I - O pedido civil é enxertado no processo penal, em regra (art. 71.º CPC), porque assim se evita a contradição de julgados, se economizam meios processuais e mais rapidamente se atribui satisfação indemnizatória ao lesado.
II - A alínea c) do n.º 1 do art.72.º do Código de Processo Penal (“O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, quando o procedimento depender de queixa ou de acusação particular”) deve ser complementada e conjugada com o n.º 2 do art.72.º CPP (“No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”).
III - Da conjugação de ambas as normas resulta a interpretação de que nos crimes de natureza semi-pública e particular, o lesado tem duas opções: opta, antes da queixa, pelo pedido civil em separado e impede o exercício da ação penal através da renúncia; ou opta pela promoção penal, e a ação civil (fora dos casos das alíneas a) e b) do nº 1 art. 72 CPP) terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória.
IV - O facto de, no momento em que é deduzida a acusação, o lesado não poder quantificar os danos conhecidos não lhe permite deduzir em separado o pedido de indemnização, com fundamento no art.72.º, n.º 1 d) CPP, pois o que releva para efeito de aplicar a norma é o desconhecimento dos danos em toda a sua extensão.
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Relatório
Acórdão os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
AA deduziu pedido de indemnização cível contra BB, por danos patrimoniais e não patrimoniais causados por este, sendo €27.183,97, a título de danos patrimoniais; €50.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais; € 100.000,00, a título de punitive damages.
Os danos patrimoniais estão, assim, discriminados na pi:
a) - € 10.350,00, de perdas salariais, por a A. ter estado de baixa médica, desde julho de 2019 a outubro de 2021 (factos alegados em 72.º a 74.º da pi);
b) - € 2.200,00, que pediu então a terceiros para fazer face a despesas suas (arts. 76.º e 77.º da pi);
c) - € 13.500,00, correspondentes ao que deixou de receber nos meses em que se encontrou desempregada (18 meses), tendo aceite acordo de cessação do contrato de trabalho[1] em virtude da atuação do R. (art. 83.º da pi);
d) - o que despendeu em viagens para consultas (€ 673, 92) e em medicamentos (€ 369,15) – arts. 85.º a 91.º da pi;
e) - € 100.000, de danos punitivos.
Invocou a prática de factos consubstanciadores de vinte e um crimes de coação sexual agravada, p.p. pelos arts. 163.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1 b) do CP, pelos quais o demandado foi já condenado em processo criminal.
Em contestação, disse o R. ser incompetente o juízo cível, por ter sido violado o princípio da adesão ao processo criminal, previsto no art. 72.º do CPP, não tendo a A. indicado qualquer das situações de exceção previstas no n.º 1 daquele normativo, e sendo os crimes em causa de natureza semi-pública (art. 178.º, n.º 1 do CP).
A A. exerceu contraditório, dizendo que, à data da acusação criminal, os danos ainda não eram conhecidos em toda a sua extensão, encontrando-se a demandante a ser seguida medicamente mercê das sequelas para si decorrentes dos factos criminais. Verificar-se-ia, assim, a situação prevista no art. 72.º, n.º 1 d) do CPP.
Diz, além disso, que a apresentação de queixa e posterior pedido cível em separado não se excluem mutuamente, ao contrário do que sucede com a prévia dedução de pedido cível que implica a renúncia a procedimento criminal.
Veio a ser proferido despacho saneador, datado de 21.3.2024, que julgou parcialmente procedente a exceção em causa, tendo por verificada a incompetência absoluta do tribunal cível para apreciar os pedidos de condenação do Réu no pagamento do montante de €13.683,97 a título de danos patrimoniais, e de €50.000,00 a título de danos não patrimoniais, absolvendo o Réu da instância relativamente aos mesmos, nos termos dos artigos 65.º, 96º/a), 97.º/1, 278.º/1/a), 576.º/1 e 2, 577.º/a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.
Mais julgou improcedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal para apreciar o demais pedido pela Autora.
Desta decisão recorreu o R. tendo vindo a ser proferido o acórdão de 10.7.2024, anulando o despacho saneador na parte em que declarou a incompetência do juízo cível.
Tendo os autos baixado à primeira instância, veio a ser proferido novo despacho saneador, a 9.10.2024, o qual concluiu, assim, no tocante à exceção em causa:
Pelo exposto:
- julgo verificada a exceção de incompetência absoluta deste tribunal para apreciar os pedidos de condenação do Réu no pagamento do montante de € 13.593,07 (€10.350,00 + €2.200,00 + €673, 92 + €369, 15) a título de danos patrimoniais, de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais, de €100.000,00 a titulo de punitive damages e, consequentemente, absolvo o Réu da instância relativamente aos mesmos - artigos 65º, 96º/a), 97º/1, 278º/1/a), 576º/1 e 2, 577º/a) e 578º, todos do Código de Processo Civil.
- julgo improcedente a exceção de incompetência absoluta deste tribunal para apreciar o pedido de condenação do Réu no pagamento da indemnização de € 13.500,00 a título de lucros cessantes.
Desta sentença, recorre agora a A. visando a sua revogação e o prosseguimento dos autos, com competência do juízo cível, para conhecimento de todo o pedido.
Para tanto, aduziu os seguintes fundamentos que assim deixou espelhados nas conclusões de recurso:
1. Após procedimento criminal, interpôs a autora ação de responsabilidade civil onde peticiona a condenação do réu no pagamento de mais de € 170.000,00 a título de danos patrimoniais, não patrimoniais, danos punitivos e lucros cessantes.
2. Na contestação o réu arguiu a incompetência absoluta do tribunal para conhecer dos pedidos em virtude da violação do princípio da adesão previsto no artigo 71.º do CPP, tendo a autora alegado se encontrar abrangida pelas exceções previstas no artigo 72.º do CPP.
3. Nessa sequência veio o Tribunal a quo determinar a incompetência absoluta para conhecer de todos os pedidos à exceção do peticionado a título de lucros cessantes, decisão com a qual a autora não se conforma.
4. De facto, não obstante a alegação do desconhecimento da existência de alguns dados, não poderia o Tribunal a quo ignorar que o procedimento criminal em causa dependia de queixa, violando assim o disposto no artigo 72.º, n.º 1, al. c) do CPP.
5. Neste âmbito, o artigo 71.º do CPP consagra o princípio da adesão obrigatória do pedido civil ao procedimento criminal, prevendo, contudo, in fine a possibilidade de esse pedido vir a ser formulado em separado.
6. É o que sucede com os procedimentos criminais que dependam de queixa ou de acusação particular, alínea que deve ser conjugada com o n.º 2 do artigo 72.º que prevê a renúncia ao direito de queixa quando o lesado interpuser previamente a este o pedido de indemnização civil.
7. No entanto, esta previsão legal não permite concluir que a interposição do pedido civil em separado quando o procedimento criminal se encontra em curso tem como consequência a desistência de queixa, nem tão pouco que estando a correr procedimento criminal o lesado é obrigado a deduzir o pedido de indemnização civil enxertado no processo crime.
8. Ora, o princípio da adesão figura no nosso ordenamento desde 1987, com uma redação semelhante à atual, não prevendo inicialmente o artigo 72.º, n.º 2 em que momento é que a propositura de uma ação civil pressuporia a renuncia ao direito de queixa, incerteza que motivou assento uniformizador de jurisprudência no sentido de a dedução de pedido de indemnização civil em separado não acarretar a extinção de
procedimento criminal já em curso. – cfr. Assento uniformizador n.º 4/2000, de 19 de janeiro de 2000.
9. Embora não se trate propriamente da questão dos presentes autos, o assento sobredito permite pelo menos auxiliar naquela que deve ser a interpretação adequada do artigo 72.º, n.º 1, al. c e n.º 2 do CPP.
10. Isto porque estava em causa um procedimento criminal dependente de queixa, onde após a acusação e estando o processo sem andamento há mais de oito meses, o ofendido decidiu deduzir pedido de indemnização nos tribunais civis.
11. Daqui decorre que em procedimento criminal por crime dependente de queixa e após oito meses da acusação, não havia sido deduzido qualquer pedido de indemnização civil enxertado na ação penal; caso contrário a dedução da ação civil cairia numa situação flagrante de litispendência, questão que nem tão pouco foi mencionada ao longo de todo o assento.
12. Reitera-se, o lesado havia exercido o seu direito de queixa, e após oito meses desde a prolação da acusação – sem que tivesse inicialmente cumprido o prazo de 10 dias após notificação desta para deduzir pedido de indemnização civil enxertado no processo criminal – deduziu pedido de indemnização civil junto dos tribunais civis.
13. Significa, pois, que ambos os tribunais consideraram o tribunal civil competente para conhecer do pedido de indemnização civil por se encontrar em causa uma das exceções ao pedido de adesão – crime de natureza semipública ou particular.
14. Assim, neste tipo de crimes, e face à redação do artigo 72.º, n.º 1, al. c) e n.º 2 do CPP parece ter-se admitido a possibilidade de deduzir o pedido de indemnização em separado, só cominando que a prévia dedução do pedido perante tribunal civil implica a renúncia do direito de queixa desde que este ainda não tenha sido exercido, daí a relevância da palavra “previamente”, não se podendo concluir nada mais que isso!
15. Entendendo a jurisprudência que a “dedução de pedido cível em ação autónoma, previamente à queixa-crime, equivale à renúncia do direito de queixa, não estando prevista qualquer cominação para o caso em que se deduz o pedido cível posteriormente à queixa-crime.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.06.2022, proc. n.º 4303/20.0T8VIS.C1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.01.2019, proc. n.º 1286/18.0T8VCT-A.G1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01.11.2005, proc. n.º 0221011; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.01.2019, proc. n.º 5316/17.4T8BRG-A.G1.
16. Neste seguimento, e não obstante o princípio da adesão, crê-se que a ratio pretendida com a exceção da al. c) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP se concretiza não no facto de evitar que o lesado tenha de recorrer à ação penal para ver a sua pretensão indemnizatória reconhecida, já que nada obsta a que o lesado não exerça o seu direito de queixa e recorra única e exclusivamente a uma ação de responsabilidade civil,
17. Mas apenas e tão somente, considerando a natureza e gravidade dos crimes, diferenciar os casos em que para o lesado há uma secundarização da responsabilidade penal face à responsabilidade civil.
18. Sendo a natureza do crime a verdadeira causa de exceção, bastando que o procedimento criminal dependa de queixa ou acusação particular para poder o lesado recorrer às instâncias civis, sendo que se o fizer antes do exercício do direito de queixa, esta conduta equivale à renúncia desse direito, mas que se o fizer posteriormente nenhuma cominação se encontra prevista na lei, operando a exceção per si “procedimento criminal depender de queixa ou acusação particular”.
19. Sufragamos, portanto, o entendimento perfilhado nos acórdãos citados na medida em que a exceção propriamente dita ao princípio da adesão encontra o seu único fundamento na natureza do crime, em conformidade com a redação concedida pelo legislador, não estando a mesma condicionada pela atuação processual do lesado.
20. Ademais, não poderia o Tribunal a quo ignorar que a situação concreta também se enquadrava em outras exceções previstas, como seja o lapso temporal decorrido entre a denúncia e a acusação – mais de dois anos – e, bem assim o desconhecimento dos danos à data da acusação – artigo 72.º, n.º 1, als. a) e d) do CPP – o que sempre permitiria a dedução do pedido de indemnização em separado.
21. No que diz respeito à al. a) efetivamente verificada jamais se poderá afirmar que a respetiva ação deveria ter sido interposta em separado antes da prolação da acusação, o que se concretizaria na exigência de um prazo processual indeterminado – não tendo como o lesado conhecer quando será deduzida acusação –, e que em momento
algum decorre de norma legislativa.
22. Como seria despropositado exigir, nos casos da al. d), uma fragmentação dos pedidos com um esforço processual acrescido para o lesado que sempre teria de deduzir duas pretensões indemnizatórias separadas para o mesmo facto ilícito originador de responsabilidade civil – a primeira no âmbito do procedimento criminal à luz do princípio da adesão quanto aos danos conhecidos, e a segunda nos tribunais civis, em separado, quanto aos danos entretanto conhecidos, repetindo toda a causa de pedir em ação autónoma.
23. Em prejuízo da economia processual, da celeridade processual, da uniformização de julgados – todas as finalidades que o princípio da adesão visa salvaguardar, mas que no presente contexto restariam amplamente defraudadas e agravadas –, exigindo-se ainda ao lesado um esforço processual acrescido e desnecessário.
24. Nesta sequência é, pois, de considerar que cumprindo o ofendido/lesado qualquer dos três segmentos previstos pela al. d) – “não houver ainda danos ao tempo da acusação”; “estes não forem conhecidos”; “não forem conhecidos em toda a sua extensão” – lhe será legítimo recorrer aos tribunais civis, deduzindo pedido em separado, contemplando este a totalidade dos danos originados pela atuação delituosa e não apenas os danos recentemente conhecidos.
25. Pelo exposto, ao determinar o Tribunal a quo a incompetência parcial do tribunal para conhecer de todos os danos à exceção dos lucros cessantes, violou o disposto no artigo 71.º, 72.º, n.º 1, als. a), c), d) e n.º 2 do CPP.
Sem prescindir,
26. Ainda que assim não se entenda, não podemos concordar que a incompetência se estenda aos danos punitivos porquanto não os podemos considerar em momento algum uma extensão dos danos não patrimoniais.
27. Ora, tem vindo a ser unânime a relevância de um pendor sancionatório e preventivo da responsabilidade civil, muito se tendo debatido nesse âmbito sobre o fundamento normativo dos punitive damages até alcançar consenso, sustentando-os no artigo 496.º e 494.º do Código Civil,
28. No entanto, ainda que se utilize as referidas normas como sustentáculo normativo à aplicabilidade dos punitive damages, não significa que estes se encontrem intimamente ligados aos danos não patrimoniais, sendo inclusivamente dissociáveis destes.
29. Muito têm sido os pareceres jurídicos no que diz respeito à importância sancionatória e preventiva da responsabilidade civil, caracterizando-a como uma indemnização subjacente aos requisitos da ilicitude e da culpa, ou como uma pena privada que visa colmatar as insuficiências do direito penal, ou como uma indemnização inerente aos valores morais,
30. Não obstante as diversas justificações para a sua relevância no âmbito da responsabilidade civil, o que é inegável é que a mesma se deve aplicar quando o “dano tem uma dimensão simultaneamente individual e comunitária”, na medida em que as ofensas aos direitos de uma pessoa podem também consistir em ofensas a interesses sociais.
31. Daqui se depreende que os punitive damages se autonomizam dos demais danos sofridos pelo lesado na medida em que os mesmos estão muito mais relacionados com a conduta e culpa do agente lesante do que propriamente com o dano sofrido pelo lesado, sendo, por isso, de rejeitar que sejam indissociáveis dos danos não patrimoniais.
32. Diga-se, aliás, que uma coisa é a fundamentação normativa que se tem vindo a aceitar como válvula de escape à omissão legal dos danos punitivos e que, coincidentemente, se concretiza no artigo que prevê a compensação por danos não patrimoniais, que em tudo se deve à sua redação abrangente, permitindo a determinação da indemnização equitativamente pelo tribunal e considerando ainda os critérios previstos no artigo 494.º.
33. Outra coisa absolutamente distinta é a natureza desses denominados danos punitivos que, em tudo, se distinguem e autonomizam dos danos não patrimoniais.
34. Aliás, se assim não fosse, a aplicabilidade dos danos punitivos estaria por maioria de razão vedada aos litígios onde se verificasse apenas a existência de danos patrimoniais, ou até nas situações em que os danos punitivos visam apenas a restituição do lucro ilicitamente obtido pelo lesante no cometimento da conduta ilícita lesiva.
35. Neste seguimento e sendo de afastar qualquer ligação umbilical entre os danos punitivos e os danos não patrimoniais, cumpre compreender se o tribunal é competente para destes conhecer – consideramos que sim.
36. Não só porque a autora não estava obrigada a deduzir o pedido de indemnização civil enxertado no procedimento criminal por integrar as exceções previstas no art. 72.º, n.º 1, al. a), c) e d) do CPP,
37. Mas também porque a concretização da possibilidade de aplicação dos danos punitivos se verificou em momento posterior à dedução da acusação, à semelhança dos lucros cessantes, não sendo por isso conhecidos à data da mesma.
38. Isto porque, considerando aquela que é a génese dos punitive damages, com relação umbilical à conduta ilícita do lesante, em concreto à culpa e censurabilidade da sua atuação, compreendemos em primeiro plano que nem todos os atos ilícitos são suscetíveis de espoletar e justificar a aplicação dos designados danos punitivos.
39. Embora em abstrato todos os atos ilícitos acarretem um impacto negativo nos valores da sociedade, a verdade é que nem todos os ilícitos criminais são perpetrados em circunstâncias de especial censurabilidade que justifiquem o recurso a uma dimensão sancionatória e preventiva da responsabilidade civil.
40. Significa que, num primeiro momento da conduta delituosa é, na grande maioria dos casos, impossível compreender se o dano punitivo se encontra verificado e se, portanto, existe ou não a possibilidade de o transformar numa pretensão indemnizatória.
41. A qual fica dependente não apenas da apreciação concreta das circunstâncias que circundaram a prática do crime, mas também a conduta do agente antes e após a prática do delito e a denúncia do mesmo.
42. Na verdade, embora esteja em causa um crime hediondo era impossível à autora percecionar aquando da prolação da acusação a amplitude da censurabilidade do agente antes, durante e depois da prática do crime, o que naturalmente a impediu de aferir da verificação da pretensão indemnizatória que ora se peticiona e inerente “dano
punitivo”.
43. Aliás, estava a autora longe de imaginar que o agente criminoso viria a incumprir a medida de coação imposta, regressando ao trabalho, numa atitude incontestável de impunidade e indiferença pela conduta ilícita cometida, danos provados na esfera das vítimas e obrigações impostas pelo Tribunal na sequência de um processo crime.
44. Resulta, pois, da petição inicial que à data em que a autora se vê confrontada a regressar ao trabalho o processo crime ainda se encontrava em curso, assim como resulta da sentença junta aos presentes autos que a medida de coação só terminou após prolação da sentença, pelo que jamais poderia o réu encontrar-se a laborar naquela data, como fez.
45. A atitude de desprezo para com o direito e para com as vítimas é facto ampliador da censurabilidade da atuação do agente lesante – tendo inclusivamente provocado mais danos na esfera das vítimas - justificando em concreto a aplicação de uma vertente sancionatória e preventiva da responsabilidade civil.
46. Até porque a própria entidade – Lar ... – permitiu o regresso do réu às funções até então exercidas sem qualquer punição disciplinar, colocando-o exatamente na mesma situação de domínio face a outros subordinados em condições de reincidir – tal era a atitude de impunidade – nos crimes pelos quais vinha acusado.
47. Pelo que só nesse concreto momento, após conhecimento de que o réu se encontrava a exercer funções, e após valoração de toda a prova em sede de processo criminal no que concerne à culpa do infrator, e postura ante e pós crime é que se logrou aferir da necessidade de eventuais danos punitivos – dano absolutamente desconhecido até então.
48. Reitera-se que não é qualquer atitude ilícita que é justificadora da aplicação dos designados punitive damages, exigindo-se que essa conduta acarrete um grau de censurabilidade e um impacto negativo nos valores da comunidade de tal ordem que justifiquem que a fixação da indemnização extravase o dano efetivamente sofrido pelo lesado. – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.01.2016, proc. n.º 2185/04.8TBOER.L1.S1
49. Pelo que, apenas conhecendo da concreta censurabilidade e culpa do lesante e do agravamento dessa censurabilidade face à conduta posterior à prolação da acusação, sempre seria legítimo à autora recorrer ao processo em separado, nos termos do artigo 72.º, nº 1, al. d) do CPP, integrando os danos punitivos o conjunto de danos
desconhecidos à data da prolação da acusação.
50. Nestes termos, tomando em consideração tudo o quanto exposto, violou o Tribunal a quo, com a decisão proferida em sede de despacho saneador, o disposto no artigo 71.º in fine, e no artigo 72.º, n.º 1, als. a), c), d) e n.º 2 do CPP.
O recorrido contra-alegou, opondo-se à procedência do recurso.
Objeto do recurso:
- do princípio da adesão do pedido cível ao processo penal e da competência do tribunal cível.
FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados
Foram dados como provados os seguintes factos:
1 - A acusação contra o aqui R., nos autos de processo criminal, n.º 1067/19.3PIVNG, foi proferida a 31.3.2021.
2- Conforme certidão extraída daqueles autos criminais e junta ao presente apenso a 28.6.2024, a carta de notificação remetida à aqui A., ali queixosa, para que apresentasse pedido de indemnização cível, foi depositada em 06.04.2021, considerando-se a mesma notificada no 5.º dia posterior ao seu depósito, ou seja, no dia 11.04.2021, iniciando-se a contagem do prazo para formulação de pedido cível no dia 12.04.2021.
3- Em primeira instância, foi ali proferido acórdão condenatório do aqui R., a 17.11.2022, tendo vindo a ser proferido, pela Relação acórdão em recurso, a 19.4.2023, confirmando o acórdão recorrido.
4 – O aqui R. foi aí condenado, pela prática em relação a AA, em 21 (vinte e um) crimes de coação sexual agravada, previstos e punidos pelos arts. 163.º, n.º 2, e 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles;
- um crime de importunação sexual agravado, previsto e punido pelo art.170º nº1 e art.177.º, n.º 1, b) todos do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.
5 - Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena unitária de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa pelo mesmo período, mediante a imposição de deveres e regras de conduta indicado.
Fundamentos de direito
No acórdão desta Relação relatado pela ora relatora, datado de 5.11.2018, no proc. 2261/17.7T8PNF-A.P1, foi explicitado o princípio de adesão nos termos que aqui reproduzimos:
«O art. 71.º do CPP consagrou a teoria da adesão obrigatória: o pedido de indemnização civil originado pela prática de um crime deve ser deduzido no processo em que decorre a ação penal.
Fundamentos para tal são razões de economia processual, evitar a litispendência e, bem assim, a existência de decisões contraditórias[2].
A este respeito, veja-se o ac. STJ de 18-06-2009 (Proc. n.º 81/04.8PBBGC.S1): As razões lógicas dos sistemas que admitem o enxerto do pedido civil na acção penal são as mais díspares, mas todas elas se reconduzem, essencialmente, à vantagem da não contradição de julgados, à economia processual e ao interesse do lesado, que, funcionando como auxiliar do juiz, o habilita a melhor avaliar a extensão do dano, se exime a despesas e incómodos, além de que a estrutura do processo penal, se mais simples do que a civil, assegurará justiça mais célere, simples e acessível – cf. Prof. Vaz Serra, in BMJ 91.º/56.
Emerge deste normativo que a adesão obrigatória do pedido civil ao procedimento criminal, ao lado da acusação que será objeto de julgamento, respeita à prática de um crime. Donde, acusação e pedido cível haverão de fundar-se no mesmo crime.
Dito de outro modo: se a acusação fixa o objeto da ação penal em factos configuráveis como ofensa à integridade física é com base neste crime que a sentença que conheça do pedido cível aquilatará dos pressupostos da responsabilidade civil. O dano é um pressuposto da responsabilidade civil (art. 483.º CC).»
O desrespeito por estas regras constitui, como já se disse no acórdão anterior, fundamento de incompetência material do tribunal cível onde venha a ser formulada ação fundada em responsabilidade civil fundada na responsabilidade criminal.
Na situação dos autos, ao responder à exceção de incompetência arguida pelo R. (a 23.11.2023), a A. veio apenas invocar a exceção prevista no art. 72.º, n.º 1 al. d) do CPP - Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão.
O tribunal a quo julgou-se incompetente para conhecer todos os danos, exceto do que acima ficou enunciado em c), correspondente aos lucros cessantes, no montante de € 13.500, 00.
Valeu-se a sentença recorrida do disposto no art. 71.º do CPP, tendo por não verificado o pressuposto da al. c) do n.º 1 do art. 72.º - O procedimento depender de queixa ou de acusação particular.
No recurso agora apresentado, a recorrente diz terem sido violadas as als. a) c) e d) do n.º 1 e o n.º 2 do art. 72.º CPP.
Os crimes ora em causa têm natureza semi-pública, dependendo de queixa (art. 178.º CPC).
A A. foi notificado no processo criminal para aí formalizar pedido de indemnização cível, considerando-se notificada a 11.4.2021.
O tribunal a quo entendeu não ser aplicável aqui o teor da al. c) do n.º 1 do art. 72.º do CPP, dizendo o seguinte:
«No que se refere à interpretação da alínea c) do n.º 1 do citado artigo 72.º, que estabelece que o pedido cível pode ser deduzido em separado “quando o procedimento depender de queixa ou de acusação particular” adere-se ao entendimento do Réu no sentido que a mesma tem de ser articulada com o disposto no artigo 72º/2, que refere que “No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil, pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação, vale como renúncia a este direito”.
Neste âmbito, acompanha-se integralmente o defendido por António Henriques Gaspar, em anotação a este artigo in “Código de Processo Penal Comentado” de António Henriques Gaspar, Henriques dos Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, 2ª. Ed., onde refere que “no caso de o procedimento criminal depender de queixa ou acusação particular a adesão não é também obrigatória, podendo o lesado deduzir o pedido de indemnização civil no tribunal que for competente para o julgamento da ação de indemnização - alínea c); o pedido formulado perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação particular vale como renúncia ao direito de queixa - n.º 2 (…). A conjugação da alínea c) do n.º 1 e do n.º 2 permite determinar o seguinte: no caso de crime semi-público ou particular, as pessoas com direito de queixa e o lesado podem formular o pedido no tribunal civil, renunciando, assim, ao direito de queixa; porém, se tiverem exercido o direito de queixa e iniciado o procedimento criminal, valem as regras gerais da adesão. Se assim não fosse, e atendendo a que a grande maioria dos crimes tipificados no Código Penal são crimes de natureza particular e semi-pública, então a regra para estes crimes sempre seria a dedução do pedido de indemnização civil em separado, e não a exceção, assim se desvirtuando/subvertendo o princípio da adesão obrigatória da ação civil à ação penal.”.
No mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019, proc. 1286/18.0T8VCT-A.G1.S1 (…)
(…)
No entanto, como resulta da petição inicial e foi esclarecido na resposta, a Autora vem fundamentar a dedução do pedido cível em separado no disposto na alínea d) do citado artigo 72º/1, do Código de Processo Penal, que estabelece que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado quanto “não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão”.
A Autora na petição inicial alega factos que consubstanciam danos patrimoniais e não patrimoniais ocorridos antes e depois da prolação da acusação e o desconhecimento da extensão dos danos já verificados à data da acusação. De facto, analisada a petição inicial não pode concluir-se que os pedidos aí formulados sejam apenas referentes à extensão dos danos já verificados na data da acusação e seu mero prolongamento.
Nos autos a Autora vem alegar factos ocorridos desde a prática do crime quando alega que a conduta do Réu causou à Autora quadro de depressão prolongado, que descreve, e que se mantém desde a conduta criminosa até ao presente; que este quadro de depressão fez que ficasse em situação de baixa por doença, com a inerente perda salarial, que quantifica; que durante o mesmo período temporal sentiu angústia e ansiedade; que os sofrimentos de que padecem exigem acompanhamento médico e medicamentoso, que descreve, com custos que descreve e quantifica. Todos estes factos são consequência direta da conduta do Réu e do sofrimento por ele causado à Autora.
É, neste âmbito de relevar que, a Autora já se encontrava de baixa médica desde data anterior à da dedução da acusação e que desta consta expressamente que “A partir desse dia a ofendida AA entrou de baixa médica, não tendo até hoje regressado, estando a ser acompanhada no Hospital ... em situação de depressão e “burn-out”.”. Estes factos permitem concluir que a Autora, desde data anterior à acusação sabia que iria continuar a necessitar de tratamento psicológico/psiquiátrico, com os inerentes custos, até data que não podia prever, bem como se encontraria de baixa médica por período indeterminado.
Assim, os factos alegados nos autos relacionados com os danos não patrimoniais, despesas suportadas com o tratamento do seu quadro depressivo e perda salarial decorrente de baixa médica, não podem ser considerados danos novos e a persistência desses mesmos danos ao longo do tempo e o seu possível agravamento não impediam a Autora de ter deduzido pedido cível no processo penal em função dos danos não patrimoniais e prejuízos patrimoniais já sofridos e dos que viesse a sofrer até ficar curada, pedindo a sua liquidação subsequente nos termos do disposto no artigo 82.º do Código de Processo Penal que prevê expressamente a liquidação em execução de sentença e, se necessário, o reenvio para os tribunais civis, e estabelece que no seu n.º 1 que “Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença.”.
(…)
Tem sido entendimento dominante que o desconhecimento da extensão dos danos não enquadra a exceção ao princípio da adesão obrigatória do pedido cível na ação penal.
Neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.05.2019, proc. n.º 9918/15.5T8LRS.L1.S1 e de 22.11.2018, proc. 199/17.7T8TCS.C1.S1 (…)
No que se refere ao punitive damages, relativamente aos quais a decisão anterior era omissa segue-se o douto acórdão proferido onde se refere, em citação do ac. do STJ, de 25.2.2014, Proc. 287/10.0TBMIR.S1. (…)
(…)
Assim, considerando a natureza e qualificação destes danos, a eles tem de ser estendido, como resulta do acórdão proferido, o suprarreferido relativamente aos danos não patrimoniais pedidos pelo montante de € 50.000,00.
De facto, nos termos do já supra exposto, estes danos não podem ser considerados danos novos, sendo que a persistência dos mesmos ao longo do tempo não impediam a Autora de ter deduzido pedido cível no processo penal a título de punitive damages.»
Entende a recorrente, que não pode considerar-se que, tendo sido deduzida queixa criminal e sido o lesado aí notificado para formular pic, não possa exercer o seu direito em ação cível autónoma. Só o exercício da ação cível, antes da queixa, é que implicaria a renúncia a esta.
Quanto a este entendimento relativo à al. c), sufragamos a posição da primeira instância, fazendo-lhe acrescer a referência aos argumentos exposto no ac. STJ, de 21.6.2002, Proc. 2563/18.4T8LSB.L2.S1, em cujo sumário se lê:
I.- O pedido de indemnização civil emergente do crime, enxertado no processo penal, assume a natureza de verdadeira acção civil, e visa a atribuição do direito à indemnização pelos danos causados pela actuação criminosa, vigorando no nosso ordenamento jurídico o sistema da adesão obrigatória (art.71 Código de Processo Penal) só podendo sê-lo em separado em situações excepcionais, como as taxativamente previstas no art.72 nº 1 do Código de Processo Penal. II.- A alínea c) do nº 1 do art.72 do Código de Processo Penal (“O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, quando o procedimento depender de queixa ou de acusação particular”) deve ser complementada e conjugada com o nº 2 do art.72 CPP (“No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”). III.- Da conjugação de ambas as normas, e em face do elemento histórico, sistemático e teleológico, resulta a interpretação de que nos crimes de natureza semi-pública e particular o lesado tem duas opções: opta, antes da queixa, pela acção civil em separado e impede o exercício da acção penal através da renúncia; ou opta pela acção penal, e então a acção civil (fora dos casos das alíneas a) e b) do nº 1 art. 72 CPP ) terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória. IV. A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível.
Em abono dessa solução, diz-se neste aresto:
“Segundo determinada orientação jurisprudencial, o art.72 nº 1 c) CPP deve ser interpretado autónoma e literalmente, desde que o crime tenha a natureza de particular ou semi-público está legitimada a acção cível em separado, por se tratar de uma excepção, tese adoptada no acórdão recorrido. Argumenta-se com a interpretação literal da alínea c) do nº 2 do art.72 e pelo facto de dela não constar qualquer entrave ou impossibilidade (cf, por ex., Ac RG 17/12/2018 (proc. nº 1286/17), Ac RG 31/1/2019 (proc. nº 5316/17), Ac RP de 5/1/2002 (proc. nº 00221011), disponíveis em www dgsi.pt ) Não parece, com o devido respeito, que seja de acolher esta posição, considerando a interpretação teleológica e sistemática da norma da alínea c) do nº 1 do art.72 CPP. A alínea c) do nº 1 do art. 72 deve ser complementada com o nº 2 do art. 72 (“No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”). Isto significa que havendo acção penal, o pedido de indemnização cível dever ser deduzido no processo penal, vigorando consequentemente a regra da adesão obrigatória. Neste sentido, acentuando a conjugação de ambas as normas, o Ac STJ de 30/4/2019 (proc. nº 1286/18), em www dgsi.pt, justifica - “Deste contexto normativo, resulta que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal. Por isso, para a ação em separado, não basta que o procedimento dependa de queixa ou de acusação particular, é indispensável que não se exerça o direito de queixa ou de acusação, isto é, que o lesado renuncie ou esteja em situação equivalente a renúncia a tal direito. De outro modo, para além de não se seguir a melhor interpretação legal, estar-se-ia a comprometer em grande parte o princípio da adesão”. Também no Ac RP de 15/6/2020 (proc. nº 382/18), em www dgsi.pt, seguiu a mesma orientação, ao decidir que “ Da conjugação do art.71 e 72 nº 2 do CPP resulta que, havendo acção penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização tem obrigatoriamente de ser deduzido na acção penal”. Como reforço de argumentação, ainda o Ac STJ de 27/4/2011 (proc. nº 712/00), em www dgsi.pt, que parte da norma do art.72 nº 2 CPP para concluir pela “forma abrangente” do princípio da adesão em processo penal. Daí que se a acção cível vier a ser proposta após a instauração da acção penal, que dependa de queixa (como na situação dos autos) a norma aplicável é a do art.72 nº 1 a) e b) CPP, como, aliás, já se entendia anteriormente a propósito da aplicação do art.30 do CPP/29.”
Do mesmo modo, o ac. STJ, de 15.03.2023, Proc. 4303/20.0T8VIS.C1.S1, com o sumário: I - A infração penal pode causar danos que se consubstanciam em lesões de direitos civis, com vista ao seu ressarcimento, resulta manifesta a opção do legislador no sentido da interdependência, ou adesão, que se carateriza essencialmente pela imposição da obrigatoriedade da dedução do pedido cível, resultante da prática de um ilícito penal, seja realizada no processo penal, que deste último conhece. II- O lesado no âmbito de crimes semipúblicos tem duas opções: se opta, antes da queixa, pela ação cível em separado, impede o exercício da ação penal através da renúncia; se opta pela ação penal, então a ação civil, terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória. III- Deduzido procedimento criminal, com a instauração da ação criminal nos crimes semipúblicos e particulares, a ação cível em separado contemplando o pedido cível, daria lugar a uma duplicação de processos, contrariando frontalmente o princípio da adesão. IV- A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência em razão da matéria do tribunal cível.
No mesmo sentido, desta Relação e secção, subscrito pelo ora primeiro adjunto, o ac. de 15.6.2020 (Proc. 382/18.8STS-A.P1): Da conjugação do art. 72/1 c) e 72/2 CPP resulta que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal.
Tanto basta para manter a decisão, no tocante a esta al. c).
A recorrente invoca, agora, a al. a) do n.º 1 do art. 72.º CPP (O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;), alínea não anteriormente argumentada por si e nem tratada na sentença recorrida.
Para já, não há nos autos prova de que no processo penal aqui em causa não tenha sido proferida acusação em oito meses a contar da queixa ou o processo tenha estado parado por esse período.
Porém, mesmo que assim fosse, esta alínea permite ao lesado instaurar ação cível em separado quando o processo penal esteja parado - antes ou depois de ser proferida a acusação – durante mais de oito meses, de modo a que este não tenha que esperar pela decisão final do processo penal para se ver ressarcido dos seus danos.
No caso dos autos, a acusação foi deduzida em abril de 2021, o acórdão condenatório em primeira instância é de novembro de 2022 e a A. apenas propôs a ação em julho de 2023, pelo que não será de boa-fé que invoca a al. a) em apreço pois que a demora não ficou a dever-se ao processo penal.
Este argumento é, pois, julgado improcedente.
Quanto à al. d) do n.º 1 - Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão – mantêm-se o que consta da sentença de primeira instância: na altura em que foi notificada em processo penal para formular pic, já a A. conhecia a maior parte dos seus danos, sendo entendimento maioritário o já exposto nesta Relação e secção e, nomeadamente, subscrito pela ora relatora, no ac. de 19.2.2024, Proc. 1116/22.8T8VLG.P1: I - No âmbito do direito processual penal, encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art. 71.º do CPP). II - O facto de no momento em que é deduzida a acusação o lesado não estar em condições de poder quantificar os danos conhecidos, não constitui motivo para deduzir em separado o pedido de indemnização, com fundamento no art.72.º/1/d) CPP. O que releva para efeito de aplicar a norma é o desconhecimento dos danos em toda a sua extensão.
O que acaba de se expor vale, igualmente, para os danos punitivos (que explicitámos no acórdão anterior) porquanto estes se ligam, inelutavelmente, aos crimes imputados na acusação pública de que a lesada teve oportunamente conhecimento e, mesmo que se entenda que, parte destes poderiam resultar de atuação posterior do agente/lesante – mas sendo verdade que o fundamento da responsabilidade civil é o facto ilícito, isto é, os crimes (art. 483.º CC) – o que se não aceita, porque a presente ação e os pedidos não foram efetuados com base em qualquer violação de medidas coativas impostas ao arguido, o certo é que estes danos já se entreviam em sede de processo penal, podendo aí ser logo peticionados, como deviam, ainda que eventualmente o não fossem em toda a sua extensão, como se refere no último acórdão citado.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 13.1.2025.
Fernanda Almeida
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha
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[1] Que junta como doc. 10, acordo este datado de 3.1.2022.
[2] PINTO, Rui, O valor extra-processual da prova penal na demanda civil: algumas linhas gerais de solução. In PINTO, Rui, coord. - Coletânea de estudos de processo civil. 1.ª ed., 2103. P. 69-104.