CC, ou como é que ela era vista lá no bairro, se pessoa responsável ou trampolineira.
16. Se a Arguida/Recorrida não foi sequer confrontada com possíveis situações de suspeição relativamente ao pedido que lhe havia sido formulado, e bem assim à sua própria actuação, como se pode concluir que esta devesse ter agido de outra forma, em virtude duma suspeita de que nada se sabe.
17. Deste modo, não está verificada a satisfação do elemento objecto do ilícito do n.º 2 do art.º 231.º, do C.Penal.
18. O mesmo se diga quanto o seu elemento subjectivo, porquanto, a ter-se por verificado, que não foi o caso, da exigência de cumprimento do dever de informação, este n.º 2 contém um tipo doloso, já que a punição do crime negligente é excepcional e carece de disposição especial nesse sentido, de acordo com o art.º 13.º, do C.Penal, e tal exigência não existe neste art.º 231.º, n.º 2.
19. O agente tem que representar, pelo menos, a possibilidade de, sendo que o erro que recaia sobre aqueles elementos típicos excluiu o dolo, nos termos do n.º 1 do art.º 16.º, do C.Penal.
20. Como já atrás se consignou, durante a sua inquirição, em momento algum a Arguida/Recorrente foi confrontada com algum sentimento de suspeita que pudesse ter, nem sequer foi cotejada de qualquer sujeita ou perante uma alusão a uma possível suspeição, da proveniência ilícita da coisa.
21. Deve ser alterada a matéria de facto dada como assente pelo Acordão Recorrido, considerando como não provado que:
- que a arguida tenha aderido a tal plano e que, como pagamento, a arguida tenha conservado para si montante não apurado, que gastou em proveito próprio;
- que a arguida soubesse que os 2.500,00 euros tinham sido obtidos após indivíduo de identidade concretamente não apurada ter levado BB a associar o telemóvel, por aquela utilizado, ao sistema MBway da sua conta do Santander, assim logrando aceder ao mesmo e transmitir quatro ordens de transferência bancária, tudo sem a autorização ou conhecimento da sua legítima titular;
- que a arguida, não obstante estar ciente de tais factos, tenha fornecido o NIB e MBWay associado da conta bancária por si titulada, a fim de que aqueles montantes fossem transferidos para a mesma e posteriormente levantados em ATM e em numerário, com o intuito de obter uma vantagem patrimonial para si e para terceiro de identidade não apurada, agindo com esse propósito e intenção.
22. Numa palavra, deve ser dado como não provado que:
“É flagrante, salvo o elevado respeito, que a arguida de tudo sabia e a tudo se prestou, obviamente para também lucrar, pelo que os factos alcançados por prova directa, impõem a presunção sobre os demais constantes da acusação e sem qualquer tipo de hesitação ou modificação.”.
23. Nâo foi feita prova de que a Arguida teve conhecimento efetivo de que o dinheiro depositado na sua conta provinha de um facto ilícito.
24. O Tribunal da Relação de Lisboa partiu do facto conhecido e provado – as transferências de dinheiro para a conta da Arguida - para, com recurso a presunção afirmar com segurança que “o burlão que logrou enganar a vítima iria depois confiar o produto da sua habilidade a quem não confiasse plenamente, arriscando ficar sem o dinheiro e ainda ser denunciado? ”, e dar como provado que “a arguida de tudo sabia e a tudo se prestou”.
25. No entanto, pode-se infirmar a inversa, ou seja, seria mais provável que o burlão tivesse inventado uma desculpa “lícita” convincente, para que a Arguida cedesse a sua conta.
26. Não informando a Arguida da origem ilícita do dinheiro, não teria o burlão mais probabilidade de ver a sua pretensão atendida?
27. Se arguida soubesse de antemão que esse alguém é um burlão, não teria a mesma configurado que tal lhe traria complicações futuras, porque seria a primeira suspeita da prática daquele ilícito, ao disponibilizar a sua conta bancária?
28. Apenas com uma probabilidade próxima da certeza ou para além de toda a dúvida razoável poderia o Tribunal da Relação de Lisboa condenar a Arguida nos termos supra expostos.
29. A presunção para determinar a culpa pela prática de um crime deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, para evitar o erro judiciário
30. A presunção de que o “burlão que logrou enganar a vítima iria depois confiar o produto da sua habilidade a quem não confiasse plenamente, arriscando ficar sem o dinheiro e ainda ser denunciado? ”, salvo o devido respeito, não é particularmente sólida nem fundamentada, dando margem para o erro judiciário.
31. Pois, se o burlão teve a arte e o engenho para enganar a Vítima/Ofendida também há uma probabilidade forte que aquele tivesse enganado a Arguida, invocando um motivo que a levasse a não suspeitar tratar-se de um ilícito típico contra o património, de natureza criminal.
32. As dúvidas objetivas e razoáveis, não ultrapassáveis em audiência segundo a livre apreciação da prova indissociável do principio da oralidade captando toda a riqueza do depoimento da Arguida/Recorrente, deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido, em obediência ao princípio in dúbio pro reo.
33. O Tribunal da 1.ª Instância ouviu em primeira mão e diretamente a versão da Arguida – apreciou os gestos, o olhar, o tom de voz e as hesitações.
34. Quer o Tribunal da 1.ª Instância, quer o Ministério Público dessa instância, a partir desta constatação, formaram convicção no sentido de que do depoimento da Arguida “não foi feita prova de que a Arguida tivesse conhecimento de que as quantias em causa haviam sido obtidas nos termos descritos nos pontos 1 a 5 dos factos provados da sentença”.
35. Pelo exposto, o Tribunal da Relação de Lisboa não interpretou nem aplicou corretamente o n.º 1 do art.º 231.º, do C.Penal.
Sem prescindir,
36. O Tribunal da Relação de Lisboa aplicou à Arguida, aqui Recorrente, a “pena de dezasseis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de pagamento a BB da quantia de dois mil e oitocentos euros, no prazo de um ano”.
37. À data da prática dos factos – ... de ... de 2021, a Arguida era primária; está perfeitamente inserida na sociedade, trabalha e tem três filhos menores na sua dependência económica.
38. Pelo que a aplicação de uma pena de multa satisfaz as necessidades de prevenção geral e a censura do facto será bastante para afastar a arguida da criminalidade.
39. Ademais, condenar a Arguida ao pagamento de dois mil e quinhentos euros à Ofendida BB é totalmente descabido, porquanto o seu banco ressarciu-a de todos os prejuízos sofridos – não tendo sequer a mesma deduzido pedido de indemnização civil, conforme folhas dos próprias autos.
40. Pelo exposto, o Tribunal da Relação de Lisboa violou os artigos: 127.º, n.º 1; 374.º, n.º 2; 375.º; 355.º; e 82.º-A, todos do C.P.Penal, e bem assim os artigos: 231.º, n.º 1; 40.º, n.º 1; 70.º; e 71.º, n.º 1 e n.º 2, estes do C.Penal.
Termos em que,
REQUER A V. EXAS. se dignem admitir o presente recurso, revogando o Acordão Recorrido, absolvendo a Arguida como autora da prática do crime de recetação, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 231.º, do C.Penal.
MAIS REQUER A V. EXAS. se dignem, em caso de condenação pelos actos praticados pela Arguida, que estes sejam integrados no n.º 2 do art.º 231.º, do C.Penal, pois a mesma deveria ter razoavelmente suspeitado da proveniência ilícita contra o património.
REQUER TAMBÉM A V. EXAS. se dignem reconsiderar, em caso de condenação pelo n.º 1 do art.º, 231.º, do C.Penal, a aplicação de uma pena de multa, tendo em consideração que à data da prática dos factos nestes autos – ... de ... de 2021 - Arguida era primária, encontra-se socialmente inserida, trabalha, e tem filhos menores a seu cargo, circunstâncias que satisfazem as necessidades da prevenção geral, de interiorização da conduta criminal, e bem assim, na ressocialização da própria.
REQUER AINDA A EXAS. se dignem revogar a condição estabelecida para a suspensão da execução da pena de prisão, de pagamento da quantia de dois mil e quinhentos euros à Ofendida BB, em clara violação do art.º 82.º-A, do C.P.Penal, porque os prejuízos sofridos pela mesma já haviam sido ressarcidos pelo seu banco, conforme declarações prestadas pela própria em audiência de discussão e julgamento, o motivou a ausência de dedução de pedido de indemnização civil.
REQUER, POR ÚLTIMO, A EXAS. se dignem revogar a matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa,
O Mº Pº junto da Relação respondeu ao recurso defendendo a improcedência do recurso.
Neste Supremo Tribunal de Justiça o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da rejeição parcial do recurso e na improcedência do recurso no demais.
Foi cumprido o disposto no artº 417º2 CPP,
A recorrente não respondeu
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta da fundamentação da sentença da 1ª instância (transcrição):
“ A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
“1. Em ... de 2021, BB colocou à venda no OLX, um sofá, por valor não inferior a 195 euros.
2. Nessa sequência, recebeu uma chamada telefónica de um indivíduo, afirmando que estava interessado no artigo.
3.Iniciaram o diálogo para combinar os detalhes de venda, tendo combinado a forma de pagamento.
4. Por forma não concretamente apurada, o indivíduo veio a remeter-lhe dados que lhe transmitiu e que aquela teria de inserir e a pedir-lhe outros, associando, desta forma, a conta bancária ao n.º de telemóvel na aplicação MB Way.
5. Por desconhecer o funcionamento da aplicação, a ofendida veio a inserir os códigos remetidos, possibilitando, inadvertidamente, àquele indivíduo a movimentação da sua conta bancária, através da transmissão dos códigos que lhe eram facultados.
6. Por essa via, veio aquele a lograr efectuar três transferências de €750 e uma transferência de €250, no total de €2500, para o n.º MB Way .......17, associado à conta com o IBAN PT.....................55, titulada pela arguida AA.
7. A arguida levantou, pelo menos parcialmente, tais quantias para entregar a pessoa não identificada.
8. A arguida vive com um companheiro, cinco filhos – sendo que dois trabalham e contribuem para as despesas comuns - e uma neta.
O agregado familiar vive numa casa pertencente à Câmara Municipal, pagando de renda €11,40.
A arguida é ..., ganhando, em média, entre 120 a 150 euros mensais.
O companheiro da arguida trabalha, auferindo a retribuição mínima mensal garantida.
9. A arguida já foi condenada por um crime de auxílio material, em pena de multa, datando os factos de Março de 2020 e o trânsito em julgado de Março de 2022.”
“que indivíduos desconhecidos tenham abordado a arguida AA, no sentido de utilizarem a sua conta bancária supra descrita;
que tivesse sido combinado que a arguida deveria assumir a tarefa de proceder ao imediato levantamento ou mobilização das quantias que lhes fossem creditadas, por levantamento dos montantes recebidos na sua conta bancária;
que a arguida tenha aderido a tal plano e que, como pagamento, a arguida tenha conservado para si montante não apurado, que gastou em proveito próprio;
que a arguida soubesse que os 2.500,00 euros tinham sido obtidos após indivíduo de identidade concretamente não apurada ter levado BB a associar o telemóvel, por aquela utilizado, ao sistema MBway da sua conta do Santander, assim logrando aceder ao mesmo e transmitir quatro ordens de transferência bancária, tudo sem a autorização ou conhecimento da sua legítima titular;
que a arguida, não obstante estar ciente de tais factos, tenha fornecido o NIB e MBWay associado da conta bancária por si titulada, a fim de que aqueles montantes fossem transferidos para a mesma e posteriormente levantados em ATM e em numerário, com o intuito de obter uma vantagem patrimonial para si e para terceiro de identidade não apurada, agindo com esse propósito e intenção.
que a arguida tenha agido sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
Em conjugação com as declarações da ofendida, foi importante a análise dos documentos de fls. 10, 19 a 47, 52, que demonstram que foram feitas, a partir da conta titulada pela ofendida, três transferências de €750 e uma de €250, para a conta da arguida.
A arguida negou ter conhecimento da proveniência ilícita de tais montantes, explicando que foi uma amiga de nome CC, que morava no mesmo bairro e que lhe pediu se poderia fazer transferências para a sua conta bancária, provenientes de vendas, uma vez que não tinha MBWay.
A arguida aceitou e, posteriormente, foi com essa amiga levantar o dinheiro e entregou-lhe.
Não foi produzida qualquer prova no sentido de a arguida ter agido em conluio com terceiro, sabendo que a origem do dinheiro, que receberia na sua conta bancária, era ilícita, ou de ter recebido uma contraprestação monetária pela cedência da sua conta bancária para utilização nos termos descritos.
Igualmente não foram apurados outros factos que permitissem corroborar ou infirmar a versão da arguida.
Relativamente à situação sócio-económica da arguida, foram valoradas as suas declarações prestadas em audiência de julgamento.
Foi ainda analisado o certificado de registo criminal da arguida.”
para tal expendeu, tendo por base a atividade probatória indireta ou por presunções naturais, que:
“… a sentença revidenda incorre claramente em erro notório na apreciação da prova.
Como não considerar, segundo elementares regras de experiência comum e à luz da normalidade expectável dos comportamentos humanos, que a arguida não soubesse de tudo o que anteriormente se tinha passado, ou, pelo menos, de semelhante realidade não tivesse o conhecimento geral?
O burlão que logrou enganar a vítima iria depois confiar o produto da sua “habilidade” a quem não confiasse plenamente, arriscando ficar sem o dinheiro e ainda ser denunciado?
É flagrante, salvo o elevado respeito, que a arguida de tudo sabia e a tudo se prestou, obviamente para também lucrar, pelo que os factos alcançados por prova directa, impõem a presunção sobre os demais constantes da acusação e sem qualquer tipo de hesitação ou modificação.
A confiança entre todos os agentes do crime necessária para o sucesso da atividade em causa e na sua totalidade, depende do conhecimento que todos têm daquela, não sendo sequer de aventar uma noção diminuída sobre aqueles.”
- Existência de erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal da Relação na modificação da matéria de facto;
- Violação do principio in dubio pro reo nessa apreciação
-Errada qualificação jurídica
- Adequação da pena de multa
- Revogação da condição da suspensão
Conhecendo
O Mº Pº neste STJ no seu parecer entende que o recurso na medida em que invoca o erro notório na apreciação da prova (e consequente violação do in dubio pro reo) que se lhe afigura inexistir, deve ser rejeitado nessa parte, por inadmissibilidade legal, visto que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito (artº 434ºº CPP), apenas podendo conhecer de tais vícios (da matéria de facto) oficiosamente (artºs 410.º, n.º 2, 426.º e 434.º, CPP e Ac. FJ n.º 7/95 e 10/2005, e apenas podendo se alegados pelo recorrente nas situações previstas no artº432.º, n.º 1, a) e c), CPP (em que o STJ atua como 2ª instância).
Dispõe o artº 434º CPP: “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”
Por sua vez o artº 432º CPP que:
“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”
Dispõe por sua vez o artº 400º CPP sobre a não admissibilidade dos recursos:
“1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.
Como decorre das normas supra citadas com a alteração promovida pela Lei 94/2021 de 21/12, a possibilidade de o STJ conhecer da matéria de facto emergente dos vícios e nulidades não sanadas do artº 410º 2 e 3 CPP, é restrita aos recursos referidos nas al. a) e c) do artº 432º CPP em que o STJ funciona como 2ª instancia (funcionando a Relação como 1ª instancia, ou o Tribunal coletivo / ou de júri). Estas normas ( artº 432º, 1ª) e c), 434º e 400º 1 e) CPP (esta ao abrigo da qual o presente recurso para o STJ é admissível) foram introduzidas pela mesma Lei nº 94/2021, pelo que é inequívoca a intenção legislativa de admissão de recurso sobre a matéria de facto (no que respeita aos vícios da decisão e nulidades do artº 410º CPP) apenas aos casos das al. a) e c) do artº 432º CPP em que não se insere o presente recurso.
Neste sentido tem decidido o STJ ( ac. 1/3/2023 Proc. 589/15.0JABRG.G2.S1 www.dgsi.pt Cons. Ernesto Vaz Pereira; ac 23/3/2022 Proc. 4/17.4SFPRT.P1.S1 www.dgsi.pt Cons. Lopes da Mota).
Não sendo admissível recurso com tais fundamentos (matéria de facto – vícios do artº 410º2CPP), deve o mesmo ser rejeitado nessa parte, face à cindibilidade das questões recursivas (arts 400º, 403º, 414º, nº 2, e 420, nº 1, al. b).
Assim sendo, não é possível conhecer do vicio assacado ao acórdão da Relação, de erro notório na apreciação da prova e violação do in dubio pro reo, ambos submetidos ao mesmo regime como questões de facto (pois a violação do principio in dubio pro reo é uma das formas que pode revestir o erro notório na apreciação da prova.”5).
Em face da motivação do seu recurso e no pressuposto da modificabilidade dos factos provados no acórdão da Relação avança a recorrente que existe uma errada qualificação jurídica quer por via da ausência dos elementos objetivos quer dos elementos subjetivos do ilícito em causa que imporiam a ausência de crime quer em termos dolosos quer negligentes, elementos que quanto a este não foram investigados.
Improcede esta questão pois que em face da não modificabilidade dos factos a qualificação jurídica do ilícito está correta e fica prejudicada a averiguação da prática do ilícito por via negligente, que só seria de investigar na falência da forma dolosa.
Em face da improcedência suscita a recorrente a adequação da pena de multa ao ilícito praticado, para tanto invocando que a “arguida era primária, e está perfeitamente inserida na sociedade, trabalha, tem família, e três filhos menores na sua dependência.”
A Relação expressou o afastamento da opção pela pena de multa do seguinte modo: “O passado criminal da arguida desaconselha a opção pela pena de multa, por, neste caso, ser insuficiente para lhe fazer sentir a gravidade do ilícito, a clamar por medida detentiva, já que averba condenação recente por crime de idêntica natureza cometido anteriormente. E ainda que a condenação seja posterior aos factos aqui em juízo, não deixam de revelar propensão para este tipo de criminalidade que, por isso, se impõe atalhar.” Embora não possamos acolher o juízo da Relação, pois a arguida não tinha antecedentes criminais valoráveis à data (nº9. “A arguida já foi condenada por um crime de auxílio material, em pena de multa, datando os factos de Março de 2020 e o trânsito em julgado de Março de 2022.”) não podemos todavia deixar de assinalar que a mesma já tinha ultrapassado as contra motivações éticas que a deviam impedir de se iniciar na prática deste tipo de ilícitos, tornando mais fácil o aproveitar uma situação da natureza da que se deparou. Por outro lado haveria que atentar na sua precária situação económica (nº 8 dos factos provados), e essencialmente a tal se oporem as finalidades da punição ( artº 70ºCP) traduzidas na proteção do bens jurídicos e se possível a reintegração do agente na sociedade ( artº 40ºCP) de molde a que não se cometam mais crimes, sendo que in casu as exigências de prevenção geral são acentuadas, pois o tipo de ilícito em causa e os demais a ele associados constituem uma praga gerando desconfiança e pondo em causa o relacionamento social e o comercio eletrónico, hoje imprescindível na vida económica. Acresce ainda o seu valor. Não é, por isso, de optar pela aplicação da pena de multa que atenta a situação económica da arguida se trataria de um simulacro de condenação, e por isso pondo em causa as exigências de prevenção, face às regras relativas ao seu cumprimento.
Pretende, por outro lado a revogação da condição de suspensão da pena, e para tanto alega que o banco ressarciu a ofendida e esta não deduziu pedido civil, pelo que estaria a pagar-lhe um prejuízo que não sofreu.
Manifestamente a recorrente labora em dois erros: o primeiro é de que os factos alegados são verdadeiros e em lado algum constam como tal e, o segundo é quanto à natureza dessa condição, pois não se trata de ressarcir a ofendida que não deduziu pedido civil, mas uma condição de natureza penal imposta para que a pena de prisão possa ser suspensa na sua execução. E esta não está dependente da existência de pedido de indemnização. Trata-se, como complemento integrante da sanção penal6, de proceder à reparação do mal do crime (artº51º 1 a) CP) e ao arguido de tomar consciência disso mesmo fazendo jus ao brocardo “o crime não compensa”, repondo a situação em que a lesada se encontrava, condição que se mostra plenamente justificada, até porque a substituição de uma pena de prisão por pena suspensa sem condição de reparação nos crimes em que estão em causa valores patrimoniais é completamente ineficaz7 em termos preventivos gerais e especiais e impedem uma verdadeira ressocialização do arguido.
Improcede também esta questão e com ela o recurso
Ao abrigo dos artºs 434º 432º 1 a) e c), 400º, 403º, 414º, nº 2, e 420, nº 1b) rejeitar parcialmente o recurso interposto pela arguida AA quanto à matéria de facto, por inadmissibilidade legal;
Julgar improcedente o recurso e em consequência mantém o acórdão recorrido.
Condenar a arguida na taxa de justiça que fixa em 6 UC, e nas demais custas (artº 513º CPP e Tabela III RCJ).
Notifique e DN
José A.V. Carreto (relator)
Maria do Carmo Silva Dias
António Augusto Manso
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1. Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335
2. in DR I-A de 11/12/94 e DR. I-A de 28/12 / 95
3. G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742,
4. - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100f
5. cf. Paulo Albuquerque, Comentário do Cód. Proc. Penal, Ucp, 2009, 3ªed. pág. 1094; ac. STJ de 16-05-2007, CJ (STJ), T2, pág.182).
6. AFJ 8/2012 de 12/9/2012 DR 1ª serie de 24/10/2012 onde se escreve: “A «indemnização», rectius, «reparação» arbitrada como condicionante da suspensão da execução da pena de prisão não está dependente da dedução do pedido civil (artigo 71.º do CPP), não se confunde com este (tendo natureza jurídica diferente da que é objecto do pedido de indemnização cível, de modo tal que não se pode afirmar que a improcedência deste pedido determina a impossibilidade da atribuição daquela), nem tem a ver com o arbitramento ao abrigo do artigo 82.º -A, n.º 1, do CPP (reparação da vítima em casos especiais) e com a disciplina do artigo 377.º do mesmo CPP, nem mesmo com a responsabilidade civil emergente do crime, consubstanciando uma forma de reparação autónoma, complemento integrante da sanção penal, que deve ser vista nas suas consequências, nomeadamente, em sede de incumprimento, apenas dentro dos contornos do instituto.” apud, J.A.V. Carreto, A Suspensão Parcial da Pena de prisão e a Reparação do dano, Almedina, pág.124
7. A Suspensão parcial da pena, cit. pág. 115