- em acção de anulação de testamento por incapacidade da testadora deve admitir-se o depoimento de médico, sobre a situação da testadora, com base em consentimento de descendente da testadora ou em consentimento presumido da testadora.
- é admissível a impugnação da decisão sobre a matéria de facto relativa a factos atinentes ao estado mental da testadora quando na alegação do recurso este estado mental é indicado como objecto da impugnação de facto e nas conclusões se identificam directamente os factos que se reportam àquele estado mental.
- o ónus da prova da situação de incapacidade da testadora incumbe ao A., não sendo necessário, na falta de demonstração daquela incapacidade, discutir factualmente a verificação da capacidade da testadora.
- o art. 278º n.º3 do CPC permite dispensar a avaliação da ilegitimidade processual do A. quando a decisão de mérito seja integralmente favorável ao R..
I. A presente acção foi intentada por AA contra BB, sustentando, no essencial, o seguinte:
- o R. é irmão do A., tendo mais duas irmãs.
- os seus pais faleceram.
- com a citação do A. para inventário por óbito da sua mãe ficou a saber que esta, por testamento de 26.10.2017, instituiu herdeiro da quota disponível dos seus bens o R..
- na data da realização do testamento a testadora estava numa situação de incapacidade natural de entender e querer o sentido da declaração testamentária, porquanto já em Julho de 2012 tinha diagnóstico de alteração das funções cognitivas de acordo com síndrome demencial.
Terminou formulando o seguinte pedido:
Ser decretada a anulação do testamento efectuado no dia 26 de Outubro de 2016 no Cartório Notarial na ... a cargo da Notária Drª CC, exarado a fls oito e oito verso do Livro de Testamento número sete.
O R. contestou, tendo, em resumo, alegado que:
- o A. tinha conhecimento da existência do testamento desde 08.05.2019, pelo que estaria caducado o seu direito de pedir a anulação do testamento.
- foi instaurado processo de inventário, instruído com o testamento, processo este no qual aquele testamento nunca foi impugnado, tendo terminado com sentença homologatória da partilha, transitada em julgado em 10.01.2023.
- o testamento resultou da vontade esclarecida da testadora.
O A. respondeu à excepção da caducidade, negando ter tido conhecimento do testamento na data alegada pelo R..
Dispensada a audiência prévia, efectuou-se o saneamento da causa, a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
Foi realizada a audiência de julgamento, no decurso da qual, e na sequência de depoimento, foi solicitada a notificação da testemunha DD para proceder à junção de prévio testamento a fim de possibilitar a sua leitura, o que foi deferido. Como a testemunha não apresentou o testamento, foi este apresentado pelo R., tendo-se o A. pronunciado sobre o documento.
Foi depois proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a presente ação procedente por provada e, consequentemente, decido anular o testamento efetuado no dia 26 de outubro de 2017 no Cartório Notarial na ... a cargo da Notária Dra. CC, exarado a fls. oito e oito verso do Livro de Testamento número sete.
Mais decido julgar improcedente as exceções invocadas na contestação.».
Desta decisão interpôs o R. recurso, formulando as seguintes conclusões:
a) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr.. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
b) No seguimento desta orientação, o Recorrente coloca as seguintes questões que importa apreciar:
c) A caducidade do direito de anular o testamento que deve ainda ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal- art. 2308º, nº 2; cfr. art. 333º ambos do C.C.
d) A violação do segredo médico, ao admitir-se e valorar o depoimento dos médicos da testadora sem a devida autorização da Ordem dos Médicos.
e) A impossibilidade de valoração dos atestados médicos por não cumprimento do disposto no art. 98º do Reg. da Ordem dos Médicos.
f) Determinar se o tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, e, consequentemente, se, reponderado, esse julgamento, deve:
g) Considerar-se não provados os factos que a sentença de primeira Instância considerou como provados nos pontos 9, 10, 11, 12, da sentença.
h) Considerar-se provados os factos que a sentença de primeira Instância considerou como não provados nos pontos 1, 2, 3, 4. 5 e 6 da sentença.
i) Saber se, sendo modificada a matéria de facto no sentido propugnado pela(s) Recorrente(s), a presente ação tem de improceder.
j) Nos termos do disposto no artigo 342º nº 1 do Código Civil, a prova dos factos integradores da incapacidade acidental no momento da declaração negocial (testamento), incumbe ao interessado na invalidade do testamento.
k) Dos depoimentos da testemunhas do Autor, não foi feita prova de qualquer facto integrador da incapacidade acidental da Testadora no momento da outorga da escritura Notarial do Testamento.
l) Aliás, a testemunha do Autor DD, filha da Testadora declarou ser mentira, que mãe estivesse dependente de terceiros, pois fazia a sua vida pessoal de forma autónoma, ia a consultas médicas e que até à data do seu óbito sempre se manteve lucida, afirmando:
“Sim, mas ela tomava a medicação. Até era uma medicação fraquinha. Eu depois cheguei a ir ao Hospital de ... com ela ser vista por especialistas. Cheguei a ir à ... também a um especialista. Pronto, tinha aquilo para a idade dela, vide Transcrição Página 51 - 00:12:32.
m) No que toca às testemunhas do autor, que privaram de perto com a Testadora, nos seus depoimentos, foram unânimes em confirmar que a testadora sempre esteve lucida, com discernimento normal, educada e conversadora, antes e depois do testamento e que sabia bem o que queria.
n) Como vem sendo referido o tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos documentos médicos juntos as autos no decorrer do julgamento.
o) Pese embora dos documentos médicos referidos não conste que a testadora à data dos mesmos estivesse limitações permanentes e irreversíveis da sua capacidade cognitiva, o Tribunal fundamentou a sua decisão nos referidos documentos médicos em violação do disposto no art. 98º do Reg. da Ordem dos Médicos.
p) Conforme se fez constar em sede de alegações, a Sra. Notaria que elaborou o testamento, porque não autorizada pela Ordem dos Notários de depor sobre factos sujeitos ao sigilo, não deixou de confirmar nos autos, os procedimentos que são utilizados e que utilizou em momento prévio á outorga do testamento, para apurar da validade do ato, das razões da outorga e da capacidade da respetiva outorgante, a testadora, para a outorga do mesmo.
q) Ora dispõe o artigo 173º nº 1 al.c) e nº 2 do Código do Notariado:
“Dispõe o artigo 173º que o notário deve recusar a prática do ato se tiver dúvidas sobre a integridade da faculdades mentais dos intervenientes.
r) Não de apurou que a notária tivesse alguma dúvida sobre as faculdades mentais da testadora, como resulta da declarações prestadas pela Notária em sede de julgamento e supra transcritas.
s) Ocorre que o Tribunal a quo na fundamentação da decisão ignorou completamente as declarações da Sra. Notaria e bem assim, das testemunhas do Autor e do Réu no que se refere à prova da capacidade da testadora para a outorgar o testamento.
t) A demência enquanto doença mental que afeta o pensamento, a memória, a atenção, não é estática, nem linear, variando ao longo do tempo e de paciente para paciente.
u) Assim, a mera informação clínica de que a testadora em 02-07-2012 sofria de síndrome demencial, ou seja, em data anterior à realização do testamento, não basta para que se considere verificada a incapacidade permanente ou acidental no momento da feitura do testamento, o que implicaria o recurso à presunção judicial (artigo 349º do C.C.), no sentido de que aquela doença se manteve sem interrupção no futuro e concretamente, no momento da declaração negocial.
v) Os meios probatórios, manifestamente, não só não sustentam a prova dos factos dados como provados vertidos nos pontos 8; 9, 10, 11, e 12 da matéria dada como provada, que dizem respeito aos documentos médicos juntos aos autos e bem assim, nas declaração do médicos e das testemunhas do Réu.
“Estabelece o artigo 2199º do C.C., que é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa ainda que transitória.
Em anotação a este preceito referem Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág. 323esta regra específica do testamento “refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso, próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou a falta de livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens), por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.
A disposição legal refere-se expressamente ao caráter transitório que pode ser a falta de discernimento ou o livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vicio comtemplado nesta norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.
Estão em causa, episódios que afetam a compreensão e a vontade do testador, como situações de embriaguez, situações de consumo de estupefacientes, surtos psicóticos provocados por anomalia psíquicas estado de delírio ou demência permanentes que não tenham gerado ainda uma decisão de interdição do testador. Assim sendo, esta norma pode abranger situações acidentais e transitórias, como surtos psicóticos momentâneos que diminuam momentaneamente o discernimento e o livre exercício da vontade de dispor. Pode abarcar ainda situações permanentes como por exemplo, uma doença que no plano clínico é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivencia quotidiana e corrente, é necessário que a incapacidade se verifique, no momento da outorga do testamento. Ac.RL de 20-12-2018, proc. 4331/160T8LSB.L1-7, in www.dgsi.pt”
x) Por tudo o que vem exposto, na sentença em recurso, a prova dos factos integradores da incapacidade permanente ou acidental da testadora da declaração negocial, incumbia ao interessado na invalidade do testamento, artigo 342º nº 1 do C.C. o que em suma, não fez.
z) Ao contrário, a parte que pugna pela validade do testamento, fez prova que o mesmo foi lavrado pela testadora com perfeito discernimento e lucidez e no livre exercício da vontade de dispor.
O A. respondeu, tendo considerado: que era confuso o recurso interposto, sem correcta delimitação do objecto do recurso; que não existe ilegitimidade pois o A. apenas teve conhecimento do testamento de 10.11.2014 quando foi junto aos autos no decurso da audiência de julgamento; que inexiste violação do estatuto da Ordem dos Médicos; que não merece acolhimento a impugnação factual baseada em excertos de depoimentos insuficientes para o efeito (notando que o recorrente não deu credibilidade ao depoimento da testemunha DD por contradição ao negar a existência do testamento outorgado a seu favor); que, quanto à caducidade e ao caso julgado (qualificação esta derivada da invocação do processo de inventário pelo R.), remete para os termos da sentença impugnada; que, quanto às conclusões, são muito extensas, sem identificação clara das questões, incluem fundamentos não contidos nas alegações, não cumprem as exigências legais quanto à indicação das normas violadas e seu sentido relevante, que não se entende se pretende uma reapreciação da prova e quais os factos concretos que pretende impugnar; que, de qualquer modo, deve manter-se a decisão impugnada.
O R. foi convidado a aperfeiçoar as suas conclusões, no sentido de cumprir as exigências do art. 639º n.º2 al. a) e b) do CPC, tendo apresentado o seguinte aperfeiçoamento:
a) O Autor nos presentes autos AA, não foi comtemplado em qualquer um dos testamentos outorgados pela testadora e referidos nos artigos 7º e 8º das alegações.
Ora, o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação.
Assim, o Autor na ação de anulação do testamento carece de legitimidade ativa, por lhe faltar a utilidade derivada da procedência da ação.
Ao ser permitido ao Autor em prosseguir com a ação de anulação do testamento até final, o Tribunal fez violação do disposto no artigo 30º nº 2 do Código de Processo Civil.
b) Ao não conhecer caducidade do direito de anular o testamento, o Tribunal fez violação
do disposto nos artigos 303º e nº 2 do artigo 333º ambos do Código Civil.
c) O Estatuto da Ordem dos Médicos no artigo 139º nº 4 refere que “O segredo profissional mantém-se após a morte do doente.”
d) Um dos pilares de sustentação da profissão Médica, é assegurado pela Constituição da República Portuguesa, por via da tutela do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, (artigo 26º nº 1 e nº 2), da CRP, a audição do médicos da testadora em sede de audiência, fez violação desta regra constitucional.
e) O nº 1 do artigo 2º Regulamento da Ordem dos Médicos, refere:
“O pedido de autorização para a revelação de factos que o médico tenha tido conhecimento e sujeitos ao segredo profissional, nos termos do disposto nos n.os 1; 2; 3 e 4 do artigo 139º do Estatuto da Ordem dos Médicos, é efetuado mediante requerimento por ele subscrito e dirigido ao Bastonário da Ordem dos Médicos.”
f) Os Médicos da testadora á data já falecida, foram ouvidos em sede de julgamento sabre factos referentes às consultas que fizeram à testadora e o esclarecimento sobre os exames técnicos referentes à mesma, sem terem requerido ao Bastonário da Ordem dos Médicos a devida autorização para a revelação que fizeram de que tinham conhecimento e sujeitos a segredo profissional.
g) Ao admitir e valorar o depoimento dos Médicos da testadora sem a devida autorização do Bastonário da Ordem dos Médicos, o Tribunal violou o disposto no nº 1 do artigo 2º do Regulamento da Ordem dos Médicos nº 228/2019 publicado no Diário da República nº 53/19. Série II de 15-03-2019, páginas 8060-8062.
Violando igualmente, o artigo 139º nº 4 do Estatuto da Ordem dos Médicos aprovado pela Lei, n.º 117/2015, publicado no Diário da República n.169/2015, Série I de 31-08-2015.
h) Pese embora nos documentos médicos referidos não conste que a testadora à data dos mesmos manifestasse limitações permanentes e irreversíveis da sua capacidade cognitiva, o Tribunal fundamentou a sua decisão nos referidos documentos médicos, também aqui, o Tribunal recorrido violou no artigo 139º no 4 do Estatutos da Ordem dos Médicos aprovado pela Lei, n.º 117/2015, publicado no Diário da República n.169/2015, Série I de 31-08-2015.
i) A Notária que celebrou o testamento teve uma reunião prévia e privada com a testadora, de modo a indagar da existência de alguma dúvida sobre a integridade das faculdades mentais da mesma, tendo concluído que a testadora não manifestou qualquer dificuldade em entender o sentido e o conteúdo do ato de testar.
j) Não obstante isso, o Tribunal recorrido na fundamentação da decisão sob recurso, ignorou completamente as declarações sobre os atos ponderados e sérios levados a efeito pela Senhora Notária, em ordem a apurar das condições da testadora para a prática da outorga do testamento.
k) Os meios probatórios que sustentam a matéria dada como provada nos pontos 8; 9; 10; 11 e 12, da decisão em recurso, dizem respeito aos documentos médicos juntos aos autos, que, como supra ficou referido, foram usados pelos Senhores Médicos sem a prévia autorização do seu Bastonário conforme nº 1 do artigo 3º do Regulamento da Ordem dos Médicos nº 228/2019 publicado no Diário da República nº 53/19. Série II de 15-03-2019, páginas 8060-8062.
l) No entender do recorrente as normas que constituem fundamento jurídico da decisão, não assentam numa base sólida, desde logo, no que se refere ao prazo para requerer a anulação do testamento.
m) O tribunal fez referência à interrupção da prescrição do prazo para anulação do testamento, cujo período não foi determinado, não podendo o tribunal suprir, de ofício, como de resto aliás foi feito, deveria o Tribunal decidir a prescrição nos ternos do disposto na parte final do artigo 303º do Código Civil.
n) Quanto á capacidade da testadora para a outorga do testamento, em última instância caberá ao Notário, sob sua responsabilidade, determinar se o testador tem ou não capacidade para outorgar o seu testamento.
o) No seu depoimento a Senhora Notária foi bem clara, afirmando que concretizada a entrevista prévia à testadora, concluiu que a mesma não manifestou qualquer dificuldade em entender o sentido e o conteúdo a dar ao testamento, porém, o Tribunal ao decidir, ignorou o depoimento da Senhora Notária.
p) Com o devido respeito, verifica-se aqui a errada qualificação jurídica e/ou qualificação do direito por parte do Tribunal recorrido, o que conduz a um erro de julgamento no conspecto do mérito da causa.
Não foi apresentada pronúncia sobre o aperfeiçoamento apresentado.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
O recorrente, no aperfeiçoamento apresentado, reformulou as conclusões iniciais. Como o aperfeiçoamento visava apenas a indicção de norma jurídicas, o recurso continua a valer com o âmbito das alegações originais (a reformulação é ineficaz, a não ser na parte em que dita regras legais). O formalismo adoptado não será o mais correcto mas não constitui fundamento de rejeição.
Pese embora se possa admitir que não prime por uma exposição escorreita, aquelas conclusões ainda permitem identificar com suficiente clareza as questões colocadas (sem que se possa falar também de verdadeira complexidade das conclusões), questões que são, aliás, claramente elencadas nas al. c) a i) das conclusões, e que seriam as seguintes:
- ilegitimidade activa do A..
- vício da prova por violação do sigilo médico e de regras atinentes aos atestados médicos.
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e seus efeitos sobre o mérito da acção.
- caducidade do direito de anulação do testamento.
- efeitos derivados da anterior pendência de processo de inventário.
III. Estão dados como provados os seguintes factos:
1. O Autor é o mais novo de quatro irmãos, sendo o Réu o irmão mais velho;
2. São filhos de EE, falecido em ... de ... de 1994, e FF, falecida em ... de ... de 2019;
3. FF, deixou como seus únicos e universais herdeiros os seus filhos, sendo a herança deixada por si constituída por um bem imóvel, sito em ..., a sua residência antes de ingressar no Lar de Idosos;
4. Entre a data do óbito e meados de março de 2020, tentou-se proceder à partilha do referido bem extrajudicialmente, não tendo sido obtido acordo entre os herdeiros;
5. O Réu, como filho mais velho e cabeça-de-casal da herança indivisa, deu entrada de processo de inventário junto do Juízo de Competência Genérica de ..., Comarca de ..., em 30 de setembro de 2020, tendo sido distribuído com o nº 980/20.6...;
6. O Autor foi citado, no dia 25 de novembro de 2020;
7. No dia 26 de outubro de 2017, junto do Cartório Notarial na ... a cargo da Notária CC, a sua mãe, por testamento instituiu herdeiro da quota disponível dos seus bens, o seu filho BB, Réu;
8. Nunca o Réu informou o Autor e uma das suas irmãs, DD, da existência de tal documento, nem mesmo quando pretendeu proceder à partilha do bem imóvel extrajudicialmente;
9. Na data da realização do testamento, a mãe do Autor e do Réu encontrava-se numa situação de incapacidade natural de entender e querer o sentido da declaração testamentária, porquanto, pelo menos já em julho de 2012, tinha diagnóstico de alteração das funções cognitivas de acordo com síndrome demencial;
10. Situação corroborada nas notas do exame realizado em 28 de novembro de 2018 e na nota de alta administrativa de internamento de 7 de janeiro de 2019;
11. Situação clínica que colocou a testadora dependente de terceiros;
12. Motivo pelo qual a testadora passou a estar ao cuidado de Lares de Terceira Idade, apresentando um quadro depressivo;
13. Sempre existiu conflito entre os seus filhos sobre a instituição na qual deveria ingressar;
14. O Autor tinha conhecimento do estado de saúde da sua mãe, no entanto, apenas agora teve acesso à documentação clínica, porquanto a mesma encontrava-se na posse da sua irmã, DD;
15. Nunca a mãe do Autor fez qualquer distinção entre os seus filhos, sendo impensável que a mesma resolvesse beneficiar patrimonialmente qualquer um deles;
16. No dia 08-05-2019, pelo Cabeça de Casal, no Serviço de Finanças de ..., foi declarado o óbito de FF, identificados os herdeiros que lhe sucederam, apresentada a relação de bens deixados pela falecida com as respetivas verbas do ativo e do passivo e apresentado o testamento por ela outorgado;
17. Os herdeiros de FF, nos quais se incluem os aqui Autor e Réu, não chegaram a acordo quanto à partilha dos bens da herança da Testadora;
18. Pelo que, em 30-09-2020, foi instaurado um Processo de Inventário para partilha dos bens da herança aberta por óbito de FF/Testadora que correram termos pela Comarca de ... – Juízo de Competência Genérica de ... – Juiz 2, registado sob o nº 982/20.6...;
19. O testamento em causa nos presentes autos, identificado sob o nº “8”, acompanhou a petição inicial do Processo de Inventário suprarreferido;
20. Em 13-11-2020, foi apresentada a todos os interessados a relação de bens;
21. Mais tarde, em 28-06-2022, foi levada a efeito a conferência de interessados, com a presença e ou representação de todos os interessados, que chegaram a acordo quanto à partilha;
22. Seguidamente, em 18-10-2022, foram os interessados notificadas pelo Tribunal do mapa da partilha dos bens no referido inventário;
23. Notificados do mapa da partilha, o mesmo não suscitou qualquer reclamação por parte dos interessados;
24. A presente ação foi instaurada a 21.11.2022;
25. Em 24-11-2022, foi proferida sentença homologatória da respetiva partilha, a qual transitou em julgado em 10-01-2023, sem recurso;
26. Dois dos filhos da testadora sendo um deles o aqui Autor, há muitos anos que se encontravam a residir na Suíça e os que residiam em Portugal, o Réu no ... e DD na ..., por razões de ordem profissional, não tinham condições para terem a mãe na sua companhia;
27. Pelo menos, com a receção, aquando da citação, do requerimento de inventário e dos documentos que o instruíam ficou o Autor a saber da existência do testamento.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
1. O Autor nos presentes autos, em 08-05-2019, tomou conhecimento do testamento e da sua apresentação no Serviço de Finanças de ..., em ordem a ficar a constar para efeitos da partilha os bens deixados pela falecida FF;
2. Na data da outorga do testamento ...-...-2017 e posteriormente, até à data do seu falecimento ocorrido em ...-...-2019, a testadora manteve sempre o seu discernimento para entender, querer e decidir, em todas as questões de qualquer natureza, mostrando-se totalmente capaz de governar a sua pessoa e bens;
3. À data da outorga do referido testamento, já se verificava alguma turbulência entre os filhos da testadora no que se refere ao acompanhamento da mesma, quanto à necessidade de acompanhamento manifestada do ponto de vista da sua locomoção;
4. Foi neste contexto, que a testadora confiou ao seu filho mais velho a tarefa para contactar um lar para pessoas idosas tendo em vista o seu internamento, o que este fez, sempre com o parecer e o consentimento da sua mãe;
5. O Réu telefonava à sua mãe diariamente e com ela conversava durante longos períodos de tempo, para se inteirar dos mais íntimos pormenores da vida e estada da sua mãe no lar de idosos;
6. E quanto a visitas pessoais, era o Réu o único filho que visitava frequentemente a sua mãe ora testadora, já que os restantes filhos raramente o faziam.
IV.1. A primeira questão probatória colocada diz respeito à valoração dos depoimentos prestados por dois médicos.
As testemunhas em causa, enquanto médicos, estavam sujeitos ao segredo médico profissional derivado da sua qualidade, estando também a matéria sobre que depuseram inserida no âmbito de protecção desse segredo, como deriva com clareza do art. 139º n.º2 do Estatuto da ordem dos médicos (aprovada pelo DL 282/77, de 05.07, doravante EOM), dada a larga abrangência da previsão.
Este segredo, constituindo também suporte da relação de confiança a estabelecer com o paciente e instrumento de dignificação da actividade médica (1), é no entanto primacialmente justificado pela protecção da reserva da vida privada, e mesmo íntima (quanto à saúde), da pessoa (2), reserva esta que constitui objecto de um direito fundamental da pessoa (art. 26º n.º1 da CRP), e é também emanação, a nível infraconstitucional, do direito à personalidade e aos vários aspectos em que este se desdobra (art. 70º n.º1 e 80º n.º1 do CC). Segredo, e inerente protecção, que, em linha com o regime do art. 71º n.º1 do CC, se mantém após a morte do doente (art. 139º n.º4 do EOM).
Por isso que, não podendo o médico dispor por si do segredo, deve, em caso de intimação como testemunha (na qualidade de médico), comparecer no tribunal, mas não poderá prestar declarações ou produzir depoimento sobre matéria de segredo médico, a não ser com o consentimento do doente, do seu representante legal se houver incapacidade para consentir, ou do Presidente da Ordem (art. 91º n.º1 do CDM e art. 417º n.º3 al. c) do CPC).
Deste modo, a violação do segredo profissional corresponde também a uma violação de um direito fundamental da pessoa (citados art. 26º n.º1 da CRP e art. 80º n.º1 do CC, em conjugação com o art. 32º n.º8 da CRP (3)), a qual pode redundar, a estar em causa actividade probatória, na ilicitude da própria prova (diferente do vício meramente processual), acarretando a inadmissibilidade da utilização da prova assim produzida. Proibição de valoração esta que poderia impedir o seu aproveitamento probatório (embora esta seja esta questão cujos exactos contornos e efeitos sejam discutidos).
Não sendo absoluto, o segredo pode ser afastado nas hipóteses do art. 139º n.º 6 do EOM, onde avulta o consentimento do doente (al. a)), sintoma da subordinação deste segredo profissional aos interesses do doente (e, assim, da localização do fundamento essencial deste segredo na referida protecção da vida privada do doente) - todas as normas do EOM referidas vêm repetidas no Regulamento de deontologia médica, aprovado pelo Regulamento 707/2016, de 21.07 (doravante RDM).
No caso, atentos os seus contornos e inexistindo notícia de autorização do Bastonário da ordem dos médicos, fica afastada a possibilidade de aplicação das hipóteses derrogadoras do segredo profissional constantes das al. b) a d) do n.º6 do referido art. 139º do EOM (ou art. 32º do RDM, que, com propriedade, se refere à exclusão do segredo médico). O afastamento daquele segredo só poderia decorrer, assim, da existência de conflito de valores ou de consentimento do doente. Quanto àquele conflito, supondo uma recusa legítima de depor e um mecanismo processual específico (art. 417º n.º4 do CPC e art. 135ºn.º3 do CPP), inexistentes, também não releva no caso.
Quanto ao consentimento, e tendo falecido o paciente, coloca-se a questão de saber a quem cabe prestar tal consentimento (4). A lei não faculta uma resposta directa mas decorre do art. 77º do CC, em conjugação com o art. 76º n.º2 do CC para que aquele remete, que a legitimidade para consentir a divulgação de escritos reportados à intimidade da vida privada cabe às pessoas designadas no art. 71º n.º2 do CC, na ordem neste artigo indicada. Assim, dada a inexistência de cônjuge sobrevivo no caso, aquela legitimidade caberia aos descendentes do falecido. Esta solução deve valer, ao menos por identidade de razão, para a divulgação de dados médicos (que também se reportam à reserva da vida privada, não havendo razão para tratamento diferenciado). E uma vez que a lei não efectua distinções dentro de cada grupo de interessados, nem coloca exigências adicionais, partindo de uma igualação básica dos descendentes entre si (o art. 76º n.º2 do CC hierarquiza os grupos de interessados - o que o art. 71º n.º2 do CC não faz (5) - mas não faz distinções dentro de cada grupo), deve valer uma solução de solidariedade, em que cada descendente pode agir isoladamente (6). À luz desta solução, teria que aceitar-se que, embora inexista consentimento expresso do A., este consentimento deriva tacitamente da sua conduta processual, de forma segura, pelo que tal consentimento, não violando qualquer princípio da ordem púbica, tornaria lícita a limitação (ou exclusão) do dever de segredo, no quadro do art. 81º n.º1 do CC. O que poderia existir, dada a posição assumida pelo R. (o qual é igualmente descendente do doente protegido pelo segredo médico), era um conflito entre titulares do consentimento, portadores de posições opostas. Este conflito deveria resolver-se de acordo com a vontade real ou presumida do falecido (7). Ora, atendendo a que o que está em causa é, em último termo, avaliar e respeitar a real vontade da testadora (pois uma vontade viciada não é uma vontade real e aquela quereria exclui-la; simetricamente, teria interesse em manter a sua vontade se não viciada), seria de presumir que esta consentiria na divulgação dos elementos em causa (a fim de se salvaguardar a sua real vontade). Aferição esta ainda acentuada pelo facto de a posição do R. não se basear directamente na tutela de valores atinentes à sua mãe mas, notoriamente, na promoção de interesses pessoais, radicados na manutenção do testamento que o beneficia. O que torna lícito o depoimento daquelas testemunhas.
Por outra via, afirma-se também que em situações de conflito entre herdeiros, após a morte, em que «são necessários certos conhecimentos que apenas podem ser obtidos através do médico que tratou o falecido», deve intervir o consentimento presumido, o qual, dado o exposto interesse no apuramento da vontade real que o próprio testador teria, deveria legitimar a restrição do seu direito à reserva da vida privada, autorizando o depoimento, tendo em conta o disposto no art. 341º n.º1 e 3 do CC (8).
Naturalmente, esta solução abrange também os elementos médicos revelados através dos documentos juntos aos autos (9).
Inexiste assim ilicitude probatória.
2. Ainda no âmbito probatório, o R. impugna a decisão sobre a matéria de facto, impugnação esta subordinada ao regime do art. 640º n.º1 e 2 al. a) do CPC, ficando, por força desta norma, o R. obrigado a indicar:
i. os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
ii. os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
iii. a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
e
iv. a invocar provas gravadas, deve ainda indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Quanto ao assento formal destas obrigações, entende-se que o requisito imposto pela al. a) do n.º1 do art. 640º deve estar enunciado quer na motivação quer nas conclusões (nestas porque a indicação nessa sede se mostra essencial à definição do objecto do recurso), admitindo-se que os demais devem estar expressos nas alegações mas não têm que ter tradução, sucinta que seja, nas conclusões.
Assim:
- no que toca ao primeiro requisito, o recorrente, nas alegações, refere-se apenas ao estado da testadora, sem fazer uma indicação precisa dos pontos de facto impugnados (art. 29º). Não obstante, faz essa indicação nas conclusões, onde identifica os pontos de facto em discussão de forma precisa: pontos 9, 10, 11 e 12 dos factos provados e pontos 1, 2, 3, 4, 5 e 6 dos factos não provados (al. g) e h) das conclusões), repetindo depois a menção aos pontos 9, 10, 11 e 12 na al. v) das conclusões - alínea esta na qual adita ainda a menção ao ponto 8 dos factos provados. Assim, os termos do recurso permitem identificar com clareza os pontos de facto em discussão, sendo que a maior parte destes concretos pontos de facto dizem respeito ao estado da testadora a que se alude nas alegações. É certo que uma menção mais precisa poderia, como se referiu, constar também das alegações, e que a indicação nestas alegações não é inteiramente ortodoxa. Mas, apesar de não serem directamente enunciados aqueles pontos de facto controvertidos, a referência ao estado da testadora torna aqueles factos ainda suficientemente perceptíveis. Assim, no contexto global do recurso, essa indicação ainda cumpre a sua função legal, sem se poder falar em insuficiência impeditiva da compreensão dos termos do recurso: a deficiência não se traduz em incumprimento da exigência legal obstativo da compreensão do objecto do recurso (e do exercício do contraditório).
- quanto ao terceiro requisito, não sendo embora claras as alegações, as conclusões indicam com clareza o sentido da decisão pretendida: os pontos 9, 10, 11 e 12 devem ter-se por provados e os pontos 1, 2, 3, 4, 5 e 6 devem ter-se por não provados (referidas al. g) e h) das conclusões). Vale também aqui, mutatis mutandis, o que acabou de se expor.
Avaliação esta efectuada à luz da valoração destes requisitos segundo «um critério adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade» (10), considerando que os ónus previstos pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e da finalidade do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido, e por isso o critério de observância dos requisitos impostos há-de medir-se pelo cumprimento destas finalidades. Cumprimento que aqui se mostra garantido.
- quanto ao segundo requisito, deve entender-se este requisito numa dupla perspectiva.
De um lado, o recorrente deve indicar os concretos meios de prova relevantes, ou seja, deve indicar meios de prova individualizados e identificados, ou, em certas condições, directamente individualizáveis. Deste ponto de vista, o R. indicou nas alegações os meios de prova em que se baseia, remetendo de forma expressa para depoimentos testemunhais que indica.
De outro lado, estes meios de prova devem ser relacionados com cada ponto de facto impugnado, isto é, a prova relevante deve ser associada com cada facto impugnado (11) ou ao menos com grupos de factos homólogos (que constituam uma unidade de sentido, reportando-se à mesma realidade essencial), pois só assim se cumpre o desiderato legal: assentando o regime impugnatório na existência de prova que imponha decisão diversa (12), cabe ao recorrente revelar o erro probatório pela ligação da prova concreta ao facto concreto (sendo que, caso contrário, devolvia-se ao tribunal o ónus de isolar a prova relevante para cada facto, impondo-lhe um julgamento alargado, contra a intenção legal). Deste ponto de vista, o que se verifica é que os factos provados 9, 10, 11 e 12 e o facto não provado 2 constituem uma unidade factual, no sentido de que respeitam à situação ou estado da testadora, sendo em relação a estes factos que a prova vem indicada, como se verifica quer do teor do art. 29º das alegações, quer do teor dos depoimentos reproduzidos, quer das considerações tecidas sobre os depoimentos das testemunhas GG e HH (art. 32 e 33 das alegações), quer da alínea k) das conclusões. Pelo que, nesta parte, foi também cumprido este ónus.
Diversamente, já esse ónus não foi cumprido quanto ao facto provado 8 e aos factos não provados 1 e 3 a 6, pontos estes em relação aos quais se deve rejeitar a impugnação (sendo que esta rejeição é imediata, sem sustentar prévio convite ao aperfeiçoamento) - sendo que ainda se nota, de todo o modo, que os factos descritos em 3 a 6 são irrelevantes, não chegando sequer a ser factos instrumentais (pois nada dizem, mesmo indirectamente, sobre a capacidade de entendimento da testadora), o que também justificaria a exclusão da sua discussão nesta sede [embora a avaliação da prova realizada na impugnação validamente deduzida também revele a absoluta carência de prova do facto indicado em 2 dos factos não provados, que o R. pretendia que substituísse o facto provado descrito em 8].
- por fim, e quanto à indicação das passagens precisas, o R. também cumpriu esta exigência salvo quanto às aludidas testemunhas GG e HH, em relação às quais apenas referiu que nenhuma confirmou a incapacidade da testadora, sem, aparentemente, cumprir a exigência legal da concreta indicação das passagens dos depoimentos que seriam relevantes. Não parece, contudo, que tal fosse necessário, ou possível sequer. Com efeito, quando se procura revelar a completa ausência de apoio probatório do facto impugnado em certo depoimento, não existe ponto concreto do depoimento a indicar, pois é todo o depoimento que nesse sentido funciona. Pelo que a demonstração negativa de um facto por falta de prova exclui, por natureza, a indicação de momentos precisos ou excertos precisos do depoimento - admitindo-se que, nestes casos, poderá bastar a indicação do início e do fim do depoimento (13), tal menção foi, no caso, substituída, com vantagem, pela reprodução de todo o depoimento (14).
3. Mostra-se, assim, admissível a impugnação dos factos agora delimitados, impugnação na qual, no entanto, o tribunal não está, apesar do referido ónus decorrente do art. 640º n.º1 al. b) do CPC, limitado aos meios probatórios indicados pelo recorrente, tendo o poder-dever de envolver na discussão todos os elementos probatórios disponíveis e relevantes (v. art. 640º n.º2 al. b), 1ª parte, e 662º n.º1 do CPC).
4. Quanto ao mérito desta impugnação, os factos descritos em 9 a 12 dos factos provados e em 2 dos factos não provados são todos atinentes à situação da testadora. Ponto onde se sublinham duas circunstâncias:
- de acordo com o ónus de distribuição da prova, cabia ao A. demonstrar os factos constitutivos do direito de anulação, já não tendo o R. de demonstrar os factos contrários. Por isso que a discussão se baste com a verificação, ou não, do facto descrito em 9 dos factos provados, sendo irrelevante que o facto descrito em 2 dos factos não provados se prove ou não. Assim, por inutilidade, não será este autonomamente considerado.
- os factos descritos em 10 a 12 são, de um lado, meramente instrumentais do facto descrito em 9 (sendo, aliás e por isso, escusada a sua inclusão nos factos provados, tendo o seu lugar natural de discussão na motivação da decisão de facto (15)) e, de outro lado, são também dele tributários, por dele dependerem.
Donde se justificar centrar, aqui, a discussão no ponto 3 do elenco de factos provados.
5. Como deriva da sentença recorrida, não existia prova directa da situação de incapacidade da testadora no momento da realização do testamento (incapacidade de entendimento, atenta a alegação, e não incapacidade volitiva (16)). Esta matéria foi dada como provada com base em elementos indiciários, que, segundo aquela sentença, sustentariam tal asserção factual. Partindo da motivação exposta, a sentença atendeu:
i. à informação clínica de 02.07.2012, por ter diagnosticado à A. «alterações das funções cognitivas (Demência associada à doença de Parkinson/Doença Alzheimer)»;
ii. ao exame de ........2012, no qual a testadora «revelou alterações cerebrais consistente em atrofia cerebral, que foi confirmado pela médica neurologista subscritora, II, e que poderão estar relacionadas com perda da função cognitiva do paciente, como disse esta testemunha».
iii. à idade da testadora na data da outorga do testamento (76 anos).
iv. à existência de «documentos clínicos hospitalares que mencionam a demência sofrida pela testadora».
v. à informação clínica de 02.07.2017, comprovando que a partir de então a testadora passou a depender de terceiros.
vi. à circunstância de testemunhas (e o R.) revelarem que a testadora não queria beneficiar nenhum dos filhos.
vii. à existência de dois testamentos, reveladores de indecisão da testadora, sendo de estranhar também que pretendesse beneficiar filhos que estavam em Portugal e assim mais próximos da testadora.
6. A menção feita na sentença recorrida a contradições de testemunhas é, quanto aos elementos que suportam o facto principal em causa, irrelevante por apenas poder contender com o valor persuasivo dos depoimentos, não constituindo facto probatório do qual derive suporte para aquele facto principal em discussão.
7. Como se sabe, a demonstração de factos por presunção (natural: art. 349º do CC, assente numa realidade silogística: afirmar um facto desconhecido a partir do encadeamento lógico de dados conhecidos) radica em dois elementos: o indício, facto instrumental provado, e a presunção, uma inferência efectuada a partir do indício, permitindo suportar um facto distinto, com apoio na experiência (princípio da normalidade) ou em regras da ciência. Diz-se ainda que, em regra, aqueles indícios devem ser directamente comprovados (e não o resultado de anterior e autónoma inferência, embora a asserção seja actualmente contestada (17)) e surgir, em regra, como plurais, independentes e concordantes (18), numa análise global, significando isto que eles devem conduzir, de forma conjugada, a uma conclusão única (em termos probabilísticos, naturalmente, pois esta inferência assenta num juízo de normalidade, e assim de probabilidade (19)).
Avaliando os indícios individualizados pela sentença (e, na verdade, não se vislumbram outros), verifica-se que:
i. a informação clínica de 02.07.2012 refere, na verdade, os elementos valorados pela sentença recorrida, mormente alterações de funções cognitivas com síndroma demencial. Ela nada explicita quanto a que alterações estariam em causa ou em que medida se reflectiam na capacidade de entender ou querer da testadora, ou sequer se eram permanentes ou episódicas. Ouvido o médico subscritor daquela informação, a testemunha HH, este nenhum contributo adicional facultou [a testemunha não recordava a testadora nem o seu acompanhamento, que chegou a negar, sugerindo que apenas viu a doente uma vez (08.34 mins.) e que não a tornou a ver (09.04 mins.) (20), embora posteriormente também afirme que não sabe se foi a primeira vez que viu a testadora]. O alcance da informação é, assim, muito limitado e em grande medida inconsequente, não suportando afirmações de facto seguras sobre a competência mental da testadora. A mera afirmação do diagnóstico, sem a sua caracterização efectiva, sem uma perspectiva concreta da situação (mormente sobre os seus efeitos) e sem uma indicação do seu sentido evolutivo, pouco ou nada sustenta.
ii. quanto ao exame de 28.05.2012, a valoração feita na sentença recorrida parece ser incompleta, pois se do depoimento da testemunha JJ (médica que efectuou o exame em causa) ainda se pode retirar a avaliação realizada na sentença, com mais segurança também se retira desse depoimento que a situação verificada pelo exame podia ter diferentes repercussões funcionais, sendo possível, como repetidamente (embora de formas diferentes) afirmou a testemunha, que pessoas podiam ter aquele padrão de atrofia e estarem «perfeitamente bem» (05.05 mins.) ou não terem sintomas (07.03 mins.). E mesmo perante o relevo da idade, sempre deixou dito que só uma avaliação neuropsicológica (que não fez) podia avaliar se estaria em causa um declínio cognitivo baseado naquele padrão de atrofia.
De todo o modo, e ainda que se quisesse estabelecer uma relação entre esta atrofia e aquele diagnóstico (o indício referido em i.), a verdade é que o exame, por si, pode dar um apoio orgânico àquele diagnóstico, mas nada acrescenta sobre a situação concreta da testadora: daqui não se retira qualquer elemento directo ou seguro sobre a (in)capacidade funcional da testadora. Por isso que este exame nem constitui indício relevante, constituindo apenas sub-indício, que daria uma base orgânica para o diagnóstico constante da informação médica de 02.07.2012. Note-se também que a incapacidade não é efeito automático de uma anomalia ou doença.
Temos assim que estas informações não permitem afirmar directamente a existência de um quadro de incapacidade mental e que também não são capazes de indiciar com segurança a existência desse quadro.
iii. quanto à idade da testadora, funciona como índice de degeneração inerente ao envelhecimento (fruto da entropia física) mas constitui também um elemento muito ténue e ambíguo, pois é também compatível com uma situação de competência mental.
iv. quanto aos «documentos clínicos hospitalares que mencionam a demência sofrida pela testadora», reduzem-se a um relatório do serviço de imagiologia do Centro Hospitalar de ... no qual, nas «notas requisição», se refere sinteticamente «AP: demência». Ignora-se onde se baseou o relatório para sustentar aquela referência. Seguro é, porém, que não é o próprio relatório (ou o exame a que respeita) que sustenta a afirmação pois estava em causa uma ecografia abdominal, um «exame de corpo», e não um exame das capacidades da testadora. Adaptando o depoimento da referida testemunha GG, o exame visa, como aliás decorre do teor do relatório elaborado, observar certos órgãos da testadora, e não mais. Além disso, a menção seria sempre inconcludente: nada se diz sobre o que tal menção, de si tão enxuta, significa ou acarreta. Em rigor, a menção é gratuita (não fundada nem inerente à informação clinica prestada) e por isso irrelevante (21).
v. quanto à informação clínica de 02.07.2017 (relativa a internamento da testadora), dela consta efectivamente que a testadora estava dependente nas AVDs (actividades de vida diárias). Tal menção é sinal de debilidade mas não de incapacidade, e fica ainda por perceber se se trata de debilidade física ou mental ou ambas (qualquer uma delas pode explicar aquela dependência nas AVDs). Por si, padece também de uma ambiguidade insustentável. Aquela informação refere ainda um «síndrome demencial» mas também aqui são oponíveis objecções ao relevo probatório da menção. Assim, a menção seca e enxuta deixa, novamente, por esclarecer qual o alcance da afirmação, mormente sobre o seu significado e efeitos na capacidade da testadora. Depois, e sobretudo, aquela menção está incluída na história clínica da informação, significando que se não trata de situação diagnosticada ou sequer avaliada no momento em que a informação é elaborada (o que se compreende se se atender ao quadro clínico que conduziu ao internamento) mas de mera menção colhida (copiada) de outro local: trata-se de menção transplantada e não do resultado de aferição directa. Ou seja, também o contributo desta informação é residual ou mesmo inconsequente.
vi. a circunstância de testemunhas (e o R.) revelarem que a testadora não queria beneficiar nenhum dos filhos tem significado muito limitado. Isto porque, de um lado, se trata de afirmações genéricas, não circunstanciadas temporalmente, e que, de todo o modo, não significam que a testadora não tenha mudado de ideias. De outro lado, também existe prova pessoal de que a testadora se mostrava descontente (testemunha KK, quando se reporta a conversa mantida com a testadora sobre o testamento, ou testemunha LL, quanto às razões que a testadora lhe comunicou). Tornando manifestamente inseguro o alcance da afirmação indiciária.
vii. quanto à existência de dois testamentos, não revelam indecisão mas apenas mudança de vontade - estando separados por 3 anos e 1 mês, houve muito tempo para mudarem as condições e os ânimos, não se vendo onde encontrar sinal de indecisão. Quanto à afirmada estranheza por a testadora pretender beneficiar quem estava mais próximo, pretendia-se com isto transmitir a ideia de que, por mais próximos, seriam os beneficiários dos testamentos quem estava em melhores condições para influenciar ou manipular a testadora (aproveitar a sua incapacidade), mas a afirmação não tem qualquer suporte probatório. Constitui mera suspeita não alicerçada, que por si nada vale. Acresce que a esta afirmação pode contrapor-se que a testadora os quis beneficiar justamente por estarem mais próximos de si (serem de si mais próximos).
8. Tudo isto revela que, em último termo, o único indício relevante é o referido em i., sendo os demais mero suporte daquele, ou, sobretudo, essencialmente ambíguos ou mesmo irrelevantes. Sendo que mesmo aquele indício se revela, como exposto, também insuficiente e inconcludente, por não caracterizar a situação exacta da testadora, do ponto de vista da sua capacidade mental.
9. Acresce que existem elementos contrários a estes indícios, e à asserção factual que deles se retirou.
Assim desde logo com a prova testemunhal, essencialmente silenciada, quanto a este aspecto, na motivação da sentença, e que tendia a contrariar aquela asserção factual. Com efeito:
- a testemunha MM (que tinha contactos casuais com a testadora), afirmou que, quando com lidou com a testadora (referindo, dubitativamente e como referência, o ano 2015), esta não estava debilitada psicologicamente (a pergunta foi assim formulada), afirmando depois que, nesses contactos, a testadora não tinha qualquer problema mental (de que a testemunha se apercebesse), situando então os contactos por volta de 2015, 2016 (sempre por aproximação).
- a testemunha NN (22) (que lidou com a testadora durante 7 anos em casa de acolhimento onde esta se encontrava e na qual a testemunha trabalhava), afirmou que a testadora «estava boa da cabeça», o que explicitou e reiterou.
- a testemunha KK (23) (que conheceu a testadora por ser dona e gerente de casa onde aquela viveu) também afirmou que a testadora estava consciente e bem, reportando-se especificamente à intenção da testadora em fazer o testamento agora em causa e a conversa que com ela manteve por essa razão.
- a testemunha LL (que conhecia a testadora por efectuar trabalhos na casa onde aquela estava acolhida e que foi testemunha no testamento aqui discutido (24)), afirmou que falou com a testadora sobre o testamento e que esta estava no seu juízo perfeito.
- a testemunha OO (que conhecia a testadora por ter trabalhado em casa onde estava a viver aquela e que também foi testemunha no testamento (25)) também confirmou a capacidade mental da testadora.
Ou seja, todas depõem em sentido contrário ao apurado, sem que se vislumbrem razões para desvalorizar os seus depoimentos.
Sendo que a sentença recorrida também não avança com motivos para tanto, pois, pese embora refira genéricas contradições entre testemunhas, apenas concretiza uma: a testemunha KK disse que não foi ao cartório aquando do testamento, enquanto a testemunha PP disse que aquela lá tinha estado. A verdade, porém, é que mesmo aqui a contradição (para além de o alcance não ser seguro) não pode ser rigorosamente afirmada pois esta testemunha QQ não apenas não foi assertiva como claramente se revelou, neste aspecto, dubitativa, não tendo uma memória segura do facto (dizendo «tenho a impressão», «acho que sim», «acho que sim (…) foi há tanto tempo», carácter dubitativo este do depoimento que o seu tom de voz, hesitante, mais acentua). Dificuldades de memória estas que a testemunha volta a assumir quando admite não se recordar se a testemunha LL (que foi também testemunha do testamento) se encontrava no cartório. Tudo permitindo afirmar que a presença daquela KK no cartório, em contradição ao que ela mesmo disse, não pode derivar do depoimento da testemunha PP (inexistindo qualquer outro meio de prova que coloque aquela KK no cartório, aquando do testamento).
Refere também aquela sentença que a testemunha LL negou ter estado presente na celebração do testamento. Não é claro o sentido que atribui a tal circunstância, mas a afirmação não se mostra inteiramente exacta. A testemunha começou por negar essa presença mas tal assentou em manifesto lapso de memória, como o depoimento da testemunha claramente revela, com esta testemunha a assumir a autoria da assinatura no testamento, quando com ela confrontado, sendo clara a humildade com que pede desculpa pelo lapso de memória. Sem qualquer intenção fraudulenta associada que diminuísse o valor persuasivo do seu depoimento (aliás, não se consegue vislumbrar qual o interesse da testemunha em negar aquela presença - se pretendesse beneficiar o R., mentindo sobre as condições da testadora, melhor faria em assumir a presença no cartório, para afirmar que, nesse momento, a testadora sabia o que fazia).
Acresce que as testemunhas RR e SS, que se afastam destes depoimentos, não asseguram resultado contrário. Assim:
- a testemunha TT (amiga de filha da testadora, tendo com esta mantido contactos por efeito daquela relação de amizade), sendo algo genérica, também referiu que a testadora não dizia disparates, e que às vezes não dizia coisa com coisa mas outras vezes estava lúcida.
- a testemunha DD (filha da testadora, que mantinha relação próxima com a testadora e com quem esta viveu), afirmou que a mãe não tinha doença que lhe alterasse as faculdades mentais, e que se por vezes dizia coisas que não eram bem assim (embora se ignore com rigor o que isto significa), também aditou que isto ocorria poucas vezes. E embora depois afirmasse que a mãe tinha demência, também afirmou que quando faleceu estava lúcida (depois de sugerir que as dificuldades sentidas pela sua mãe eram de memória) e, em momento posterior, afirmou ainda que a mãe sabia o que queria (e esta até seria testemunha com interesse pessoal na invalidação do testamento, dado passar então a beneficiar de anterior testamento (26) ou passar a ter maior participação na herança da sua mãe).
Deste modo, também destes depoimentos resulta que não é possível afirmar que, à data do testamento, existisse alguma incapacidade natural da testadora relevante.
10. Acrescem ainda outras duas razões, indiciárias, de sentido contrário à verificação da invocada incapacidade:
- a notária que interveio no testamento, a testemunha UU, não depôs sobre a situação concreta (a outorga do testamento em causa) por impedimento profissional (embora também aditasse que se não recordava da situação) mas descreveu os procedimentos que adopta, em termos que lhe podem permitir aperceber-se da capacidade pessoal do outorgante. Tendo feito o testamento no caso, tal significa que nada de perturbador notou (tendo em conta também o disposto no art. 173º n.º1 al. c) do Código do Notariado). Naturalmente, tal não significa que a incapacidade invocada não existisse, mas não deixa de constituir um elemento indiciário de sentido contrário ao facto tido por apurado.
- tratava-se do segundo testamento que a testadora fazia. Significa que já outro notário a avaliara, em função das circunstâncias e da profissão, sem notar circunstância impeditiva da outorga de testamento. O que mais reforça o aludido sinal de sentido contrário ao apurado.
Obviamente, estas circunstâncias não significam que o impedimento não existisse, mas não deixam de constituir elemento indiciário que fragiliza a afirmação da sua existência no momento da outorga dos testamentos.
11. Curiosamente, nem o A. AA no seu depoimento de parte sustentou realmente a incapacidade da sua mãe: o máximo que disse foi que esta fazia o que lhe diziam.
12. Deste modo, tendo em conta o exposto, tem-se por seguro que inexistem elementos probatórios que permitam sustentar a matéria de facto descrita em 9 a 12 dos factos provados, que deve assim ser relegada para o âmbito dos factos não provados. Isto considerando também que os factos descritos em 10 a 12 se filiam no facto descrito em 9, dele dependendo e para ele remetendo quando referem que a situação (de incapacidade) está corroborada por certos dados (facto 10), que foi aquela situação (de incapacidade) que colocou a testadora na dependência de terceiros (facto 11) e o motivo por que passou a estar ao cuidado de terceiros (facto 12).
Quanto ao facto 2 do elenco de factos não provado, não importa a sua discussão autónoma dada a referida distribuição do ónus da prova.
A redacção do facto 13 foi alterada para salvaguardar a sua inteligibilidade.
Foi também eliminado o facto descrito em 15 (que também é meramente instrumental) para evitar contradições ou ao menos incoerências, e porquanto tal facto (afirmando que a testadora nunca distinguiria os seus filhos) contraria abertamente a realização do testamento sem que se demonstre o vício da vontade imputado, testamento este que é em si e por natureza diferenciador de filhos [embora também se note que, atenta a natureza meramente instrumental de tal facto, se mostrava injustificada a sua descrição nos factos provados, e que, pese embora não impugnado, também se nota que não encontra, na forma radical como vem descrito («nunca», «sendo impensável…»), apoio na prova produzida (trata-se, na verdade, de extrapolação probatoriamente insustentada)].
13. Assim, são os seguintes os factos relevantes:
1. O Autor é o mais novo de quatro irmãos, sendo o Réu o irmão mais velho;
2. São filhos de EE, falecido em ... de ... de 1994, e FF, falecida em ... de ... de 2019;
3. FF, deixou como seus únicos e universais herdeiros os seus filhos, sendo a herança deixada por si constituída por um bem imóvel, sito em ..., a sua residência antes de ingressar no Lar de Idosos;
4. Entre a data do óbito e meados de março de 2020, tentou-se proceder à partilha do referido bem extrajudicialmente, não tendo sido obtido acordo entre os herdeiros;
5. O Réu, como filho mais velho e cabeça-de-casal da herança indivisa, deu entrada de processo de inventário junto do Juízo de Competência Genérica de ..., Comarca de ..., em ... de ... de 2020, tendo sido distribuído com o nº 980/20.6...;
6. O Autor foi citado, no dia 25 de novembro de 2020;
7. No dia 26 de outubro de 2017, junto do Cartório Notarial na ... a cargo da Notária CC, a sua mãe, por testamento instituiu herdeiro da quota disponível dos seus bens, o seu filho BB, Réu;
8. Nunca o Réu informou o Autor e uma das suas irmãs, DD, da existência de tal documento, nem mesmo quando pretendeu proceder à partilha do bem imóvel extrajudicialmente;
(…)
13. Sempre existiu conflito entre os seus filhos (filhos da testadora) sobre a instituição na qual deveria ingressar;
14. O Autor tinha conhecimento do estado de saúde da sua mãe, no entanto, apenas agora teve acesso à documentação clínica, porquanto a mesma encontrava-se na posse da sua irmã, DD;
(…)
16. No dia 08-05-2019, pelo Cabeça de Casal, no Serviço de Finanças de ..., foi declarado o óbito de FF, identificados os herdeiros que lhe sucederam, apresentada a relação de bens deixados pela falecida com as respetivas verbas do ativo e do passivo e apresentado o testamento por ela outorgado;
17. Os herdeiros de FF, nos quais se incluem os aqui Autor e Réu, não chegaram a acordo quanto à partilha dos bens da herança da Testadora;
18. Pelo que, em 30-09-2020, foi instaurado um Processo de Inventário para partilha dos bens da herança aberta por óbito de FF/Testadora que correram termos pela Comarca de ...– Juízo de Competência Genérica de ... – Juiz 2, registado sob o nº 982/20.6...;
19. O testamento em causa nos presentes autos, identificado sob o nº “8”, acompanhou a petição inicial do Processo de Inventário suprarreferido;
20. Em 13-11-2020, foi apresentada a todos os interessados a relação de bens;
21. Mais tarde, em 28-06-2022, foi levada a efeito a conferência de interessados, com a presença e ou representação de todos os interessados, que chegaram a acordo quanto à partilha;
22. Seguidamente, em 18-10-2022, foram os interessados notificadas pelo Tribunal do mapa da partilha dos bens no referido inventário;
23. Notificados do mapa da partilha, o mesmo não suscitou qualquer reclamação por parte dos interessados;
24. A presente ação foi instaurada a 21.11.2022;
25. Em 24-11-2022, foi proferida sentença homologatória da respetiva partilha, a qual transitou em julgado em 10-01-2023, sem recurso;
26. Dois dos filhos da testadora sendo um deles o aqui Autor, há muitos anos que se encontravam a residir na Suíça e os que residiam em Portugal, o Réu no ... e DD na ..., por razões de ordem profissional, não tinham condições para terem a mãe na sua companhia;
27. Pelo menos, com a receção, aquando da citação, do requerimento de inventário e dos documentos que o instruíam ficou o Autor a saber da existência do testamento.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
1. O Autor nos presentes autos, em 08-05-2019, tomou conhecimento do testamento e da sua apresentação no Serviço de Finanças de ..., em ordem a ficar a constar para efeitos da partilha os bens deixados pela falecida FF;
2. Na data da outorga do testamento 26-10-2017 e posteriormente, até à data do seu falecimento ocorrido em ...-...-2019, a testadora manteve sempre o seu discernimento para entender, querer e decidir, em todas as questões de qualquer natureza, mostrando-se totalmente capaz de governar a sua pessoa e bens;
3. À data da outorga do referido testamento, já se verificava alguma turbulência entre os filhos da testadora no que se refere ao acompanhamento da mesma, quanto à necessidade de acompanhamento manifestada do ponto de vista da sua locomoção;
4. Foi neste contexto, que a testadora confiou ao seu filho mais velho a tarefa para contactar um lar para pessoas idosas tendo em vista o seu internamento, o que este fez, sempre com o parecer e o consentimento da sua mãe;
5. O Réu telefonava à sua mãe diariamente e com ela conversava durante longos períodos de tempo, para se inteirar dos mais íntimos pormenores da vida e estada da sua mãe no lar de idosos;
6. E quanto a visitas pessoais, era o Réu o único filho que visitava frequentemente a sua mãe ora testadora, já que os restantes filhos raramente o faziam.
7. Na data da realização do testamento, a mãe do Autor e do Réu encontrava-se numa situação de incapacidade natural de entender e querer o sentido da declaração testamentária, porquanto, pelo menos já em julho de 2012, tinha diagnóstico de alteração das funções cognitivas de acordo com síndrome demencial;
8. Situação corroborada nas notas do exame realizado em 28 de novembro de 2018 e na nota de alta administrativa de internamento de 7 de janeiro de 2019;
9. Situação clínica que colocou a testadora dependente de terceiros;
10. Motivo pelo qual a testadora passou a estar ao cuidado de Lares de Terceira Idade, apresentando um quadro depressivo;
11. Nunca a mãe do Autor fez qualquer distinção entre os seus filhos, sendo impensável que a mesma resolvesse beneficiar patrimonialmente qualquer um deles.
14. De acordo com o art. 2199º do CC, é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.
Como resulta evidente da articulação da previsão legal com o regime do art. 342º n.º1 do CC, incumbe a quem pretender exercer o direito de anulação demonstrar os factos constitutivos desse direito, o que passa essencialmente pela demonstração da incapacidade do testador.
Como o A. não logrou essa prova, tem que improceder a acção.
15. Esta solução prejudica a apreciação da questão atinente à caducidade.
Fica também prejudicada a questão formal relativa à alegada ilegitimidade do A. (ilegitimidade activa) (27).
Com efeito, deriva do art. 278º n.º3 do CPC que as exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.
A aplicação desta regra em sede de recursos é pacificamente aceite, por continuarem a valer nesta fase as razões que a determinam (28). Essa aplicabilidade da regra nesta sede é ainda confirmada pelo art. 660º do CPC, que é tributário do mesmo princípio (aliás, a decisão interlocutória impugnada, a que este art. 660º se reporta, pode respeitar justamente ao conhecimento de pressupostos processuais).
Releva no caso a segunda parte da norma citada, que supera o denominado dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais, permitindo que, mesmo perante a falta de um pressuposto processual, o tribunal profira uma decisão de mérito.
Quanto às condições de funcionamento da regra, e pese embora a sua redacção inculque que ela visaria apenas excepções dilatórias sanáveis (dada a ligação estabelecida entre a sanação da falta de pressuposto processual e a regra final, da prevalência da decisão de mérito), entende-se que a doutrina do regime deve valer para qualquer excepção dilatória que se coloque nas condições exigidas pela norma.
No que a essas condições tange, exige-se que:
- esteja em causa uma excepção dilatória. É o que ocorre com a legitimidade processual.
- a decisão de mérito favoreça integralmente uma das partes. É o que ocorre com a decisão de improcedência da acção, que favorece integralmente o R..
- aquela excepção dilatória vise tutelar o interesse da parte que a decisão de mérito integralmente favorecia. Como nota T. de Sousa, os pressupostos processuais visam tutelar interesses públicos e interesses das partes, sendo que estes interesses privados se ligam essencialmente ao interesse em preservar o réu de sacrifícios inúteis ou desnecessários (29). A legitimidade deve integrar-se no segundo grupo de interesses referido (tutela de interesses privados), visando, mormente do ponto de vista da ilegitimidade do A., evitar ao R. que tenha que suportar o encargo de uma demanda que nenhum efeito útil envolve (encargo que, no caso, poderia ainda implicar um replicação da acção, pois nada impedia o A., a ser considerado aqui parte ilegítima - o que se não concede, porém -, de repetir a acção, impugnando então os dois testamentos outorgados). Assim, a ilegitimidade integra-se no grupo de pressupostos processuais que a norma contempla (30).
Deste modo, sempre haveria que prevalecer a decisão de mérito sobre a decisão sobre a ilegitimidade (já que a verificação da falta do pressuposto processual em causa, sendo favorável ao R., não lhe oferecia uma solução mais favorável do que a improcedência da acção). Desse modo, também seria inútil a sua verificação, ficando prejudicada a sua apreciação.
No que toca à invocação do anterior inventário (que o R. invoca sem lhe atribuir efeito jurídico específico), a avaliação de qualquer relação de prejudicialidade ou interferência também fica prejudicada. Quanto ao caso julgado (que poderia ajustar-se à alegação do R., como a sentença recorrida entendeu), aquele, enquanto excepção dilatória, serve interesses públicos e por isso não beneficiaria do aludido regime do art. 278º n.º3 do CPC. Não obstante, o caso julgado material formado (com a sentença homologatória mas estendendo-se às decisões anteriores que constituem seu suporte essencial (31)), apenas abrange as questões que forem concretamente apreciadas ao longo do processo de inventário, o que não ocorre com a validade do testamento, não discutida no inventário (faltaria a identidade da causa de pedir e do pedido, adaptadamente entendidos - art. 581º do CPC). Por isso que não seria pertinente.
16. Improcedendo a acção, suporta o A. as custas da acção e deste recurso (art. 527º n.º1 do CPC).
V. Pelo exposto, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se o R. do pedido.
Custas da acção e do recurso pelo recorrido.
Notifique-se.
Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
(…)
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
1. Estes valores, presentes, são apenas mediata ou indirectamente tutelados.↩︎
2. A prevalência destes valores é revelada pelo facto de tal segredo estar na disponibilidade exclusiva do paciente.↩︎
3. Quando se aceite, como parece correcto, a sua aplicabilidade no âmbito do processo civil (desde logo por argumento de maioria de razão).↩︎
4. Questão a que a controvérsia sobre a natureza dos direitos de personalidade post mortem (incluindo a determinação da titularidade dos interesses que serve) pode interessar mas não adita esclarecimentos determinantes.↩︎
5. Levando a que seja justamente discutido se os vários grupos obedecem a uma ordem de prioridade ou se se encontram todos no mesmo patamar.↩︎
6. A questão é, para o art. 71º n.º2 do CC, controvertida, mas, no quadro em jogo, mostra-se justificada. Sustentando, porém, o consentimento de todos os membros de cada grupo (no caso os descendentes), P. de Lima e A. Varela, CC Anotado vol. I, Coimbra editora 1987, pág. 108.↩︎
7. Adoptando este critério, em situação paralela, R. Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra editora 1995, pág. 194.↩︎
8. Assim, André Gonçalo Dias Pereira, O Sigilo Médico: análise do direito português, pág. 29 (disponível online), solução a que também aderiu o Ac. do TRG proc. 1108/14.0TJVNF.G1, in 3w.dgsi.pt.↩︎
9. Notando-se apenas que o art. 98º do RDM que o R. invoca (art. 27º das alegações) não tem relação com atestados médicos.↩︎
10. Ac. do STJ proc. 20592/16.1 T8SNT.L1.S1 (3w.dgsi.pt).↩︎
11. Assim, A. Geraldes, O regime dos recursos no CC de 2013, in O Código de processo civil 10 anos depois, EUL 2023, pág. 243↩︎
12. A referência à necessidade de os meios de prova imporem decisão diversa consta do art. 640º n.º1 al. b) do CPC, assim se revelando que está em causa um erro probatório e não apenas uma diferente valoração da prova↩︎
13. Embora, em rigor, nem esta menção pareça necessária.↩︎
14. Assim, para situação paralela, L. de Freitas, Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto (…), Novos estudos sobre direito civil e processo civil, Gestlegal 2021, pág. 353/4.↩︎
15. Assim, A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 360, ou P. Pimenta, Processo civil declarativo, Almedina 2023, pág. 372.↩︎
16. Sobre a distinção, ver Ac. do STJ proc. 756/13.0TVPRT.P2.S2 (in 3w.dgsi.pt).↩︎
17. Na verdade, o que se pretende com a afirmação é evitar associações longínquas, por precárias e falíveis; mas nada parece impedir, na verdade, que dois factos se conjuguem para revelar um facto ainda indiciário mas relevante no percurso silogístico global.↩︎
18. Na verdade, as características variam com os autores (falando-se em indícios precisos, graves, unidireccionais, convergentes, necessários etc.).↩︎
19. Só não será assim quando se baseia numa regra científica não probabilística, que não admita excepções.↩︎
20. Momento que não consta da transcrição efectuada pelo R..↩︎
21. Provavelmente seria mera referência copiada de outro documento, mormente atinente à história clínica.↩︎
22. A gravação deste depoimento não está autonomizado no citius, surgindo dentro da gravação do depoimento da testemunha VV e logo após a este depoimento.↩︎
23. Também este depoimento se mostra inserido, no citius, sem autonomia.↩︎
24. Qualidade que já não recordava, com manifesta honestidade, o que constitui sintoma da sua falta de interesse na questão.↩︎
25. No qual está erroneamente identificada como WW, embora tenha assinado correctamente o testamento (situação esclarecida em julgamento).↩︎
26. A testemunha afirmou, contudo, ignorar este testamento que a favorecia - ignorância possível dada a natureza do testamento (no qual não intervém).↩︎
27. Questão nova, apenas suscitada no recurso, mas que, dado ser de conhecimento oficioso, deveria ser apreciada.↩︎
28. Assim, R. Pinto, Manual do recurso civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 346, A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 375 ou T. de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex 1997, pág. 477 (este para o direito anterior mas perante regras idênticas).↩︎
29. Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais, ROA I 1989, pág. 104 ou Estudos … cit., pág. 84.↩︎
30. Aplicando o princípio à legitimidade, Ac. do STJ. proc. 870/08.4TTLSB.L2.S1 (in 3w.dgsi.pt). No mesmo sentido, A. Geraldes, Temas da Reforma do processo civil, vol. I, Almedina 1998, pág. 38/39.↩︎
31. V. T. de Sousa, L. do Rego, A. Geraldes e P. Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina 2024, pág. 11.↩︎