CONTRATO DE COMPRA E VENDA
INEFICÁCIA DO NEGÓCIO
PROPRIETÁRIO
PROCURAÇÃO
FALSIFICAÇÃO
TERCEIRO ADQUIRENTE
BOA -FÉ
BEM IMÓVEL
REGISTO
INVALIDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Sumário


I - Quer o art. 291.º do CC, quer o art. 17.º, n.º 2, do CRgP, introduzem no regime legal um mecanismo de proteção de terceiros de boa fé: a inoponibilidade ao terceiro adquirente, observadas que estejam determinadas condições, dos efeitos da declaração da nulidade ou da anulação do negócio originário.
II - O art. 291.º do CC, regula as situações em que o titular do direito aliena a um sujeito que, em seguida, transmite a um outro o terceiro adquirente numa cadeia sucessiva em que o negócio originário padece de invalidade.
III - O art. 17.º, n.º 2, complementado pelo art. 5.º, ambos do CRgP, está previsto para uma situação triangular, ou seja, aquela em que o terceiro adquirente celebra com o alienante um negócio incompatível com outro, celebrado anteriormente pelo mesmo alienante.
IV - Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º do CC, a inoponibilidade da nulidade e da anulação a terceiros, que hajam adquirido de boa fé, mediante negócio oneroso e que hajam registado essa aquisição antes de decorridos três anos do registo da ação de nulidade ou de anulação, pressupõe que a cadeia de negócios inválidos tenha sido iniciada pelo verdadeiro proprietário.
V - A alienação de coisa alheia como própria é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário, o que torna irrelevante a invocação do disposto no art. 291.º do CC.

Texto Integral


P.1301/20.7T8PTM.E1.S1

Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

Nesta ação em que são Autores AA, e mulher, BB, que também usa CC e, são Rés PRIVILEGE ANCHOR, LDA. (1ª Ré) e, S..., Lda. (2ª Ré), vieram aqueles pedir que:

i) Seja julgada procedente a alegação de falsidade do instrumento de procuração, e a sua autenticação, emitido a favor de DD, declarando-se o mesmo nulo e sem nenhum efeito.

ii) Seja declarada a ineficácia perante os AA do negócio de compra e venda, e seu termo de autenticação, a favor da aqui 1.ª Ré, titulado pelo documento 6, tendo por objeto a Fração autónoma identificada pela letra “GQ”, correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização..., em ..., freguesia de ..., concelho de ....;

iii) Seja declarado nulo, e ordenado o seu cancelamento, o registo de aquisição de propriedade sobre o imóvel descrito em i) a favor da R.1, titulada pela Ap. ...57 de dia 24/10/2019;

iv) Seja igualmente declarado como ineficaz e de nenhum efeito face aos AA. o negócio de compra e venda, e seu termo de autenticação, a favor da aqui 2.ª Ré, titulado pelo documento 11, tendo por objeto a Fração autónoma identificada pela letra “GQ”, correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ....;

v) Ser declarado nulo, e ordenado o seu cancelamento, o registo de aquisição da propriedade sobre o imóvel descrito em i) titulado pela AP. 22 de 2020/01/28 a favor da 2ª Ré, S..., Lda.;

vi) Seja reconhecido aos Autores o direito de propriedade exclusiva sobre o imóvel, correspondente à Fração autónoma identificada pela letra “GQ”, correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização..., em ..., freguesia de ..., concelho de ...., condenando-se as Rés a reconhecê-los como tal;

vii) Sejam as RR. condenadas a reconhecerem os AA. como únicos e legítimos proprietários do imóvel;

viii) Sejam as RR condenadas a restituir tal imóvel à posse dos AA. livre e desocupado de pessoas.

Como fundamento de tais pedidos alegam os Autores que são proprietários desde 1997 de uma fração, tendo esta advindo à sua titularidade por compra que não registaram, embora tenham averbado a aquisição na matriz predial competente e, desde a data de aquisição, pago os impostos e contribuições devidos pela titularidade desta propriedade. imóvel.

Sucede que, em 2019 a fração foi registada em seu nome, através de instrumento de procuração falso no qual se atribuíam poderes de representação dos Autores a terceiro e, posteriormente, com o mesmo instrumento, foi a fração vendida à 1ª Ré que posteriormente a vendeu à 2ª Ré.

Pretendem que tais negócios são ineficazes por falta de poderes de representação do putativo procurador, não podendo as Rés beneficiar do regime de proteção de adquirentes de boa fé consagrado nos artigos 291º do Código Civil e 17º nº 2 do Código de Registo Predial, porquanto este regime tem como pressuposto a presença do verdadeiro titular na base do negócio.

No caso não foram os Autores, verdadeiros proprietários, a iniciar a cadeia de negócios inválidos.

A primeira Ré contestou, alegando ter confiado na informação que lhe fora transmitida, sendo que, ao assumir a condição de terceiro de boa-fé, se encontra protegida pelo disposto no artigo 17º, nº 2 do Código do Registo Predial, não podendo ser prejudicada pela nulidade invocada pelos Autores. Conclui pela improcedência da ação.

A segunda Ré também contestou, reclamando igualmente a qualidade de terceira de boa-fé, concluindo não lhe ser oponível os efeitos da eventual invalidade na transmissão à 1ª Ré, devendo improceder a ação.

Os Autores responderam, mantendo o alegado na petição inicial.

Instruída a causa e realizada a audiência de julgamento a 1ª instância proferiu sentença julgando a ação parcialmente procedente, nos termos do seguinte dispositivo:

«i) julga-se procedente a alegação de falsidade do instrumento de procuração, e a sua autenticação, emitido a favor de DD, declarando-se o mesmo sem nenhum efeito quanto aos AA..

ii) declara-se a ineficácia perante os AA do negócio de compra e venda, e seu termo de autenticação, a favor da aqui 1.ª Ré, titulado pelo documento 6 da petição inicial, tendo por objeto a fração autónoma identificada pela letra “GQ”, correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ....;

iii) ordena-se o cancelamento do registo de aquisição de propriedade sobre o imóvel descrito em i) a favor da 1ª R., titulada pela Ap. ...57 de dia 24/10/2019;

iv) declara-se como ineficaz e de nenhum efeito face aos AA. o negócio de compra e venda, e seu termo de autenticação, a favor da aqui 2.ª Ré, titulado pelo documento 11 da petição inicial, tendo por objeto a fração autónoma identificada pela letra “GQ”, correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ...;

v) ordena-se o cancelamento do registo de aquisição da propriedade sobre o imóvel descrito em i) titulado pela AP. 22 de 2020/01/28 a favor da R.2, S..., Lda.;

vi) reconhece-se aos Autores o direito de propriedade exclusiva sobre o imóvel, correspondente à fração autónoma identificada pela letra “GQ”, correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ...., condenando-se as Rés a reconhecê-los como tal;

vii) condenam-se as RR. a reconhecerem os AA. como únicos e legítimos proprietários desse imóvel;

viii) condenam-se as RR. a restituir tal imóvel à posse dos AA. livre e desocupado de pessoas.

Custas pelas RR..»

1.6. Inconformada com tal decisão veio a Ré S..., Lda., (2ª Ré) recorrer de Revista per saltum, culminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A - O presente recurso de revista tem por objeto a douta Sentença, datada de 1 de Agosto de 2024.

B - No entender da recorrente, a matéria cuja apreciação se suscita junto deste douto Tribunal, reveste-se de enorme importância, a questão que aqui se discute e, no entender da recorrente, aplicável a outras situações judiciais.

C - A análise do conteúdo das disposições nulidade e anulabilidade do negócio jurídico e os seus efeitos e a sua interpretação, bem como a qualificação e aquisição de bem imóvel de um terceiro de boa-fé que se revela uma tarefa que se reveste de elevado grau de complexidade.

D - Dúvidas não existem na douta sentença proferida, quanto à aquisição de boa-fé por parte da ora Recorrente.

E - Não houve qualquer divergência entre a vontade real e a vontade declarada pela a ora recorrente e 1ª ré, nas respetivas qualidades de compradora e vendedora, no documento particular autenticado intitulado de compra e venda, outorgado no dia 23.01.2020, no escritório R..., na Rua ... em ..., pela Dr.ª EE, advogada de profissão.

F - Ficou provado na primeira instância, que as partes quiseram e concretizaram o negócio de compra e venda, mediante o pagamento do preço que foi pago pela recorrente e recebido pela 1ª ré, da forma supra referida, atestado naquele documento particular autenticado, tendo-se transmitido a propriedade para a 2ª ré, sem que lhe tenha subjazido qualquer acordo no intuito de enganar terceiros.

G - Contudo, concluiu o a quo tribunal pela ineficácia do negócio jurídico.

H - Fundamentando a sua convicção pelo artigo 268.º do Código Civil, em detrimento da aplicação do artigo 291.º e 892.º do Código Civil, ou da aplicação do artigo 5.º, 16.º e 17.º do Código do Registo Predial, referindo que não estaríamos perante a invalidade do primeiro negócio celebrado com recurso a procuração com falsificação, mas sim pela ineficácia.

I - Sucede que o legislador ao criar o artigo 291.º do Código Civil, veio proteger o terceiro de boa-fé que em caso de efeitos de nulidade ou anulabilidade, não pode prejudicar os direitos adquiridos sobre um bem imóvel.

J - Vem a ora recorrente discordar da posição doutrinária assumida do a quo Tribunal, caso a ora recorrente não estivesse protegida pelo artigo 291.º do Código Civil, estaria ainda assim, protegida nos seus direitos pelo artigo 16.º e 17.º do Código do Registo Predial, porquanto a recorrente concretizou o registo predial da compra e venda do imóvel.

K - A boa-fé traduz-se na ignorância de que a coisa vendida não pertence ao vendedor, apura-se no momento da celebração do contrato, ou seja, o conhecimento posterior de que a coisa é alheia não afeta as consequências da boa-fé inicial. O que in casu ocorreu, a ora recorrente desconhecia por completo os contornos do negócio de compra e venda realizado anteriormente.

L - O artigo 291.º do Código Civil protege os terceiros adquirentes de boa-fé contra os efeitos retroativos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico , operando como uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos”,

M - O direito relativo legal adquirido pelo terceiro de boa-fé prevalece sobre o direito do antigo titular, transformando esse direito relativo num direito absoluto e que não pode ser eliminado ao terceiro de boa-fé, in casu, 2ª ré, ora recorrente.

N - A falta de legitimidade do vendedor para celebrar o negócio não é razão impeditiva para considerarmos como válido esse negócio. Ora, encontrando-se preenchidos os pressupostos deste artigo, o terceiro adquirente estará protegido, sendo a venda considerada como perfeitamente válida, apesar da ausência de legitimidade por parte do vendedor.

O - A ineficácia do primeiro negócio jurídico, não é razão impeditiva para considerarmos como válido o negócio da recorrente;

P - Concluímos que o negócio da ora recorrente é válido e que na qualidade de terceiro de boa-fé não deve ser condenada a restituir o imóvel e ser reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel, correspondente à fração autónoma identificada pela letra “GQ” correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ...;

Q - Por fim, manter o registo de aquisição da propriedade sobre o imóvel descrito em i).

Requerendo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que, dando provimento ao recurso, absolva a Recorrente de tudo o peticionado pelos Autores.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II. Objeto do recurso

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, nº 4 e 639.º do Código de Processo Civil), importa conhecer:

- Se pode a Recorrente, beneficiar da tutela prevista nos artigos 291º do Código Civil ou nos artigos 16º e 17º do Código do Registo Predial, na qualidade de terceiro adquirente de boa fé, numa cadeia negocial que tendo na sua origem a falsificação de uma procuração, toda ela se desenvolveu à revelia dos verdadeiros titulares do imóvel.

III – Os factos

A 1ª instância fixou a seguinte factualidade:

A –Factos provados:

1- Os Autores adquiriram a fração autónoma identificada pela letra “GQ”, correspondente ao apartamento com o número 121, no piso 11, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ....

2- A aquisição do direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada em 1.º, foi titulada por contrato de compra e venda exarado em escritura pública outorgada em 19 de junho de 1997, lavrada de fls. 25 a 26v.º do Livro de Notas para escrituras diversas com o n.º ...5-F, do Cartório Notarial do Concelho de... (entretanto extinto), perante o Notário então em funções Dr. FF.

3- Os AA. foram representados no ato notarial identificado em 2 destes factos provados por procurador designado para o efeito – o Sr. GG – mediante instrumento de procuração que outorgaram a favor daquele, junto do Consulado Geral de Portugal em ... na data de 18 de março de 1997, cujo original ficou arquivado no Cartório Notarial de ... em maço relativo ao livro de Notas ...5-F.

4- A escritura notarial e, o instrumento de procuração acima identificados, encontram-se depositados à guarda da Notária Dra. HH, com Cartório na Urbanização ..., Rua ... ....

5- A aquisição a favor dos AA. do direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 1 destes factos provados foi precedida da celebração de um contrato promessa de compra e venda com a ali vendedora, vertido em documento particular assinado pelas partes nele intervenientes em 10 de dezembro de 1986.

6- Não obstante os AA. terem adquirido o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 1 destes factos provados, no ano de 1997, nunca realizaram o registo de tal aquisição a seu favor junto da competente conservatória do Registo Predial.

7- Apesar disso, a aquisição foi averbada na matriz predial competente, tendo os Autores pago desde a data de aquisição, os impostos e contribuições devidos pela titularidade da propriedade do imóvel.

8- No decurso do mês de fevereiro de 2020, os AA. tomaram conhecimento de que a fração autónoma de sua propriedade descrita em 1 destes factos provados foi transmitida a favor da aqui Primeira Ré, sem o seu conhecimento, nem autorização, mediante recurso à utilização de um instrumento de procuração falso.

9- Em 21 de outubro de 2019, II, Solicitadora de profissão e nessa qualidade, fez apresentar pessoalmente, junto dos serviços da Conservatória do Registo Predial de ..., uma requisição para o registo da aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel descrito em 1 destes factos provados, a favor dos aqui AA., que ali foi recebida, tendo-lhe sido atribuído o número de Apresentação ...96 de 21/10/2019.

10- A Solicitadora, moto próprio, e nessa qualidade, fez juntar com essa Requisição, uma certidão extraída em 18 de outubro de 2019 da escritura de compra e venda referida em 2 destes factos provados, e caderneta predial atualizada da referida fração.

11- Os AA. não mandataram aquela Solicitadora para proceder ao ato de registo referido em 9 destes factos provados, não a conhecendo, nem alguma vez tendo contactado com esta.

12- A Solicitadora, fazendo constar falsamente a qualidade do representante mandatado dos AA., ignorou os elementos que lhe deveriam ter permitido perceber que haveria um problema com a procuração, como, pelo menos, a idade do procurador, menor à data.

13- Volvidos dois dias do ato registral descrito em 9 destes factos provados, em 23 de outubro de 2019, no escritório da Solicitadora II, sito em sito à Praça ..., foi outorgado um contrato de compra e venda vertido em documento particular (correspondente ao documento junto em cópia com a p.i. com o nº 6), tendo por objeto a venda da imóvel pertença dos AA..

14- Nesse contrato, DD, invocando a qualidade de procurador dos aqui AA., declarou vender a favor da sociedade R. o imóvel propriedade dos AA. identificado em 1 destes factos provados.

15- Declararam os outorgantes do ato que o preço de venda foi de €110.000 (cento e dez mil euros), e que o mesmo teria sido integralmente pago.

16- Pela solicitadora II foi aposto ao documento Termo de Autenticação que, segundo nele vai dito, se mostra registado em Livro numerado com o número ...2-A a fls. 144 e seguintes.

17- Consta também do termo de autenticação declaração da Solicitadora que autuou como entidade certificadora do ato, que o preço de venda teria sido pago por meio de cheque com o n.º ...11 sacado sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e emitido a favor de DD, e que foi efetuada a liquidação e pagamento do imposto devido.

18- Mais consta do referido termo, que a referida Solicitadora teria verificado a suficiência de poderes do Procurador dos AA, “(…) pela Procuração outorgada no Consulado Geral de Portugal em ..., que me foi exibida e restituí.”.

19- No dia 24/10/2019, a Solicitadora II, deslocou-se uma vez mais aos serviços da Conservatória do Registo Predial de ..., onde fez apresentar pessoalmente a Requisição de Registo de aquisição do direito de propriedade a favor da R. Privilege Anchor, que foi registada com o n.º ...57 de dia 24/10/2019.

20- A procuração referida em 18 destes factos provados (e junta aos autos como documento nº 9 da p.i.) é falsa, sendo que os AA. não outorgaram essa procuração, não tendo na mesma aposto, em conjunto ou individualmente, as suas assinaturas ali constantes.

21- Os AA., individualmente ou em conjunto, nunca conferiram mandato ou poderes de representação a DD, que de resto não conhecem, sendo que a procuração a favor de DD é uma falsificação construída sobre o original da procuração emitida pelo Autor marido em 1997, já atrás referida em 3 destes factos provados (e junta aos autos como documento nº 2 da p.i.).

22- Na face do documento nº 9 da p.i. faz-se incluir a menção da intervenção da Autora mulher como outorgante no ato, e bem assim identificando o Sr. DD como procurador dos AA..

23- No verso do documento, o texto foi também adulterado conferindo poderes ao falso procurador para vender o imóvel identificado em 1 dos factos provados.

24- O tipo e o tamanho de letra usados no documento falso de documento 9 são diferentes do original.

25- Na face do documento, são reproduzidas as menções e a imagem das estampilhas fiscais constantes do documento original do documento 2, sendo no seu verso igualmente reproduzidas no fundo de página, a assinatura do funcionário consular e o carimbo do registo da conta, sendo que os dois instrumentos nunca poderiam ter o mesmo número de Registo no Diário do Consulado Geral de Portugal em ..., constando na verdadeira procuração o número de registo 09/97 e na procuração falsa o mesmo número de registo, para atos distintos, e que a estampilha fiscal nunca poderia ter o mesmo número em ambos os documentos, constando na verdadeira procuração o número de estampilha ...57 e na procuração falsa o mesmo número de estampilha, para atos distintos.

26- A procuração de documento 9 foi elaborada através de uma montagem da procuração de documento 2, vendo-se que a assinatura da Vice Cônsul de Portugal executa um traço cujo trajeto da linha passa precisamente no mesmo local em ambos os documentos, com uma precisão irrealizável por uma assinatura manuscrita, exatamente da mesma maneira duas vezes, sendo que o trajeto traçado no final da assinatura da Vice Cônsul passa imediatamente ao lado da letra “O” na palavra “ao”, passa por cima da letra “I” remanescendo apenas o ponto dessa letra na palavra “quantia”, atravessa por completo a letra “A” na palavra “ficando”, infletindo a curva do seu trajeto exatamente no topo da letra ”L” na palavra Livro, terminando por baixo do algarismo 9 no número 97.

27- O próprio reconhecimento do documento de procuração de documento é falso, visto que o Consulado Geral de Portugal em ... não autenticou o documento 9, ou qualquer outro documento constituindo poderes de representação dos AA. a DD.

28- Pelo menos, a R. Privilege Anchor e o seu representante legal que outorgou o ato sabiam que a procuração que constitui o documento 9 era falsa.

29- O procurador DD, à data da outorga da procuração falsa junta como documento nº 9 era menor de idade, pois nasceu em 04 de abril de 1979 e a procuração a seu favor foi outorgada em 18 de março de 1997.

30- No contrato de compra e venda declararam os outorgantes daquele ato que o preço de venda ajustado de € 110.000 (cento e dez mil euros) teria sido pago por meio de cheque com o n.º ...11 sacado sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo emitido a favor do Procurador, mas nenhum valor foi pago pela R. Privilege Anchor pela compra do imóvel referido em 1 destes factos provados, sendo que o cheque referido não foi entregue a DD.

31- A sociedade adquirente, R. PRIVILEGE ANCHOR LDA, é uma sociedade por quotas constituída em 16/03/2018 e não apresenta contas anuais depositadas desde a data da sua constituição.

32- A 1ª R. decidiu alienar o imóvel descrito em 1 destes factos provados, de onde agora constava no registo predial como proprietária, sendo que, por contrato de compra e venda vertido em escrito particular datado de 23 de janeiro de 2020 (junto com a p.i. como documento nº 11), a 1.ª Ré, representada novamente por JJ, declarou vender a favor da aqui 2.ª Ré, representada neste ato por KK, duas frações autónomas, ambas do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização ..., em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...29, e inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo...929, que a seguir se identificam:

i) A fração autónoma identificada sob as letras “GQ” daquele imóvel, que é o apartamento de tipologia “T1”, com o número 121, no piso 11 correspondente ao imóvel em causa nos presentes autos; e

ii) A fração autónoma identificada sob as letras “ED” daquele imóvel, que é o apartamento de tipologia “T2” com o número 79, no piso 8, o qual é propriedade de LL e de MM;

33- O contrato de compra e venda que constitui documento 11, foi elaborado e autenticado por Advogada que nele vai identificada – a Dra. NN, titular da cédula profissional com o n.º ...7L - e outorgado em morada do concelho de ... – Rua ...;

34- Naquele documento, as RR. declararam que o preço de venda ali ajustado foi fixado no montante global de €180.000 (cento e oitenta mil euros), correspondente à soma dos seguintes valores:

i) A quantia de € 70.000 (setenta mil euros) devida pela venda da fração autónoma com a letra “GQ” acima identificada, correspondente ao apartamento com a tipologia “T1” pertença dos aqui AA, e;

ii) A quantia de € 110.000 (cento e dez mil euros) devida pela venda da fração autónoma com a letra “ED” correspondente ao apartamento “T2”com o número 79, no piso 8, pertença dos lesados LL e de MM;

- sendo que, também naquele ato, os representantes das RR. declararam que o preço de venda declarado de € 180.000 (cento e oitenta mil euros) teria sido pago por meio de 2 (dois) cheques bancários com os números ...27 e ...22 emitidos em 23/1/2020 pela Caixa Geral de Depósitos S.A., com o valor de € 70.000 e € 110.000 respetivamente.

35- No dia 27/01/2020, a Advogada NN submeteu por via eletrónica uma Requisição para o Registo de aquisição do direito de propriedade das suas frações a favor da sociedade 2ª R., que foi registada com o n.º ...20 de dia 27/01/2020.

36- Tal procedimento de registo veio a ser concluído com sucesso, mostrando-se desde então a propriedade das duas frações “ED” e “GQ” inscritas a favor da sociedade S..., Lda.;

37- A sociedade 2ª R. é uma sociedade por quotas constituída em 1991, dotada com o capital social de €14.963,94 cujo capital social é detido por quatro sócios e que apresenta como objeto social a atividade de construção civil, compra, venda e revenda de imóveis, sendo a sua gerência composta por pessoas com conhecimentos sobre a atividade imobiliária e o mercado imobiliário, em particular da região algarvia;

38- A 2ª R. pretende, agora, revender o imóvel;

39- Pelo menos, a R. Privilege Anchor e o seu representante legal de modo a apropriar-se ilegalmente do direito de propriedade dos AA. sobre o imóvel descrito em 1 dos factos provados, estando conscientes da ilicitude da sua atuação;

40- Os AA. deduziram já queixa para o efeito de instauração de procedimento criminal contra todos os que consideraram envolvidos na expropriação ilegítima do seu direito de propriedade sobre o imóvel descrito em 1 dos factos provados;

41- Em 2019, o consultor imobiliário OO, agente da C... ..., contactou a 2ª ré com o propósito de vender a fração autónoma descrita em 1 dos factos provados;

42- A 2ª ré não conhecia a 1ª ré e obteve conhecimento do negócio por intermédio do consultor imobiliário OO;

43- O negócio em causa teve duas marcações de escritura, primeiramente no Cartório Notarial da Dr.ª PP, em ..., no dia 16.01.2020, pelas 14h00, mas nessa ocasião não se concretizou pelo facto de o imóvel supra identificado naquela altura apresentar penhoras, sendo que, após a eliminação das penhoras agendou-se novamente a escritura para o dia 23.02.2020, pelas 16h00, desta vez no escritório da R..., na Rua ...em ..., tenho sido então elaborado documento particular autenticado pela Dr.ª NN;

44- A 2ª ré aceitou comprar a fração autónoma “GQ”, pelo preço de 70.000,00€ (setenta mil euros), destarte, os réus fixaram o preço da compra e venda em 70.000,00€ e, para o efeito, a 2ª ré entregou à 1ª ré o cheque bancário nº ...27, sacado sob o Banco Caixa Geral de Depósitos, S.A. e pagou a totalidade do valor acordado e a 1ª ré recebeu o preço acordado;

45- A 1ª ré quis vender, como vendeu, e a 2ª ré quis comprar, como comprou;

46- O Aparthotel ... em apreço foi abrangido pelo processo judicial, que corre termos sob o nº processo 1122/16.1..., no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo de Comércio de ... - Juiz ..., em que o insolvente era a empresa A..., S.A.;

47- A 2ª R. viu que estava aposto na documentação apresentada que o imóvel era pertença da 1ª ré e esta figurava no registo como titular do direito de propriedade;

48- Os presentes autos tiveram o seu início no dia 19/06/2020, tendo a 2ª ré sido citada em 25/06/2020.

IV – O Direito

Está demonstrado que os AA. são titulares do direito de propriedade sobre o imóvel que reclamam e que nunca o transmitiram.

E que a transmissão ocorreu por ação de terceiro, por via duma procuração falsa que permitiu o registo do imóvel em nome dos Autores e, a partir desse registo, a sua posterior venda à 1ª Ré e, desta à 2ª Ré, ora Recorrente.

A sentença começou por apreciar das consequências da falsidade da procuração, nomeadamente da invalidade ou da ineficácia quer do primeiro registo de propriedade, quer do primeiro negócio celebrado com base em procuração falsa, os quais vieram a ser decisivos na realização do segundo negócio celebrado com a 2ª Ré e posterior registo, a qual, sendo desconhecedora daquela falsidade, se apresenta como terceiro de boa fé.

E, porque na origem da cadeia de factos se encontra uma procuração falsa (art. 372º do CC), enquadrou os factos na figura de representação.

Realçando a norma do art. 268º que rege:

“O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”

Desse modo, a sentença reconheceu aos Autores o direito de propriedade exclusiva sobre o imóvel e considerou ineficaz perante os AA o negócio de compra e venda a favor da 1.ª Ré, bem como o subsequente negócio de compra e venda a favor da 2.ª Ré, ordenando o cancelamento dos registos de aquisição a favor de ambas.

Afastando das Rés, nomeadamente da 2ª Ré, sub-adquirente de boa fé, a tutela dos artigos 291º do Código Civil e do artigo 17º, nº 2 do Código do Registo Predial com fundamento em que, sendo o negócio ineficaz em relação ao dono da coisa (a venda, em relação a ele, é res inter alios acta), este não terá que discutir a validade do contrato ou demonstrar que não consentiu a venda e, nem tem necessidade de promover a prévia declaração judicial de nulidade do respetivo contrato.

Sendo o negócio ineficaz em relação ao proprietário, redunda irrelevante a invocação, quer do disposto no artº 291º do Código Civil, quer do disposto no artº 17º, nº 2 do Código de Registo Predial.

E, assim sendo, não gozam os adquirentes de boa-fé, sequer, da proteção consagrada no artº 291º do Código Civil.

Todas estas proposições são corretas e traduzem, à vista dos factos apurados, a solução legal e justa do litígio, como veremos.

Passemos a desenvolver.

Pretende a Recorrente (2ª Ré) beneficiar da tutela prevista no art. 291º do C.Civ. ou nos art.s 16º e 17º nº 2 do C.R.Pred., na qualidade de adquirente de boa fé, independentemente da validade substantiva do negócio celebrado em momento anterior à sua intervenção na cadeia negocial.

Dúvidas não há de que a Recorrente é “terceiro” sub-adquirente de boa-fé, relativamente à aquisição do imóvel registada em 27/01/2020.

Anote-se que a presente ação foi registada em 22/06/2020.

Importa apurar se o campo de aplicação de tais normas abrange a realidade negocial demonstrada nos autos.

Dispõe o art. 291 do Código Civil que:

“1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.

2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.

3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.”

Preceitua o art. 16.º do Código de Registo Predial que:

“O registo é nulo:

a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos;

(…)”

Estabelecendo o art.17.º deste, que:

“1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado.

2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.

3 - A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício.”

Importa ainda colher do Código de Registo Predial o seu art. 5º, que dispõe:

“1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.

(…)

4 - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.” - Redação do Decreto-Lei n.º 533/99, de 11-12.

Segundo Isabel Pereira Mendes in “Código de Registo Predial Anotado e Comentado”, 15ª ed. 2006, as disposições do art. 291º do Código Civil e do nº 2 do art. 17º do Código de Registo Predial completam-se e o seu campo de aplicação está intrinsecamente relacionado.

Nas suas palavras:

“Determinado setor doutrinal1 extrema o campo de aplicação das duas disposições acima referidas. Assim, o art. 291º do Código Civil referir-se-ia ao regime da nulidade substantiva, enquanto o nº 2 do art. 17º do C.R.P. trataria da nulidade registral.

Esquecem, (ou procuram esquecer) os defensores dessa doutrina que o art. 16 do C.R.P., ao enumerar as causas de nulidade do registo, refere algumas que constituem verdadeiras nulidades substantivas.

Com efeito, atente-se nas causas de nulidade mencionadas na última parte da alínea a) e na alínea b) do art. 16º: registo lavrado com base em título falso e registo lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado.

Um título falso enferma de nulidade substantiva, o mesmo acontecendo a um título que não tenha forma legal bastante (artºs 372º, 220º e 289º do C.Civil). Em outros casos de nulidade substantiva, a nulidade do registo será uma consequência da nulidade do título.

Não sendo, pois, lícito distinguir onde a lei não distingue, afigura-se-nos que a melhor doutrina é aquela que defende que as duas disposições se completam e o seu campo de aplicação está intrinsecamente relacionado.

Assim, o art. 17º nº2, do Código de Registo Predial aplica-se tanto aos casos de nulidade registral, como aos casos de nulidade substantiva, tudo dependendo da verificação deste pressuposto: existência de registo inválido anterior a favor de transmitente.”

Aderindo a este entendimento podemos afirmar que, quer o art. 291º do Código Civil, quer o art. 17º nº 2 do Código de Registo Predial, introduzem no regime legal um mecanismo de proteção de terceiros de boa fé: a inoponibilidade ao terceiro adquirente, observadas que estejam determinadas condições, dos efeitos da declaração da nulidade ou da anulação do negócio originário.

Tais normas estão desenhadas para duas situações lineares: o art. 291 do C.Civ. regula as situações em que o titular do direito aliena a um sujeito que, em seguida, transmite a um outro – o terceiro adquirente – numa cadeia sucessiva em que o negócio originário padece de invalidade; o art. 17º nº 2 complementado pelo art. 5º, ambos do C.Reg. Predial, está previsto para uma situação triangular, ou seja, aquela em que o terceiro adquirente celebra com o alienante um negócio incompatível com outro, celebrado anteriormente pelo mesmo alienante.

O art. 291º do Código Civil confere proteção a um terceiro sob uma conceção ampla: “terceiro” é o que adquire a coisa a partir de um adquirente do “primeiro” vendedor na cadeia negocial.

O art. 17.º do Código do Registo na sequência da introdução do n.º 4 no seu artigo 5.º (pelo Decreto Lei n.º 533/99, de 11/12) consagra no direito registral um conceito mais restrito, considerando “terceiro” apenas aquele que adquire de um mesmo autor direitos entre si incompatíveis.

Ambas as normas conferem tutela jurídica a terceiros, mas prosseguem finalidades diferentes.

Importa definir as finalidades subjacentes a cada norma.

Citando Maria Clara Sottomayor “Invalidade e Registo - A Proteção de Terceiro Adquirente de Boa Fé”, 2010, p. 335-337:

“A norma do art. 291º visa resolver um conflito entre o direito do primeiro alienante e o direito do terceiro, numa cadeia de negócios inválidos, sendo estranha a esta norma qualquer finalidade sancionatória dirigida a quem não regista, como sucede no caso da dupla alienação. No âmbito do art. 291º, o critério da prioridade do registo predial tem apenas um valor secundário, na medida em que, apesar da aquisição do terceiro dever ser registada, antes do registo da ação de nulidade ou anulação, para que o terceiro beneficie de proteção legal, este critério, só por si, não é suficiente, uma vez que não satisfaz o juízo de ponderação de interesses feito pela lei.

A situação de facto é a seguinte: A titular de um direito de propriedade registado em seu nome celebra com B um negócio translativo nulo. B regista a pseudo-aquisição e transmite o seu direito aparente a C, que não regista (1º adquirente). Posteriormente, B cede a D o mesmo direito. D (2º adquirente) regista. D está protegido em relação a C, pela prioridade do registo e em relação a B, pelas regras da alienação de bens alheios, mas não está protegido em relação a A, verdadeiro titular do direito com legitimidade para invocar a nulidade. Só a proteção conferida pelo art. 291º vai mais longe, permitindo a D estar protegido, em relação a A desde que D esteja de boa fé, ou seja, ignore a existência de um vício no negócio entre A e B, e se verifiquem os demais requisitos do art. 291º. O contrato entre o alienante não legitimado e o terceiro de boa fé não pode padecer de outra causa de invalidade, para além da falta de titularidade do alienante.

(…)

A intenção da lei foi a de não levar demasiado longe a proteção de terceiros, pois tal significaria um sacrifício grave dos interessados na nulidade ou na anulabilidade, para além de ter sido considerado que o nosso sistema registal não oferece as garantias de exatidão que oferecem outros sistemas como o alemão. Por isso a lei usou um conceito ético de boa fé, excluiu a proteção de terceiros a título gratuito e consagrou um período de carência (art. 291º, nº 2).

(…)

Na invalidade sequencial, verifica-se a conclusão de um negócio nulo ou anulável pelo qual, aparentemente ou a título provisório, se alienam direitos, e a seguir, os sujeitos que ocupam a posição de adquirentes, celebram um segundo negócio, que é afetado pela invalidade do primeiro, de modo que, também os seus próprios efeitos são prejudicados, pelo princípio da retroatividade. Há uma cadeia de negócios e uma cadeia de terceiros, que são todos os sub-adquirentes, depois da celebração do primeiro negócio inválido. Neste contexto, o problema do conflito de direitos, cuja prevalência se discute, existe entre o primeiro alienante, considerado pela lei, o verdadeiro proprietário, em virtude da retroatividade da declaração de nulidade e da anulação (art. 289º), e o terceiro sub-adquirente de boa fé, que desconhecia o vício do negócio, atuou de forma honesta e com a diligência exigível, no tráfico jurídico, naquelas circunstâncias e registou a sua aquisição.

(…)

A doutrina costuma apontar ao art. 291º a finalidade de proteger determinados terceiros dos efeitos retroativos da declaração de nulidade ou de anulação, os quais são suscetíveis de produzir para estes e para o tráfico jurídico em geral, consequências demasiado violentas. Esta norma assume uma finalidade bem diferente do art. 5º do CRPred. Nesta segunda hipótese, o registo visa dar publicidade a direitos e, simultaneamente, resolver conflitos entre adquirentes do mesmo autor, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa. Neste contexto, a doutrina refere-se à inoponibilidade, face a terceiros, do negócio não registado. No art. 291º, a lei consagra a inoponibilidade da declaração de nulidade e da anulação, querendo significar que, em relação a terceiros o negócio é tratado como se fosse válido, ou seja, estamos perante uma inoponibilidade do vício.

Enquanto a função do art. 5º do CRPred. é a de limitar o princípio da consensualidade, quando estamos perante um negócio válido, que produz efeitos reais, mas não registado, no art. 291º temos uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração da nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por via do princípio da conservação dos negócios jurídicos.

No caso do art. 5º, verifica-se um conflito entre adquirentes do mesmo transmitente, sendo o primeiro negócio válido; na hipótese regulada pelo art. 291º, há um conflito entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente de uma cadeia de nulidades sequenciais ou derivadas, em que o primeiro negócio é nulo ou anulável, sendo distintos os fundamentos destas disposições. No regime do art. 5º, o fundamento é o princípio da publicidade e da confiança do adquirente na titularidade aparente do transmitente, representando a proteção registal do terceiro uma limitação à eficácia absoluta dos direitos reais. Nesta hipótese, a lei valora como justo e adequado que o primeiro adquirente sofra as consequências de não ter observado o ónus do registo. Já o fundamento do art. 291º é a estabilidade dos negócios jurídicos, sofrendo o alienante que deu origem à cadeia de negócios inválidos as consequências de não ter atuado, dentro do prazo de três anos, interpondo a ação de nulidade ou de anulação. A lei faz uma conciliação entre os interesses do verdadeiro proprietário, que pode impor a realidade jurídica-material ao terceiro, durante um prazo de três anos, a contar da data da conclusão do negócio inválido, e os direitos do terceiro adquirente, interessado em salvaguardar a sua aquisição dos efeitos retroativos da invalidade.

O âmbito da proteção do terceiro adquirente é distinto do âmbito do art. 291º, que só protege os terceiros adquirentes a título oneroso, enquanto o conceito de terceiros para efeitos de registo opera, segundo a doutrina dominante, mesmo em relação a negócios a título gratuito.”

Aqui chegados, podemos desde já concluir que a realidade negocial dos autos não se enquadra na previsão dos artºs 5º nº 4 e 17º nº 2 do C.Reg. Predial, pois que, ao contrário do previsto nestas normas registais, o conflito de direitos entre Recorrente e Recorrida não surge de uma situação negocial triangular, ou seja, aquela em que o terceiro adquirente celebra com o alienante um negócio incompatível com outro, celebrado anteriormente pelo mesmo alienante.

No caso dos autos, não há um alienante comum, o que afasta a possibilidade de a Recorrente vir a beneficiar da respetiva tutela.

O acórdão do STJ de 07/09/2017, P.4363/04.0TBSTS.P1.S1 (Maria da Graça Trigo) in www.dgsi.pt, realça a particularidade de a invalidade registral sobre que incide o campo de aplicação do citado artº 17º, nº 2, supor duas aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira. Assim:

“I - O regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante do art. 291.º do CC, aplica-se às hipóteses em que o interveniente num negócio substantivamente inválido pretende a respectiva invalidação, mas se vê confrontado com terceiros (não intervenientes nesse negócio) que adquiriram, de boa fé e a título oneroso, direitos sobre os bens (imóveis ou móveis sujeitos a registo) cuja subsistência depende do primeiro negócio. Se esses terceiros registaram o correspondente ato aquisitivo, a invalidade não lhes é oponível, salvo se a cação de anulação ou de declaração de nulidade for instaurada e registada nos três anos posteriores à celebração do primeiro negócio, definindo, assim, a lei o equilíbrio entre a tutela da validade substancial do negócio e a confiança depositada no registo.

II - Por sua vez, o regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante dos arts. 5.º, n.º 4, e 17.º, n.º 2, do CRgP, supõe duas aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira, pretendendo o primeiro adquirente (que não registou) invocar a invalidade do negócio de que resultou a segunda aquisição (registada), porque, à data da sua celebração, já o direito transmitido não se encontrava na esfera jurídica do transmitente, mas antes na esfera jurídica do primeiro adquirente.

III - Se, no caso sub judice, não estão em causa duas aquisições sucessivas a partir da mesma transmitente e se a autora, na qualidade de curadora da legítima proprietária dos imóveis veio invocar a invalidade da procuração pela qual esta última concedeu ao réu poderes para os alienar, assim como a invalidade de todo e qualquer ato de disposição baseado na dita procuração, quer em relação aos adquirentes – intervenientes na ação – quer em relação ao sub-adquirente de dois dos imóveis, ora recorrente, apenas é de ponderar a aplicação do regime de tutela dos terceiros de boa fé, resultante do art. 291.º do CC.”

Os alienantes sucederam-se, pelo que, afastada a aplicação do art. 17º nº 2 do C.R.Pred. importa averiguar se pode a Recorrente reclamar da proteção de terceiro adquirente de boa fé, prevista no art. 291º do C.Civ..

Estabelecendo esta norma a inoponibilidade da nulidade e da anulação a terceiros, que hajam adquirido de boa fé, mediante negócio oneroso e que hajam registado essa aquisição antes de decorridos três anos do registo da ação de nulidade ou de anulação.

Dentro deste prazo de três anos – prazo de caducidade – dá-se prevalência aos interessados na nulidade ou na anulação; transcorrido ele, dá-se prevalência, aos interesses de terceiros, que poderão ter toda a confiança na validade das suas aquisições.

Considerando que a aquisição do imóvel por parte da Recorrente foi registada em 27/01/2020 e a ação foi registada em 22/06/2020, ou seja, dentro do prazo de três anos do negócio, logo por esta via, o interesse a prevalecer, será o interesse dos Autores Recorridos.

Como bem refere a sentença recorrida:

“Como tal, a ter ocorrido nulidade nos negócios em causa nos autos, a mesma estaria coberta pelo disposto no artº 291º do Código Civil, pelo que, tendo sido intentada e registada a ação dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio inválido, os adquirentes não gozariam da proteção conferida aos terceiros de boa-fé, não obstante possuírem tal qualidade, por funcionamento do disposto no nº 3 deste preceito.”

Mas o registo da ação dentro do prazo de três anos não será a única razão que afasta tal proteção.

Como ponderou a 1ª instância:

“Porém, entendemos que não nos encontramos verdadeiramente num caso de invalidade, nomeadamente do primeiro negócio celebrado com recurso a procuração com falsificação.

Efetivamente, de acordo com o disposto no artº 268º, nº 1 do Código Civil, o negócio em causa, por ter sido celebrado por procurador sem poderes, é ineficaz em relação aos AA..

Assim, o que temos é um negócio feito por procurador com base em procuração falsa que, nos termos do artº 268º do Código Civil, é ineficaz quanto aos AA., ou seja, não produz na esfera jurídica destes quaisquer efeitos.

Não cabe, pois, ponderar sequer a aplicação do artº 291º do Código Civil.”

Efetivamente, não pode ser desconsiderado o facto de o primeiro ato translativo ter ocorrido à revelia dos verdadeiros titulares, ainda não registados, por via duma procuração falsa.

Dispõe o nº 1 do artº 268º do CCiv. que:

“O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado”.

Poder-se-á questionar se, no polo oposto, o direito do terceiro é oponível só aquele que deu causa ao negócio, gerador da cadeia de negócios inválidos, ou também ao verdadeiro proprietário, mesmo quando este não participou na cadeia.

Remetendo para a obra citada de Maria Clara Sottomayor, lê-se a p. 882:

“Na aquisição originária, o adquirente pode opor o título a qualquer outro sujeito, que se afirme proprietário da coisa, mesmo que não pertença à cadeia de negócios inválidos que deu lugar à proteção jurídica de terceiro. Diferentemente se classificarmos a aquisição do terceiro como uma aquisição derivada, na hipótese regulada no art. 291º o direito do adquirente só estará protegido em relação ao dante causa do seu dante causa, e não em relação a um estranho que se afirme e demonstre ser o verdadeiro proprietário porque, por exemplo, adquiriu por usucapião ou tem um título válido.”.- sublinhado nosso.

No caso dos autos a cadeia de negócios inválidos não foi desencadeada pelo verdadeiro proprietário, pelo que, contra si não pode funcionar a proteção concedida a terceiro adquirente de boa fé, no âmbito do art. 291º do C.Civ.

No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 19/04/2016, P.5800/12.6TBOER.L1-A.S1 (Maria Clara Sottomayor) que alerta para a circunstância de que, não sendo caso de aplicação do artº 17º, nº 2, poder, ainda assim, nem se aplicar o artº 291º, uma vez que, segundo este aresto, o artº 291º não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do nº 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

Colhe-se do mesmo, o seguinte sumário:

“I - A aplicação da norma contida no art. 291.º do CC pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; (ii) aquisição onerosa; (iii) por um terceiro de boa fé; (iv) registo da aquisição a favor do terceiro; e (v) anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.

II - Ainda que verificados estes requisitos, a proteção do terceiro não funcionará se outra for a causa de invalidade, que não a falta de titularidade do alienante, e se a ação for proposta ou registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (art. 291.º, n.º 2), sendo prazo de caducidade que começa a contar a partir da data da celebração do primeiro negócio inválido, que dá origem à cadeia.

III - Inserto num sistema de registo meramente declarativo, o art. 291.º do CC não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

IV - Tendo a autora alegado que a cadeia de negócios inválidos foi iniciada por um negócio celebrado por um falso procurador, este elemento factual e jurídico é decisivo para se saber se funciona ou não a proteção do terceiro adquirente de boa fé, impondo-se a ampliação da matéria de facto, com inclusão deste, em ordem a constituir base suficiente para a matéria da decisão de direito.”

No mesmo sentido o sumário do acórdão do STJ de 06/12/2018, P. 7787/12.6TBSTB.E1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) que explicita:

“III - A proteção conferida pelo art. 291.º do CC a terceiros adquirentes a título oneroso e de boa fé não se aplica em casos de ineficácia do ato aquisitivo, como sucede, em relação ao verdadeiro proprietário, com a venda de coisa alheia.”

Para funcionar a proteção conferida pelo artº 291º do C.Civ., a cadeia de negócios inválidos tem de ser iniciada pelo verdadeiro proprietário.

O que no caso dos autos não sucedeu.

Relativamente aos AA., a venda e o registo efetuados em seu nome à 1ª Ré são atos ineficazes, o que lhes permite reivindicar diretamente o bem, sem ter de discutir a validade do ato de alienação. A Recorrente adquiriu o bem de quem não era o seu verdadeiro proprietário. A alienação de coisa alheia como própria é nula em relação ao vendedor (art. 892 CC) e ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário (art. 268 CC).

A solução da ineficácia flui duma interpretação a contrario do art. 258º C.Civ:

“O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.

De um ato ineficaz não podem promanar quaisquer direitos contra as pessoas a quem a lei confere legitimidade para arguir a ineficácia (H. Mesquita RDES, XXIX-537).

Só a ratificação por parte da pessoa em nome de quem o negócio foi concluído, pode suprir a falta de eficácia do negócio celebrado por quem não tinha poderes de representação, nos termos do art. 268º nº1 do CCiv.. O que no caso não ocorreu.

Ora, a Recorrente adquiriu o imóvel de quem não era o seu verdadeiro proprietário; a alienação de coisa alheia como própria é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário o que torna irrelevante a invocação do disposto nos artºs 291º do C. Civ..

Não merece, pois, qualquer censura a sentença recorrida quando excluiu a aplicação, ao caso, do disposto nos artigos 291º do Código Civil e 17º nº 2 do Código de Registo Predial.

Não pode a Recorrente beneficiar da proteção prevista em tais normas.

Impõe-se negar a Revista.

Síntese conclusiva:

1- Quer o art. 291º do Código Civil, quer o art. 17º nº 2 do Código de Registo Predial introduzem no regime legal um mecanismo de proteção de terceiros de boa fé: a inoponibilidade ao terceiro adquirente, observadas que estejam determinadas condições, dos efeitos da declaração da nulidade ou da anulação do negócio originário.

2 - O art. 291 do C.Civ. regula as situações em que o titular do direito aliena a um sujeito que, em seguida, transmite a um outro – o terceiro adquirente – numa cadeia sucessiva em que o negócio originário padece de invalidade;

3 - O art. 17º nº 2 complementado pelo art. 5º, ambos do C.Reg. Predial, está previsto para uma situação triangular, ou seja, aquela em que o terceiro adquirente celebra com o alienante um negócio incompatível com outro, celebrado anteriormente pelo mesmo alienante.

4 - Para funcionar a proteção conferida pelo artº 291º do C.Civ., a inoponibilidade da nulidade e da anulação a terceiros, que hajam adquirido de boa fé, mediante negócio oneroso e que hajam registado essa aquisição antes de decorridos três anos do registo da ação de nulidade ou de anulação, pressupõe que a cadeia de negócios inválidos tenha sido iniciada pelo verdadeiro proprietário.

5 - A alienação de coisa alheia como própria é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário, o que torna irrelevante a invocação do disposto nos artºs 291º do Código Civil.

V- Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1ª secção deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a Revista, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas da Revista a cargo da Recorrente.

Lisboa, 14 de janeiro de 2025

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Henrique Antunes (1º Adjunto)

Nelson Borges Carneiro (2º Adjunto)

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1. Referindo-se a Dr. HEINRICH EWALD HORSTER, in Regesta, nº 52, de 15-08-1984, pp.160/p e 161/P.↩︎