RECURSO PER SALTUM
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CRIME CONTINUADO
AMEAÇA
MILITAR
PENA ÚNICA
Sumário


I - São requisitos do crime continuado: o cometimento de vários crimes; esteja em causa o mesmo bem jurídico; ocorra uma execução homogénea (mesmo modo); exista uma solicitação exterior (das coisas ou da situação) para o facto, ocorra uma diminuição considerável da culpa, para além de se exigir por norma, uma certa conexão temporal entre os atos.
II - Se a execução dos crimes se diversificou pelo modo e circunstancias de atuação, bens e objetos visados, e locais diferentes desde escola, estabelecimento comercial, residências, veiculo automóvel, obra em construção, camião, e ocorre um planeamento ou vontade autónoma para cada situação, pois se muniu de objetos e instrumentos que utilizou nuns casos e noutros não, tratando-se de situação e locais que o arguido procurou para o efeito tendo transposto os obstáculos que em cada um dos casos se lhe deparou, não estamos perante uma execução essencialmente homogénea, fruto de uma disposição das coisas (mesma situação exterior) que lhe facilitassem o ato apropriativo, geradora de um quadro de diminuição da sua culpa.
III - A toxicodependência não constitui qualquer situação exterior (das coisas) facilitadoras prática dos ilícitos, mas algo intrínseco a si próprio pois a toxicodependência é uma característica ou circunstância da personalidade e/ou do modo de vida do recorrente.
IV - Comete o crime de ameaças agravado o arguido que exibe uma navalha  com lamina de 6 cm e empunhando-a a aponta na direção do militar da GNR, que para ele se dirigia e disse-lhe “é hoje que te mato cabrão”, e já no posto da GNR dirigindo-se ao mesmo militar diz-lhe em tom grave e sério, “quando te apanhar aí fora à civil vou acabar com aquilo que tentei hoje e não consegui”, e não há duvida que tais atos são ameaçadores de morte.
V - Tais atos são idóneos e adequados a causar o mal do crime, pois que não é pelo facto de o ofendido ser militar da GNR, que tem de suportar tal ameaça, ou é impedida a prática do ato ameaçado.
VI - Os militares da GNR pela sua formação estão preparados para lidar com atos violentos, quando estão a ocorrer ou sabem que vão ocorrer, não para situações de ameaça que não controlam nem podem controlar, pois não sabem quando e em que circunstancias serão atacados.
VII - No caso concreto acresce que é evidente o perigo de ofensa do bem jurídico pois o arguido ameaça atacá-lo quando o encontrar à civil, isto é, sem quaisquer condições especiais de defesa.
VIII - Como em qualquer pena, a justa medida, - limitada no seu máximo pela culpa (suporte axiológico de toda a pena), - da pena única, há-de ser encontrada, tendo em conta as exigências de prevenção (da reincidência), traduzidas na proteção dos bens jurídicos e de reintegração social (ressocialização) – artº 40º CP – como finalidades preventivas e positivas de toda a pena – ponderando as penas aplicadas a cada facto, o conjunto desses factos e a personalidade do arguido neles manifestada como um comportamento global [1] a apreciar no momento da decisão.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

No Proc. C. C. nº 436/23.9GBILH do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Criminal de ... - Juiz 1 em que é arguido AA, conhecido pela alcunha “BB”, foi por acórdão de 9/7/2024, proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, decide-se julgar a acusação procedente e provada e, consequentemente, por referência ao disposto no artigo 75.º, do Código Penal:

a) Condenar o arguido AA pela prática de 10 crimes de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de:

- 9 meses de prisão cada um (situações A – dois crimes; E – três crimes; I; J (crime desqualificado pelo valor), K e L, num total de 9 crimes);

- 12 meses de prisão (situação G, um crime);

b) Condená-lo, ainda, pela prática de três crimes de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), nas penas de:

- 3 anos e 2 meses de prisão (situação B, um crime);

- 3 anos e 6 meses de prisão cada um (situações D e H, um crime por cada situação);

c) Procedendo à alteração da qualificação jurídica devidamente comunicada, condenar ainda o arguido pela prática de quatro crimes de abuso de cartão, p. e p. pelo artigo 225.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de 8 meses de prisão por cada um dos crimes;

d) condená-lo ainda pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 10 meses de prisão;

e) Condenar ainda o arguido pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 155.º, alíneas a) e c), na pena de 7 meses de prisão;

f) Em cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 77.º do Código Penal, pela prática dos crimes referidos de a) a e), condena-se o arguido na pena única de 9 anos de prisão a cumprir de forma efectiva;

g) Condena-se o arguido no pagamento da quantia de € 1.984,35 a favor do Estado a título de perda de vantagens obtida com a prática do crime (por força do disposto no artigo 110.º, ns.º 1, alínea b), 3 e 4 do Código Penal;

h) Declaram-se perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos, designadamente, os bens descritos a fls. 26 e 27 do apenso D, fls. 14 e 15 do apenso L, fls. 13 do apenso B e fls. 12 do apenso H nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal;

i) Condenar o arguido nas custas da acção penal, com taxa de justiça que se fixa em 4 UC´s (nos termos do disposto nos artigos 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais da Tabela III, em anexo).

Recorre o arguido, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:

1. O Recorrente entende que o Tribunal recorrido deveria ter aplicado, nos autos a figura do crime continuado previsto no artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, no que respeita ao crime de furto simples, ao crime de furto qualificado e ao crime de abuso de cartão, bem como terá havido erro na apreciação da prova, por não estarem preenchidos os elementos do tipo legal do crime de ameaças, motivo pelo qual, não concorda com a condenação, pela não verificação daquele tipo legal de crime, pecando ainda o Acórdão Recorrido por aplicar uma pena única, em cúmulo jurídico, que se considera excessiva e desproporcional.

2. Com efeito, ao invés de uma condenação em 10 (dez) crimes de furto simples, 3 (três) crimes de furto qualificado, e ainda 4 (quatro) crimes de abuso de cartão, o Recorrente entende que é patente que a resolução criminosa foi só uma, repetida por cada vez que se introduzia em local vedado ao público, entrava na posse de cartões bancários furtados ou mesmo quando furtava uma habitação, sendo certo que, os bens jurídicos em causa eram semelhantes, independentemente de quem era lesado.

3. Para efeitos de determinação da existência de crime continuado ou não o que releva é " ... a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico ... ", porquanto o arguido cometeu o mesmo crime, repetindo a sua actuação no mesmo quadro fáctico, sendo até conhecido na sociedade pelo furto de habitações, pelo que, se impõe seja apenas considerada a prática de um crime de furto qualificado na forma continuada, um crime de furto simples na forma continuada e um crime de abuso de cartão na foram continuada, porquanto houve apenas e só, sempre, a mesma resolução criminosa.

4. Pelo que, o Tribunal a quo violou o disposto no Art. 30 n.º 2 do C.P. impondo-se a revogação da decisão recorrida por outra que considere a prática de um único crime na forma continuada, com a consequente aplicação de pena que terá, necessariamente como limite máximo a pena aplicável à conduta mais grave, ex vi Art. 79 do C.P., sendo certo que, neste caso deverá sempre ser aquela pena especialmente atenuada.

5. Porquanto, entende o Recorrente estarem preenchidos os requisitos do crime continuado, descritos nos nºs 2 e 3 do artigo 30º, do Código Penal.

6. Ora, em face de tal circunstancialismo e ante a matéria provada constante do douto Acórdão Recorrido, a prática de eventual crime teria apenas um só desígnio criminoso e, por outro lado, que havendo várias resoluções criminosas está em causa uma mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, uma atenuante intrínseca à própria condição pessoal do arguido e que, por isso, é exterior, pelo que a condição económica do arguido e o facto, que aliás resulta como matéria provada no ponto 89: “Nos últimos meses de acompanhamento de liberdade condicional, o arguido já vivia na rua, sem residência fixa, consumindo estupefacientes, num contexto em que ainda comparecia nos Serviços de Reinserção…”, será um facto a relevar na considerável diminuição de culpa do arguido. Assim como, também revela homogeneidade de conduta, uma vez que as mesmas se repetiram em diversos momentos, sendo que a referida homogeneidade tem por referência condutas repetidas, em contínuos espaços de tempo.

7. Enquanto no n.º1 do artigo 30.º estabelece critérios relativos à problemática do concurso de crimes «tout court», no n.º2 regulam-se situações que também têm a ver com a pluralidade de crimes, mas que o legislador juridicamente unifica como um só crime.

8. Perfilha-se o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, sendo certo que o n.º1 do artigo 30.º sofre duas importantes ordens de restrições: os casos de concurso aparente de infracções e de crime continuado.

9. Nos casos de concurso aparente, são formalmente violados vários preceitos incriminadores, ou é várias vezes violado o mesmo preceito. Mas esta plúrima violação é tão-só aparente, porquanto resulta da interpretação da lei que só uma das normas tem cabimento, ou que a mesma norma deve funcionar uma só vez. Apontam-se diversas regras, das quais as mais indiscutidas são as da especialidade e da consunção, para delimitar estes casos.

10. Por sua vez, nos casos de crime continuado está em causa a prática repetida do mesmo tipo legal de crime, ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de uma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

11. Por sua vez, em contraposição às situações em que se verificam várias resoluções criminosas – e de todas as vezes que o agente resolve agir contra o comando de uma norma jurídica, tal significa que, de todas essas vezes, esse comando se mostrou ineficaz -, mas em que se admite, nos pressupostos do artigo 30.º, n.º2, a sua unificação num único crime continuado -, temos aquelas em que, a existência de várias condutas objectivamente típicas agregadas em função de uma única resolução criminosa, conduzem ao cometimento de um único crime.

12. Em suma, na base do instituto do crime continuado encontra-se um concurso de crimes, pois que aquele se traduz objectivamente na realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.

13. Destarte, no caso concreto dos autos, ao condenar o Recorrente relativamente a 10 (dez) crimes de furto simples, 3 (três) crimes de furto qualificado e ainda a 4 (quatro) crimes de abuso de cartão, violou o douto Acórdão Recorrido o disposto no artigo 30º do Código Penal, porquanto deveria o Recorrente ser condenado apenas num crime continuado, por cada um dos tipos legais de crime aqui em causa.

14. Quanto à condenação do Recorrente num crime de ameaça agravada, p. e p.pelo artigo 155.º, alíneas a) e c), na pena de 7 meses de prisão, importa referir que, para que o crime de ameaça se concretize, deverá o julgador atentar se a ameaça em concreto é adequada e susceptível de ser levada a sério pelo destinatário em concreto, para o efeito, deve atender-se ao critério do homem comum, conjugado com as características específicas do ameaçado e o circunstancialismo em que a ameaça foi proferida, bem como à personalidade do agente, só assim se podendo alcançar o âmago desta norma.

15. Ora, de acordo com a jurisprudência dominante “O presente crime é de qualificar como delito de carácter circunstancial, já que a valoração jurídico-penal da acção desenvolvida deve analisar-se a partir das expressões proferidas, das acções cometidas, do contexto que elas tiveram lugar, das condições pessoais de ameaçante e ameaçado e demais circunstâncias que sirvam para contextualizar o facto. Por outro lado, a ameaça deve ser séria e credível, sob o ponto de vista quer do emissário, quer do destinatário.” – AC. T.R. Coimbra de 04-12-2019, proc. 49/19.0GHCVL.C1, disponível em www.dgsi.pt.

16. Desta contextualização, resulta de forma clara que o arguido, com sérias dificuldades de vida, conforme consta do relatório social quanto às suas condições pessoais, com anterior contacto com o sistema judiciário, não terá apetência, competência, compleição física e muito menos capacidade, para representar um perigo, a não ser para si próprio!

17. Aliás, não poderia este Tribunal ignorar que o militar da GNR visado, CC, relativamente aos factos imputados – crime ameaças – referiu que, apesar de admitir que o arguido pudesse estar a “ressacar”, na sequência da perseguição que foi encetada após o accionamento da patrulha – conforme consta a fls. 24 do douto Acórdão Recorrido.

18. Com efeito, resulta dos factos dados como provados, no referido Acórdão, a fls. 8 que “o referido militar deu voz de detenção ao arguido, o qual foi manietado, algemado e introduzido no interior da viatura policial, na qual foi conduzido ao posto da GNR da ...”.

19. Portanto resulta que, no momento da detenção, o arguido estaria perturbado, porque estava a ser perseguido por autoridades policias e também porque estaria sob efeito de estupefacientes. Ora, os agentes da autoridade, como era o caso do militar da GNR em questão, são pessoas habituadas, formadas e treinadas, para terem “ouvido-mudo”, lidarem com os “Salvadores” com quem se cruzam diariamente, dificilmente se acreditando que as expressões que lhe foram dirigidas fossem aptas a constituir uma ameaça e muito menos apta a produzir medo e receio no militar ofendido.

20. Aliás, não poderia o Tribunal Recorrido ter considerado que a primeira expressão, como a segunda expressão (“Quando te apanhar aí fora à civil vou acabar com aquilo que tentei hoje e não consegui”) alegadamente indicada como sendo uma expressão ameaçadora, que o arguido lhe terá dirigiu já no posto da GNR, depois de estar algemado e detido, mas que não foi sequer presenciada pelo militar da GNR DD, daí que nem feita prova do alegado temor, fosse suscetível de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação de um agente de autoridade, ou que fosse susceptível de “intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psico-mentais da pessoa ameaçada”, como configura TAIPA DE CARVALHO, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 1999, pág. 348. Na verdade, não poderia ser ignorado que no caso dos presentes autos estamos, por um lado perante um toxicodependente fragilizado e, por outro lado perante um agente da autoridade, normalmente, armado e dotado de robusta compleição física.

21. Com efeito, as expressões alegadamente ameaçadoras sentidas pelo militar CC, acabam por corresponder a um depoimento vago, impessoal, sem qualquer indicação de onde se retire alteração de vida, hábitos, comportamentos do ofendido, que exteriorizem um qualquer temor, intranquilidade ou intimidação por parte daquele militar face às referidas expressões.

22. Aliás, a este propósito “Socorramo-nos do ensinamento de Cristina Líbano Monteiro referindo-se aos destinatários da acção: possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros da Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum.”

23. Com efeito, as locuções descritas como ameaça, mais não são do que uma violência verbal, mas não mais do que isso, incapaz de encerrar em si uma qualquer ameaça séria com representação de perigo para o militar da GNR, uma vez que não é dotada de idoneidade suficiente para inviabilizar ou manietar comportamento do Militar, tanto mais que estes possuem especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que não assistem ao cidadão comum.

24. Destarte, não se verifica no caso concreto dos autos, o elemento objectivo do tipo legal do crime de ameaças, daí que terá o douto Acórdão Recorrido violado o disposto nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.

25. Importa agora analisar a bondade ou não da pena única de nove anos de prisão aplicada ao Recorrente, em cúmulo jurídico, face aos factos que constam dos autos, isto é, independentemente do que se disse acerca do crime continuado, que se reitera, devemos agora cingir-nos à justeza da moldura penal aplicada.

26. Consideramos que, salvo o devido respeito pela opinião contrária, que se considera manifestamente excessiva a pena única aplicada, tendo em conta as circunstâncias em que o(s) crime(s) foi(ram) cometido(s). Com efeito, o arguido era consumidor de estupefacientes, enfrentando esse flagelo, tendo essa sua condição conduzido o arguido à prática daqueles factos. De referir que uma boa parte dos produtos furtados foram recuperados. Ora, o tribunal à quo não teve em consideração para a determinação da medida da pena aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 206º do CP. – “Se a restituição ou reparação forem parciais, a pena pode ser especialmente atenuada. "Sendo certo que, nos casos dos autos, situações houve em que a restituição foi integral - cfr. fls. 220 dos autos.

27. Factores estes que aqui deverão ser levados em linha de conta em sede de medida concreta da pena, impondo-se a sua redução. Todavia, analisando a postura do arguido posteriormente à prática dos factos e, sobretudo, em Julgamento, também essa conduta merecerá desse Venerando Tribunal a devida relevância, que redundará na aplicação da redução da pena.

28. Com efeito, o arguido não só reconheceu serem as suas condutas reprováveis aos valores da sociedade como, mostrou um sincero arrependimento colaborando com o Tribunal a quo, quer confessando uma boa parte dos factos, quer esclarecendo a forma como procedeu. Assim, a colaboração do arguido merecia por parte do Tribunal a quo a devida valoração, o que não aconteceu!

29. Tanto assim é que, no decurso da Audiência de Discussão de Julgamento o Ministério Público prescindiu de 7 (sete) das testemunhas de Acusação, em face da confissão do arguido, que o Tribunal Recorrido não valorizou adequadamente, relativamente aos factos descritos em A), C), D) e L) do libelo acusatório.

30. Na verdade, impõem as alíneas c) e d) do n.º 2 do Art. 72º do C.P. uma atenuação especial da pena nos casos em que, como no dos autos, o arguido mostrou arrependimento e colaborou na descoberta da verdade. Ora, ocorrendo a atenuação especial conforme se impunha e, funcionando os critérios plasmados no Art. 73º do C.P. é patente que a pena a aplicar ao recorrente seria manifestamente inferior.

31. Assim, atendendo ao comportamento anterior e posterior do arguido, e às exigências de prevenção geral e especial, bem assim, ao facto da maior parte dos bens terem sido restituídos e à colaboração prestada pelo arguido para a descoberta da verdade impõe-se a revogação da pena concreta aplicada e substituição por outra, necessariamente inferior, assim se dando cabal cumprimento as normas plasmadas nos artigos 70º e ss. do C.P.

32. Ademais, importa referir que à data dos factos, a idade do Recorrente, o valor dos bens furtados, não ter sido usada violência, o período de tempo em que ocorreram os factos (Julho a Novembro de 2023), num quadro de grave dependência de produtos estupefacientes, que perdura desde os 19 anos, como decorre do relatório social do arguido junto aos autos. Ora, tal grave dependência não poderia ter permitido ao Tribunal Recorrido concluir, como consta a fls. 40, que “a reiteração radica na personalidade do arguido, onde se enraizou um hábito de praticar crimes”. Com efeito, a prática de crimes por parte do arguido não está na sua personalidade, mas sim na sua grave dependência, que não obstante os planos de reinserção social a que o arguido esteve sujeito, nenhum se mostrou eficaz, não exclusivamente por culpa do arguido mas do próprio sistema de reintegração.

33. Em face do que, a pena única aplicada revela-se, no nosso entender, como excessiva, tendo o douto Acórdão recorrido violado os artigos 70º, 72º, 73º, 77º e n.º 4 do artigo 206º todos do Código Penal.”

O Mº Pº respondeu defendendo a improcedência do recurso

Neste Supremo Tribunal de Justiça o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artº 417º2 CPP

O recorrente não respondeu.

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.

Cumpre apreciar.

Consta do acórdão recorrido (transcrição):

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A. Factos Provados

Observado o legal formalismo, procedeu-se a julgamento e, discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:

A. Inquérito n.º 401/23.6...:

1. Em data e hora não apuradas, mas seguramente até às 18:00 horas do dia 05.07.2023, o arguido dirigiu-se de bicicleta ao estabelecimento comercial denominado “S.... .....”, sito na Rua ..., na ..., concelho de ..., pertencente a EE, a fim de fazer seus objetos com valor comercial que se encontrassem no seu interior e lhe suscitassem interesse.

2. Já no seu interior, o arguido retirou das prateleiras onde se encontravam expostos para venda:

- 3 (três) boiões de creme da marca “Nivea Soft”, de valor não inferior a 15€;

- 3 (três) champôs da marca “Elvive”, de valor não inferior a 10€;

- 1 (um) champô da marca “Nivea”, de valor não inferior a 3€; e

- 1 (um) champô da marca “Dove”, de valor não inferior 5€.

3. Após, escondeu os referidos artigos sob o seu vestuário e abandonou o referido estabelecimento comercial sem efectuar o seu pagamento, levando-os consigo e deles se apoderando.

4. No dia 05.07.2023, cerca das 18:20 horas, o arguido dirigiu-se de bicicleta ao estabelecimento comercial “M.... ... ..........”, sito na Avenida ..., na ..., concelho de ..., pertencente a FF, a fim de fazer seus objetos com valor comercial que se encontrassem no seu interior e lhe suscitassem interesse.

5. Já no seu interior, o arguido retirou dos expositores para venda de bebidas, 4 (quatro) garrafas de whiskey das marcas “Jack Daniels”, “Ballantines”, “Red Label” e “Famous Grouse”, respectivamente, no valor global de 84,84€ (oitenta e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos).

6. Após, escondeu os referidos artigos no vestuário que trajava e abandonou o referido estabelecimento comercial sem efectuar o pagamento dos supra descritos produtos, levando-os consigo e deles se apoderando.

7. Cerca das 20:00 horas, foi o arguido interceptado por uma patrulha da GNR, trazendo consigo os produtos supra descritos nos pontos 2 e 5.

B. Inquérito n.º 436/23.9GBILH:

8. No dia 20.07.2023, no período compreendido entre as 14:30 e as 15:00 horas, o arguido dirigiu-se ao Centro Escolar ..., sito na Rua ..., na freguesia da ..., concelho de ..., com o intuito de daí retirar objetos e/ou valores, de modo a fazê-los seus.

9. Para tanto, apesar da propriedade da referida instituição de ensino se encontrar totalmente murada e de não ter autorização para aí entrar, o arguido, após se inteirar que nas redondezas não se encontrava quem quer que fosse, subiu o muro e gradeamento da mesma, transpondo-os, assim logrando aceder ao respectivo logradouro.

10. Após, abeirou-se de uma janela que se encontrava aberta e subiu à mesma, acedendo ao interior de uma das salas.

11. Aí, o arguido retirou das prateleiras onde se encontravam:

- Uma carteira cor-de-rosa, contendo um porta-moedas com a quantia monetária de 120€ (cento e vinte euros), um cartão bancário de crédito e débito do banco “Millennium BCP”, associado à conta bancária n.º .......97, pertencentes a GG;

- Uma pen, a quantia monetária de 20€ (vinte euros) e um cartão bancário de crédito e débito associado à conta n.º ...........61 da “Caxa Geral de Depósitos, S.A.”, pertencentes a HH.

12. Após, o arguido abandonou o local levando consigo os referidos bens, deles se apoderando.

13. Ainda no mesmo dia, munido do referido cartão bancário pertencente a GG, o arguido efectuou dois pagamentos de bens que adquiriu em seu proveito pessoal, no talho “P... .......” e no “Quiosque F....”, sitos em ..., nos valores de 21,28€ e 36,40€, respectivamente.

14. E, munido do cartão bancário supra referido, pertencente a HH, o arguido efectuou dois pagamentos de bens que adquiriu em seu proveito pessoal, na “Padaria G......” e no “Quiosque T.....”, sitos em ..., no valor global de cerca de 70€ (setenta euros).

C. Inquérito n.º 570/23.5...:

15. No dia 04.09.2023, pelas 17:30 horas, na Rua ..., na ..., concelho de ..., o arguido detinha no interior do casaco que trajava, uma faca vulgarmente designada por faca borboleta, a qual é constituída por duas peças metálicas articuladas e quando fechada, a lâmina permanece oculta entre as duas metades do cabo, cuja abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão.

16. Trazia ainda consigo, além do mais, um canivete castanho com 7 centímetros, um conjunto de chaves de fendas, uma bicha, um alicate cinza e cor de laranja, uma tesoura cinza e uma tesoura cinza e vermelha.

D. Inquérito n.º 634/23.5...:

17. No dia 29.09.2023, pelas 13:00 horas, na sequência de um plano que previamente elaborou, o arguido dirigiu-se à residência, sita na Rua ..., na ..., concelho de ..., propriedade de II, com o propósito de retirar bens que lá encontrasse e lhe suscitassem interesse, a fim de os fazer seus.

18. Aí chegado, o arguido colocou o seu braço por cima do portão da entrada, alcançando a respectiva fechadura do lado interior, assim logrando a sua abertura, pela qual entrou no logradouro da habitação.

19. Após, subiu a uma janela que se encontrava aberta, transpondo-a, assim, acedendo ao seu interior.

20. Já dentro da habitação, o arguido retirou dos respectivos lugares onde se encontravam, fazendo seus, uma ventoinha de pé industrial, da marca “Equation 110x”, no valor de 59,99€ e três relógios de corda, no valor global de 150€.

21. Posto que, abandonou a referida habitação levando consigo os referidos objetos, fazendo-os seus.

E. Inquérito n.º 671/23.0...:

22. No dia 28.09.2023, pelas 17:10 horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial “S2...”, sito na Avenida ..., na ..., concelho de ..., explorado pela sociedade “S..., Lda”, a fim de fazer seus objetos com valor comercial que se encontrassem no seu interior e lhe suscitassem interesse.

23. Já no seu interior, o arguido retirou das respectivas prateleiras onde se encontravam expostos para venda, um número não concretamente apurado, mas não inferior a quinze, de produtos de higiene pessoal, designadamente champôs e géis de banho.

24. Após, escondeu os referidos produtos no interior das calças que trajava, dissimulando-os, abandonando de seguida o referido estabelecimento comercial sem efectuar o seu pagamento, levando-os consigo e deles se apoderando.

25. No dia 29.09.2023, pelas 14:25 horas, o arguido dirigiu-se novamente ao referido estabelecimento comercial, renovando o propósito de fazer seus artigos de valor comercial que ali encontrasse em exposição para venda.

26. Em cumprimento desse desígnio, o arguido retirou das prateleiras onde se encontravam expostos para venda ao público, um número não concretamente apurado, mas seguramente não inferior a quinze, de produtos de higiene pessoal, designadamente champôs e géis de banho de diferentes marcas.

27. Acto seguido, escondeu-os no interior das calças que trajava, dissimulando-os e abandonou o local, passando a linha de caixa sem proceder ao respectivo pagamento, deles se apoderando.

28. Pelas 16:25 horas do mesmo dia, o arguido regressou ao referido estabelecimento comercial com o mesmo desígnio supra descrito.

29. Aí chegado, retirou novamente das aludidas prateleiras, onde se encontravam expostos para venda, um número não concretamente apurado, mas não inferior a quinze, de produtos de higiene pessoal, designadamente champôs e géis de banho de diferentes marcas.

30. Acto seguido, escondeu-os no interior das calças que trajava, dissimulando-os e abandonou o local, passando a linha de caixa sem proceder ao respectivo pagamento, deles se apoderando.

31. Com as condutas supra descritas, logrou o arguido apoderar-se de produtos de higiene pessoal, no valor global de 278,22€ (duzentos e setenta e oito euros e vinte e dois cêntimos), assim discriminados:

- 3 (três) champôs da marca “Elvive”, de 690ml;

- 1 (um) champô da marca “Elvive”, de 400ml”;

- 1 (um) champô da marca “Ultra Suave”, de 400ml;

- 3 (três) champôs da marca “Ultra Suave”, de 250ml;

- 3 (três) “Óleo Maravilhoso”, da marca “Ultra Suave”, de 150ml;

- 1 (um) amaciador da marca “Ultra Suave”, de 200ml;

- 3 (três) champôs da marca “Fructis”, de 400ml;

- 7 (sete) champôs da marca “Pantene”, de 385ml;

- 23 (vinte e três) géis de banho da marca “Dove”, de 750ml;

- 5 (cinco) géis de banho da marca “Dove”, de 500ml;

- 6 (seis) géis de banho da marca “Palmolive”, de 500ml.

F. Inquérito n.º 653/22.1...:

32. No dia 03.10.2023, pelas 18:00 horas, foi suscitada uma patrulha da GNR à habitação sita na Rua ..., na ..., pertencente a JJ, por existirem suspeitas de que o arguido aí havia permanecido e se ausentado da mesma ao volante de um velocípede sem motor.

33. Nesse momento, a patrulha da GNR, constituída pelos militares CC e DD, devidamente uniformizados, seguiram no encalço do arguido em viatura caracterizada e interceptaram-no na Rua ..., na ..., seguindo ao volante de um velocípede.

34. Ao se aperceber da aproximação da viatura policial, o arguido arremessou o velocípede para o solo e escondeu-se atrás de um muro.

35. Nessa ocasião, o militar CC saiu da viatura policial e abeirou-se do arguido.

36. Acto contínuo, o arguido exibiu uma navalha que trazia consigo, composta por uma lâmina com cerca de 6cm e, empunhando-a e apontando-a na direcção do referido militar, disse-lhe “é hoje que te mato cabrão”.

37. Nessa sequência, o referido militar deu voz de detenção ao arguido, o qual foi manietado, algemado e introduzido no interior da viatura policial, na qual foi conduzido ao posto da GNR da ....

38. Enquanto se encontrava no posto, durante a elaboração do expediente, o arguido, dirigindo-se ao mesmo militar verbalizou-lhe, em tom grave e sério, “quando te apanhar aí fora à civil vou acabar com aquilo que tentei hoje e não consegui”.

39. As afirmações dirigidas pelo arguido ao supra identificado militar, querendo significar que atentaria no futuro contra a sua vida, foram de forma a perturbar a liberdade pessoal de decisão e de acção e a paz individual deste, sendo susceptível de o intimidar e intranquilizar.

G. Inquérito n.º 663/23.9...:

40. No dia 06.10.2023, no período compreendido entre as 06:00 e as 06:35 horas, no âmbito e execução de um plano por si arquitectado, com o propósito de se apoderar de bens que lhe suscitassem interesse, a fim de os fazer seus, o arguido dirigiu-se à residência sita na Rua ..., na ..., concelho de ..., propriedade de KK.

41. Aí chegado, após se inteirar que nas redondezas não se encontrava quem quer que fosse, o arguido subiu o muro que delimita a referida propriedade e introduziu-se no seu logradouro.

42. Após, dirigiu-se a uns anexos de onde retirou, do cimo de uma mesa, as chaves da porta exterior da cozinha da habitação.

43. Na posse das mesmas, o arguido dirigiu-se à mesma e procedeu à abertura da respectiva fechadura, assim acedendo ao interior da habitação.

44. Aí, retirou uma carteira, que se encontrava dentro de uma mochila, contendo no seu interior 10€ (dez euros) em numerário, um cartão de cidadão e uma carta de condução, pertencentes a KK.

45. De seguida, o arguido encetou a fuga do local, levando tais bens e valores monetários consigo, fazendo-os seus.

H. (Inquérito n.º 668/23.0...):

46. No dia 07.10.2023, no período compreendido entre as 01:00 e as 07:30 horas, na prossecução do mesmo desígnio, o arguido dirigiu-se à residência sita na Rua do ..., na ..., concelho de Ílhavo, propriedade de LL.

47. Após se inteirar que nas redondezas não se encontrava quem quer que fosse, o arguido subiu o muro que delimita a propriedade, com cerca de, pelo menos, 1,60 metros de altura, e introduziu-se no logradouro da mesma.

48. Após, dirigiu-se a uma porta, que se encontrava fechada mas não trancada, abrindo-a, assim logrando entrar no interior da habitação.

49. Aí, retirou dos respectivos locais onde se encontravam, os seguintes bens, no valor global de 635€ (seiscentos e trinta e cinco euros):

- 40 kgs de *bacalhau salgado e 5 kgs de bacalhau demolhado, no valor global de 400€;

- Uma saca de pescada de 5kgs, no valor, pelo menos, de 40€;

- Uma cana de pesca grande em carbono, pelo menos, no valor de 60€;

- Uma cana de pesca pequena, no valor de 60€;

- Um carreto de pesca solto, de valor concretamente não apurado;

- Duas latas de tinta para construção, de valor concretamente não apurado;

- Três lâmpadas no valor, pelo menos, de 60€;

- Uma extensão eléctrica com 30 metros de comprimento, no valor, pelo menos de 15€.

50. Após, abandonou de seguida o local, levando tais bens consigo, fazendo-os seus.

I. (Inquérito n.º 703/23.1...):

51. No dia 23.10.2023, no período compreendido entre as 19:15 e anterior às 20:35, na Rua ..., na ..., concelho de ..., o arguido abeirou-se do veículo com a matrícula ..-..-SR, propriedade de MM, que ali se encontrava estacionado.

52. Aproveitando a circunstância do referido veículo encontrar-se destrancado, o arguido acedeu ao seu interior e daí retirou os seguintes bens, propriedade do ofendido:

- Um casaco, da marca “Naútica”, no valor, pelo menos, de 60€ (sessenta euros); e

- Um cartão bancário de débito emitido pelo “Banco CTT”, associado à conta bancária com o IBAN PT.....................97 titulada pelo ofendido na referida instituição.

53. Após, o arguido abandonou o local na posse dos referidos bens, fazendo-os seus.

54. Ainda nesse dia, a hora não apurada, o arguido, munido do referido cartão de débito, associado à conta titulada pelo ofendido na referida instituição bancária, exibiu-o nos terminais de pagamento existentes nos estabelecimentos comerciais “Padaria G......”, “R........” e “Minipreço”, sitos em ... e, com recurso ao mecanismo “contacteless”, efectou três pagamentos de bens que adquiriu em seu proveito pessoal, nos valores de 49,70€, 43,30€ e 49,63€, respectivamente.

55. Totalizando a quantia monetária de 142,63€ (cento e quarenta e dois euros e sessenta e três cêntimos).

J. (Inquérito n.º 705/23.8...):

56. No dia 24.10.2023, no período compreendido entre as 22:18 e as 22:46 horas, o arguido dirigiu-se para as imediações de uma obra em construção na Rua das ..., na freguesia da ..., concelho de ..., cuja responsabilidade pertencia à empresa “H..., Lda”, representada por NN, com o objetivo de se apoderar de objetos com valor comercial que aí pudesse encontrar, fazendo-os seus.

57. Para tanto, apesar do local se encontrar totalmente vedado com uma rede e de não ter autorização para ali entrar, o arguido, após se inteirar que nas redondezas não se encontrava quem quer que fosse, com recurso a um alicate que trazia consigo, procedeu ao corte da mesma, assim efectuando uma abertura, pela qual logrou aceder ao estaleiro da aludida obra.

58. Aí chegado, retirou dos locais onde se encontravam 4 (quatro) caixas de mosaicos, no valor de € 20,00 cada, contendo quatro mosaicos cada, com o tamanho de 60x60cm, da marca “Love Ceramic Tiles” e modelo “Pulse Greige” e vários cabos de electricidade, de valor não concretamente apurado.

59. Após, abandonou o local levando consigo os referidos artigos, deles se apoderando.

K. (Inquérito n.º 741/23.4...):

60. No dia período compreendido entre as 17:30 horas do dia 07.11.2023 e as 17:56 desse mesmo dia, o arguido dirigiu-se ao veículo automóvel de marca e modelo “Renault Clio”, com a matrícula ..-HB-.., propriedade de OO, quando este se encontrava estacionado no pátio da residência sita na Rua de ..., na ..., concelho de ....

61. Aí chegado, aproveitando a circunstância do mesmo não se encontrar trancado, o arguido acedeu ao seu interior, daí retirando da bagageira uma mochila que continha:

- Diversos documentos pessoais;

- pelo menos, 90€ (noventa euros) em numerário;

- Uma chave suplente do veículo, de valor não concretamente apurado;

- Diversos produtos de higiene, de valor não concretamente apurado;

- Dois cartões bancários, de débito de crédito, da “Caixa Geral de Depósitos, SA.”; e

- Um cartão de débito do “Banco BPI, S.A.”.

62. Após, o arguido abandonou o local na posse dos referidos bens, fazendo-os seus.

63. Ainda no mesmo dia, pelas 17:56 e 17:58 horas, o arguido, munido do cartão bancário de débito, associado à conta de depósitos à ordem n.º ...........00, domiciliada na “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, titulada pela ofendida OO, exibiu os referidos cartões no estabelecimento comercial denominado “G.........”, sito na Rua ..., na ..., e com recurso ao mecanismo “contactless”, efectuou dois pagamentos nos montantes de 4,08€ (quatro euros e oito cêntimos) e 27,91€ (vinte e sete euros e noventa e um cêntimos), respectivamente.

64. Assim, o arguido utilizou o referido cartão bancário da ofendida OO para efectuar compras de bens em seu proveito pessoal, no valor global de 31,99€ (trinta e um euros e noventa e nove cêntimos).

L. (Inquérito n.º 742/23.2...):

65. No dia 08.11.2023, a hora não apurada, o arguido, decidiu se apoderar de quantidades de combustível que encontrasse no interior do depósito do veículo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-HR-.., propriedade da sociedade comercial “E..., Lda”, que se encontrava aparcado na Travessa ..., na ..., concelho de....

66. Para tanto, muniu-se de três jerricãs de cor azul, com a capacidade de 20 litros cada um, uma mangueira de cor azul e uma tesoura de poda de cor vermelha e, pelas 23:00 horas desse dia, dirigiu-se na sua bicicleta, para junto do referido veículo.

67. Nessa ocasião, após se certificar que não se encontrava ninguém nas redondezas, o arguido imobilizou a bicicleta em que seguia, após o que se abeirou junto do depósito do referido veículo pesado e, com o auxílio do alicate que trazia consigo, desapertou a respectiva tampa.

68. Posteriormente, com o auxílio da aludida mangueira, o arguido retirou para o interior dos dois jerricãs, 40 (quarenta) litros de gasóleo, com o valor de 61€ (sessenta e um euros).

69. Nesse momento, o arguido foi surpreendido por uma patrulha da GNR que apareceu no local e obstaculizou a sua fuga.


*


70. O arguido é consumidor de estupefacientes.

71. Com as condutas descritas em A., E. e L, agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com a intenção, conseguida, de se apoderar dos referidos bens e produtos, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que actuava contra a vontade, sem autorização e em prejuízo dos seu legítimos proprietários.

72. O arguido sabia que ao actuar da forma descrita em B., D., G., H e J., agia contra a vontade dos proprietários daquelas residências e estaleiro de obra, não se coibindo de entrar nos referidos locais, bem sabendo que o seu acesso lhe era vedado e não tinha autorização para lá entrar, o que fez de modo a apoderar-se de bens que aí encontrasse, causando aos ofendidos o correspondente prejuízo patrimonial, o que tudo quis e conseguiu.

73. Com a conduta supra descrita em I. e K., o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de subtrair e fazer seus os bens que se encontravam guardados no interior dos veículos automóveis supra mencionados e que eram propriedade dos ofendidos, bem sabendo que agia contra a vontade destes, com o objetivo de os fazer ingressar na sua esfera patrimonial, causando àqueles o correspondente prejuízo patrimonial, o que tudo quis e logrou.

74. Ao actuar conforme descrito em B. [nos pontos 13 e 14], em I. [nos pontos 54 e 55] e em K. [nos pontos 63 e 64], o arguido tinha pleno conhecimento de que utilizava os dados pessoais daqueles cartões bancários com o desconhecimento e contra a vontade dos ofendidos, bem como das respectivas entidades bancárias, sabendo que aqueles nunca o autorizariam a movimentá-los, o que tudo fez com o propósito, aliás, concretizado, de obter para si um enriquecimento patrimonial que não lhe era devido, correspondente aos bens que adquiriu, à custa do empobrecimento no património dos ofendidos.

75. Ao agir do modo descrito, o arguido sabia que aqueles cartões não lhe pertenciam e introduzia no sistema bancário que regula a movimentação de contas, dados que lhe permitiam desencadear o acesso às contas bancárias dos ofendidos, assim debitando nas mesmas os valores monetários supra referidos e induzindo em erro as entidades bancárias que validaram as operações bancárias em causa, fazendo crer que se tratavam de ordens legítimas dos respectivos titulares da conta, assim criando dados informáticos de carácter não genuíno nos sistemas informáticos e gerando operações bancárias que não correspondiam à realidade, com a intenção de que fossem tomadas por verdadeiras, assim induzindo em erro as entidades bancárias respectivas e causando prejuízo aos ofendidos, o que tudo quis e conseguiu.

76. Ao actuar do modo descrito em C., o arguido sabia que a faca supra referida é insusceptível de manifesto e de registo, sendo absolutamente proibida e, não obstante, não se coibiu de a manter na sua posse, nas circunstâncias supra descritas sem qualquer justificação, o que quis e conseguiu.

77. Ao proferir as expressões mencionadas em F. ao militar da GNR, o arguido agiu com o propósito, conseguido, de perturbar a liberdade pessoal de decisão e de acção, a paz individual e o sentimento de segurança deste, ou pelo menos, prevendo que com essa atuação tal aconteceria, apesar de saber que se dirigia a um agente das forças militarizadas, em pelo exercício de funções, o que tudo quis.

78. O arguido AA agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal.

79. O arguido AA foi condenado pela prática de crimes contra o património, tendo cumprido várias penas de prisão efectiva, à ordem dos seguintes processos:

- Processo n.º 75/96 que correu termos no (então) 1º Juízo do Tribunal Judicial de ..., pela prática de um crime de roubo;

- Processo n.º 41/96 que correu termos no (então) 1º Juízo do Tribunal Judicial de ..., pela prática de um crime de furto qualificado; Juízo de Competência Genérica de ..., pela prática de um crime de furto qualificado;

- Processo n.º 497/99.0... que correu termos no (então) 1º Juízo do Tribunal Judicial de ..., pela prática de um crime de furto qualificado e dois crimes de roubo;

- Processo n.º 49/07.2... que correu termos no (então) 1º Juízo do Tribunal Judicial de ..., pela prática de um crime de furto qualificado;

- Processo n.º 703/09.4... que correu termos no (então) Juízo de Média Instância Criminal de ..., pela prática de um crime de furto qualificado;

- Processo n.º 1547/10.6... que correu termos no (então) Juízo de Média Instância Criminal de ... – Juiz 3, pela prática, além do mais, de um crime de roubo;

- Processo n.º 148/10.3... que correu termos no (então) Juízo de Média Instância Criminal de ..., pela prática de crimes de furto de uso de veículo e furtos qualificados;

- Processo n.º 737/09.9... que correu termos no (então) Juízo de Média Instância Criminal de ..., pela prática de um crime de furto qualificado.

80. O arguido encontra-se em liberdade condicional, desde 13.02.2022, no âmbito do Processo n.º 553/11.8... que corre termos no Tribunal de Execução de Penas do Porto – Juiz 2.

81. O arguido AA sabia que já havia sido anteriormente condenado e que, ao agir como agiu, praticava novos crimes e, ainda assim, quis adoptar as condutas ilícitas supra descritas.

Mais se provou que:

82. O arguido já foi julgado:

a. No âmbito do processo comum colectivo n.º 671/94, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 07/10/1994, transitado em julgado, pela prática, em Janeiro de 1993, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, tendo sido revogado o perdão concedido, determinando-se o cumprimento da pena de 18 meses de prisão, tendo já sido declarada extinta pelo cumprimento;

b. No âmbito do processo comum colectivo n.º 75/96, que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 17/12/96, transitado em julgado, pela prática, em 15/04/1996, de um crime de roubo, na pena de 2 anos de prisão;

c. No âmbito do processo comum colectivo n.º 41/96, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 10/03/1997, transitado em julgado, pela prática, em 3 a 4 de Janeiro de 1996, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos de prisão, tendo sido realizado cúmulo jurídico de penas englobando a condenação referida em b), impondo-se a pena única de 2 anos e 8 meses de prisão;

d. No âmbito do processo comum colectivo n.º 76/98.9... (ex 69/98), que correu termos no Tribunal Judicial de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 18/06/1999, transitado em julgado, pela prática, em 14/01/1996, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, tendo sido declarado perdoado 1 ano, tendo a pena já sido declarada extinta pelo cumprimento;

e. No âmbito do processo comum colectivo n.º 497/99.0..., que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 13/06/2000, transitado em julgado em 28/06/2000, pela prática, em 12/07/1999, de um crime de furto qualificado e dois crimes de roubo, na pena única de 7 anos de prisão, a qual foi já declarada extinta pelo cumprimento;

f. No âmbito do processo comum singular n.º 49/07.2..., que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de ..., tendo sido condenado, por douta Sentença proferida em 26/06/2008, transitada em julgado a 16/07/2008, pela prática, em 24/01/2007, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, tendo sido revogada a suspensão da execução da pena de prisão, tendo o arguido cumprido a pena de prisão imposta, já declarada extinta;

g. No âmbito do processo comum singular n.º 703/09.4..., que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de ..., tendo sido condenado, por douta Sentença proferida em 01/06/2011, transitada em julgado em 01/07/2011, pela prática, em 19/10/2010, de um crime de furto qualificado, na pena de 3 anos de prisão;

h. No âmbito do processo comum colectivo n.º 102/10.5..., que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 23/02/2011, transitado em julgado em 15/03/2011, pela prática, em 03/03/2010 e em 27/02/2010, de dois crimes de roubo, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

i. No âmbito do processo comum singular n.º 112/10.2..., que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de ..., tendo sido condenado, por douta Sentença proferida em 16/05/2011, transitada em julgado em 07/06/2011, pela prática, em 16/02/2010, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade;

j. No âmbito do processo comum colectivo n.º 1547/10.6..., que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de ... – Juiz 3, tendo sido condenado, por douta Sentença proferida em 29/06/2011, transitada em julgado em 30/09/2011, pela prática, em 04/07/2010, de um crime de roubo e um crime de ameaça agravada, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;

k. No âmbito do processo comum colectivo n.º 148/10.3..., que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 30/01/2013, transitado em julgado em 20/02/2013, pela prática, em 01/03/2010 e em 23/10/2010, de um crime de furto de uso de veículo e dois crimes de furto qualificado, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão;

l. No âmbito do processo comum colectivo n.º 737/09.9..., que correu termos no Juízo de Média Instância Criminal de ..., tendo sido condenado, por douto Acórdão proferido em 21/03/2013, transitado em julgado em 30/04/2013, de um crime de furto qualificado, na pena de 6 anos de prisão, tendo sido realizado cúmulo jurídico de penas, englobando as condenações referidas em g, h), i), j) e K), impondo-se-lhe a pena única de 9 anos de prisão, tendo sido concedida liberdade condicional e, 06/01/2022, com efeitos a partir de 13/02/2022 durante o período de tempo decorrente até 13/12/2023.

Das condições sócio-económicas, profissionais e pessoais do arguido:

83. Logo que saiu em liberdade condicional, em 13 dezembro de 2022, o arguido foi acompanhado pelos Serviços de Reinserção, onde se deslocava assiduamente às entrevistas agendadas.

84. Exercia actividade laboral regular e frequentava consultas de acompanhamento no CRI de ..., mantendo uma postura cordial e responsável.

85. O arguido vivia com a irmã, PP (59 anos, auxiliar de acção educativa) e o cunhado, QQ (71 anos, desempregado); habitavam numa vivenda (moradia) quase nova, com 2 pisos, própria (sem crédito mensal)., localizada em meio urbano, com 7 quartos, 2 cozinhas, sala e 2 WC, com organização e limpeza; dispunham de jardim, garagens, anexos e pátio, em toda a volta, beneficiando de todas as infra-estruturas necessárias.

86. Existia bom relacionamento entre o arguido e estes familiares, até que o arguido optou por viver sozinho, nuns anexos, noutra morada, situação monitorada pelo cunhado, em acordo prévio com o agregado onde habitava.

87. Teve uma recaída nos hábitos de toxicodependência – consumindo desde cerca dos 19 anos – , apesar de acompanhado pelo Centro de Respostas Integradas (CRI) de ....

88. Estando habilitado com o 6º ano de escolaridade, exercia actividade laboral na construção civil, em empresa que detinha trabalhos em ..., deslocando-se para aquele País durante a semana, com apoio do empregador.

89. Nos últimos meses de acompanhamento de liberdade condicional, o arguido já vivia na rua, sem residência fixa, consumindo estupefacientes, num contexto em que ainda comparecia nos Serviços de Reinserção, omitindo que mantinha trabalho e/ou que mantinha acompanhamento na área da saúde, situação que também terá descurado.

90. Presentemente, o arguido encontra-se recluso no E.P. de ..., situação que decorre desde o dia 10 de Novembro de 2023.

91. No E.P .de ..., já esteve envolvido em dois processos internos, que levaram a condenações em permanência obrigatória em alojamento de 11 e 15 dias, mantendo-se inactivo (por não existirem vagas para faxina), não gozando de visitas da irmã, por não desejar, nem do seu cunhado, porque não aceita de novo, a presente situação.


*


B. Factos Não Provados

Não se provou que:

a. Para além da saca de pescada supra referida em 49 tenha sido ainda subtraída outra saca de 5 kgs de pescada;

b. O carreto de pesca referido em 49 tivesse o valor de € 30,00 e as duas latas de tinta tivessem o valor de € 160,00, assim como o valor das três lâmpadas correspondesse a € 90,00.

c. O valor global dos bens subtraídos referidos em 49 correspondesse a € 1.235,00.

d. O período temporal referido em 51 tenha sido até às 21:00.

e. Nos estabelecimentos “Padaria G......” e “R........” referidos em 54 tenham sido gastas as quantias de € 79,70 e de € 46,30, respectivamente e que o total de quantias em causa corresponda a € 175,63.

f. Nas circunstâncias referidas em 56 a 59 tenha sido subtraído um cabo de grua e que o valor dos bens referidos em 58. tenha sido superior a € 102,00.

g. A chave suplente referida em 61. Tivesse o valor não inferior a € 15,0 e os produtos de higiene tivessem valor não inferior a € 5,00.

h. À data dos factos o arguido não possuía qualquer fonte de rendimento, sendo da actividade de furtos que vinha exercendo, de modo organizado, reiterado e prolongado, que obtinha artigos e quantias monetárias essenciais para custar as despesas do seu quotidiano, tais como alimentação, vestuário, fazendo dela profissão


*


C. Motivação

Para formar a sua convicção quanto aos factos dados como provados e não provados, o Tribunal procedeu à análise crítica de todas as provas produzidas e analisadas em audiência de discussão e julgamento, livremente apreciadas e valoradas em conjugação com as regras de experiência comum, nomeadamente as declarações do arguido em conjugação com a demais prova testemunhal e documental produzida.

Com efeito, o arguido confessou integralmente e sem reservas a factualidade respeitante às situações A (factos 1. a 7.), D (pontos 17 a 21) e L (pontos 65 a 69), pelo que dúvidas não restaram em ter por verificada tal factualidade, sem necessidade de maiores considerações.

Além do mais, no que respeita ao uso ilegítimo de cartão bancário, o arguido também admitiu tal factualidade, pelo que se tiveram por demonstrados os factos 13./14 (cartões pertencentes a GG e HH), em conjugação com a documentação bancária de fls. 439 a 443, 444/446; bem como pontos 54/55 (cartão pertencente a MM), em conjugação com os documentos de fls. 12 a 15 do apenso K, sendo possível extrair que os valores em causa são os referenciados no ponto 54. dos factos provados, ao invés dos valores enunciados na alínea e) dos factos não provados; e ainda ponto 63. (cartão bancário pertencente a OO), em conjugação com o teor dos documentos de fls. 546/547.

Assim, no que respeita à demais matéria:

- Situação B – pontos 8 a 12: foram tidos em consideração os depoimentos prestados por GG e de HH, funcionárias do Centro Escolar identificado no ponto 8., as quais em suma, confirmaram a subtracção dos objetos referenciados no ponto 11. dos factos provados, bem como as circunstâncias de tempo e lugar em que a subtracção ocorreu, no sentido da factualidade elencada nos factos provados que, dessa forma, face à credibilidade que mereceram tais depoimentos que se afiguraram sinceros e espontâneos, se teve por demonstrada tal factualidade; ademais, explicitaram o modo de execução da prática da subtracção, explicitando a factualidade elencada nos pontos 9 e 10.. Relativamente à autoria da subtracção, o Tribunal não teve quaisquer dúvidas em imputá-la ao arguido, face a que o mesmo utilizou os cartões bancários subtraídos a cada uma das ofendidas para realizar pagamentos, nos termos constantes nos pontos 13 e 14., o que o próprio arguido admitiu, asseverando, porém, que os cartões lhe vieram à posse através de um colega de consumo, sem que, todavia, tenha logrado convencer o Tribunal, sendo de atentar que os pagamentos foram realizados em período temporal imediatamente subsequente à ocorrência do furto, ainda no mesmo dia (cfr. documentação bancária de fls. 439 a 443 e 444/446), tendo sido explicitado pela testemunha GG que deu por conta da ocorrência do furto quando eram 15h00 e que de imediato consultou a aplicação do banco, no seu telemóvel, dando conta da realização dos pagamentos e do uso ilegítimo do cartão bancário que lhe foi furtado, tendo conseguido recuperar a carteira ao pé dum estabelecimento onde foi realizado um dos pagamentos (Talho “P... .......”). Ora tal evidencia, por um lado, que os pagamentos foram realizados imediatamente à subtracção (pois que a ofendida logo deu conta de estarem a ser realizados pagamentos com o cartão bancário furtado), fazendo falecer a versão do arguido de que o cartão lhe tinha sido dado por um colega consumidor, pois que o hiato temporal evidencia que o cartão foi utilizado de imediato, mal chegou à posse do agente do furto, sendo, por outro lado, indissociável a figura do agente do furto ao utilizador do cartão, pois que a carteira da ofendida GG veio a ser recuperada perto do talho “P... .......” onde foi feito um dos pagamentos. Ora considerando que o arguido admitiu ser o utilizador dos cartões furtados (o que aliás seria evidente, como bem sabia o arguido, pois poderia facilmente ser reconhecido pelas pessoas que o atenderam nos referidos estabelecimentos comerciais), tal evidencia, com segurança, que a versão apresentada pelo arguido é absolutamente inverosímil e destituída de qualquer credibilidade, pelo que não teve o Tribunal quaisquer dúvidas em concluir que o mesmo foi o autor do furto enunciado na situação B. Aliás, também a ofendida HH, de igual modo, referiu que logo pelas 15h00m, a par da sua colega GG, se apercebeu da ocorrência do furto, tendo de imediato consultado a aplicação do banco, também logo de imediato dando conta da utilização do cartão bancário, o que reforça o já sobredito relativamente à indissociabilidade do agente do furto ao utilizador do cartão.

- Situação C – pontos 15./16.: A matéria em causa resultou corroborada pelas próprias declarações do arguido, face a que o mesmo admitiu ter na sua posse a referida faca borboleta, sendo que, apesar de o mesmo referir não recordar se trazia consigo o canivete referido em 16., tal não infirma tal factualidade, face ao teor do auto de apreensão e suporte fotográfico documentados a fls. 26 a 29 do apenso D. Note-se que apesar de o arguido ter afirmado que a faca borboleta se tratava de um instrumento de trabalho, não conseguiu o mesmo precisar qual o uso concreto que lhe dava, pelo que, atendendo a que se trata de uma arma branca (vulgarmente conhecida como faca de ponta e mola ou de abertura automática, o que facilita o seu manuseamento e daí a perigosidade associada), não pôde deixar-se de ter-se por demonstrada a factualidade respeitante ao tipo subjectivo de ilícito em causa, face a que o arguido não justificou, de forma concreta, a sua posse e o uso que lhe dava, sendo que as características do objecto se mostram devidamente demonstradas pelo teor do relatório pericial de fls. 463/464.

- Situação E – pontos 17 a 21.: Foi relevante o teor do depoimento prestado por RR e SS, tendo o primeiro explicitado que enquanto chefe de loja do “P...SP”, no dia 28/09, após alerta de um cliente, verificou, através das imagens recolhidas nas câmeras de videovigilância do estabelecimento, que um indivíduo retirara produtos de higiene (champôs, géis de banho), ocultando-os no vestuário, asseverando que a pessoa que viu nas imagens se parece com o arguido e que, posteriormente, no dia 29/09, já perto das 17h00m, tendo-se apercebido novamente da subtracção de produtos, decidiu abordar o indivíduo à porta do estabelecimento, tendo-se o mesmo colocado em fuga numa bicicleta, tendo seguido no seu encalço, apeado, juntamente com a testemunha SS que se lhe juntou ao deparar-se com a situação, tendo verificado que o mesmo seguiu por uma cortada, conseguindo, então abordá-lo, tendo o mesmo procedido à entrega de 4 ou 5 artigos entre géis de duche (marca Dove) e champôs (marca Elvive), confirmando que a pessoa que abordou se tratava do arguido. É de notar que o arguido não admitiu o seu envolvimento nestes factos, pese embora tenha sido identificado, com segurança e clarividência pela testemunha RR, o que associado ao teor dos fotogramas documentados a fls. 27 a 33 do apenso J, respeitantes aos três períodos temporais distintos referenciados nos factos provados, onde é possível verificar que o indivíduo em causa é sempre o mesmo e sempre envergando o mesmo boné em todas as três ocasiões, dúvidas não restam de que o arguido praticou tais factos. Relativamente aos objetos subtraídos, mereceram fidedignidade os esclarecimentos a esse propósito prestados pela testemunha RR, o qual confirmou a relação de bens documentada a fls. 22 do apenso J (a qual não inclui os artigos que foram recuperados na sequência da abordagem do arguido), tendo realizado o confronto entre o que faltava nas prateleiras e o inventário, tendo realizado contagem física, pelo que se teve por demonstrada tal matéria.

- Situação F – pontos 32 a 39: foram relevantes os esclarecimentos prestados pelo militar visado pela atuação do arguido – CC – o qual relatou de forma precisa os acontecimentos enunciados nos factos provados, referenciando com precisão a atuação empreendida com o arguido na sequência da perseguição que foi encetada após o accionamento da patrulha por situação ocorrida na habitação descrita em 32 e concretizando, de forma clara, as expressões que o arguido lhe dirigiu nos termos elencados nos factos provados, explicitando que, apesar de admitir que o arguido pudesse estar a “ressacar”, certo é que ficou temeroso do comportamento que o mesmo, no futuro, pudesse adoptar contra si. É de notar que a atuação do arguido ficou ainda corroborada pelo teor do depoimento prestado pelo militar DD, que concretizou toda a atuação do arguido referenciada nos pontos 32 a 37 dos factos provados, bem como o circunstancialismo de tempo e lugar aí referidos, apenas não concretizando a atuação ocorrida no interior do Posto da GNR, por já não a ter presenciado.

- Situação G – pontos 40. a 45.: foi sopesado o teor do depoimento prestado pela ofendida – a testemunha KK – a qual precisou que se encontrava a realizar a mudança de habitação, pois tinha vendido a casa, referindo que cerca das 06h/06h e pouco ouviu um barulho, porquanto tinha caixotes com pertences junto da janela do quarto, tendo pensado que estaria a chover, não tendo dado importância. Contudo, apercebeu-se de luz na cozinha, pensando, inicialmente, tratar-se do filho ou do marido, ideia que abandonou após se aperceber que se trataria da luz dum telemóvel ou dum foco, pelo que, apercebendo-se que estaria alguém no interior da habitação começou a gritar, aflita, o que fez com que a pessoa se escapasse e batesse com a porta da cozinha. De imediato chamaram as autoridades e viram um boné preto, com letras brancas caído à saída da porta, ainda dentro da parte exterior da habitação, que é murada. Referiu, ainda, que tinha uma chave em cima da mesa (a qual tinha usado no dia anterior ao fim da tarde) e que a chave nunca mais apareceu, sendo que a pessoa entrou pela porta da cozinha. Esclareceu ainda os objetos que lhe foram furtados, resultando corroborada a matéria elencada a tal respeito. Questionada, esclareceu ainda que se a porta estive destrancada, apenas com o trinco, abria do lado de fora. É de notar que do depoimento prestado resulta que a pessoa que teve a atuação descrita pela testemunha deixou no local um boné, o qual foi apreendido, nos termos documentados a fls. 281 e no suporte fotográfico de fls. 288 a 295, sendo possível verificar pela análise de fls. 294 que o boné em causa é idêntico ao usado pelo arguido, designadamente quando praticou os factos respeitantes à situação E, conforme se extrai do fotograma melhor documentado a fls. 278-v, pelo que, considerando que os comportamentos em causa são típicos e idênticos aos praticados de modo reiterado pelo arguido, conforme enunciado em toda a factualidade provada, nenhumas dúvidas restaram ao Tribunal em ter-se por verificada a sua atuação.

- Situação H – pontos 46. a 50.: foram de relevo os depoimentos prestados pelas testemunhas LL e TT, esclarecendo que na primeira noite em que dormiram na habitação ouviram um barulho, tendo a testemunha LL pensado tratar-se da máquina de lavar e, apesar de se ter levantado para ver, não se apercebeu do nada. Certo é que veio a constatar ter ficado desapossado dos objetos supra descritos nos factos provados (sendo que relativamente à matéria elencada nas alíneas a) e b) dos factos provados nenhuma prova positiva foi feita); a testemunha LL esclareceu ainda as características físicas da habitação, designadamente o muro que delimita a propriedade e, bem assim, resultando do depoimento da testemunha TT o circunstancialismo temporal da atuação, esclarecendo que só ao outro dia de manhã é que se aperceberam do furto ocorrido. É de notar que a mesma relatou que encontrou o arguido, que já conhecia de vista e que o mesmo lhe referiu “se soubesse que era a tua casa não tinha lá ido”, comprometendo-se a ir devolver as coisas, o que não sucedeu, nenhum objecto tendo sido recuperado. É de notar que esta conversa ocorreu no dia seguinte, quando o arguido se encontrava a trabalhar em casa da filha, relevando o depoimento prestado espontaneidade e merecendo inteira fidedignidade, face a que, ademais, os factos em causa se coadunam com a atuação reiterada do arguido de prática de furtos, o que reforça o relato trazido a audiência de julgamento.

- Situação I – pontos 51. a 55.: foi de relevo o teor do depoimento prestado por MM, o qual, em suma, corroborou os bens que lhe foram subtraídos do interior do veículo identificado nos factos provados (sendo de notar que do teor de fls. 15 do apenso K decorre que o pagamento no restaurante “R........” ocorreu pelas 20h35m da referida data, pelo que soçobrou o período compreendido até às 21h00m desse dia), sendo que, no mais, o arguido reconheceu ser o utilizador do cartão bancário subtraído e, pese embora tenha referido que encontrou o cartão na rua, ao pé de sua casa, tal não colhe, como é bom de ver, face a que a utilização do cartão é realizada no hiato temporal imediatamente seguinte à ocorrência do furto, não sendo minimamente verosímil que o arguido tenha tido a “sorte” de o encontrar na rua, tanto mais que está associado à prática reiterada de furtos, pelo que a sua versão é absolutamente inverosímil, pelo que se teve por demonstrada a sua atuação.

- situação J – pontos 56. a 59.: relativamente a esta factualidade, é certo que o arguido confirmou ter entrado no estaleiro da obra, apoderando-se de quatro caixas de mosaicos (tendo sido interceptado, aliás, quando transportava duas caixas, encontrando-se as demais posicionadas ao pé da rede, já do lado exterior, conforme resultou corroborado pelo teor dos depoimentos prestados por UU e VV), negando, porém, ter cortado a rede (referindo que entrou por baixo da mesma) e negando ter-se apossado de cabos de electricidade e um cabo de grua. A este propósito, foi então valorado o teor do depoimento prestado por NN, o qual relatou que se apercebeu pelas câmeras de videovigilância instaladas na obra que estava um indivíduo no interior do estaleiro, pelo que alertou as autoridades e prontamente também se deslocou ao local, tendo sido recuperado todo o material, asseverando que a rede se encontrava cortada junto do sítio onde estava posicionado material retirado da obra, designadamente, caixas de mosaicos e cabos de electricidade, pelo que dúvidas também não restaram sobre tal factualidade, apenas sendo de salientar que relativamente ao cabo de grua não resultou corroborada a subtracção naquelas circunstâncias de tempo e lugar, pelo que se teve por não demonstrada tal matéria e, relativamente ao valor do material subtraído, apenas resultou apurado o que supra se elencou nos factos provados.

- Situação K – pontos 60. a 64.: foi valorado o teor do depoimento prestado por OO, a qual, em suma referiu as circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o furto, tendo estacionado o veículo por volta das 17h00, sendo de notar que o furto ocorreu logo que a mesma chegou a casa e estacionou o veículo, pois que a utilização dos cartões bancários ocorreu nesse mesmo dia 07 de Novembro pelas 17h56m e 17h58m, conforme se extrair pelo teor de fls. 546/547. Tal significa que o hiato temporal de utilização dos cartões é imediato ao momento da ocorrência do furto, o que afasta a versão do arguido de que o cartão bancário lhe tinha sido cedido por um colega de consumo, evidenciando que o mesmo foi o autor do furto, realizando os pagamentos documentados a fls. 546 e 547 (referenciados nos factos provados) logo de seguida. Com relevo, é ainda de referir que do depoimento prestado pela ofendida ficou esclarecido os bens subtraídos, nos termos constantes dos factos provados, não se tendo apurado, contudo, a factualidade vertida na alínea g) dos factos não provados, a qual dessa forma, resultou não demonstrada.

Verifica-se, assim, que o arguido apenas admitiu os comportamentos cuja prova era evidente e irrefutável (no caso, os pagamentos/utilização indevida dos cartões bancários – pois sabia que seria facilmente identificado por quem o atendeu, nos termos da prova testemunhal indicada nos autos) e os furtos nos quais foi interceptado de seguida ou relativamente aos quais havia prova concludente, como é o caso da situação D, face ao teor das imagens de videovigilância documentadas a fls. 32 a 37 do apenso I), tornando-se claro que prestou declarações com reserva e sem fidedignidade, não merecendo qualquer credibilidade, pelo que, conjugando e analisando criticamente a demais prova produzida, nos termos sobreditos, se pôde concluir pela verificação da factualidade enumerada nos factos provados, sendo que a respeitante ao tipo subjectivo de ilícitos em causa resultou apurada pela análise dos comportamentos objectivos apurados, em conjugação com as regras de experiência comum.

No mais, é de notar que a matéria relativa aos antecedentes criminais do arguido resultou da análise do CRC documentado a 17/06/2024 e, no que respeita à factualidade relativa à situação sócio-económica e pessoal do arguido foi valorado o teor do relatório social documentado 29/05/2024, bem como os esclarecimentos prestados pelo arguido quanto à sua situação profissional à data dos factos, resultando corroborado que realizava alguns trabalhos, face ao teor do depoimento prestado pela testemunha TT e face à informação constante de fls. 26, pelo que se teve por não demonstrada a factualidade elencada em h) do acervo de factos não provados.

Nestes termos, a análise crítica e conjugada de todos os meios de prova nos termos referidos permitiu que o Tribunal desse como provados os factos supra referidos.”


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São as seguintes as questões a apreciar:

Existência de crime continuado

Inexistência do crime de ameaça (ausência do elemento objetivo

Excessividade da pena única


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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP1 Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), sem prejuízo de ponderar os vícios da decisão e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 e 7/95 de 19/10/ 952 este do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” 3, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais4- cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100, constituindo a “revista alargada”.

Conhecendo:

Reclama o arguido do acórdão condenatório porquanto entende que as suas condutas se unificam em três crimes de natureza continuada: um crime continuado de furto qualificado, um crime continuado de furto simples e um crime continuado de abuso de cartão.

A sede legal do crime continuado (construção jurídica – unidade jurídica normativa 5-, em favor do arguido) radica no artº 30º 2 CP que dispõe: “2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”, donde resultam como requisitos de tal figura jurídica: o cometimento de vários crimes; esteja em causa o mesmo bem jurídico; execução homogénea (mesmo modo); solicitação exterior (das coisas ou da situação) para o facto, e diminuição considerável da culpa, para além de se exigir por norma, uma certa conexão temporal entre os atos.

Ora vistos os factos, temos efetivamente três conjuntos de condutas, uma relativa aos furtos simples, outra relativa aos furtos qualificados e outra relativa ao abuso de cartão, pelo que existe uma pluralidade de crimes, protegendo cada conjunto o mesmo bem jurídico (património de outrem – comum a todos os crimes), mas a execução dos crimes de furto e abuso de cartão não foi homogénea, antes se diversificou pelo modo e circunstâncias de atuação, bens e objetos visados e locais diferentes desde escola, estabelecimento comercial, residências, veiculo automóvel, obra em construção, camião, donde resulta um planeamento ou vontade autónoma para cada situação, pois se muniu de objetos e instrumentos que utilizou nuns casos e noutros não, tratando-se de situação e locais que o arguido procurou para o efeito tendo transposto os obstáculos que em cada um dos casos se lhe deparou, pelo que não estamos perante uma execução essencialmente homogénea, fruto de uma disposição das coisas (mesma situação exterior) que lhe facilitassem o ato apropriativo, geradora de um quadro de diminuição considerável da sua culpa.

Antes estamos perante uma situação plúrima, querida pelo arguido, sem qualquer factor exterior que o impelisse para o ilícito, levando à sua repetiçao em função da disposição das coisas, pois o arguido procurou deliberadamente novos e diferentes locais para agir, criando as oportunidades, sem que tenha ocorrido uma situação exterior ao arguido que de alguma forma tivresse facilitado ou induzido o arguido a repetir o mesmo tipo de ilícito, e antes, como refere João Guerra, a culpa “parece resultar agravada pela persistência”6

Como expressa Pinto de Albuquerque “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição”7. Não ocorre, assim, qualquer diminuição da sua culpa, e muito menos de modo considerável, não ocorrendo, também, nenhuma situação de exigibilidade de outro comportamento (conforme ao direito) sensivelmente diminuída 8

Nestas circunstancias não estão preenchidos os requisitos do crime continuado, sendo que a situação invocada do arguido (toxicodependência e modo de vida) não constitui qualquer situação exterior (das coisas) facilitadoras prática dos ilícitos, mas algo intrínseco a si próprio, nem essas condições de vida são de considerar diminuidoras da sua culpa, pois a toxicodependência não apenas não constitui motivo atenuativo da responsabilidade, como a “toxicodependência” é uma característica ou circunstância da personalidade e/ou do modo de vida do recorrente, não constituindo qualquer “situação exterior” idónea a diminuir “consideravelmente a [sua] culpa” no cometimento dos factos criminosos.9

Improcede esta questão, sendo o arguido punido autonomamente em concurso real por cada ilícito, como foi.

Questiona o arguido a existência do crime de ameaça por ausência do seu do elemento objetivo, pondo em causa que as expressões que foram dirigidas [ao militar da GNR] fossem aptas a constituir uma ameaça e muito menos apta a produzir medo e receio no militar ofendido, atentas as especiais qualidades deste como militar e as condições físicas do arguido.

Conhecendo

A base legal e geral do crime de ameaça encontra-se no artº 153º 1 CP que dispõe: “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

Como bem jurídico protegido está a liberdade de decisão e de acção, ou seja, a paz jurídica individual.

Como elemento objetivo temos o ato de ameaçar outra pessoa, ou seja, anunciar, por qualquer meio, a intenção de causar um mal futuro; esse mal está dependente da vontade do autor; o mal anunciado é-o contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor. Mais se exige que o mal anunciado seja adequado a provocar na pessoa visada medo ou inquietação na sua liberdade de determinação. Como crime de perigo concreto (e já não de dano) exige-se que a ameaça seja adequada a causar o mal anunciado tendo em conta qualquer pessoa, podendo em concreto tal não ter ocorrido. Donde a ameaça é adequada se de acordo com a experiência comum, e a normalidade do sentir é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente), independentemente, de este ficar ou não intimidado.

Perante os atos do arguido, traduzido o primeiro (nº 36) na exibição de uma navalha com lamina de 6 cm e empunhando-a apontou-a na direção do militar da GNR, que para ele se dirigia e disse-lhe “é hoje que te mato cabrão”, e o segundo, já no posto da GNR (nº 38) “dirigindo-se ao mesmo militar verbalizou-lhe, em tom grave e sério, “quando te apanhar aí fora à civil vou acabar com aquilo que tentei hoje e não consegui”, não há duvida que tais atos são ameaçadores de morte. E são idóneos e adequados a causar o mal do crime, pois que não é pelo facto de o ofendido ser militar da GNR, que tem de suportar tal ameaça, ou é impedida a prática do ato ameaçado. Se os militares da GNR pela sua formação estão preparados para lidar com atos violentos, são-no para quando estão a ocorrer ou saberem que vão ou podem ocorrer no concreto, não para situações de ameaça que não controlam nem podem controlar, pois não sabem quando e em que circunstancias serão atacados. Aliás é bem evidente este perigo, pois o arguido ameaça atacá-lo quando o encontrar à civil, isto é, sem quaisquer condições especiais de defesa. Pensar de outro modo, ou seja, que os militares estão imunes a ameaças de morte, era inclusive ir contra a norma agravativa da responsabilidade criminal expressa nos artºs 155º1 c) e 132º 2 l) CP.

Por isso mesmo faz sentido que o arguido não tenha posto em causa o facto provado nº 39 “As afirmações dirigidas pelo arguido ao supra identificado militar, querendo significar que atentaria no futuro contra a sua vida, foram de forma a perturbar a liberdade pessoal de decisão e de acção e a paz individual deste, sendo susceptível de o intimidar e intranquilizar”

Donde se mostra perfectibilizado o crime de ameaças agravado, porque foi condenado.

Considera o arguido que é excessiva a pena única e para tanto alega que a mesma é excessiva, por o arguido ser toxicodependente, boa parte dos bens haver sido recuperado e por isso merecedor da atenuação especial, ocorreu sincero arrependimento e colaboração com o tribunal confessando parte dos factos, e a sua idade, valor dos bens, não uso da violência e toxicodependência desde os 19 anos.

Atento o alegado pelo recorrente importa ponderar o que o tribunal recorrido considerou, por um lado quanto às penas parcelares, e depois quanto à pena única e neste circunspecto, vemos que quanto às penas parcelares foi ponderado o seguinte: “Em desfavor do arguido, ter-se-á ainda de considerar o deficiente reconhecimento dos seus maus comportamentos, face às reservas em admitir os factos por que vai condenado, o que evidencia ausência de arrependimento e consciência crítica, sendo de notar que o arguido se encontrava em período de liberdade condicional quando cometeu os factos e apenas cessou os seus comportamentos criminosos quando lhe foi privado novamente da liberdade, sendo que apresenta fraca inserção sócio-profisional e familiar, sem contar com um apoio familiar diferenciador e adequado a afastá-lo da prática de crimes.

Em benefício do arguido, tem-se em conta o valor dos bens e valores apropriados (não muito elevados).”

E quanto à pena única – que o arguido questiona por excessiva – o tribunal após analise da norma do artº 77º CP, pondera: “Tendo em atenção o exposto, face ao limite mínimo de 3 anos e 6 meses de prisão e o máximo de 22 anos de prisão, reputa-se justo fixar a pena única em 9 anos de prisão (ponderando os factores de determinação da medida da pena já supra enunciados), com cumprimento efectivo, face à inaplicabilidade de qualquer pena substitutiva face à medida concreta da pena em causa e tendo em conta que o arguido revela tendência para delinquir, contando com um passado criminoso de relevo e apresentando, já, à data de prática dos factos condenações referentes à prática de crimes contra o património, nomeadamente, tendo sofrido períodos de reclusão e encontrando-se em período de liberdade condicional aquando da prática destes factos, o que significa que não sentiu qualquer temor com a assumpção de novos comportamentos criminosos.”

Apreciando os argumentos do arguido e os expressos não podemos deixar de concordar com estes.

Na verdade, o arguido questiona a pena única e não as penas parcelares, e os argumentos que avança prendem-se com estas e não com aquela, e apenas podem ser ponderamos os emergentes dos factos provados e não quaisquer outros. E assim o tribunal ponderou a sua confissão parcial (reservas ao admiti-los) e ausência de um sincero arrependimento, e a recuperação dos bens não constitui factor de atenuação especial da pena, nos termos que invoca (artº 206º4CP) porquanto o factor atenuativo é a devolução voluntária dos bens apropriados e não a sua recuperação na sequencia da intervenção da autoridade policial. O valor dos bens apropriados foi ponderado, e o não uso da violência não poderia ser pois faz parte do crime assim ser sob pena de estarmos a ponderar outro tipo de ilícito mais grave – o roubo. A toxicodependência e a idade do arguido é um factor que perpassa por toda a decisão e se não é expressamente referida, porque desde há muito se o entende que a “toxicodependência não constitui circunstancia mitigadora da culpa”10, antes pode constituir agravante da pena, e a idade (49 anos ) em face do seu passado criminal descrito no nº82 dos factos provados não constitui factor atenuativo, pelo contrário.

Não ocorre assim qualquer falta valorativa a favor do arguido.

No que respeita à pena única para alem do expresso pelo tribunal convirá relembrar que conforme dispõe o art. 77º, n.º 1 do CP, que “ Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, e na determinação dessa pena, há que ter em conta o disposto no art. 77º, n.º 2 do CP, segundo o qual, “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (…) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes “a que acresce que, como expressa o STJ no ac. 16/5/202911 “ A avaliação do comportamento “unificado” pelo concurso de crimes deve assentar na ponderação conjugada do número e da gravidade dos crimes e da dimensão das penas parcelares.”

Já no que respeita aos critérios da sua determinação, há a considerar que a pena única é fruto “das exigências gerais de culpa e de prevenção”12 a coberto do artº 40º CP, e que se exige uma apreciação dos factos, na sua globalidade, e da personalidade do arguido neles revelada artº 77º1 CP), e como se expressa F. Dias “ tudo deve passar-se… como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global … “13, - o que é interpretado pelo STJ no ac. 18/6/2014 www.dgsi.pt/jstj14 como “A explanação dos fundamentos que, à luz da culpa e prevenção, conduzem o tribunal à formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. Na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os factos que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele “pedaço” de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão à face da respectiva personalidade.”- e também no ac. STJ de 03/04/2013 www.dgsi.pt15, onde se defende que “…importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos e da motivação que lhes subjaz, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele” - e na “avaliação da personalidade – unitária- do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutivel a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade … “16, - sendo que esta (pluriocasionalidade) como se escreve no texto do Ac STJ 12/9/2007 www.dgsi.pt/17 “verifica-se quando a reiteração na prática do crime seja devida a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, que não se radicam na personalidade do agente, em que não se está perante a formação paulatina do hábito enraizada na personalidade, tratando-se antes de repetição, de renovação da actividade criminosa, meramente ocasional, acidental, esporádica, em que as circunstâncias do novo crime não são susceptíveis de revelar maior culpabilidade, em que desaparece a indiciação de especial perigosidade, normalmente resultante da reiteração dum crime.

A pluriocasionalidade fica atestada, certificada, face à mera constatação da «sucessão» de crimes”.

Como em qualquer pena, a justa medida, - limitada no seu máximo pela culpa (suporte axiológico de toda a pena), - da pena única, há-de ser encontrada, tendo em conta as exigências de prevenção (da reincidência), traduzidas na proteção dos bens jurídicos e de reintegração social (ressocialização) – artº 40º CP – como finalidades preventivas e positivas de toda a pena – ponderando as penas aplicadas a cada facto, o conjunto desses factos e a personalidade do arguido neles manifestada como um comportamento global 18 a apreciar no momento da decisão.

Assim ponderando a natureza dos crimes, de grande abrangência e relevo social atual (furtos e demais a ele associado- abuso do cartão furtado), e o seu modo e condições de vida, e carência de reinserção social, e em geral os factos apurados, na sua globalidade, os antecedentes criminais à data e a personalidade do arguido neles expressa de antijuricidade reiterada e em que efetivamente todos os factos se interconexionam (crime contra o património: furtos e abuso do cartão furtado), abrangendo a intencionalidade dolosa toda essa acção, que tem em conta o modo de ser do arguido o que associados aos seus antecedentes criminais levam-nos para o caminho da tendência ou carreira criminosa, em que a pena de prisão não surte efeito preventivo, visto que o arguido não apenas estava em liberdade condicional como foi condenado como reincidente, agravando a punição, pelo que a pena única aplicada não merece censura alguma no sentido da sua gravidade ou desproporcionalidade a merecer intervenção corretiva no sentido de favorecer o arguido

Improcede assim esta questão e com ela o recurso na ausência de outras questões suscitadas ou de que cumpra conhecer.


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Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça, decide

Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, em consequência mantém o acórdão recorrido

Condenar o arguido no pagamento da taxa de justiça de 6 Ucs e nas demais custas

Registe e notifique


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Lisboa e STJ

José A. Vaz Carreto (relator)

Maria do Carmo Silva Dias

Antero Luís

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1. Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335

2. in DR I-A de 11/12/94 e DR. I-A de 28/12 / 95

3. G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742,

4. - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100

5. O crime continuado “… é constituído, de um ponto de vista real, por hipóteses que conformam um concurso de crimes efectivo que, todavia, a lei transforma numa unidade jurídico-normativa” in F. Dias Direito Penal, Parte Geral Tomo I, 2ª ed. pág. 1038, Cfr. Ac. STJ 8/11/07 www.dgsi.pt/jstj,

6. Ac STJ 24/6/2021 www.dgsi.pt

7. Comentário do Código Penal, 2ª ed., pág. 162.

8. Cfr. ac STJ 11/1/2024, Proc. 899/22.0JAFUN.L1.S1 Cons. Vasques Osório

9. Ac. do STJ de 24-06-2021, proc. n.º 5/20.5GAMGL.C1.S1 Cons. João Guerra, in www.dgsi.pt.

10. Ac STJ 5/3/97 Proc 96P505 Cons. Lopes da Rocha www.dgsi.pt)

11. Ac do STJ de 16/05/2019, proc. 765/15.5T9LAG.E1.S1, Cons. Nuno Gonçalves, in www.dgsi.pt

12. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2005, pág. 291,

13. ob. loc. cit.

14. Proc. 585/09.6TDLSB.S1 Conselheiro Santos Cabral

15. Proc. 789/11.1TACBR.C1.S1 Conselheiro Oliveira Mendes

16. Figueiredo Dias, ob. loc. cit.

17. Ac. STJ de 2007-09-12 (Proc. nº 07P2601) Conselheiro Raul Borges

18. Ac. STJ de 16/05/2019, proc. 765/15.5T9LAG.E1.S1 (Conselheiro Nuno Gonçalves), in www.dgsi.pt.