I - Constitui uma regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objecto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior. A reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objecto da decisão de que se recorre.
II - Tendo sido resolvido um contrato, qualificado pelas instâncias, como contrato misto com prevalência da promessa de constituição de uma sociedade, constitui questão nova, impeditiva da admissão do recurso de revista excepcional, a sujeição do litígio ao disposto nos artigos 36.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais e artigos 1010.º e 1020.º do Código Civil.
Acordam, em conferência, na 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
I - RELATÓRIO
ARMANDO GONÇALVES & FILHOS, SA, intentou ação declarativa com processo comum contra:
AA, BB e CC, todos melhor identificados nos autos, pedindo que:
(i) seja considerada ilegal e ineficaz a resolução contratual unilateralmente efetuada pelos RR.,
(ii) seja declarado que os RR. incumpriram definitivamente o contrato promessa de compra e venda,
(iii) os RR. sejam condenados a pagar à A. a quantia global de €197.725,94, acrescida de juros vincendos, sob a quantia em dívida, a partir de 01.09.2020 e até integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano.
Como fundamento do seu pedido, a A. alegou, em suma, que em 19.03.2019, celebrou como os RR. um contrato promessa de compra e venda relativo a dois prédios rústicos, pelo preço de €400.000,00, tendo as partes assumido em tal contrato as posições de promitente compradora e promitentes vendedores, respetivamente.
Referiu também que na data da assinatura do contrato promessa, a A. pagou a título de sinal e princípio de pagamento do preço, a quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros), sendo que, até 21.01.2020, a A. entregou ao R. BB a quantia total de €18.000,00, a título de reforço de sinal e continuação do pagamento do preço.
Citados, os Réus arguiram a ineptidão da petição inicial, por incompatibilidade substancial dos pedidos, bem como entenderam que a restituição do sinal em dobro, enquanto cláusula penal, é excessivamente onerosa, devendo ser reduzida.
Alegaram também estar em causa uma realidade que se assemelha a um consórcio ou parceria entre os outorgantes, sendo que após o contrato em causa, em função de inércia da A. e da consequente quebra de confiança nesta, os RR. resolveram o contrato.
Nestes termos, os RR. concluíram pedindo que as exceções invocadas sejam julgadas procedentes por provadas e, em consequência, o contrato em causa seja dado por resolvido, determinando que as quantias despendidas pela A. sejam restituídas em singelo, acrescido do valor de despesas e encargos comprovadamente pagos pela A.
A Autora respondeu à matéria de excepção suscitada pelos RR., pedindo a sua improcedência.
O Juízo Central Cível de Almada proferiu sentença cujo dispositivo tem o seguinte teor:
«(…) o Tribunal decide julgar a ação parcialmente procedente e, em conformidade, decide:
1. Declarar a resolução do contrato firmado entre a A. ARMANDO GONÇALVES & FILHOS, S.A., e os RR. AA, BB e CC, em razão do incumprimento definitivo daquela promessa pelos RR.;
2. Condenar os RR. a pagar à A. €90.000,00, bem como juros de mora sobre aquela quantia, desde 13.10.2020 até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral cumprimento, à taxa legal».
Na Relação foi fixado o objecto do recurso circunscrito às seguintes matérias:
• Da admissibilidade dos documentos juntos pela A. após o encerramento da discussão em 1.ª instância;
• Da nulidade por oposição entre fundamentos e decisão;
• Da impugnação da decisão de facto;
• Da qualificação do contrato celebrado entre as partes;
• Do incumprimento contratual e dos seus efeitos.
Tendo sido proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
“Julga-se improcedente o recurso da A. e parcialmente procedente o recurso dos RR. e, em consequência, condeno estes a pagar à A. a quantia de € 89.000,00 (oitenta e nove mil euros), acrescida de juros de mora sobre aquela quantia, desde 13.10.2020 até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral cumprimento, à taxa legal, mantendo no mais a decisão recorrida”.
Deste acórdão interpuseram os Réus RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL, formulando as seguintes conclusões:
“A) Os contratos comerciais (enquanto atos de comércio) estão sujeitos ao Direito comercial e não ao Direito Civil.
B) Apenas se pode aplicar Direito Civil a um ato de comércio nos casos em que o Direito Comercial o permita e nos termos em que o permita.
C) Um contrato promessa de constituição de sociedade comercial (por se pretender desenvolver um projecto imobiliário para venda) típico ou misto, deve ser classificado como um acto de comércio, estando sujeito ao regime do art.º 3.º do Código Comercial.
D) Os contactos com a Administração Local destinadas a promover o projecto imobiliário e com gabinete de arquitectura para o mesmo fim e a aquisição de um crédito hipotecário a um terceiro (sobre um dos imóveis a desenvolver) constituem actividade exercida na pré-vida da sociedade.
E) As consequências da extinção (por qualquer causa) de um contrato promessa de constituição de sociedade comercial que tenha iniciado actividade, são reguladas pelo regime da extinção das sociedades civis (art.º 1010.º a 1020.º do Código Civil, por determinação do art.º 36.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais).
F) Extinta (por qualquer causa) uma sociedade comercial em pré-vida que tenha iniciado atividade, esta entra em liquidação, não podendo o Tribunal condenar qualquer parte no pagamento de qualquer quantia fora do incidente de liquidação.
G) Constituem questões claramente necessárias para melhor aplicação do Direito:
- Os actos comerciais não são regulados pelo Direito Civil, mas pelo Direito Comercial, apenas se podendo recorrer ao Direito Civil nos casos permitidos pelo Direito Comercial e nos termos permitidos pelo Direito Comercial (art.º 3.º do Código Comercial)
- As consequências da extinção (no caso, da resolução) de um contrato promessa de constituição de sociedade comercial na qual tenha ocorrido início de qualquer actividade, são reguladas pelo art.º 36.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, remetendo-se para os artigos 1010.º a 1020.º do Código Civil, apenas dando lugar à entrada em liquidação da sociedade em pré-vida, não podendo os pré-sócios ser condenados no pagamento de quantias fora do incidente de liquidação.
H) Normas jurídicas violadas: art.º 2.º, 3.º, e 230.º do Código Comercial; art.º 36.º, n.º2 do Código das Sociedades Comerciais; art.º 1010.º a 1020.º do Código Civil; art.º 358.º a 361.º do Código de Processo Civil.
Deve, como tal, ser revogado o douto acórdão recorrido, sendo proferido novo acórdão que declare a entrada em liquidação da sociedade em pré-vida entre as partes dos presentes autos, seguindo-se os demais trâmites até final.”
Mais pedem os Recorrentes que o presente recurso seja objecto de julgamento alargado, nos termos do art.º 686.º do Código de Processo Civil, por ser necessário, (pelo menos, conveniente) assegurar a uniformidade de jurisprudência sobre as matérias indicadas na conclusão G), com todas as consequências legais.
Por despacho proferido, em 02-10-2024, foi determinada a notificação das partes nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 655.º do CPC, afigurando-se não ser possível conhecer do objecto do recurso.
E assim foi entendido com fundamento no facto de as questões suscitadas no recurso de revista serem questões novas, nunca tendo sido suscitadas pelos Réus ora recorrentes, na primeira instância nem na Relação, nem qualquer das instâncias se pronunciou sobre elas.
Notificados de tal despacho os Recorrentes vieram apresentar requerimento no qual discorrem designadamente nos seguintes termos:
“O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa manteve a qualificação do negócio como contrato promessa de constituição de sociedade.
Contudo, o Tribunal da Relação de Lisboa procedeu a uma nova operação hermenêutica, reinterpretando o contrato, e afirmando o seguinte:
“Se é certo que a cessão de créditos não extingue o respetivo crédito, na hermenêutica do contrato em causa o pagamento da referida quantia de €80.000,00 tinha esse desiderato, constituindo, assim, um incremento patrimonial para os RR. de igual montante…”
Uma nova interpretação de um contrato implica que o conteúdo do contrato que decorria da anterior interpretação seja diferente do conteúdo que decorre da nova interpretação.
Face a esta nova interpretação do contrato, ocorreu então um incremento patrimonial dos Réus que poderia justificar a sua condenação no pagamento de uma quantia ao Autor nos presentes autos, porquanto esse incremento decorreria da causa de pedir (o contrato promessa de constituição de sociedade). O Tribunal da Relação de Lisboa condenou então os Réus a pagar a quantia de €89.000,00 (mais juros) ao Autor, com fundamento no regime civil da resolução de contratos, estatuído nos arts. 433º, 434º, nº 1, a 435º, nº 1 do CC, face à resolução do contrato promessa.
Os Réus interpuseram o recurso ora em causa, em cujas alegações, os Réus:
- concordaram com a qualificação do negócio dos autos como de contrato promessa de contrato de sociedade (de constituição de sociedade).
- concordaram que o contrato promessa de constituição de sociedade havia sido resolvido.
- não se opuseram à nova interpretação do contrato.
Discordaram apenas do regime jurídico aplicável à extinção do contrato promessa de contrato de sociedade, em particular ao regime da devolução de quantias.
Efetivamente, o que os Réus alegaram foi que os contratos promessa de constituição de sociedade têm um regime jurídico especial, regulado nos arts. 36º a 52º do CSC (comumente denominado como regime da pré-vida da sociedade), que inclui um regime jurídico próprio no que respeita à extinção deste tipo contratual, não se aplicando o regime geral da resolução (outra causa de extinção) dos contratos. Em suma, alegaram que o Tribunal errou ao recorrer ao regime civil da resolução de contratos estatuído nos artigos 433º, 434º, nº 1 e 435º, nº 1 do CC, em lugar de recorrer ao regime comercial da resolução de contratos promessa de constituição de sociedade estatuído no arts. 36º a 52º do CSC.
A questão não é nova.
A nova interpretação do contrato constituiu uma manifesta decisão surpresa, pois essa interpretação não tinha surgido nos autos, não tendo sido alegado pelo Autor, não tendo nunca os Réus tido oportunidade de a contraditar. Mas os Réus, com patente boa fé processual, e no interesse da celeridade da Justiça, não invocaram esse vício, tendo, antes, produzido alegações com base na nova interpretação extraída pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Sem prejuízo, trata-se da mesma questão: efeitos da resolução do contrato promessa dos autos. Os Réus limitaram-se a invocar erro na determinação da norma aplicável face à nova interpretação.
A questão não é nova; a interpretação do Tribunal a Relação de Lisboa é que foi nova. A nova interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa no que respeita ao conteúdo do contrato relativamente à cessão de créditos, vincula os autos, e o presente Tribunal.
Como tal, os Réus têm direito a invocar em alegações de recurso, que o Tribunal da Relação de Lisboa aplicou as normas erradas à questão dos autos.
Em consequência, e como todo o devido respeito, deve ser admitido o recurso interposto, seguindo-se tudo o mais até final.”
Não obstante a argumentação dos Recorrentes, por despacho datado de 13-11-2024, foi decidida a não admissão do recurso de revista.
«Entende doutamente o Venerando Conselheiro Relator que o recurso ora em causa suscita uma questão nova, uma questão que não tenha sido submetida e constituindo objeto específico da decisão.
Salvo o devido respeito, a questão não é nova, sendo que uma questão pode decorrer da própria decisão do Tribunal. No presente caso, quem trouxe aos autos a questão de o contrato dos autos ser um contrato-promessa atípico de constituição de sociedade foi o Tribunal (de Primeira Instância). Quem trouxe aos autos a questão de a cessão de créditos efetuada pelo credor originário ter implicado a extinção do crédito cedido resultou de uma interpretação do próprio Tribunal (da Relação). Ou seja, foi o Tribunal que trouxe esta específica questão aos autos.
Uma parte não pode ser impedida de se defender quando é o próprio Tribunal que traz aos autos novas questões, e não as partes.
As partes têm direito a defender-se das decisões dos Tribunais, especialmente quando o Tribunal vem, em fase de Recurso, e sem que tal lhe tenha sido pedido, reinterpretar o contrato de tal modo que transforma uma cessão de créditos (provada nos autos) numa extinção de créditos, sem ter qualquer apoio factual para esse reinterpretação.
Em suma, foi o Tribunal (Primeira Instância e Relação) que decidiram trazer aos autos a específica questão de o contrato ser um contrato promessa atípicos de constituição de sociedade, e a específica questão de ocorrendo uma cessão de um crédito sobre os Réus estes terem um incremento patrimonial (o que seria economicamente impossível), justificando esse incremento com uma reinterpretação do contrato de tal modo que a aquisição do crédito pelo ora Autor implicou a sua extinção.
Não era de esperar, constituindo uma verdadeira decisão surpresa, que um Tribunal entenda que uma cessão de créditos a um novo credor extingue o crédito.
Note-se que, a única argumentação do Tribunal da Relação para justificar que uma cessão de créditos extingue o crédito cedido, consistiu no seguinte:
Uma vez que o projeto urbanístico assentava em dois imóveis e um deles estava hipotecado, com risco de execução, conforme factos provados 32 a 35, o que as partes quiseram foi o distrate da hipoteca, com o pagamento pela A. aos credores hipotecários da quantia de €80. 000, 00, sendo que este valor seria depois considerado no âmbito da sociedade que A. e RR. Prometeram constituir.
Se é certo que a cessão de créditos não extingue o respetivo crédito, na hermenêutica do contrato em causa o pagamento da referida quantia de €80.000,00 tinha esse desiderato, constituindo, assim, um incremento patrimonial para os RR. de igual montante, pois desse modo ficavam os mesmos desonerados da hipoteca e do pagamento da quantia correspondente ao seu distrate.
De lado nenhum dos factos provados resulta que a intenção das partes consistia em ficarem os Réus desonerados do crédito adquirido pelo Autor. Não ficou provado, não foi discutido, o Tribunal não convidou as partes a pronunciarem-se sobre esta hipótese.
Tratou-se de uma decisão com critérios in pectore do Tribunal da Relação.
O que é ilícito.
Acresce que, no que respeita às questões gerais em apreciação nos autos, o litígio dos autos tem – e sempre teve - três questões em discussão:
- qual a qualificação do contrato dos autos e – em resultado – qual o regime jurídico aplicável ao mesmo;
- qual a natureza jurídica da entrega da quantia dos autos, e – em resultado – qual o regime jurídico aplicável ao mesmo:
- Qual a consequência da extinção do contrato, no que respeita à referida quantia entregue, face ao regime aplicável ao contrato dos autos e à natureza jurídica da referida quantia (nomeadamente, se existe uma obrigação dos Réus de pagarem uma quantia ao Autor).
Tendo o Tribunal e Primeira Instância qualificado o negócio como um contrato promessa de constituição de sociedade e não qualificando o crédito adquirido como sinal, nem considerando o crédito extinto, os Réus continuariam a dever o crédito adquirido, mas não um crédito no âmbito do contrato promessa, pois este não existia. Como tal, nada haveria a devolver ou partilhar decorrente da extinção do contrato promessa de constituição de sociedade.
Contudo, veio o Tribunal da Relação considerar que o crédito adquirido pelo Autor se extinguira com a celebração do contrato promessa e em razão desta celebração (questão específica totalmente nova), pelo que os Réus tinham de pagar ao Autor o incremento patrimonial decorrente da extinção do contrato promessa.
Ora, tratando-se de um contrato promessa atípico de constituição de sociedade, e existindo ativos na pré sociedade (ou passivos) tem necessariamente que se aplicar o regime da liquidação da pré sociedade, contrariamente ao que ocorreria se não existissem ativos (ou passivos) na pré sociedade. Como tal, foi o Tribunal da Relação que criou uma nova específica questão nos autos (existência de ativos e passivos na pré sociedade), da qual decorre a necessidade de aplicar o regime da extinção de pré-sociedades. Os Réus viram-se então – e só então – confrontados com a extinção do crédito adquirido como elemento integrante do contrato promessa de constituição da sociedade, ou seja, como um elemento patrimonial da pré sociedade.
A não se permitir aos Réus que se defendam de uma nova questão trazida aos autos pelo próprio Tribunal, verifica-se uma gravíssima violação do contraditório e do direito à defesa.
Assim, a questão específica foi trazida pelo Tribunal, não sendo verdadeiramente nova enquanto questão geral, porquanto consiste em saber qual a consequência da extinção do contrato, no que respeita à referida quantia entregue, considerando o regime aplicável ao contrato dos autos e à natureza jurídica da referida quantia (nomeadamente, se existe uma obrigação dos Réus de pagarem uma quantia ao Autor), o que sempre esteve em discussão nestes autos.
Deste modo, e salvo o devido respeito, não está correto o entendimento da Veneranda Conselheira Relatora, ao considerar que os ora Recorrentes trazem aos autos uma questão nova. Ou a questão não é nova, ou foi trazida aos autos pelo próprio Tribunal.
Só com o douto Acórdão do Tribunal da Relação é que passou a ser juridicamente relevante o regime da extinção da pré sociedade.
No que respeita à afirmação da Veneranda Conselheira Relatora de que os Réus assumirem uma posição absolutamente contraditória, importa relembrar que, como é normal, os Réus não sabem Direito. E que, tendo ocorrido uma mudança de mandatário, é também normal que o sentido da defesa mude. E também é normal que a defesa se tenha de adaptar à posição absolutamente contraditória do Tribunal.
Entrando o Tribunal em contradição (defendendo que afinal a aquisição do crédito causou a sua própria extinção, efeito contraditório ao que ficou provado nos autos), os Réus têm de se adaptar a essa contradição.
Em consequência, e salvo o devido respeito, deve ser proferido douto Acórdão que, revogando a douta decisão singular, admita o recurso, seguindo-se tudo o mais até final.»
II - O DIREITO
A única questão a apreciar consiste em analisar a admissibilidade do presente recurso de revista excepcional.
Os Recorrentes vêm interpor recurso de revista excepcional, nos termos do disposto no art.º 672.º n.º 1 a) do CPC1, alegando que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica é necessária para melhor aplicação do Direito.
O Recurso dos Réus incide sobre a sua condenação de pagarem à Autora a quantia de “€ 89.000,00 (oitenta e nove mil euros), acrescida de juros de mora sobre aquela quantia, desde 13.10.2020 até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral cumprimento.”
Os Réus obtiveram parcial provimento no recurso de apelação que tinham interposto para o Tribunal da Relação, já que na 1.ª instância os Réus tinham sido condenados a pagar à Autora, a quantia de “€90.000,00, bem como juros de mora sobre aquela quantia, desde 13.10.2020 até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral cumprimento, à taxa legal.”
No presente recurso, os Réus vêm pedir a revogação do acórdão da Relação, “sendo substituído por outro que decrete a entrada em liquidação da sociedade (em pré-vida), dando lugar ao regime dos artigos 358.º e seguintes do CPC, e em respeito pelos artigos 1010.º e 1020 do Código Civil.”
Nestas circunstâncias, coloca-se desde logo a questão de saber se estaremos perante uma situação de dupla conforme, dado que o Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente o recurso dos Réus, condenando-os a pagar uma quantia inferior.
Tem vindo a ser entendido por este Supremo Tribunal de Justiça que “verifica-se uma dupla conformidade decisória em ambas as instâncias, sem embargo da diferente quantia em que veio a ser condenada a Ré/Recorrente, se a mesma foi beneficiada em segundo grau.”2
E compreende-se que assim seja, pois se o Réu condenado a pagar uma quantia por sentença que veio a ser integralmente confirmada pela Relação, não poderia recorrer para o STJ, face à existência de dupla conforme, não faria sentido que o pudesse fazer, sendo beneficiado pelo acórdão da Relação que o condenou em quantia inferior.
Concluímos, então, que a indicada diferença na condenação dos Réus não obsta à verificação de dupla conforme.
Verificada a dupla conforme, a única hipótese de admissibilidade de revista é precisamente a revista excepcional.
Contudo, ainda assim, é necessário que se verifiquem os requisitos gerais de admissibilidade do recurso.
Importa, pois, previamente, aferir da admissibilidade “ordinária” da revista, proferindo despacho, nos termos do art.º 652.º do CPC.
Assim, para se determinar se é de admitir a revista excepcional deve começar-se por apurar se, no caso concreto, estão preenchidos os requisitos gerais da admissibilidade da revista, rejeitando-se o recurso, sem necessidade de apreciação dos requisitos específicos, se se concluir que não se mostram verificados tais requisitos.
Com efeito, o recurso de revista excepcional pressupõe o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade da revista, designadamente dos requisitos relacionados com o conteúdo da decisão recorrida – art.º 671.º n.º1 -, com a alçada e a sucumbência- art.º 629.º n.º1 – com a legitimidade dos recorrentes – art.º 631.º- e com a tempestividade do recurso – art.º638.º
No caso sub iudice, reconhecendo-se estarem preenchidos esses requisitos, todavia, confrontadas as decisões proferidas em 1ª e 2ª Instâncias, considerando igualmente as alegações de recurso dos Réus que delimitaram o objecto do recurso, afigura-se que a revista não é admissível no que respeita ao objecto do recurso.
Vejamos:
Constitui jurisprudência uniforme a de que os recursos se destinam a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior, visando apenas apurar a adequação e legalidade das decisões sob recurso, e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições.3
Não há qualquer dúvida sobre esta importante limitação ao objecto do recurso decorrente do facto de “apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.4
É, pois, uma regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objecto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior. A reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objecto da decisão de que se recorre.
O objecto e o conteúdo material da decisão recorrida constituem, por isso, o círculo que define também, como limite maior, o objecto de recurso e, consequentemente, os limites e o âmbito da intervenção e do julgamento (os poderes de cognição) do tribunal de recurso; pois que, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2).
No recurso não podem, pois, ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objecto específico da decisão do tribunal a quo; pela mesma razão, também o tribunal ad quem não pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objecto da decisão recorrida.
Os recursos visam tão somente “impugnar, reapreciar e, eventualmente modificar as decisões do tribunal recorrido, sobre pontos questionados e dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que as proferiu”5
Ora, os Recorrentes identificam as questões sobre as quais pretendem que este STJ se pronuncie, considerando que as mesmas assumem clara relevância para uma melhor aplicação do Direito:
«- Os actos comerciais não são regulados pelo Direito Civil, mas pelo Direito Comercial, apenas se podendo recorrer ao Direito Civil nos casos permitidos pelo Direito Comercial e nos termos permitidos pelo Direito Comercial (art.º 3.º do Código Comercial)
- As consequências da extinção (no caso, da resolução) de um contrato promessa de constituição de sociedade comercial na qual tenha ocorrido início de qualquer actividade, são reguladas pelo art.º 36.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, remetendo-se para os artigos 1010.º a 1020.º do Código Civil, apenas dando lugar à entrada em liquidação da sociedade em pré-vida, não podendo os pré-sócios ser condenados no pagamento de quantias fora do incidente de liquidação.»
Sucede, como resulta patente dos autos, que estas questões são absolutamente novas. Nunca foram suscitadas pelos Réus, nem na primeira instância nem na Relação, nem qualquer das instâncias se pronunciou sobre elas.
Os Recorrentes vêm contrapor dizendo que “foi o Tribunal (Primeira Instância e Relação) que decidiram trazer aos autos a específica questão de o contrato ser um contrato promessa atípicos de constituição de sociedade” e, por isso, “uma parte não pode ser impedida de se defender quando é o próprio Tribunal que traz aos autos novas questões, e não as partes”.
Com todo o respeito, afigura-se que o argumento não colhe, pois, em primeiro lugar, nem o Tribunal de Primeira Instância nem o Tribunal da Relação trouxeram uma “questão nova”.
Foram os Réus que, logo na sua contestação, destacando-se o art.º 35.º daquela peça processual, reconhecem que o contrato celebrado pelas partes “não se trata de simples contrato de compra e venda e que as relações contratuais estabelecidas entre as partes são muito mais complexas”. E tinham toda a razão. As instâncias limitaram-se a qualificar juridicamente o contrato celebrado, não estando limitadas nessa tarefa, à qualificação elaborada pelas partes. Tal decorre expressamente do disposto no art.º 5.º n.º1 do CPC , segundo o qual “ às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, contudo “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art.º 5.º n.º3)- Da mihi factum, dabo tibi ius.
E, nessa qualificação, ambas as instâncias concordaram. Significa que dessa qualificação pela primeira instância como contrato promessa de constituição de uma sociedade, os Réus poderiam ter suscitado as questões que agora pretendem ver tratadas em sede de revista excepcional, designadamente “As consequências da extinção (no caso, da resolução) de um contrato promessa de constituição de sociedade comercial na qual tenha ocorrido início de qualquer actividade, são reguladas pelo art.º 36.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, remetendo-se para os artigos 1010.º a 1020.º do Código Civil, apenas dando lugar à entrada em liquidação da sociedade em pré-vida, não podendo os pré-sócios ser condenados no pagamento de quantias fora do incidente de liquidação.”
Mas não foi através dessa fundamentação jurídica que os Réus organizaram a sua defesa no recurso de apelação. Antes, esclarecendo que “o presente recurso é relativo à questão dos €80.000 e respetivos juros de mora” argumentam que “(…) face aos factos provados, nada há a restituir. Apenas existe obrigação de restituição quando se recebeu algo, ou quando – de qualquer modo - ocorra um incremento patrimonial. No caso, e no que respeita aos €80.000 os RR. nada receberam, não tendo tido um incremento patrimonial (nem mesmo a título de antecipação de cumprimento). Assim é porque a A. apenas se obrigou a adquirir o crédito de €80.000, e não a extingui-lo. Um contrato de cessão de créditos não extingue o crédito cedido; transmite-o.”
E foi relativamente a esta argumentação que o Tribunal da Relação se pronunciou, destacando-se o seguinte excerto do acórdão recorrido:
“Estranhamente, ao contrário do que sustentaram na contestação, os RR. vêm ora, em sede recursiva, alegar não ser devido no âmbito destes autos a quantia de €80.000,00 paga pela A. no âmbito da intitulada «cessão de créditos» outorgada com DD.
Ora, também aqui a literalidade perverte o espírito do contrato vertente.
Uma vez que o projeto urbanístico assentava em dois imóveis e um deles estava hipotecado, com risco de execução, conforme factos provados 32 a 35, o que as partes quiseram foi o distrate da hipoteca, com o pagamento pela A. aos credores hipotecários da quantia de €80.000,00, sendo que este valor seria depois considerado no âmbito da sociedade que A. e RR. prometeram constituir.
Se é certo que a cessão de créditos não extingue o respetivo crédito, na hermenêutica do contrato em causa o pagamento da referida quantia de €80.000,00 tinha esse desiderato, constituindo, assim, um incremento patrimonial para os RR. de igual montante, pois desse modo ficavam os mesmos desonerados da hipoteca e do pagamento da quantia correspondente ao seu distrate.”
Do exposto, resulta, pois, que os Réus foram confrontados com a qualificação do contrato como contrato promessa de constituição de uma sociedade desde a primeira instância.
Por outro lado, quanto à segunda questão fulcral relacionada com as consequências do incumprimento do contrato, maxime quantia a devolver pelos Réus, também nenhuma “interpretação nova” foi trazida pelo Tribunal da Relação. Este limitou-se a aplicar o Direito aos factos dados como provados.
É absolutamente indesmentível que “as partes têm direito a defender-se das decisões dos Tribunais” e que o princípio do contraditório é um princípio basilar e estrutural do nosso direito processual civil, mas não está minimamente posto em causa neste processo. Porém, ao contrário do que vem alegado pelos Réus o Tribunal da Relação não “reinterpret[ou] o contrato de tal modo que transforma uma cessão de créditos (provada nos autos) numa extinção de créditos, sem ter qualquer apoio factual para esse reinterpretação”. E não ocorreu qualquer “decisão surpresa”. De qualquer modo, se tivesse sido proferida uma decisão surpresa, tal seria, eventualmente, fundamento para anulação da decisão e não fundamento para revista excepcional.
O Tribunal da Relação não disse que “uma cessão de créditos a um novo credor extingue o crédito”. Pelo contrário. Os Réus transcrevem excerto do acórdão em que se diz precisamente o oposto: “Se é certo que a cessão de créditos não extingue o respetivo crédito,6 na hermenêutica do contrato em causa o pagamento da referida quantia de €80.000,00 tinha esse desiderato, constituindo, assim, um incremento patrimonial para os RR. de igual montante, pois desse modo ficavam os mesmos desonerados da hipoteca e do pagamento da quantia correspondente ao seu distrate.”
Tal como o Tribunal da Relação bem observa, “a literalidade perverte o espírito do contrato vertente”, ou seja, embora no contrato se mencione a “cessão de créditos”, a verdade é que acabou por ocorrer uma “extinção do débito” que a Ré AA tinha em relação ao credor hipotecário DD, como resulta do facto provado n.º 35.º, com o seguinte teor: “35. Nessas circunstâncias, na mesma data e no mesmo momento da celebração do contrato promessa de compra e venda, a A. pagou a quantia de € 80.000,00 a DD, por meio de cheque bancário n.º ........47, do Millennium BCP, datado de 19/03/2019 (47º p.i.)”.
Por conseguinte, toda a argumentação dos Réus no sentido de negarem a obrigação de devolução do referido valor de € 80.000,00, perde fundamento perante o teor do supra mencionado facto n.º 35.
O que acaba de se expor destina-se apenas a demonstrar que os Recorrentes vêm efectivamente suscitar questões novas que não foram apreciadas pelo Tribunal recorrido, podendo tê-lo sido, caso tivessem sido suscitadas pelos Recorrentes, não sendo exacto que “só com o douto acórdão do Tribunal da Relação é que passou a ser juridicamente relevante o regime da extinção da pré sociedade.”
Tal como a Relação também sublinhou, não podemos deixar de assinalar a posição contraditória que os Réus assumem nos autos, pois no art.º 54.º da sua contestação afirmam:
“Os réus estão disponíveis para entregar o valor de € 80.000,00, em singelo, acrescido de juros moratórios à taxa legal de 4% como peticionado pela Autora.”
Porém, nas alegações de recurso de apelação negam essa obrigação, reafirmando-o agora nestas alegações de recurso de revista. Contudo, negam agora essa obrigação, suscitando questões que nunca foram abordadas, designadamente, no acórdão recorrido, como vem sendo desenvolvido.
Não obstante a argumentação apresentada, afigura-se-nos que a mesma não convence no sentido de demonstrar que não se trata de questão nova. Na verdade, aparentemente, os recorrentes pretendem agora demonstrar que não são devedores da quantia em que foram condenados, de acordo com o regime jurídico que entendem aplicável que não foi o aplicado pela Relação. Ora, precisamente, essa questão da aplicabilidade de diverso regime jurídico à questão em apreço nunca foi suscitada pelas instâncias, nem pelos Recorrentes. Por isso, é que se torna irrelevante para efeitos de admissibilidade do recurso, que os Recorrentes discordem do regime jurídico que foi aplicado, pois que foi sempre à luz desse regime que o litígio foi apreciado.
Assim, uma vez que no recurso não podem ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objecto específico da decisão do tribunal a quo, impõe-se concluir que este Tribunal não pode conhecer do recurso ora interposto, por falta de um requisito geral de admissibilidade, conforme supra exposto.
III - DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordamos nesta 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em, indeferindo a reclamação, confirmar a decisão singular proferida de não admitir o recurso de revista excepcional.
Custas pelos Reclamantes.
Lisboa, 16 de janeiro de 2025
Maria de Deus Correia (relator)
Maria de Fátima Gomes
Nuno Pinto Oliveira
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1. Serão deste diploma todos os artigos que doravante forem citados sem indicação de proveniência.
2. Vide a título exemplificativo Acórdão do STJ de 12/03/2019, P.43168/15.6YIPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
3. Vide, a título exemplificativo os Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15-09-2010, Processo 322/05.4TAEVR.E1.S1, e de 11-11-2020, P. 4456/16, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
4. ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 2022, 7.ª edição atualizada, Almedina, p.139.
5. Acórdão citado.
6. Destacado nosso.