1. O que caracteriza o incidente da instância da oposição mediante embargos de terceiro é a circunstância do pedido do embargante se introduzir num processo pendente em que aquele não é parte visando a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes e que tenha atingido, ou possa atingir, ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante.
2. A desconsideração da personalidade jurídica, enquanto instituto que opera subsidiariamente, pressupõe que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, traduzindo-se assim numa utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética negocial, envolvendo sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, impondo-se verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito.
3. No caso concreto, não existindo fundamento factual suficiente para desconsiderar a personalidade jurídica da Embargante impõe-se reconhecer a sua qualidade de terceiro para efeitos da instauração do presente incidente;
4. Não se encontrando demonstrada a transmissão do estabelecimento comercial objecto da sentença exequenda por parte da Sociedade Embargante e, consequentemente, a aquisição do mesmo por esta última, mostra-se inaplicável o disposto no n.º 1 e na primeira parte do n.º 3, do artigo 263.º, do CPC.
I – Relatório
Padaria O Pão de ..., Lda., com sede no ..., deduziu, por apenso à acção executiva que AA e BB movem a CC, DD e EE – Indústria Panificação Unipessoal, Lda, embargos de terceiro, pugnando pela respectiva procedência declarando-se que a Embargante tem a propriedade e a posse do estabelecimento comercial sito no prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o número 13384/20010725, ordenando-se a imediata suspensão dos termos da execução de que os presentes embargos são apenso no que concerne a todos os atos e diligências tendentes ao encerramento daquele estabelecimento comercial da Embargante.
Para o efeito, alegou, em síntese ser dona e legítima possuidora do estabelecimento comercial explorado no prédio urbano em causa, sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número n.º 13384 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 8209 e titular da respetiva licença de exploração, concluindo que o encerramento desse estabelecimento ofende a posse e o direito de que é titular sobre o mesmo.
Acrescentou que o estabelecimento a que respeita a sentença executada no processo executivo foi encerrado pelos Executados no dia 3/6/2020, assim cumprindo essa sentença, mais esclarecendo que o actualmente instalado no imóvel é um novo estabelecimento comercial totalmente diferente daquele que nesse local se encontrava instalado e com um novo processo de licenciamento, para além de inexistirem motivos para que este novo estabelecimento da Embargante seja encerrado coercivamente.
Os embargos foram recebidos, tendo sido ordenada a notificação das partes primitivas para contestarem, nos termos do disposto no art.º 357º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendo contestado apenas os Exequentes, que pugnaram pela improcedência dos embargos, alegando, em síntese, que a sociedade comercial Embargante tem como únicos sócios os filhos dos Executados, sendo o estabelecimento propriedade dos Executados, acrescentando que os mesmos gerem a sua actividade e dela retiram proveitos nunca tendo sido encerrado o estabelecimento em causa, não sendo, como tal, a Embargante terceira, mais referindo que, em qualquer caso, a sentença exequenda tem força de caso julgado em relação à Embargante, alegada adquirente do estabelecimento objecto da sentença executada.
Realizou-se a audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, agendando-se e realizando-se a audiência final, a que se seguiu a prolação da sentença, que contem o seguinte dispositivo:
IV. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se, julgar procedentes os presentes embargos de terceiro e, consequentemente:
A1)Reconhecer o direito de propriedade da Embargante Padaria O Pão de São Brás, Lda. sobre o estabelecimento instalado no prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ...com o número 13384/20010725;
A2)Reconhecer que o estabelecimento de panificação explorado pelos Executados/Embargados no prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 13384/20010725 e inscrito na matriz sob o artigo 8209 foi encerrado em 4/6/2020 e, nessa medida, declarar cumprida a obrigação estabelecida sob a al. a) do segmento decisório da sentença executada na execução de que estes autos constituem um apenso;
B)Condenar as partes primitivas- Exequentes e Executados- no pagamento integral das custas e em partes iguais;
C)Registe e notifique;
D)Comunique a presente decisão ao Agente de execução;
E)Após trânsito em julgado, nos autos de execução, deverá o agente de execução atender ao acima decidido sob a al. B no que respeita ao cumprimento pelos executados da sentença executada.
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Inconformados com a decisão, os Embargados/Exequentes AA e BB apresentaram requerimento de recurso de apelação independente alinhando as seguintes Conclusões:
“CONCLUSÕES:
1. Atenta a prova produzida, mormente os depoimentos que se deixaram transcritos, deve revogar-se a decisão da matéria de facto, julgando-se não provados os factos vertidos nos números 17 e 18 dos factos provados e provado o facto vertido no número 2 dos factos não provados.
2. Pelas razões anteriormente aduzidas estão reunidos os requisitos para que se desconsidere a personalidade jurídica da embargante.
3. E assim sendo tal sociedade comercial não é terceiro para efeitos de embargos de terceiro (vd. 342º do C.P.C.).
4. Pelo que devem os mesmos ser indeferidos
5. De todo o modo, e mesmo que não se aceite o anteriormente referido (a não qualidade de terceiro da embargante), sempre havia de atender ao disposto nos artigos 55º e 263º, nº 1 e 3 do C.P.C.
6. Resultando de tais ditames que a sentença exequenda tem força de caso julgado em relação à sociedade comercial embargante, adquirente do estabelecimento objecto da obrigação exequenda.
7. Pelo que deve revogar-se a sentença em crise, julgando-se os embargos de terceiro improcedentes.
Assim se fazendo JUSTIÇA.”
A Embargante respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência rematando a resposta do seguinte modo:
“Termos em que, e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deverá o presente recurso de apelação ser julgado integralmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.”
*
Foi proferido despacho no Tribunal a quo que admitiu o recurso a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo ordenando a subida dos mesmos a este Tribunal Superior, nada havendo a rectificar quanto à admissão do recurso.
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Correram Vistos.
*
II – Questões objecto do recurso
Nos termos do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugado com o artigo 639º, nº 1, ambos do CPC, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que são as seguintes as questões que integram o objecto desta apelação:
1- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2- Reapreciação de mérito incidente sobre:
a. A invocada desconsideração da personalidade jurídica da Embargante;
b. Autoridade de caso julgado da sentença exequenda sobre a Embargante.
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III – Fundamentação de Facto
Consta da sentença recorrida o seguinte no tocante à matéria de facto:
“1. FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1º-A execução para prestação e facto de que estes autos constituem um apenso foi instaurada por AA e BB contra CC, DD e EE – Indústria Panificação Unipessoal, Lda., fundada no titulo constituído pela sentença proferida no processo n.º 1480/15.5... da Instância Local de ... - Secção Cível – Juiz 2, em que foram Autores BB e mulher AA e Réus CC e mulher DD;
2º-Na sentença acima referida proferida em 1/12/2015 e já transitada em julgado, consta no segmento decisório:
«julgo a presente acção procedente e, em consequência:
«a) determino o encerramento do estabelecimento de panificação explorado pelos RR no prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ...sob o nº 13384/20010725 e inscrito na matriz sob o artigo 8209;
b) condeno os réus CC e DD no pagamento aos AA BB e AA de uma indemnização pelos prejuízos materiais e morais causados pela laboração do referido estabelecimento, cuja fixação se relega para ulterior liquidação até ao limite de 30.000,01€ (art. 609º/2. Do CPC).»;
3º-Na execução referida em 1º é deduzido o pedido de “efectivo encerramento” do estabelecimento, “selando fornos e chaminés, e tomando todas as medidas que se mostrarem necessárias ao efectivo encerramento da laboração, tudo a expensas dos executados”;
4º-Por apenso aos autos de execução e que correu sob a letra A, foram instaurados embargos de terceiro por Padaria das ..., Unipessoal, Lda., a qual “pretendia obstar ao encerramento do estabelecimento comercial em causa na acção executiva, sustentando que tal estabelecimento lhe pertence e que, sendo possuidora do mesmo, o seu encerramento ofende a posse e o direito da Embargante, que é incompatível com a realização da diligência executiva”- cfr. sentença proferida no apenso A;
5º-Naquele apenso A foi proferida sentença em 19/6/2018, já transitada em julgado e julgando improcedente os embargos de terceiros;
6º-Na referida sentença considerou-se que por ter tido intervenção na acção declarativa, a sentença ai proferida e que é executada, produzia efeitos quanto à Embargante, estando abrangida pelo efeito de caso julgado e, nessa media, aquela Embargante não tinha a qualidade de terceiro; para além de que se considerou que eram os executados quem explora o estabelecimento comercial, fazendo-o através da ora Embargante, que o executado CC sempre foi o sócio único da referida sociedade e este Executado, juntamente com a executada DD, sempre foram os gerentes da sociedade, sendo estes executados quem sempre desenvolveram a actividade de panificação e exploraram o estabelecimento comercial através da sociedade, sendo os proprietários do imóvel onde o estabelecimento comercial de panificação e padaria opera tendo o o alvará de utilização do estabelecimento comercial sido concedido ao executado CC, pelo que seria de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade Embargante;
7º-Por apenso aos autos de execução e que correu sob a letra B, foram instaurados embargos de executado por Padaria das ... Unipessoal, Lda., onde foi proferida sentença em 14/5/2018, já transitada em julgado, julgando improcedente os embargos de executado; nessa sentença consta nos factos provados que a sociedade executada EE – Indústria Panificação Unipessoal, Lda. alterou a denominação para “Padaria das ..., Unipessoal, Lda.” e que os executados não procederam ao encerramento do estabelecimento, que continua em laboração e a fabricar e vender pão, continuando a emitir os fumos e substâncias que ofendem e prejudicam a integridade física dos exequentes-cfr. sentença proferida no apenso B;
8º-Por apenso aos autos de execução e que correu sob a letra C, foram instaurados embargos de executado por CC e DD, onde foi proferida sentença em 14/5/2018, já transitada em julgado, julgando improcedente os embargos de executado-cfr. sentença proferida no apenso B;
9º-No prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número n.º 13384 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 8209, encontra-se instalado um estabelecimento de produção e venda de pão e produtos afins, gerido pela Embargante.
10º-A actividade desenvolvida no local referido em 9º é efectuada ao abrigo do “Título de exploração industrial n.º 3/2011” emitido pela Câmara Municipal de ... e nos termos do averbamento de 22/7/2011, sendo actualizado o respectivo titular em 25/5/2021 para Padaria o Pão de São Brás, Lda.;
11º-Todos os trabalhadores do acima referido estabelecimento são funcionários da embargante;
12º-Os contratos de fornecimento de água, eletricidade e telecomunicações do estabelecimento foram celebrados em nome da Embargante, que paga os respetivos consumos, sendo as facturas e recibos emitidos em nome da Embargante, assim como todos os produtos e materiais para o funcionamento do estabelecimento são adquiridos pela Embargante;
13º-Os veículos automóveis utilizados no transporte e venda dos produtos do estabelecimento são propriedade da Embargante;
14º-Os equipamentos existentes no estabelecimento são propriedade da Embargante que os adquiriu para o efeito, incluindo ainda alguns que foram adquiridos aos executados;
15º-Os executados encerraram o estabelecimento a que se refere a sentença executada no dia 4/6/2020;
16º-Desde o referido dia 4/6/2020 até ao dia 30/5/2021 não funcionou qualquer estabelecimento comercial, de panificação ou outro, no imóvel referido em 2º e 9º;
17º-Após o encerramento do estabelecimento dos executados, como referido em 14º, os filhos dos executados CC e DD, iniciaram junto de diversas entidades, entre as quais a Câmara Municipal de ..., um processo de licenciamento de um novo estabelecimento, tendo constituído para o efeito a sociedade embargante;
18º-Tudo como vista a instalar no imóvel referido em 2º e 9º o estabelecimento comercial de panificação denominado “O Pão de ...”;
19º-A sociedade Embargante foi constituída em 9/10/2020 com o objecto do exercício da indústria e comércio de pão e seus afins, tendo como sócios e gerentes FF, GG e HH, tudo conforme documento n.º 5 junto com a petição, que aqui se dá por reproduzido;
20º-Os executados/embargados CC e DD, na qualidade de senhorios e a Embargante, em 30/11/2020, celebraram por escrito um contrato de arrendamento pelo prazo de 2 anos, renovável por períodos de 1 ano, tendo por objecto o rés-do-chão do imóvel referido em 2º e 9º e destinado à actividade comercial da aqui Embargante e pela renda mensal de 1.000,00 euros, tudo conforme documento n.º 6 junto com a petição, que aqui se dá por reproduzido;
21º-No imóvel referido em 2º e 9º, pela Embargante foram efetuadas obras de remodelação de modo a adaptar o imóvel a novos procedimentos no exercício da atividade de panificação, incluindo a instalação de queimadores de peletes;
22º-Assim, deixando de existir qualquer processo de combustão de lenha nos fornos da panificadora, como sucedia no anterior estabelecimento;
23º-Os queimadores de peletes instalados foram submetidos a ensaios e avaliações por laboratórios acreditados pelos IPAC;
24º- Em 24/05/2021 foi realizada uma vistoria de conformidade por parte da Câmara Municipal de ..., na sequência da qual foi emitido o 3º averbamento ao título de exploração industrial n.º 3/2011, atualmente em vigor, junto com a petição como doc. n.º 13 e que aqui se dá por reproduzido:
25º-No auto de vistoria acima referido consta:
«O referido imóvel encontrava-se encerrado desde o inicio de junho de 2020 e foi objecto de ações de remodelação tais como pinturas, limpezas, revestimento de paredes e substituição dos formos e dos queimadores a lenha para fornos e queimadores de pellets e das chaminés. (…)
Mais se informa que foi apresentado o relatório de ensaio n.º 13610, efetuado pela Sondar.1-Laboratório de efluentes gasosos, datado de 15 de abril do presente ano e realizado com o objectivo de aferir o cumprimento do Decreto-Lei n.º 39/2018 de 11 de junho, artigos 13º, 14º, 15º e 16º e que conclui a conformidade quando às emissões de poluentes atmosféricos emitidos pela referida padaria O Pão de .... Foram também apresentados documentos comprovativos de compra do combustível utilizado, pellets, assim como ficha técnica e certificados de conformidade do produto.
Com esta vistoria, considera-se que a padaria reúne o cumprimento das condições legas camarárias para laborar, no entanto salienta-se que o presente auto não anula a devida análise de outras entidades com competência próprias nos domínios de higiene e segurança no trabalho, ambiental, fiscal, saúde pública, entre outras.»
26º-O estabelecimento da Embargante abriu portas no dia 30 de maio de 2021;
27º-No relatório de caracterização dos efluentes gasosos nas instalações da ora Embargante, elaborado nos serviços da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve e submetido a parecer de 17/11/2021, consta a informação que nas emissões provenientes de fonte fixa designada por “chaminé de formos” verifica-se o cumprimento dos respectivos valores limites de emissão, e ainda que os poluentes NOx, COVT, PTS e CO apresentam um caudal mássico de emissão inferior aos respetivos limiares mássicos mínimos definidos;
28º-Trabalham atualmente no estabelecimento de panificação da Embargante pelo menos 7 trabalhadores, que dai retiram rendimentos;
29º-A Embargante não foi parte no processo n.º 1480/15.5... referido em 1º;
30º-A renda referida em 19º, presentemente não é paga, por favor dos executados/embargados CC e DD;
31º-Os sócios e gerentes da sociedade embargante são filhos dos executados/embargados CC e DD;
32º-Nos autos de execução, por despacho proferido em 22/4/2022 foi indeferida a pretensão deduzida pelos executados no sentido de que em razão das obras realizadas e obtenção do licenciamento já não havia correspondência com a realidade da sentença executada- cfr. despacho proferido em 22/4/2022, que aqui se dá por reproduzido;
33º-Nos autos de execução, por despacho proferido em 22/4/2022, foram convidados os exequentes a indicarem o prazo que reputam suficiente para o cumprimento da prestação, o que ainda não foi fixado, por ter sido suspensa a execução em razoa da instauração dos presentes embargos de terceiro, como consta no despacho proferido em 19/6/2022.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultaram provados os seguintes factos:
1º-Que o estabelecimento actualmente existente no imóvel referido em 2º e 9º dos factos provados é propriedade dos executados, sendo estes quem gere a sua actividade e dela retira proveitos;
2º-Que o estabelecimento comercial referido em 2º nunca encerrou.
*
Nada mais resultou provado, sem prejuízo do tribunal não responder a matéria conclusiva ou de direito, e bem assim não responder a alegações que se afiguram irrelevantes ou constituem mera impugnação dos factos alegados pela contra-parte.”
***
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1-- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Resulta do artigo 662º, do CPC, o seguinte:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa“.
Refere a propósito deste normativo o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil“, Almedina, 5ª ed., pág. 287), que:
“O actual artigo 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava […], através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.“
Diz-nos também sobre este preceito o Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição atualizada, 2019, pág. 463-464), o seguinte:
“A redação do preceito [662º, nº 1] não parece ter sido muito feliz quando manda tomar em consideração os “factos assentes” para proferir decisão diversa, que só pode ser daqueles mesmos factos considerados assentes, porque o que está em causa é modificar a decisão em matéria de facto proferida pela primeira instância.
[…]
A leitura que se sugere como mais adequada do preceito, salvaguardada melhor opinião, é que ele pretende dizer que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, “confrontados” com a prova produzida ou com um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Nesta sede importa ainda recordar o teor dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, relativo à “Sentença”, que se traduz no seguinte:
“4- Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“5- O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Argumentam, a este propósito, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, pág. 709), o seguinte:
“O principio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração[…]: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espirito, de acordo com as máximas de experiências aplicáveis.“
Assim, a prova submetida à livre apreciação do julgador não significa prova sujeita ao livre arbítrio do mesmo, como, aliás, bem se depreende da leitura do nº 4- do supra referido artigo 607º do CPC, que na sua primeira parte impõe ao juiz que analise “criticamente” as provas, indique as “ilações tiradas dos factos instrumentais” e especifique os “demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”.
Neste domínio referem, outrossim, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado, Vol. I”, Almedina, 2ª edição, 2020, pág. 745), o seguinte:
“O juiz deve, pois, expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados.”
Resulta, por seu turno, do artigo 640º do CPC, epigrafado “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto“, o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão relativa a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a ) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b ) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c ) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a ) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; […] “
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (obra citada, págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc );
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação“, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado nº 1 e 2, a), do artigo 640º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor“.
Descendo de novo ao caso concreto percebemos que os Apelantes se insurgem contra os factos considerados como provados na sentença recorrida vertidos sob os pontos 17.º e 18.º entendendo que deveriam ter sido considerados como não provados e bem assim contra o facto vertido sob o ponto 2.º do segmento daquela sentença atinente aos factos tidos por não provados sustentando que o mesmo deveria ter sido considerado provado, tendo ainda identificado os pontos de facto impugnados no corpo e nas conclusões recursivas, bem como mencionado naquele os concretos meios probatórios que entende justificarem a solução diversa que sustenta para os factos censurados, indicando as passagens da gravação em que funda o seu recurso sobre a matéria de facto tendo, outrossim, transcrito os excertos considerados relevantes.
Na conformidade exposta entende-se como adequadamente cumpridos os ónus primário e secundário de obrigatória especificação previstos no supra transcrito artigo 640.º, do CPC, mormente no seu n.º 1 e 2, a), podendo, como tal, de seguida, trilhar-se caminho na apreciação do mérito da impugnação apresentada.
Recordemos o teor dos factos vertidos sob os pontos 17.º e 18.º do segmento respeitante aos “Factos Provados”, bem como o teor do facto considerado como não provado vertido no ponto 2.º do segmento atinente aos “Factos Não Provados”.
“17º-Após o encerramento do estabelecimento dos executados, como referido em 14º, os filhos dos executados CC e DD, iniciaram junto de diversas entidades, entre as quais a Câmara Municipal de ..., um processo de licenciamento de um novo estabelecimento, tendo constituído para o efeito a sociedade embargante;
18º-Tudo como vista a instalar no imóvel referido em 2º e 9º o estabelecimento comercial de panificação denominado “O Pão de ...”;
2.ºQue o estabelecimento comercial referido em 2.º nunca encerrou”
Relativamente a estes factos, já o sabemos, entendem os Apelantes que não resultaram demonstrados nos autos os vertidos sob os pontos 17.º e 18.º do elenco dos factos assentes e que resultou provado o facto não provado vertido sob o ponto 2.º.
A talhe de foice dir-se-á, desde já, relativamente à impugnação do facto não provado, que faria sentido ter sido impugnado pelos Apelantes o facto vertido sob o ponto n. 15.º dos factos considerados como provados uma vez que a eventual demonstração do facto vertido sob o ponto 2.º acarretará(ia) necessária contradição com aquele onde resultou assente o encerramento do estabelecimento dos Executados no dia 04/06/2020.
Para demonstrarem a solução que preconizam relativamente aos três factos censurados os Apelantes indicaram o depoimento de parte prestado em sede de audiência final pela legal representante da Embargante, GG e bem assim pelo Embargado/Executado CC tendo transcrito no corpo das suas alegações longos excertos de tais depoimentos de parte (que se estenderam entre a página 15 e a 110 das alegações), que terão considerado como relevantes para sustentar a sua posição, não logrando mencionar qualquer outro meio probatório para contrariar a solução a que chegou o Tribunal.
Vejamos, de que forma o Tribunal recorrido motivou a decisão de facto a que chegou:
“[…]
Posto isto, verifica-se que no seu depoimento, o Embargado CC afirmou que o seu estabelecimento encerrara e que decorrido cerva de um ano passou a funcionar no local o estabelecimento da Embargante, de quem eram “donos e gerentes” os seus filhos, a que passara o negócio, tendo depois relatado o que entende serem as semelhanças e diferenças entre o anterior e o novo estabelecimento, referindo que 2 dos 3 trabalhadores transitaram da anterior sociedade e ainda que inicialmente trabalhara no estabelecimento da Embargante.
Atendendo ao conjunto da prova produzida em audiência que ainda se referirá (por exemplo, não confirmando o alegado envolvimento do depoimento nas actividades da Embargante ou no número de trabalhadores) e ao modo hesitante e por vezes pouco claro como foi prestado o depoimento, mercê eventualmente do estado de saúde e idade (sendo evidente o estado de debilidade), na parte em que não foi confirmado pelos demais meios de prova, o tribunal não valorou este depoimento (sem prejuízo do atrás exposto quanto aos efeitos da confissão).
Relativamente ao depoimento de parte prestado pela representante legal da Embargante, no essencial corresponde à versão dos factos sustentada na petição de embargos, ainda que também tivesse admitido que os seus pais (executados CC, DD) facilitassem a actividade da Embargante, como seja ao vender materiais existentes no anterior estabelecimento sendo o preço pago em prestações ou na não exigibilidade do pagamento da renda devida pela utilização do espaço do estabelecimento. Por isso, foi lavrada assentada e levado aos factos provados as circunstâncias relativas ao arrendamento.
[…]
As testemunhas II, JJ, KK e LL, moradores no local onde se situa o estabelecimento de padaria e a residência dos exequentes
Prestaram depoimentos em geral coincidentes, descrevendo as circunstâncias relativas ao funcionamento do estabelecimento dos executados, o posterior encerramento e as condições em que passou a funcionar o estabelecimento da embargante, dando nota das diferenças, quer nas instalações, quer nos produtos produzidos e nos novos trabalhadores, bem como na inexistência de emissão de fumos e cheiros, referindo igualmente que os executados não participam na actividade do novo estabelecimento
A testemunha MM, funcionário do Município de ..., descreveu a sua participação na vistoria do estabelecimento da Embargante, referindo as alterações efectuadas no imóvel e a mudança para equipamentos de combustão a pelllets, salientando que a Embargante apresentou todos os certificados exigíveis.
A testemunha NN, funcionária do Município de ..., presou um depoimento semelhante ao da anterior testemunha, tendo ainda acrescentado que a Embargante continua a enviar para o Município os relatórios de monitorização de emissões e também, como moradora no local referindo que observou as mudanças entre estabelecimento, sendo o actual manifestamente diferente e onde já não trabalha o executado CC
A testemunha OO, declarou ter prestado serviços enquanto funcionário da empresa Arquitráfegos, elaborando relatórios de peritagem das padarias em 2019 e 2020, este para a Padaria o Pão de ... e onde se concluiu que com o recuso a combustão por pellets não encontrava impedimento ao exercício da actividade.
A testemunha PP, nora dos executados pessoas singulares, fez um relato das circunstâncias em que funcionava a padaria dos executados, o seu encerramento, e o posterior processo de instalação do novo estabelecimento, incluindo as obras, aquisição de equipamentos e recurso à combustão por pellets, tudo de acordo com a versão sustentada na petição de embargos.
[…]
A testemunha QQ, genro dos executados, prestou depoimento no essencial idêntico
A testemunha RR, ex-funcionário dos executados, afirmou que a anterior padaria encerrou e foi no local foram efectuadas obras, sendo que na nova padaria, que é diferente, pertence aos filhos dos executados, não tendo qualquer intervenção o executado.
A testemunha SS, ex-funcionário quer dos executados, quer depois da Embargante, prestou um depoimento semelhante ao anterior.
A testemunha TT apenas referiu que se apercebeu que padaria existente no local encerrou e por cerca de um ano, tendo sido depois realizadas obras nesse local.
[…]
Como se vê, da prova testemunhal produzida, quer a arrolada pela embargante, quer a arrolada pelos embargados/exequente, resulta uma evidente concordância quanto às circunstâncias relativas ao estabelecimento de padaria dos executados, o seu encerramento e a posterior abertura do estabelecimento da Embargante com outras características, desde logo em termos de instalações, combustíveis utilizados e emissões atmosféricas. Dai que resulte demonstrado que o estabelecimento de padaria dos executados foi efectivamente encerrado, mantendo-se esse local sem qualquer actividade durante cerca de um ano e surgindo depois o estabelecimento da Embargante.
A indicada prova testemunhal mostra-se concordante igualmente com a prova documental, designadamente a junta com a petição, como o alvará, facturas de gás, água e comunicações, cópia dos títulos de propriedade dos veículos, certidão comercial, contrato de arrendamento, ofícios da CCR e diversos relatórios elaborados pelos laboratórios, auto de vistoria do Município, para além dos elementos que contam nos autos de execução e respectivos apensos (como as decisões judiciais ai proferidas).”
Importa sublinhar no tocante aos meios probatórios apresentados pelos Apelantes que, por força da previsão do n.º 5 (parte final), do artigo 607.º do CPC, apenas estaremos fora do âmbito da prova não vinculada naquilo que resulte validamente confessado por parte dos depoentes de facto sobre a matéria dos pontos de facto censurados, visto que uma confissão válida implica a prova plena dos factos abrangidos pela mesma, sendo certo que tal confissão apenas poderia relevar para demonstrar factos alegados considerados como não provados e não propriamente para infirmar factos considerados como provados com o fito de se julgarem os mesmos como não provados, o que desde logo afasta, in casu, a possibilidade de se considerar como não provados com base em hipotética confissão os factos descritos sobre os pontos 17.º e 18.º do segmento dos factos provados na sentença recorrida.
Escrutinando, porém, devidamente os longos excertos de tais depoimentos de parte transcritos no corpo das alegações pelos Apelantes e bem assim o resultado da “Assentada” relativa a cada um dos dois depoimentos, constante da acta de audiência final da sessão ocorrida no dia 25/09/2023, (assentadas essas devidamente confirmadas pelos depoentes de parte e mencionadas na sentença recorrida em sede de motivação da decisão de facto), desde logo percepcionamos, na esteira do que correctamente referiu o Tribunal recorrido, uma patente dificuldade do depoente de parte CC em expressar-se com clareza e segurança relativamente a grande parte dos factos sobre que se pronunciou, mostrando-se titubeante nas suas respostas, chegando mesmo a afirmar e infirmar os mesmos factos, revelando alguma confusão no seu discurso.
Acresce que da leitura atenta das respostas dadas pelo mesmo transcritas pela Apelante e da assentada exarada em acta nem sequer resulta que o mesmo tenha, tão pouco, se pronunciado expressamente sobre a factualidade concreta consignada nos factos provados vertidos sob os pontos 17.º e 18.º (respeitantes ao despoletar junto de determinadas entidades do processo de licenciamento do estabelecimento comercial de panificação denominado “O Pão de ...” e constituição da sociedade Embargante com vista a instalar aquele no imóvel onde antes se encontrava o estabelecimento de panificação explorado pelos Executados), como também não é possível concluir de tal assentada que o depoente tenha confessado que o estabelecimento de que foi dono e gerente nunca encerrou, visto ter declarado que “teve de encerrar durante cerca de 1 ano”.
Do mesmo passo resulta da leitura cuidada dos excertos selecionados pelos Apelantes relativo ao depoimento de parte prestado por GG, assim como da assentada plasmada em acta, que a mesma não confessou o facto vertido sob o ponto 2.º do elenco dos factos considerados como não provados, como também não infirmou a factualidade descriminada sobre os pontos 17.º e 18.º do segmento dos factos provados, tendo até sustentado a sua demonstração.
Convirá relembrar que a depoente de parte GG foi expressamente indicada para depor apenas sobre a matéria dos artigos 15.º, 16.º, 28.º e 29.º da contestação dos Apelantes sendo que dos factos ora impugnados neste recurso apenas um deles, precisamente o contido no artigo 2.º dos factos não provados corresponde à matéria indicada para aquela depor (cfr. artigo 28.º da contestação), sendo que a depoente negou a sua verificação.
Por outro lado, cabe ainda dizer que a depoente em apreço esclareceu no seu depoimento ter sido firmado entre a Embargante e os Embargados/Executados um contrato de arrendamento do espaço onde se encontra o estabelecimento comercial daquela e não um contrato de “trespasse”.
Não havendo que relevar, conforme percebemos do supra exposto, qualquer confissão por banda de qualquer um dos depoentes de parte temos de convir que a demonstração dos factos contidos nos pontos 17.º e 18.º do segmento dos factos provados, assim como a indemonstração do facto vertido sob o ponto 2.º do segmento dos factos não provados, derivou, essencialmente, de meios de prova não vinculada, afigurando-se correcta a ponderação feita pelo Tribunal a quo, que levou em conta de forma conjugada e crítica, a par dos depoimentos de parte prestados, os depoimentos das testemunhas que identificou no segmento da “Motivação da Decisão de Facto” e os documentos ali expressamente referenciados (sendo que alguns deles são documentos autênticos), devendo, outrossim, salientar-se que o Tribunal a quo beneficiou em sede de produção de prova da imediação e da oralidade tão caros e relevantes para a formulação do juízo probatório, o qual nos parece ter sido bem construído.
Do exposto resulta, sem necessidade de mais considerações, a improcedência da impugnação dirigida contra a decisão relativa à matéria de facto.
2- Reapreciação de mérito
Resulta do artigo 342º do CPC, epigrafado “Fundamentos dos Embargos de Terceiro“, o seguinte:
“1- Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro. “
A este propósito refere Rui Pinto (“A Ação Executiva“, Editora AAFDL, 2018, pág.703), que o embargante deve, sob pena de improcedência, alegar e provar o seguinte:
“a. Penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens;
b. ofensa;
c. aquisição de direito ou posse;
d. incompatibilidade desse direito ou posse com a realização ou âmbito da diligência.“
A “ofensa” resulta de não ser possível ao terceiro manter a plena afetação do bem jurídico nos termos do seu direito em simultâneo com o ato executivo ordenado.
O embargante tem de apresentar posse ou qualquer direito incompatível de que seja titular, o que significa que “deve alegar e demonstrar a titularidade –rectius, o facto de aquisição da titularidade – da posse ou do direito ofendido, a qual determina, ao mesmo tempo, legitimidade e causa de pedir“ ( Rui Pinto , na obra citada , pág. 710 ).
Sobre o último dos pressupostos para procedência dos embargos de terceiro diz-nos Salvador da Costa (“Os Incidentes da Instância“, Almedina, 2017, 9ª edição, pág. 161), que, “O conceito de direito incompatível apura-se por via da ponderação da finalidade da diligência judicial em causa…”
Por seu turno decorre do artigo 350.º do CPC, que:
“1.Os embargos de terceiro podem ser deduzidos, a título preventivo, antes de realizada, mas depois de ordenada, a diligência a que se refere o artigo 342.º, observando-se o disposto nos artigos anteriores, com as necessárias adaptações.
2. A diligência não será efetuada antes de proferida decisão na fase introdutória dos embargos e, sendo estes recebidos, continuará suspensa até á decisão final, podendo o juiz determinar que o embargante preste caução.”
Em anotação a este normativo dizem-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado, Vol I”, 2020- 2ª edição atualizada, Almedina, pág. 424), o seguinte:
“Mediante a invocação da posse ou de algum direito incompatível com a realização da diligência, o interessado pode evitar a sua concretização, impedindo o início da execução ou o prosseguimento de diligência que se prolongue no tempo (RL 6-12-17, 233387/10 e RP 10-10-13, 5615/09).“
Regressando ao caso que temos entre mãos e no que toca aos pressupostos legais subjacentes ao incidente processual em causa acabados de expor percebemos que os Apelantes apenas colocam em causa no recurso, conforme expresso nas conclusões recursivas, a qualidade de terceiro da Apelada.
Poderia suscitar-se alguma dúvida sobre se no caso concreto estamos perante um acto judicialmente ordenado de apreensão de bens, uma vez que no caso concreto é de afastar liminarmente, sem margem para quaisquer rebuços, a existência de um acto de penhora ou de entrega de bens.
Temos como certo que deriva da decisão proferida em 22/04/2022 nos autos principais de execução, a qual determinou o cumprimento do ordenado na acção declarativa condenatória a que se alude nos pontos n.ºs 1 e 2 dos “Factos Provados” da sentença recorrida, a reação preventiva da Embargante consubstanciada na presente causa incidental pretendendo desse modo evitar o acto de encerramento do seu estabelecimento comercial.
Focando-nos na expressão legal “apreensão de bens” afigura-se que numa acepção mais lata do termo será plausível conter nela o encerramento determinado, até porque em termos práticos tal implicará colocar bens que integram o estabelecimento comercial em situação de impossibilidade de utilização por parte dos respectivos titulares/possuidores, tal qual sucede quando se apreende um bem a alguém.
De todo o modo impõe-se, em apoio do que vimos sustentando, chamar à colação o entendimento expresso por Lopes do Rego (in “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2.ª Edição. 2004, vol. I, pág. 324 e 325), concretamente quando afirma que:
“Em termos estruturais, o que verdadeiramente caracteriza os embargos de terceiro (…) é a circunstância de a pretensão do embargante se enxertar num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de um acto de agressão judicialmente ordenado no interesse de alguma das partes e que terá atingido ilegitimamente o direito invocado pelo terceiro embargante”. (Itálico a negrito nosso).
Nos termos expostos, entendendo o acto de apreensão enquanto “acto de agressão” do direito de um terceiro, julgamos abranger o caso que temos em mãos, justificando-se, de todo o modo, salientar que aquando do despacho liminar proferido em 19/06/2022, na fase introdutória deste incidente, (que transitou pacificamente em julgado), nenhuma reserva foi levantada quanto ao enquadramento do acto judicialmente ordenado na previsão da primeira parte do n.º 1 do artigo 342.º do CPC, não tendo igualmente essa questão concreta, conforme já salientado supra, sido levantada no recurso que ora apreciamos
Prossigamos, assim, na análise das questões objecto do recurso.
a. A invocada desconsideração da personalidade jurídica da Embargante.
Conforme se percebe facilmente pela leitura dos pontos 2.º a 4.º das conclusões recursivas os Apelantes entendem que deve ser desconsiderada a personalidade jurídica da Embargante e indeferidos os presentes embargos de terceiro por em consequência de tal desconsideração a mesma deixar de deter a qualidade de terceiro no mencionado incidente.
Recordando que não existe no nosso ordenamento jurídico positivo uma norma que previna de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica, tem-se entendido de forma consensual que tal figura encontra a sua razão de ser em princípios gerais positivamente consagrados, tais como os da boa-fé e do abuso de direito.
Na verdade, estribando-nos em vasta jurisprudência dos nossos tribunais superiores, inclusive do Supremo Tribunal de Justiça, de que, aliás, dá nota de forma assinalável a sentença recorrida, podemos sufragar que a desconsideração da personalidade jurídica, enquanto instituto que opera subsidiariamente, pressupõe que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, traduzindo-se assim numa utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética negocial, envolvendo sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, impondo-se verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito.
Naturalmente que a desconsideração da personalidade jurídica tem de revelar-se através de factos concretos provados nos autos, sendo que, a nosso ver, tal não sucede no caso em apreço.
Impõe-se chamar aqui à colação os factos vertidos, designadamente sob os pontos 9.º a 20.º, 26.º e 29.º do segmento dos “Factos Provados” contido na sentença recorrida, de que resulta desde logo que a Embargante é uma pessoa colectiva dotada de personalidade jurídica distinta de qualquer um dos intervenientes na causa principal e na acção executiva gerada na sequência do decidido/determinado na mesma, não tendo sido Parte em qualquer delas, bem como que os Executados/Embargados CC e DD não são, nem foram, sócios da mesma, não laboram, nem laboraram, no estabelecimento comercial da Embargante, que tem ao seu serviço um quadro próprio de funcionários distinto e mais amplo do que aquele que exercia funções no estabelecimento comercial da “Padaria das ... Unipessoal, Lda”, que não houve qualquer trespasse deste último estabelecimento comercial, antes tendo sido celebrado entre os Executados/Embargados e a Embargante em 30/11/2020 um contrato de arrendamento, que o estabelecimento comercial desta última apenas iniciou laboração em 30/05/2021, tendo o anterior estabelecimento comercial de panificação da “Padaria das ..., Unipessoal, Lda” encerrado no dia 04/06/2020, não tendo sido exercida qualquer actividade comercial no espaço onde aquele funcionou entre 04/06/2020 e o dia 30/05/2021.
Acresce salientar, conforme se referiu expressamente na sentença recorrida que “não basta a prova de que os sócios da Embargante são filhos dos executados, que o estabelecimento da Embargante foi instaurado no prédio dos executados e que estes presentemente não exigem o pagamento da renda (o que não se mostra de todo estranho atendendo às relações de familiaridade entre os senhorios e os sócios da inquilina), tanto mais quando nenhuma relação se estabelece entre os executados e a Embargante ao nível da gerência do estabelecimento, proveitos do mesmo e propriedade dos elementos que integram esse estabelecimento. Ademais, nem os executados são sócios da Embargante, nem se evidencia que os executados realizem a sua actividade através dos seus filhos.”
Na conformidade exposta não existindo fundamento factual suficiente para desconsiderar a personalidade jurídica da Embargante impõe-se reconhecer a sua qualidade de terceiro para efeitos da instauração do presente incidente, improcedendo, assim, a questão suscitada nas conclusões recursivas de que temos vindo a ocuparmo-nos.
b. Autoridade de caso julgado da sentença exequenda sobre a Embargante:
Resta reapreciar a última questão levantada nas conclusões recursivas por parte dos Apelantes e que se traduz na alegada força de caso julgado da sentença exequenda em relação à ora Embargante.
Defendem os Apelantes que no caso em apreço se mostra aplicável o disposto nos artigos 55.º e 263.º, nº 1 e 3, do CPC.
Vejamos o que nos revela a redacção desses artigos:
Estatui-se no artigo 55.º, o seguinte:
“A execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado.”
Importa desde já clarificar que a execução para prestação de facto de que estes autos são dependência, por apenso, foi instaurada apenas contra “CC, DD e EE – Indústria Panificação Unipessoal, Lda”, não tendo a ora Embargante intervindo, ou ter sido chamada a intervir, nela.
Já no artigo 263.º do CPC, prevê-se que:
“ 1. No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.
[…]
3.A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação.”
Relembremos o que se escreveu na sentença recorrida a propósito desta questão:
[…]
Ora, antes de mais, importa ter presente que a execução de que estes autos constituem um apenso, funda-se em sentença judicial onde, entre outros, foi concretamente determinado o “encerramento do estabelecimento de panificação explorado pelos RR no prédio urbano sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 13384/20010725 e inscrito na matriz sob o artigo 8209”.
Daqui claramente resulta que não foi determinado o encerramento de qualquer estabelecimento de panificação ou outro instalado no prédio, nem a proibição do exercício de actividades industriais ou comerciais no prédio, mas sim, apenas o encerramento do estabelecimento de panificação explorado pelos Réus no referido prédio.
Aliás, o pedido executivo formulado pelos executados é exactamente o do encerramento do estabelecimento dos executados, selando fornos e chaminés, e tomando todas as medidas que se mostrarem necessárias ao efectivo encerramento da laboração, alegando-se na exposição dos factos no requerimento executivo que os executados não procederam ao encerramento do estabelecimento, que continua em laboração e a fabricar e vender pão, continuando a emitir os fumos e substâncias que ofendem e prejudicam a integridade física dos exequentes, nas exactas circunstâncias descritas na petição inicial (da acção declarativa).
[…]
Por isso, será de considerar que o estabelecimento dos executados a que respeita a sentença executada foi efectivamente encerrado, o que terá naturais reflexos no destino da execução.
Note-se que a antecedente conclusão em nada colide com o decidido no despacho proferido em 22/4/2022 nos autos de execução. Com efeito, do que se tratava naquele despacho era de fazer cumprir a sentença executada, isto é, encerrar o estabelecimento dos executados, para o que seria irrelevante que esses executados tivessem efectuado algumas alterações no seu estabelecimento, portanto, sendo irrelevante a discussão sobre os termos em que então se encontrava a laborar o estabelecimento (como decidido no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no apenso C) e havendo que cumprir a sentença.
No entanto, perante a factualidade provada e a apreciação que dela foi feita, já não se trata de fazer cumprir a sentença executada, mas sim de se reconhecer que a sentença foi cumprida com o encerramento do estabelecimento dos executados e que o estabelecimento actualmente existente no local não pertence a esses executados.
[…]
No que respeita à eficácia do caso julgado, dever-se-á ter presente que não se provou a transmissão do estabelecimento dos executados para a Embargante (que também não foi parte na acção declarativa), pelo que não tem aplicação a previsão do art.º 55º do Código de Processo Civil
Nesta medida, a eficácia do caso julgado não se estende ao estabelecimento da Embargante.”
Afigura-se-nos acertado o julgamento feito na sentença recorrida também quanto a esta questão.
Com efeito, pese embora os Apelantes tenham sustentado essa tese ao longo de toda a tramitação deste incidente, da factualidade considerada como provada na sentença recorrida e que se acha consolidada por este acórdão não resulta que o estabelecimento comercial de panificação anteriormente pertença de “Padaria das ..., Unipessoal, Lda” tenha sido objecto de transmissão, designadamente por trespasse, à ora Embargante, ou aos seus sócios, tendo antes resultado provado, por um lado, que aquele estabelecimento comercial foi encerrado em 04/06/2020 pelos Executados/Embargados e por outro lado que no imóvel onde o mesmo se encontrava instalado não funcionou qualquer outro estabelecimento comercial entre 04/06/2020 e 30/05/2021, bem como que a Embargante foi constituída em 09/10/2020, que celebrou com os Executados/Embargados um contrato de arrendamento comercial para aí prosseguir a actividade comercial do seu estabelecimento comercial e ainda que desde 25/05/2021 consta “Padaria o Pão de ..., Lda”, como titular registado no Título de Exploração Industrial n.º 3/2011 atinente à actividade desenvolvida no prédio urbano onde se encontra instalado o estabelecimento de produção e venda de pão e produtos afins gerido pela Embargante (cfr. factos vertidos sob os pontos 9.º, 10.º, 15.º, 16.º, 19.º e 20.º do segmento respeitante aos “Factos Provados”).
Na conformidade exposta não se mostram aplicáveis ao caso vertente os preceitos legais referidos pelos Apelantes no respectivo recurso por, desde logo, não se encontrar demonstrada a transmissão do estabelecimento comercial objecto da sentença exequenda para a Sociedade Embargante e consequentemente a aquisição do mesmo por esta última.
Improcede, assim, a última questão objecto do recurso interposto pelos Apelantes sendo de negar provimento ao mesmo e confirmar a sentença recorrida.
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V - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso de apelação independente interposto pelos Apelantes AA e BB e em consequência decidir o seguinte:
A) Confirmar a sentença recorrida;
B) Fixar custas a cargo dos Apelantes, nos termos do disposto no artigo 527º, nº 1 e 2, do CPC.
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Notifique e registe.
ÉVORA, 16 de Janeiro de 2025
(José António Moita, relator)
(Susana Ferrão da Costa Cabral - 1.ª Adjunta)
(Filipe César Osório - 2.º Adjunto)