COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
AÇÃO POPULAR
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DO CONSUMIDOR
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
TRANSPORTE AÉREO
DANO
LUGAR DA PRÁTICA DO FACTO
DOMICÍLIO
REENVIO PREJUDICIAL
REQUISITOS
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
RECURSO PER SALTUM
Sumário


I - O art. 7.º, n.º 2, do Regulamento n.º 1215/2012, confere competência internacional ao tribunal:
i - do lugar do evento causal que está na origem do dano ou
ii - do lugar da materialização do dano.
II - Quando estes locais não sejam coincidentes o réu poderá ser demandado, à escolha do autor, perante o tribunal de um ou outro destes lugares.
III - Para determinar o lugar da materialização do dano é exigida pela jurisprudência do TJUE a verificação, num determinado país, da ocorrência de um dano diretamente decorrente do evento causal (dano inicial).
IV - Sendo este, o tribunal melhor colocado para dirimir o litígio numa perspetiva de proximidade com o mesmo e facilidade na recolha de provas e, bem assim, na perspetiva da expectativa das partes.

Texto Integral


P. 4321/23.6T8VNG.S1

Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

I.1. CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION autora interveniente e AUTORES POPULARES vieram intentar ação popular contra VUELING AIRLINES, S.A. pedindo:

A. deve ser declarado que fazer depender a venda de um serviço aos autores populares da aquisição de outro serviço funcionalmente independente por parte destes é uma prática restritiva da concorrência e proibida por lei;

B. deve ser declarado que uma bagagem de mão, não registada, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpram integralmente as regras aplicáveis em segurança, é um item essencial e previsível do preço final do serviço de transporte, enquanto offspring da atividade da ré;

C. deve ser declarado que a ré que não pode aplicar um sobrepreço ao preço final do serviço de transporte aéreo quando o consumidor se faz acompanhar de uma bagagem de mão, não registada, com dimensões até 55x40x20cm e que cumpra integralmente as regras aplicáveis em segurança;

D. deve ser declarado que a ré agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, quanto aos autores populares;

E. deve ser declarado que a ré, com o seu comportamento, violou o decreto-lei 57/2008, nomeadamente, os artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1,a) desse diploma;

F. deve ser declarado que a ré, com o seu comportamento, violou a lei 24/96, nomeadamente, os artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7, (4) e 8 (1, a, c, d) (2) desse diploma;

G. deve ser declarado que a ré, com o seu comportamento, violou o artigo 2 (1), da lei 67/2003;

H. deve ser declarado que a ré, com o seu comportamento, o artigo 11, da lei 19/2012;

I. deve ser declarado que a ré, com o seu comportamento, violou o artigo 102, do TFUE;

J. deve ser declarado que a ré, com o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e tido com os autores populares, é ilícito;

K. deve ser declarado que a ré, com a totalidade ou parte desses comportamentos, lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;

L. deve ser declarado que a ré, em resultado do comportamento supra descrito no § 3 desta peça processual, provocou os danos patrimoniais e não patrimoniais referidos no § 3 desta peça processual;

- e em consequência, para o caso de qualquer um dos pedidos supra proceder, ou em qualquer outro caso onde se verifique que o comportamento da ré lesou os interesses (direitos) legalmente protegidos dos consumidores,

M. deve a ré ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a determinar nos termos do artigo 609 (2) do CPC;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal,

N. subsidiariamente ao ponto anterior ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, mas sempre tendo em conta os 25 euros por segmento de voo do transporte aéreo contratado nos termos supra referidos, quer os autores populares tenham pago tal valor para transportar a trolley bag ou, para evitar esse custo abusivo, não tenham simplesmente transportado a trolley bag;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

O. deve a ré ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, de acordo com o douto juízo desse tribunal;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

P. deve a ré ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:

a. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

Q. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexo e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que entretanto venha obter por via de celebração de um contrato [cf. artigos 21 e 22 (5), in fine, da lei 83/95].

R. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2) do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.

S. requer-se ainda que Vossa Excelência decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 14 infra, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.

T. requer-se também que Vossa Excelência decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.

I.2. A ação deu entrada nos Juízos Centrais Cíveis de Vila Nova de Gaia.

I.3. Em 20-09-2023 foi proferido despacho que admitiu liminarmente a petição de ação popular e ordenou a citação dos interessados e, logo que estabilizado o lado ativo da instância, ordenou a citação da ré.

I.4. Citada, veio a Ré contestar invocando as exceções de incompetência internacional, ilegitimidade ativa e inadmissibilidade da ação popular, com a consequente absolvição da mesma da instância, logo em sede de despacho saneador ou, em alternativa face à impugnação parcial dos factos, julgar-se a presente ação improcedente, por não provada.

I.5. Em 02-10-2024 foi proferida decisão que julgou os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para decidirem a presente ação, sendo competentes os tribunais espanhóis onde se situa a sede da Ré, absolvendo a Ré da instância.

I.6. Fazendo uso da seguinte fundamentação:

«A presente ação funda-se em práticas comerciais levadas a cabo pela ré que os autores consideram ilícitas, respeitantes à comercialização dos seus serviços de transporte com destino ou chegada na União Europeia, práticas adotadas, de forma indiferenciada, com todos os clientes, em situações análogas, sendo os autores populares cidadãos da União Europeia, residentes em Portugal [os autores alegam expressamente que “o pedido não está relacionado com matéria contratual, pois o que é invocada é uma prática ilícita por parte da ré”].

Atenta a configuração da ação, apenas importa atender ao disposto no artigo 7º, n.º 2, do Regulamento (responsabilidade civil extracontratual).

No caso, não está em causa qualquer litígio relativo à exploração de uma sucursal, de uma agência ou de qualquer outro estabelecimento (cfr. artigo 7º, n.º 5, do Regulamento) – o serviço de transporte é oferecido no site da ré, tratando-se de uma venda online, efetuada diretamente através daquele site.

Os autores alegam que os lesados serão todos os cidadãos da União Europeia, consumidores, residentes em Portugal, e que nessa qualidade tenham adquirido os serviços de transportes aéreos da ré e que tenham pago os custos adicionais pelo transporte da bagagem referidos nos autos e impostos pela mesma.

Contudo, os clientes da ré (ainda que residentes em Portugal) podem adquirir o serviço de transporte a partir de qualquer lugar, uma vez que, como os autores alegam, os serviços de transportes são disponibilizados através da internet, com destino ou chegada em qualquer país da União Europeia.

Assim, podendo os clientes da ré (incluindo os cidadãos da União Europeia, consumidores, residentes em Portugal) adquirir o serviço a partir de qualquer local, uma vez que o mesmo está disponibilizado na internet, o lugar do evento que dá origem ao dano é o lugar do evento causal, ou seja, no caso, o lugar da sede da ré, onde foi decidida a prática do comportamento que os autores consideram ilícito.»

I.11. Inconformados, os Autores vieram interpor RECURSO DE REVISTA PER SALTUM, sobre a matéria de direito, nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) aplicável ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3), todos do CPC, diretamente para o COLENDO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, o qual subirá de imediato e com efeito meramente devolutivo.

Assim concluindo as suas alegações de recurso:

1. Os autores interpõem recurso de apelação nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC, por terem legitimidade para tal e estarem em tempo de o fazer (cf.artigo 638, do CPC), por não se conformarem com a sentença proferida e ora recorrida e com a mesma discordarem.

2. A causa petendi no presente processo assenta:

a. Violação das Regras Comuns de Exploração dos Serviços Aéreos: a ré, através de suas práticas comerciais, viola expressamente o artigo 22(1) do regulamento (CE) 1008/2008, ao não incluir de forma clara e inequívoca, no preço final dos serviços de transporte aéreo, itens essenciais e previsíveis, como é o caso da trolley bag.

b. Publicidade Enganosa: a apresentação enganosa das tarifas no site da ré constitui uma forma de publicidade enganosa, induzindo os consumidores em erro quanto ao preço real dos serviços de transporte aéreo, o que é incompatível com uma concorrência leal e transparente.

c. Cobrança Abusiva por Serviços Adicionais: a exigência de pagamento de adicional pela trolley bag, especialmente sob condições variáveis e muitas vezes exorbitantes, representa uma prática abusiva que afeta a transparência e a equidade na formação dos preços.

d. Venda Associada Obrigatória e Coerciva: a ré impõe a aquisição do serviço de transporte da trolley bag conjuntamente com outros serviços, como o embarque prioritário e o lugar reservado, configurando uma venda associada obrigatória e coerciva, que é uma prática comercial desleal contrária aos artigos 8 e 9 (d) da diretiva 2005/29/CE.

3. O petitum, tal como articulado na petição inicial, requer que a presente ação seja julgada procedente e que seja declarado que, a ré, ora recorrida, incorreu nos comportamentos ilícitos retro descritos e, em virtude desses comportamentos, a ré seja condenada ao pagamento de indemnizações aos autores populares pelos prejuízos causados.

4. Os autores populares são portugueses, residentes em Portugal, que tenham sido alvo da prática ilícita da ré.

5. O que se discute nestes autos é, portanto, o comportamento ilícito da ré, que é matéria extracontratual.

6. O dano materializa-se em Portugal, local de residência dos autores.

7. Assim, a única questão em causa neste recurso é:

a. competência Internacional: o tribunal apreciou a exceção dilatória de incompetência internacional, culminando na absolvição da ré da instância.

8. A sentença decidiu pela incompetência internacional, culminando na absolvição da ré da instância, por entender que a interpretação do artigo 7 (5) do regulamento 1215/2012, assim o impõe.

9. Pelas razões sustentadas em § 5 supra para onde se remete, entendem os autores populares que os tribunais portugueses são competentes para decidir este processo, mas que de forma resumida, sustentam com o seguinte:

10.A competência internacional dos tribunais portugueses deve ser analisada com base na relação jurídica subjacente à ação, considerando a causa de pedir e o pedido formulado pela parte autora, conforme estabelecido nos regulamentos europeus e convenções internacionais pertinentes, em especial o regulamento (UE) 1215/2012.

11.Destaca-se que a presente ação, sendo uma ação coletiva popular movida por uma associação de defesa dos consumidores e pelos consumidores finais afetados pelas práticas da ré, pode afastar o âmbito de aplicação do artigo 18 (1) do regulamento (UE) 1215/2012, mas tem aplicabilidade o artigo 7 (2) desse mesmo regulamento.

12.Assim, defende-se que, em conformidade com o artigo 7(2) do regulamento (UE) 1215/2012, a competência especial em matéria extracontratual permite que a ré, domiciliada em outro Estado membro, possa ser demandada no tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, fundamentando a competência internacional dos tribunais portugueses para o caso em análise.

13.Salienta-se a jurisprudência do TJUE, que reconhece a importância do lugar do evento causal e do lugar da materialização do dano para determinar a competência jurisdicional, em especial quando o dano se manifesta de forma concreta e individualizada nos consumidores afetados.

14.Em resumo, a interpretação do artigo 7 (2) do regulamento (UE) 1215/2012, deve ser de acordo com a seguinte jurisprudência:

a. Interpretação Autónoma da Competência Especial em Matéria Extracontratual: o TJUE, no caso Gtflix Tv v. DR, C-251/20, sublinha a necessidade de uma interpretação autónoma da regra de competência especial em matéria extracontratual, alinhada aos objetivos e ao sistema do regulamento 1215/2012, garantindo assim a aplicação uniforme deste regulamento em todos os Estados-Membros.

b. Delimitação dos Conceitos de Matéria Contratual e Extracontratual: no acórdão HRVATSKE ŠUME d.o.o., Zagreb v. BP EUROPA SE, C-242/20, o TJUE clarifica que os conceitos de “matéria contratual” e “matéria extracontratual” não devem ser interpretados com base na qualificação dada pela lei nacional aplicável, mas sim de forma autónoma, em consonância com os princípios do regulamento 1215/2012 – in casu, trata-se, inequivocamente, de matéria extracontratual.

c. Amplitude do Conceito de Matéria Extracontratual: O TJUE, em HRVATSKE ŠUME d.o.o., Zagreb v. BP EUROPA SE, C-242/20, destaca que o conceito de matéria extracontratual é amplo e abrange qualquer pedido que envolva a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionado com uma obrigação contratual livremente consentida – percebe-se, a esta luz que, in casu, trata-se, inequivocamente, de matéria extracontratual.

d. Determinação do Lugar do Evento Causal e da Materialização do Dano: o processo Wikingerhof GmbH & Co. KG v. Booking.com BV, C-59/19, esclarece que uma ação se enquadra na matéria extracontratual, conforme o artigo 7 (2), do regulamento 1215/2012, quando o demandante invoca a violação de uma obrigação se impõe ao demandado independentemente desse contrato percebe-se, a esta luz que, in casu, trata-se, inequivocamente, de matéria extracontratual.

e. Identificação do Lugar da Materialização do Dano: conforme estabelecido no acórdão Cartel Damage Claims (CDC) Hydrogen Peroxide SA, C-352/13, o lugar da materialização do dano é considerado onde o dano efetivamente se manifesta – in casu, sendo os autores populares residentes em Portugal, o dano manifestou-se em Portugal.

f. Aplicabilidade do Regulamento a Ações Coletivas: o acórdão Verein für Konsumenteninformation v. Volkswagen AG, C-343/19, reitera que a interpretação dada pelo TJUE às disposições dos regulamentos e convenções anteriores é igualmente válida para o regulamento 1215/2012, quando as disposições podem ser consideradas equivalentes, aplicando-se, portanto, às ações coletivas – in casu, trata-se de uma ação coletiva, do subtipo popular.

15.Clarifica-se que a jurisprudência emanada do processo C-464/18 não é aplicável ao caso vertente, uma vez que a ação não foi intentada contra a sucursal da ré em Portugal, mas sim contra a própria ré, com sede em outro Estado membro e que o retro referido processo visava resolver a questão da falta de legitimidade passiva da ali ré e não, verdadeiramente, a competência internacional do tribunal daquele Estado Membro.

16. Por fim, o supra referido tem sido desenvolvido e melhor concretizado pelo TJUE, que tem esclarecido a propósito da solução consagrada no artigo 7 (2) do regulamento 1215/2012 o que a regra de competência especial que esta disposição prevê por derrogação da regra geral da competência dos órgãos jurisdicionais do domicílio do demandado estabelecida no artigo 4.° desse regulamento baseia-se na existência de um nexo particularmente estreito entre o litígio e os tribunais do lugar onde ocorreu o facto danoso, suscetível de justificar uma atribuição de competência a estes últimos por razões de boa administração da justiça e de organização útil do processo (…) Com efeito, em matéria extracontratual, o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso é normalmente o mais apto para decidir, nomeadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de administração das provas – §§ 29 e 30 do acórdão ZK, contra insolvência da BMA Nederland BV, de 10.03.2022, processo C-498/20.

17. A interpretação que se faz do artigo 7 (2), do retro referido regulamento nos termos enunciados é a mais compatível com o defendido supra.

18.Por fim, não se diga que o aludido regulamento não se aplica às ações coletivas (algo que a sentença nem colocou em causa, porquanto aplicou efetivamente esse regulamento para fundamentar a sua sentença), porquanto não se consegue retirar do artigo 7(2) do aludido regulamento, nem do seu artigo 1, nenhum fundamento para excluir as ações coletivas.

19.Se no que respeita à aplicação do artigo 18(1), do mesmo diploma, o argumento em análise se revela decisivo, uma vez que a norma faz expressa menção a consumidor, já o artigo 7 (2) não faz a mínima referência ao sujeito.

20. Isto mesmo resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão Henkel, de 01.10.2002, processo C-167/00, supra referido.

21.Neste aresto foi submetida ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial: O pedido de cessação de utilização de cláusulas gerais de contratos ilícitas ou contrárias aos bons costumes, previsto pelo § 28 da [KSchG], formulado por uma organização de consumidores ao abrigo ao abrigo do § 29 da mesma lei e com referência ao artigo 7.°, n.° 2, da Directiva 93/13/CEE [...], constitui uma acção em matéria extracontratual que pode ser intentada no órgão jurisdicional investido de competência especial ao abrigo do artigo 5.°, ponto 3, da Convenção de Bruxelas [...]? 22.A conformação do pedido, em particular a identidade do demandante, é reveladora de que se tratava de uma ação coletiva. Ora, a resposta do Tribunal foi afirmativa, daqui resultando, sem qualquer dúvida, que as ações coletivas estavam incluídas no âmbito de previsão do citado artigo 5, ponto 3, da Convenção de Bruxelas.

23.Esta jurisprudência é aplicável ao artigo 7 (2) do regulamento 1215/2012, pois é equivalente ao artigo 5, ponto 3, da Convenção de Bruxelas.

24.A sentença recorrida considera que não é aplicável a regra especial consagrada no artigo 7 (2), do Regulamento 1215/2012 nos termos em que atribui a competência internacional aos tribunais portugueses, porque parece entender que o local onde alegadamente ocorreu o facto danoso foi em Espanha.

25. Segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça a expressão «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso» abrange simultaneamente o lugar do evento causal e o da materialização do dano, sendo cada um deles suscetível, segundo as circunstâncias, de fornecer uma indicação particularmente útil no que diz respeito à prova e à organização do processo – § 27 acórdão do TJUE de 21.12.2021, processo C-251/20.

26. Mais resulta da jurisprudência do TJUE que o lugar da materialização do dano é aquele onde o alegado dano se manifesta concretamente e que quanto ao dano que consiste em acréscimo de custos pagos em razão de um preço artificialmente elevado”, como é aqui o caso – embora no acórdão em questão se trata-se de um caso de cartel – esse lugar só é identificável para cada alegada vítima individualmente considerada e, em princípio, encontra-se na sede social desta” – § 52 do acórdão Cartel Damage Claims (CDC) Hydrogen Peroxide SA, de 21.05.2015, processo C-352/13.

27. Sobre esta matéria esclareceu ainda o TJUE que (sublinhado nosso) quando o mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial se localiza no Estado-Membro em cujo território o alegado dano supostamente ocorreu, há que considerar que o lugar da materialização do dano, para efeitos da aplicação do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, se localiza nesse Estado-Membro, acrescentando que esta solução corresponde, com efeito, aos objetivos de proximidade e de previsibilidade das regras de competência, na medida em que, por um lado, os tribunais do Estado-Membro no qual se situa o mercado afetado são os mais bem colocados para apreciar essas ações de indemnização e, por outro, um operador económico que se dedica a comportamentos anticoncorrenciais pode razoavelmente esperar ser demandado nos tribunais do lugar onde os seus comportamentos falsearam as regras de uma sã concorrência e que esta determinação do lugar da materialização do dano está também em conformidade com as exigências de coerência previstas no considerando 7 do Regulamento (CE) n.o 864/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II) (JO 2007, L 199, p. 40), na medida em que, segundo o artigo 6.o, n.o 3, alínea a), deste regulamento, a lei aplicável às ações de responsabilidade civil relacionadas com uma restrição de concorrência é a lei do país em que o mercado seja afetado ou seja suscetível de ser afetado – §§ 33 a 35 do acórdão Tibor-Trans Fuvarozó és Kereskedelmi Kft contra DAF Trucks NV, de 29.06.2019, processo C-451/18.

28.Não há razões, parece-nos, para divergir da jurisprudência citada, que é aplicável, por identidade de razões ao presente caso em que os potenciais lesados são pessoas singulares, portugueses, residentes em Portugal.

29.A sua aplicação ao caso concreto conduz à afirmação da competência internacional do presente Tribunal.

30.E mais, não se venha invocar a ratio legis do aludido regulamento, designadamente os considerandos 15 e 16, no sentido de deve ser feita uma interpretação atualista do artigo 7 (2) do retro referido regulamento, de acordo com esses considerandos, com o fundamento da importância de assegurar que a competência deve apresentar um elevado grau de certeza para os litigantes na UE, de uma forma geral e assim evitando que a se possa ser demandado em tribunais de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para o demandado, alegando que a ré não poderia esperar ser demandada em Portugal, por factos ilícitos que foram decididos em Espanha.

31.Pois este argumento também não é procedente, pois a interpretação alcançada é a mais previsível, à luz da jurisprudência citada e porque a ré, na verdade, tem sido a demandada e condenada em vários processos em Portugal, nomeadamente por atrasos ou cancelamento de voos.

32.Pois resulta da jurisprudência do TJUE, conforme referido, que o conceito de facto danoso inclui a materialização do dano e que esta materialização ocorre, no caso de sobre custo provocado por práticas restritivas da concorrência e comportamentos ilícitos, seja a cobrar por um item que é offspring da atividade da ré e não um verdadeiro serviço por esta prestado ou seja pela prática de coercive tie selling, sendo então o local onde o potencial lesado tem a sua residência que é o local da materialização do dano; que quando o mercado afetado pelo comportamento anticoncorrencial e ilícito se localiza no Estado-Membro em cujo território o alegado dano supostamente ocorreu, há que considerar que o lugar da materialização do dano, para efeitos da aplicação do artigo 7 (2), do regulamento 1215/2012, se localiza nesse Estado-Membro; e que esta solução respeita a ratio legis do retro ferido regulamento.

33.Por fim, ainda que os factos danosos (evento causal) tenham ocorrido em Espanha, já se defendeu supra que este não é o único fator de conexão, pelo que o facto da ré ter a sua sede em Espanha e de ser aí que exerce a sua atividade e decidiu pela adoção dos factos ilícitos, isso não significa, à luz da jurisprudência citada, que o dano não se tenha materializado em Portugal, pois materializou por ser em Portugal onde residem os consumidores afetados e representados na presente ação.

§8 Pedido

Termos ex vi supra em que deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta decisão e declarado que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para decidir a presente ação, ordenando a baixa do processo à primeira instância, para aí seguir os seus termos.

Em qualquer caso, na hipótese de Vossas Excelências, Colendos(as) Senhores(as) Juízes(as) Conselheiros, entenderem que os acórdãos supra citados não são claros no sentido de permitir interpretar uniformemente o direito da União Europeia quanto à aplicabilidade do regulamento 1215/2012, atento aos factos concretos nos presentes autos, requer-se o reenvio para o TJUE, para interpretação prejudicial no sentido de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente ação nos termos desse regulamento.

Contra-alegou a Ré, aduzindo as seguintes conclusões:

- O presente recurso de revista per saltum é, processual e formalmente, inadmissível, considerando que não se encontram verificados os pressupostos de que depende a respetiva interposição, admissão e tramitação, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 678.º, do CPC.

- Primeiro, da leitura e análise das conclusões de recurso resulta que não só estas são totalmente omissas quanto ao pedido para que o recurso seja tramitado como per saltum perante o Supremo Tribunal de Justiça como referem, específica e expressamente, que se trata antes de um recurso de apelação, chamando à colação precisamente as normas aplicáveis a esse tipo de recurso (e não recorrendo, sequer, ao disposto no artigo 678.º, n.º 1, do CPC, que estabelece o regime aplicável ao recurso de revista per saltum).

- Segundo, e mesmo que fosse concebida a hipótese académica da referência a “recurso de apelação” por mero lapso de escrita, a verdade é que, lidas as conclusões de recurso, constata-se que aí não se encontra vertida qualquer explicação, por mais elementar que seja, acerca da verificação dos pressupostos para a subida do presente recurso diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça.

- Por último, e terceiro, a verdade é que o presente recurso versa sobre uma decisão que decretou a incompetência absoluta do Tribunal, revestindo um recurso clássico a ser interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 2, do artigo 644.º, do CPC: “da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal”, de tal modo que é a própria RECORRENTE que afirma o seguinte: “a única questão em causa neste recurso é: a. competência Internacional: o tribunal apreciou a exceção dilatória de incompetência internacional, culminando na absolvição da ré da instância.” (cfr. parágrafo 7, das conclusões, p. 26, das ALEGAÇÕES DE RECURSO).

- Ora, do disposto no proémio do n.º 1, do artigo 678.º, do CPC resulta necessariamente que o recurso de revista per saltum apenas está equacionado para os recursos das decisões, proferidas em 1.ª instância, que ponham termo à causa ou a procedimento cautelar ou a incidente processado autonomamente (cfr. alínea a), do n.º 1, do artigo 644.º, do CPC) ou para os recursos dos despachos saneadores que, sem porem termo ao processo, decidam do mérito da causa ou absolvam da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos (cfr. alínea b), do n.º 1, do artigo 644.º, do CPC).

- O exposto não sofre qualquer abalo em face da decisão, cujo teor a RECORRIDA não ignora, que foi proferida por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 905/23.0T8PVZ.S1, em 7 de dezembro de 2023, na medida em que, nesse processo, a recorrente formulou, expressa e concretamente, o pedido de admissão e tramitação do recurso como per saltum (tendo mesmo, ainda que brevemente, fundamentado o dito pedido), algo que manifestamente não sucedeu neste caso em concreto.

- Em suma, (i) não tendo o presente recurso per saltum sido devidamente formulado, nem fundamentado, e nem (ii) estando verificados os requisitos legais para que o mesmo seja admitido (já que se trata de um recurso de uma decisão que decretou a incompetência absoluta do Tribunal), deve o mesmo ser liminarmente rejeitado ou, no limite, remetido ao Tribunal da Relação do Porto (cfr. n.º 4, do artigo 672.º, do CPC) para aí ser tramitado como recurso de apelação, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 644.º e seguintes do CPC, devendo, aí e em qualquer caso, ser julgado inteiramente improcedente.

- Com efeito, sem conceder quanto ao exposto, e a ser admitido e tramitado o recurso interposto pela RECORRENTE (seja perante este Supremo Tribunal, seja perante o Tribunal da Relação do Porto), sempre o mesmo deve ser julgado improcedente, tendo o Tribunal a quo andado bastante bem ao considerar internacionalmente incompetentes os Tribunais Portugueses para tramitar a presente ação popular.

- Sendo certo que a RECORRENTE (i) aceita que a competência do tribunal deve ser aferida à luz do Regulamento de Bruxelas I (cfr. p. 8, das ALEGAÇÕES DE RECURSO), (ii) reconhece que a regra geral de competência aponta para o tribunal do domicílio do réu (cfr. p. 10, das ALEGAÇÕES DE RECURSO) e (iii) admite que estamos na presença de uma ação de responsabilidade civil extracontratual (cfr. p. 9, das ALEGAÇÕES DE RECURSO), resulta que o ponto de discórdia neste recurso tem que ver, única e exclusivamente, coma aplicação ao caso dos autos do critério estabelecido no n.º 2, do artigo 7.º, do Regulamento de Bruxelas I e na interpretação que deverá ser dada à dita norma, nomeadamente saber qual deve ser aquele que se considera como sendo o local da produção do facto danoso neste caso em concreto.

- Pois bem: entende a ora RECORRIDA que os Tribunais Portugueses não são competentes para conhecer desta ação, sendo certo que a SENTENÇA RECORRIDA não merece qualquer tipo de reparo. E tal sucede por três grandes motivos.

- EM PRIMEIRO LUGAR, a noção de “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso” tem sido reiteradamente interpretada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia como primordialmente apontando para o local onde ocorreu o facto gerador do dano(23), em detrimento do lugar onde se manifestou o dano e/ou onde se fizeram sentir as suas repercussões danosas (interpretação que apenas tem sido admitida a nível subsidiário e excecional).

23 Cfr. a título ilustrativo, Acórdão do TJUE, de 19.09.1995, processo n.º C-364/93, AAcontra Lloyds Bank plc e Zubaidi Trading Company; Acórdão da Terceira Secção do TJUE, de 27.10.1998, processo n.º C-51/97, Réunion européenne SA contra Spliethoff's Bevrachtingskantoor BV e Capitão que comanda o navio “Alblasgracht V002”; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.10.2018, processo n.º 20953/17.9T8LSB.L1-6; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.03.2005; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.09.2010, processo n.º 512/09.0TBTND.C1

- De acordo com a jurisprudência, para efeitos de aferição do lugar do dano, é crucial atender ao modo como se encontra configurada a própria ação, sendo que, no presente caso, os clientes da RECORRIDA adquirem o serviço contratado a partir de qualquer localização porque este é disponibilizado através da internet, sendo que, considerando que o local relevante é o putativo local da prática do facto ilícito (sendo este praticado através da internet), tem necessariamente de se considerar que o local relevante é o local a partir do qual o serviço é disponibilizado, i.e., a sede da ora RECORRIDA, onde é decidida e implementada a conduta qualificada pela ora RECORRENTE como ilícita.

- Com efeito, o local que importa para efeitos de determinação da competência é o local onde os serviços foram colocados à disposição ou “postos em circulação” (i.e., o local da prática supostamente ilícita e violadora dos direitos dos membros da classe), tendo sido este o entendimento perfilhado em decisão recentemente proferida num dos casos “espelho” do presente, em que surge demandada a Ryanair(24). No caso dos autos, tal significa que os tribunais competentes para conhecimento da presente ação são os tribunais da ..., Espanha, onde se encontra situada a sede / administração principal da RECORRIDA.

24 Cfr. p. 4, do despacho de 19.09.2022, proferido pelo Juiz ..., do Juízo Central Cível de ..., no âmbito do 5598/22.0..., junto como DOC. 1, da contestação.

- EM SEGUNDO LUGAR, optar por outro critério interpretativo do n.º 2, do artigo 7.º, do Regulamento de Bruxelas I (em particular, pelo critério da materialização / produção dos danos), resultaria numa pluralidade de locais de hipotética produção de danos, inerente à aglomeração de situações abrangidas pela ação popular, o que geraria, em abstrato, uma multiplicidade de jurisdições potencialmente competentes e, consequentemente, uma total ausência de segurança na determinação de uma concreta jurisdição competente.

- Além de tal resultado ser absolutamente contrário à ratio da norma – que serve um propósito garantístico de atribuir certeza jurídica a situações mais dúbias, a par da flexibilização e da eficiência processual – aplicar o disposto no artigo 7.º, n.º 2, a uma situação como a dos autos configuraria uma interpretação extensiva, forçada e errónea, da regra especial, em detrimento da regra geral (veja-se ainda que esta, prevista no artigo 4.º, do Regulamento de Bruxelas I, é uma norma baseada num princípio de justiça: o sujeito passivo da ação deve ter o direito a ser demandado no tribunal do local onde reside ou está estabelecido, o que facilita a sua defesa).

- De facto, conceber que Portugal poderia ser uma jurisdição alternativa (por alegadamente ser um dos locais em que se vieram a materializar certos danos) em nada contribuiria para a garantia da boa administração da justiça e a organização útil do processo, considerando que é muito mais provável que venham a existir ações (individuais e coletivas) contra a ora RECORRIDA em Espanha, já que, nesse país, a sua expressão no mercado é consideravelmente mais relevante e (possível, hipotética e alegadamente) mais pessoas teriam sido afetadas pela suposta prática danosa. Tal conduziria a que, na prática, viessem a existir decisões potencialmente distintas e conflituantes não apenas em Portugal e Espanha, mas também em qualquer outra jurisdição onde passageiros afetados pudessem vir a iniciar ações similares, para o tratamento da mesmíssima questão.

- Nos casos de difícil concretização do lugar em que ocorreu o dano (como no caso em apreço, por ser impossível individualizar cada cliente e cada viagem inseridos numa ação que se pretende una), tem a jurisprudência(25) entendido que o único lugar que garante a certeza jurídica e estabilidade pretendida pelo Regulamento de Bruxelas I é o da sede da sociedade demandada (i.e., da ora RECORRIDA).

25 Cfr. a título ilustrativo, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.10.2023, processo n.º 20344/21.7T8LSB.L1-7.

- EM TERCEIRO LUGAR, como tem vindo a ser denotado pela doutrina, o critério estabelecido no n.º 2, do artigo 7.º, do Regulamento de Bruxelas I é de difícil aplicação às ações populares, atentas as suas inerentes particularidades.

- De facto, a lógica subjacente ao n.º 2, do artigo 7.º, do Regulamento de Bruxelas I – que, em teoria, visa facilitar a escolha do tribunal competente perante um caso de responsabilidade civil extracontratual – não é transponível para, nem minimamente coadunável com uma ação popular, em que os hipotéticos danos são difusos, afetam uma pluralidade de pessoas, e têm origem na prática de factos supostamente ilícitos cometidos em diversas jurisdições.

- Conceber que uma ação popular com a dos autos pudesse ser intentada quer perante os Tribunais Portugueses, quer perante os Tribunais Espanhóis, quer, ainda perante os Tribunais dos países de destino dos voos operados pela RECORRIDA, ou perante os Tribunais de um qualquer outro país onde os membros da classe tivessem adquirido as passagens aéreas, seria criar uma enorme incerteza e imprevisibilidade para a demandada, fomentar o forum shopping, dificultar a apreciação global dos danos, dificultar a defesa e, no limite, fomentar a existência de decisões conflituantes sobre os mesmos factos e com recurso às mesmas normas jurídicas (uma vez que as normas que regulamentam a atividade da RECORRIDA são essencialmente de origem Comunitária).

- Além disso, a pluralidade hipotética de locais de produção de danos inerente à aglomeração de situações abrangidas pela ação popular, com a consequente escolha de jurisdição alternativa, seria absolutamente contrário ao espírito incutido pela Diretiva (UE) 2020/1828, relativa a ações coletivas para proteção dos interesses coletivos dos consumidores, designadamente quando aí se prevê a possibilidade de instauração de ações coletivas por parte de entidades qualificadas num determinado Estado-Membro em qualquer outro Estado-Membro(26), o que evidentemente facilita a instauração da presente ação nos Tribunais de Espanha (o que, aliás, está perfeitamente ao alcance da RECORRENTE, tanto mais que aparentemente beneficia de financiamento abundante por parte da Justice4All).

26 V. artigos 4.º e 6.º da Diretiva (UE) 2020/1828.

- Mais se diga que a interpretação das regras de competência deve ser feita em conformidade com os objetivos da Diretiva (UE) 2020/1828, assegurando que o sistema processual europeu favoreça a eficiência e a uniformização na proteção dos direitos dos consumidores e na defesa das empresas, independentemente do local onde se encontrem.

- Admitir que uma determinada ação pudesse ser intentada perante qualquer um dos tribunais (de distintos Estados-Membros) onde residissem consumidores membros da Classe, equivaleria a reconhecer uma multiplicidade de jurisdições potencialmente competentes e, consequentemente, uma total ausência de segurança na determinação de uma concreta jurisdição competente. O que por sua vez levaria à fragmentação processual e à possibilidade de serem proferidas decisões contraditórias em diferentes Estados-Membros. O resultado seria uma falta de previsibilidade e ausência de segurança jurídica, o que prejudicaria gravemente o sistema de justiça europeu, comprometendo a eficácia das ações coletivas transnacionais.

- Como tal, deve ser seguido o critério geral de atribuição de competência para efeitos da instauração e tramitação das ações populares, estabelecido no artigo 4.º do Regulamento de Bruxelas I.

- A ser assim, deve manter-se a decisão proferida na SENTENÇA RECORRIDA, reconhecendo-se que os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para tramitar esta ação popular.

- POR FIM, deve o pedido de reenvio prejudicial suscitado pela Recorrente ser rejeitado, dado que não existem quaisquer dúvidas quanto à interpretação do Direito da União Europeia aplicável ao presente caso (tanto que nem sequer a RECORRENTE propõe quaisquer questões a serem colocadas perante o TJUE).

- De facto, os critérios de aferição de competência (seja do artigo 4.º ou do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento de Bruxelas I) encontram-se bem definidos e apreciados em ampla medida pelo TJUE, de tal modo que, neste caso em concreto, apenas se discute a aplicabilidade de tais critérios.

- Ou seja, no que ao pedido de reenvio respeita, têm aplicação ao presente caso tanto a exceção do acte clair, porque as normas subjacentes (i.e., contidas no Regulamento de Bruxelas I) são claras; bem como do acte éclairé, porque os Tribunais europeus como nacionais já se pronunciaram em ampla medida sobre o tema. Quaisquer dúvidas que podem suscitar-se quanto às referidas normas, como identificado por exemplo no Subcapítulo 3.1.3 supra, apenas têm a ver com a aplicação dos referidos critérios aos factos em causa, não se tratando de interpretar o sentido ou o alcance desses critérios.

- Na medida em que apenas se discute a aplicação concreta de critérios de competência ao caso em apreço (não existindo dúvidas quanto à interpretação de normas de direito da União Europeia), apenas os tribunais nacionais têm que decidir o presente caso, o pedido de reenvio seria absolutamente inútil (e, portanto, inadmissível, não sendo sequer da competência do TJUE aplicar normas e critérios, já bem identificados, ao caso concreto).

Termos em que, com o douto suprimento de direito de V. Exas., deve o presente recurso per saltum interposto pela RECORRENTE:

a) Ser julgado como inadmissível e antes autuado como de apelação, perante o Tribunal da Relação do Porto, por não ter sido adequadamente formulado, nem fundamentado, e por não estarem verificados os requisitos previstos do n.º 1, do artigo 678.º, do CPC;

b) Em qualquer caso, ser julgado improcedente e, consequentemente, ser mantida a SENTENÇA RECORRIDA, nos seus exatos termos.

Após os vistos, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, nº 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil), a questão a decidir consiste em saber se os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para tramitar e julgar a presente ação.

Questão que tem subjacente uma outra, que lhe é prévia, sugerida pelas Recorrentes e que se prende com a eventual necessidade de proceder a reenvio prejudicial para melhor interpretação da norma do art. 7º do Regulamento (CE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

III- Fundamentação de facto

A factualidade a considerar resulta do Relatório supra que expõe o pedido e a causa de pedir delineada pelas partes.

IV - Fundamentação de Direito

Importa apurar se o Tribunal de 1.ª Instância fez ou não uma correta interpretação e aplicação do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento 1215/2015 em face do objeto e da configuração fático-jurídica dos autos.

Considerou a 1ª instância que, aplicando ao caso o Regulamento (CE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, em particular o seu art. 7º, nº 2, deve a demanda alusiva a matéria civil extracontratual, como a presente, correr termos no tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso. Entendendo que, para o efeito, deve considerar-se como lugar do evento que dá origem ao dano, o lugar do evento causal. Sendo este, no caso, o lugar da sede da Ré, em Espanha, onde foi decidida a prática do comportamento que os autores consideram ilícito. E, nessa medida, o Tribunal internacionalmente competente para conhecer da presente ação popular será o tribunal espanhol e não o português.

Os apelantes reagiram assentando as suas conclusões de recurso numa diferente interpretação da norma, invocando a jurisprudência do TJUE que reconhece a par da importância do lugar do evento causal, a do lugar da materialização do dano para determinar a competência jurisdicional, em especial quando o dano se manifesta de forma concreta e individualizada nos consumidores afetados, como é o caso.

A apelada contrapôs defendendo que o local que importa para efeitos de determinação da competência é o local onde os serviços foram colocados à disposição ou “postos em circulação” , no caso, os tribunais da ..., Espanha, onde se encontra situada a sede / administração principal da Recorrida. Critério este que previne o risco de se gerar, em abstrato, uma multiplicidade de jurisdições potencialmente competentes e, consequentemente, uma total ausência de segurança na determinação de uma concreta jurisdição competente.

Está em causa a norma do art. 7º nº 2 do Regulamento 1215/2012 que dispõe:

«As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (…)

2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.»

Importando interpretar o que se deve entender por lugar onde ocorreu (ou poderá ocorrer) o facto danoso, o que não resulta consensual entre as partes.

Sugeriram, igualmente, as Recorrentes a possibilidade de uso do mecanismo de reenvio prejudicial para melhor definir a interpretação correta.

O que importa decidir previamente.

O reenvio prejudicial, previsto no artigo 19º, nº 3, al. b) do Tratado da União Europeia (TUE) e no artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), constitui o mecanismo jurídico-processual que permite estabelecer uma cooperação jurisdicional entre o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e os tribunais nacionais, com vista a garantir a uniformidade ou equidade na interpretação e na aplicação do Direito da União.

O art. 19 nº 3 do Tratado da União Europeia prevê que:

«3. O Tribunal de Justiça da União Europeia decide, nos termos do disposto nos Tratados:

(…) b) A título prejudicial, a pedido dos órgãos jurisdicionais nacionais, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições.»

Por sua vez o artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estabelece que:

“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.”(sublinhado nosso).

Adicionalmente, os números 2 a 4 deste artigo preveem que:

“Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.”

“O pedido de decisão prejudicial fomenta a correta aplicação do direito da UE através do ordenamento jurídico dos vários Estados-Membros, sendo, por excelência, um instrumento de diálogo e complementaridade entre os diferentes estratos da organização judiciária” (Luísa Lourenço “O Reenvio Prejudicial para o TJUE e os Pareceres Consultivos do Tribunal EFTA”, Revista Julgar online).

Contudo, como explana o Acórdão do STJ de 26-11-2020, P. 30060/15.3T8LSB.L3.S1 (Catarina Serra) in www.dgsi.pt:

“I. Desde o Acórdão Cilfit que o TJUE vem admitindo a dispensa do dever de suscitar a questão prejudicial por insusceptibilidade de recurso em certas situações, designadamente quando já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões.”

Concretizando o Acórdão, além da pronúncia prévia, dois outros fundamentos de dispensa do reenvio prejudicial: “quando a questão de direito da União Europeia suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto; e quando o tribunal nacional considere que as normas da União Europeia aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas ou são suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adotadas.”

Importa, assim, aferir da necessidade de tal reenvio, nomeadamente por falta de pronúncia prévia do TJUE sobre tal questão.

No caso dos autos estamos perante uma ação popular prevista nos arts. 1º e 12º, nº 2, da Lei nº 83/95, de 31 de agosto com recurso a diversos outros diplomas: DL n.º 57/2008, de 26 de março (art.s 4, 5, 6, 7 e 9 da lei que sanciona as práticas comerciais desleais); Lei nº 24/96, de 31 de julho (art. 3º, al. g) da Lei de Defesa do Consumidor); Lei nº 19/2012 de 08 de maio (art. 11º do regime jurídico da concorrência) e, Lei nº 23/2018 de 5 de junho (art. 9º da Lei que concede direito a indemnização por infração ao direito da concorrência).

Ação popular que visa sancionar práticas alegadamente ilícitas aptas a prejudicar os consumidores, associados ou não da primeira Autora, declarando-as desleais e ilegais e justificativas de compensação/indemnização aos Autores.

Ilicitude essa que se manifesta por duas vias:

1. Violação das regras comuns de exploração dos serviços aéreos na União Europeia;

2. Coercive tied selling

Manifestando-se a conduta da Ré do seguinte modo:

1. Na apresentação enganosa aos consumidores da tarifa normal dos serviços de transporte aéreo oferecidos no site da empresa em português (…), dado que, não inclui, desde 01.11.2008, a chamada trolley bag (bagagem de mão, não registada, até 55x40x20cm), que é um item essencial e previsível do preço final do serviço de transporte, enquanto offspring da atividade da Ré;

2. Em particular, para reservas feitas a partir de 01.11.2018, para voos a serem realizados a partir dessa data, a Ré passou a exigir que os consumidores paguem um sobrepreço pelo transporte do supra aludido trolley bag, por um valor de 25 euros (por segmento de voo), podendo superar esse valor, dependendo do momento da compra do suplemento (além no momento da reserva, após a reserva, no check-in ou embarque no portão);

3. Para além disso, a aquisição do serviço de embarque prioritário só é possível em conjunto com outros serviços, nomeadamente, com a possibilidade de cancelamento gratuito (em crédito de voos), fast-track, alteração ilimitada dos voos, escolha do lugar, trolley bag (bagagem de mão não registada, com medidas até 55x40x20 cm) e mochila (bagagem de mão não registada, com medidas até 40x20x30 cm), num tied bundle designado pela ré como TimeFlex, consubstanciando tal prática numa venda associada obrigatória (tied selling) e uma venda coerciva (coercive selling) na assunção da definição dada pelo artigo 9 (d) da diretiva 2005/29/CE.

Sendo esta, inequivocamente, uma ação de responsabilidade civil extracontratual com previsão na norma do citado art. 7º nº 2 do Regulamento 1215/2012, importa definir o alcance da expressão “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.

Sobre a temática aflorada nestes autos, no âmbito duma ação popular por responsabilidade civil extracontratual este Supremo Tribunal de Justiça proferiu em 14-10-2021, acórdão na Revista 2641/16.0T8LSB.L1-A.S1, (Rosa Tching) in www.dgsi.pt, cuja fundamentação e decisão seguiremos de muito de perto, por com ela concordarmos.

Assim, como no mesmo se desenvolve:

«[c]onforme tem sido reiteradamente declarado pelo TJUE na sua jurisprudência relativa a estas mesmas disposições, que o conceito de «lugar onde ocorreu o facto danoso», refere‑se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes lugares [cfr., em matéria de poluição, Acórdão de 30 de novembro de 1976, Bier, 21/76[16], nºs 24 e 25; relativo a dano material decorrente de produto defeituoso, Acórdão de 16 de julho de 2009, Zuid-Chemie, C-189/08[17], nº 23 em matéria de contrafação, Acórdão de 5 de junho de 2014, Coty Germany, C‑360/12[18], n.°46; em matéria de contrato de administrador de uma sociedade, Acórdão de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o., C‑47/14[19], n.° 72; referente a dano consistente em acréscimos de custos pagos na compra de camiões , em razão de preços artificialmente elevados, Acórdão de 29 de julho de 2019, Tibor-Trans, C-451/18[20], nº 25 e jurisprudência aí referida].” (sublinhado nosso).

Citando o Advogado-Geral Manuel Camps Sánchez-Bordona [Conclusões apresentadas em 2 de abril de 2020, no processo C-343/19, acessíveis in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62019CC0343qid=1630541827666print=true,

Adianta o acórdão que:

«Quando o comportamento ilícito e as suas consequências se situam em Estados-Membros diferentes, o critério da competência judiciária desdobra-se, assumindo-se que, em matéria de responsabilidade extracontratual, ambos os lugares têm uma vinculação significativa com o litígio. Nestas situações, o demandante pode escolher entre as duas jurisdições no momento da propositura da sua ação».

Ressalvando-se a limitação de que, na expressão “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”, o que ressalta da jurisprudência do TJUE, é que, a mesma não pode ser objeto de interpretação extensiva, a ponto de englobar qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um prejuízo efetivamente ocorrido noutro lugar, interessando apenas o dano inicial e não o dano consecutivo, ou seja, o dano acessório de um dano inicial ocorrido.

Igualmente se impõe “a necessidade de distinguir o evento ou eventos causais do dano das consequências (prejuízos) a que dão origem, pelo que, nos casos em que o lugar onde se situa o facto suscetível de implicar responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou um dano não sejam idênticos, tem [tal jurisprudência] considerado como sendo o «lugar da materialização do dano» o lugar onde os efeitos danosos de um facto se manifestam concretamente [cfr. Acórdãos naquele aresto citados].

Impõe-se, assim, concluir que o TJUE já respondeu a esta questão, o que afasta a necessidade de formular, de novo, esta questão prejudicial.

Importando conhecer da situação em apreço.

Tendo em consideração que na fase da verificação da competência internacional, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação não aprecia a admissibilidade nem a procedência da ação segundo as regras do direito nacional, nem está obrigado, em caso de contestação das alegações do demandante por parte do demandado, a proceder a uma produção de prova, cabendo-lhe apenas identificar os elementos de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência ao abrigo do disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2021, devendo, para esse efeito, considerar assentes as alegações pertinentes do demandante quanto aos requisitos da responsabilidade extracontratual por confronto com as objeções apresentadas pela demandada.

A causa de pedir assenta num conjunto de práticas da Ré recorrida, denunciadas pelos Autores recorrentes: Violação das Regras Comuns de Exploração dos Serviços Aéreos; Publicidade Enganosa; Cobrança Abusiva por Serviços Adicionais e, Venda Associada Obrigatória e Coerciva que, em abstrato configuram comportamentos ilícitos e, por via disso, são suscetíveis de justificar o pagamento de indemnizações aos Autores Populares pelos prejuízos causados.

Os Autores Populares são portugueses, residentes em Portugal, que tenham sido alvo ou possam vir a ser alvo da prática ilícita da Ré. Tal prática manifesta-se ou há-de manifestar-se no ato de compra on-line dos serviços da Ré. Logo, o dano tendencialmente materializa-se em Portugal.

O comportamento ilícito da Ré, pela sua exteriorização e difusão, constitui matéria extracontratual, pelo que, não se integra no âmbito de aplicação do artigo 18 (1) do Regulamento (UE) 1215/2012, esse sim respeitante a consumidores concretos e em situações de responsabilidade contratual.

Logo, impõe-se a aplicação ao caso do disposto no artigo 7(2) do regulamento (UE) 1215/2012, que permite que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro possam ser demandadas noutro Estado-Membro, em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.

Considerando a relação jurídica subjacente à ação, considerando a causa de pedir e o pedido formulado pela parte Autora, considerando, ainda a jurisprudência do TJUE, que reconhece a importância do lugar do evento causal e do lugar da materialização do dano para determinar a competência jurisdicional e, não havendo dúvidas que, havendo dano, ele se materializa de forma concreta e individualizada em Portugal, onde residem os interessados nos serviços da Ré, Autores Populares representados ou com potencial representação pela Autora CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, não poderia o tribunal a quo ter afastado a competência internacional dos tribunais portugueses no presente caso.

Assim, poderiam os Autores ter escolhido o tribunal do lugar do evento causal ou o tribunal do lugar da materialização do dano, uma vez que não são coincidentes.

Sendo aquele, o Tribunal melhor colocado para dirimir o litígio numa perspetiva de proximidade com o litígio e facilidade na recolha de provas e, bem assim, na perspetiva da expectativa das partes.

Tendo escolhido o lugar da materialização do dano, tal escolha mostra-se lícita e conforme à jurisprudência do TJUE na interpretação do artigo 7(2) do regulamento (UE) 1215/2012.

Devendo proceder a Revista.

Síntese conclusiva

1. O artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento 1215/2012 confere competência internacional ao Tribunal:

i. do lugar do evento causal que está na origem do dano ou

ii. do lugar da materialização do dano.

2. Quando estes locais não sejam coincidentes o réu poderá ser demandado, à escolha do autor, perante o Tribunal de um ou outro destes lugares.

3. Para determinar o lugar da materialização do dano é exigida pela jurisprudência do TJUE a verificação, num determinado país, da ocorrência de um dano diretamente decorrente do evento causal (dano inicial);

4. Sendo este, o Tribunal melhor colocado para dirimir o litígio numa perspetiva de proximidade com o mesmo e facilidade na recolha de provas e, bem assim, na perspetiva da expectativa das partes.

Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar procedente a Revista e em revogar o Acórdão recorrido, julgando em consequência os tribunais portugueses competentes em razão da nacionalidade para conhecer da presente ação popular.

Custas da revista a cargo da Recorrida.

Lisboa, 14 de janeiro de 2025

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Manuel Aguiar Pereira (1º Adjunto)

Maria Clara Sottomayor (2ª Adjunta)