I. As cláusulas de prelação estatutária, servindo para cumprir uma função especificamente social, não são regulamentadas somente pelos princípios do direito dos contratos, antes entram na órbita mais específica da normativa societária.
II. Nesta perspectiva, essas cláusulas têm eficácia real e os seus efeitos são oponíveis também a terceiros adquirentes.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
A. se reconheça à Autora o direito de preferência com eficácia real sobre as quotas melhor identificadas nos presentes autos, com aquisição registada a favor da 2ª Ré pela apresentação por depósito n.º ...44/2020-03-03, ...45/2020-03-03 e ...46/2020- 03-03, substituindo-se a segunda Ré pela Autora na escritura de doação;
B. sejam os réus condenados a entregarem as referidas quotas à Autora, livres e desoneradas; C. seja a S..., Lda. condenada a reconhecer a titularidade pela Autora das identificadas quotas; D. seja o preço a pagar pela Autora ao Réu fixado no valor de € 490.000,00 (tal como declarado na escritura pública de doação);
E. seja o preço a pagar pela Autora referido na alínea d) reduzido no valor de € 210.125,72, a título de compensação, acrescido dos juros de mora vincendos desde o dia 2.09.2020;
F. seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 2ª Ré, adquirente, haja feito a seu favor em consequência da doação das supra identificadas quotas, designadamente o constante da Apresentação por depósito n.º ...44/2020-03-03, ...45/2020-03-03 e ...46/2020-03-03, e outras que esta venha a fazer, e
G. seja ordenado o registo a favor da Autora da titularidade das supra identificadas quotas, sempre com todas as demais consequências que ao caso couberem.
Alega uma doação de quotas do 1.º réu à 2.ª ré, sua filha, e a titularidade de direito de preferência, enquanto sócia da 3.ª ré.
Ora, essa doação foi realizada em violação dos referidos estatutos, porquanto não lhe foi comunicada nem lhe facultada a possibilidade de exercer a preferência na aquisição.
Os réus contestaram, por excepção de caducidade da acção e por impugnação. Alegam que o 1.º réu deu conhecimento à autora da sua pretensão de ceder gratuitamente quotas à sua filha.
A autora ofereceu segundo articulado de resposta à excepção.
O tribunal proferiu saneador-sentença no qual julgou a acção, totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos.
Inconformada, a autora recorreu da sentença.
O Tribunal da Relação de Lisboa, julgou o recurso improcedente e, consequentemente, confirmou a decisão recorrida.
A autora, de novo inconformada, interpôs recurso de revista excepcional, o qual foi admitido.
São as seguintes as conclusões da minuta de recurso:
«1. Vem interposto o presente recurso de revista excecional do douto acórdão recorrido que confirmou a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância que, por sua vez, havia julgado integralmente improcedente a ação de preferência instaurada pela Autora com base no argumento segundo o qual a cláusula estatutária de preferência prevista no artigo 15.º dos Estatutos (devidamente registados) da S..., Lda. (3.ª Ré) não teria eficácia real;
2. Não obstante a existência de uma dupla conforme, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, deve o presente recurso de revista excecional ser admitido com base no disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, o que, desde já, SE REQUER;
3 a 16. (…).
17. Posto isto, e salvo o devido respeito, que é muito, as cláusulas estatutárias de preferência na transmissão de participações sociais previstas nos pactos sociais de sociedades por quotas têm eficácia real, discordando-se dos argumentos apresentados pelo douto Tribunal a quo;
18. Desde logo, e ao contrário do que sustenta o douto acórdão recorrido, não há qualquer motivo para sequer se tentar equiparar as cláusulas de preferência estatutárias às situações de venda coerciva previstas no Código das Sociedades Comerciais;
19. Efetivamente, o Acórdão recorrido centra-se no regime da venda coerciva previsto no CSC para interpretar a eficácia das cláusulas estatutárias de preferência na transmissão de participações sociais previstas nos pactos sociais, o que configura, salvo melhor opinião, um equívoco metodológico;
20. Com efeito, o que a doutrina propugna, de forma unânime, é que – por interpretação do direito constituído – as cláusulas estatutárias de preferência previstas nos pactos sociais de sociedades por quotas têm natureza societária, não constituindo, nem de longe, nem de perto, mero pactos de preferência tal como configurados no Código Civil;
21. A prova cabal disso mesmo – extraída por interpretação do direito constituído – é que as cláusulas estatutárias de preferência, dada a natureza societária, encontram-se sujeitas a um regime próprio resultante do CSC;
22. Em primeiro lugar, a finalidade de uma cláusula estatutária de preferência é distinta de um mero pacto de preferência previsto no Código Civil, uma vez que as cláusulas estatutárias de preferência constituem uma barreira à entrada na sociedade por quotas de sujeitos indesejados pelos sócios (ou pela sociedade); ao passo que nos pactos de preferência previstos no Código Civil é típico o desígnio individual-patrimonial do preferente;
23. Em segundo lugar, as cláusulas estatutárias de preferência ficam, no essencial, sujeitas à disciplina do direito societário, à lei das sociedades e aos estatutos sociais, mas já não ao Código Civil (como sucede no caso de um mero pacto de preferência);
24. Neste sentido, isto é, a sujeição das cláusulas estatutárias de preferência, no essencial, à disciplina do direito societário, à lei das sociedade comerciais, decorre, por exemplo, o seguinte:
- o mero pacto de preferência previsto no Código Civil aplica-se apenas à compra e venda e a alguns outros negócios onerosos (cfr. artigos 414.º e 423.º do Código Civil); enquanto que as cláusulas de preferência estatutárias é aplicável tanto a (esses e outros) negócios onerosos como às doações.
- As cláusulas estatutárias de preferência valem para todos eles, quer para os sócios no momento da introdução da cláusula, quer para os que adquirirem essa qualidade posteriormente; ao passo que o mero pacto de preferência vincula, somente, em regra, as partes que o celebrarem.
-As cláusulas estatutárias de preferência vinculam a sociedade, os seus sócios e são oponíveis a terceiros; já os pactos de preferência apenas vinculam as partes, sendo que nada obsta a que um ou mais sócios de uma sociedade celebrem entre si ou com terceiros pactos de preferência, os quais, todavia, apenas vinculam as partes;
25. Assim sendo, as cláusulas estatutárias de preferência (inseridas, naturalmente, nos Estatutos) não podem – nem devem – ser confundidas com os meros pactos de preferência acordados fora do pacto social de uma sociedade, isto é, à margem da sociedade, pelo que a diferente natureza das cláusulas estatutárias de preferência (designadamente, relativamente aos meros pactos de preferência) faz com que o respetivo regime deva ser analisado à luz do direito das sociedades comerciais, sendo que o regime civil apenas deverá intervir a título subsidiário;
26. Concomitantemente, e por força da já acima explicitada diferente natureza das cláusulas estatutárias de preferência (designadamente, relativamente aos meros pactos de preferência), resulta que a respetiva eficácia deve ser analisada à luz do direito das sociedades comerciais e que o artigo 421.º do Código Civil constitui uma simples norma de direito privado comum concebida para os pactos de preferência (mas não para as cláusulas estatutárias de preferência);
27. É que a finalidade (a razão de ser) das cláusulas estatutárias de preferência é a de, basicamente, proteger a sociedade – daí que fiquem exaradas expressamente nos estatutos da sociedade – contra a perturbação suscetível de ser causada pela entrada de estranhos, tutelando, assim, o caráter personalista das sociedades por quotas, razão pela qual as cláusulas estatutárias de preferência para poderem cumprir a sua já referida finalidade social (proteção do respetivo caráter personalista) – prevista estatutariamente – precisam de valer, por natureza, relativamente aos potenciais cessionários «irregulares», razão pela qual têm, naturalmente, eficácia real;
28. Em suma, e salvo melhor opinião, não há a menor dúvida de que as cláusulas estatutárias de preferência em matéria de sociedades por quotas – como é o caso do artigo 15.º dos Estatutos da Recorrida S..., Lda. – possuem eficácia real por natureza, não sendo necessário (e muito menos exigível) a utilização da expressão “eficácia real” para que uma cláusula estatutária assuma a eficácia que, por natureza, já possui;
29. Noutro prisma, e ao contrário do que sustenta o Acórdão recorrido, reconhecer a eficácia real das cláusulas estatutárias de preferência previstas em pactos sociais de sociedades por quotas não constitui qualquer violação do princípio da tipicidade previsto no artigo 1306.º do Código Civil;
30. De facto, é pacífico na doutrina e jurisprudência que o princípio da tipicidade previsto no n.º 1 do artigo 1306.º do Código Civil apenas proíbe a criação de novos direitos reais não previstos na lei, mas em nada restringe negócios reais em que as partes criam direitos reais já criados pelo legislador;
31. No caso concreto, reconhecer eficácia real às cláusulas estatutárias de preferência não consiste na criação de nenhum direito real não tipificado na lei;
32. Na realidade, tendo as partes a possibilidade de conferir eficácia real a um mero pacto de preferência nos termos do disposto no artigo 421.º do Código Civil, reconhecer eficácia real – por natureza – a uma cláusula estatutária de preferência num pacto social de uma sociedade por quotas mais não é – por maioria de razão – do que um negócio jurídico de constituição de um direito real já reconhecido e previsto pelo legislador;
33. Por outro lado, o princípio da tipicidade previsto no artigo 1306.º do Código Civil não impede que o intérprete reconheça a natureza real de direitos que a lei não reconhece expressamente como tais, sendo que o que não é permitido por força do disposto no artigo 1306.º do Código Civil é criar direitos reais ex novo, o que jamais sucede quando se reconhece eficácia real às cláusulas estatutárias de preferência previstas em pactos sociais de sociedades por quotas, pois que, como é evidente, a lei criou e reconhece como direito real a figura do direito de preferência convencional com eficácia real;
34. Acresce que, ao contrário do que sustenta o Acórdão recorrido, não é necessário que uma cláusula de preferência estatutária utilize qualquer “fórmula sacramental” para possuir eficácia real;
35. Desde logo, e salvo melhor opinião, as cláusulas estatutárias de preferência têm um efeito conatural de eficácia real, não se revelando necessário que as partes utilizem – de forma específica – a expressão “eficácia real”;
36. Por outro lado, no caso concreto, é notório que a cláusula estatutária de preferência vertida no pacto social da sociedade S..., Lda. visa barrar a entrada nesta sociedade a quem adquira quotas em desrespeito pelo direito de preferência, o que é especialmente reforçado à luz do disposto no n.º 3 do artigo 15.º do pacto social da sociedade S..., Lda. (cfr. ponto 7 da matéria de facto dada como provada);
37. Não obstante o n.º 3 do artigo 15.º do pacto social da sociedade S..., Lda. ser inválido, a verdade é que demonstra, à saciedade, a vontade de as partes conferirem eficácia real à cláusula estatutária de preferência em causa nos autos;
38. Em suma, ao contrário do que propugna o Tribunal a quo, e salvo melhor opinião, a eficácia real é um efeito natural das cláusulas estatutárias de preferência e, em qualquer caso, no caso concreto, à luz do teor da cláusula estatutária de preferência prevista no 15.º dos estatutos da S..., Lda., é manifesto que a mesma tem eficácia real;
39. No Acórdão recorrido, é ainda sustentado que as cláusulas de preferência estatutárias previstas em pactos sociais não são objeto de inscrição no registo comercial por força do registo do próprio pacto social, pelo que não obedeceriam ao requisito de publicidade exigido no artigo 413.º do Código Civil;
40. Sucede, porém, que, ao contrário do que sustenta o Tribunal a quo, o facto de o contrato de sociedade que contém a cláusula estatutária de preferência estar sujeito a registo comercial assegura, em qualquer caso, as exigências de publicidade exigidas no artigo 413.º do Código Civil, isto apenas no caso de se considerar que as cláusulas estatutárias de preferência se subsumiriam nesta matéria ao disposto no artigo 413.º do Código Civil (o que, pelas razões supra expostas, jamais se concede);
41. Ao contrário do que sufraga o Tribunal a quo, o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Registo Comercial está pensado para os pactos de preferência propriamente ditos e não para as cláusulas estatutárias de preferência, como é o caso que se encontra em causa nos autos;
42. Efetivamente, as cláusulas estatutárias de preferência encontram-se, desde logo, registadas por força do registo dos próprios estatutos no registo comercial, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Código de Registo Comercial, na medida em que a constituição de uma sociedade (pluripessoal), enquanto facto sujeito a registo (cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Código de Registo Comercial), implica o registo do pacto social (cfr. artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais e alínea a) do artigo 14.º da Diretiva n.º 2017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de junho de 2017);
43. Assim, o estatuto / pacto social de uma sociedade comercial, com todas as suas cláusulas, fica arquivado no registo comercial, tal como impõe o disposto nos artigos 57.º e 59.º do Código de Registo Comercial e o n.º 3 do artigo 16.º da Diretiva n.º 2017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de junho de 2017, pelo que qualquer pessoa pode pedir certidão ou informação do pacto social depositado no Registo Comercial, conforme estipulam os artigos 73.º e 74.º do Código de Registo Comercial e o n.º 4 do artigo 16.º da Diretiva n.º 2017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de junho de 2017;
44. Acresce que o estatuto (pacto social) de uma sociedade é publicado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 70.º e seguintes do Código de Registo Comercial e no n.º 5 do artigo 16.º da Diretiva n.º 2017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de junho de 2017, sendo certo que o legislador português optou pela publicação por extrato (cfr. n.os 1 e 2 do artigo 72.º do Código de Registo Comercial), mas «com menção especial do depósito do texto atualizado do contrato ou estatuto”;
45. Noutro prisma, a cláusula estatutária de preferência faz parte do modo de ser de uma sociedade por quotas, não sendo um simples pacto de preferência civilístico constituinte de uma vinculação pessoal (não social), extra-estatutária, isto é, exterior aos estatutos de uma sociedade, encontrando-se sujeita ao controlo de legalidade pelo Conservador do Registo Comercial, ao abrigo do disposto no artigo 47.º do Código de Registo Comercial; ao passo que o pacto de preferência com eficácia real é registado por depósito (cfr. alínea a) do n.º 5 do artigo 53.º-A e alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º, ambos do Código de Registo Comercial), não se encontrando sujeito, por isso, a qualquer controlo de legalidade pelo Conservador do Registo Comercial;
46. Para a hipótese de se entender – o que não se concede – que a eficácia real das cláusulas estatutárias de preferência de sociedades por quotas não seria um efeito conatural das mesmas, então sempre se dirá que essas mesmas cláusulas respeitam os requisitos de “forma” e “publicidade” previstos nos artigos 421.º e 413.º do Código Civil (conforme resulta do Parecer de Direito já junto aos autos);
47. Em primeiro lugar, e no que diz respeito aos requisitos de “forma” exigidos no artigo 413.º do Código Civil, os mesmos vão desde a escritura pública ou documento particular autenticado até ao documento particular com reconhecimento de assinaturas, conforme estipula o n.º 2 do artigo 413.º do Código Civil (a remissão do artigo 421.º do Código Civil é para os requisitos de “forma” e “publicidade” do artigo 413.º do Código Civil, não para a necessidade de “declaração expressa” que não é, rigorosamente, uma questão de “forma”);
48. Ora, os contratos de sociedades por quotas carecem, em regra, de um documento escrito com as assinaturas dos subscritores reconhecidas presencialmente, conforme decorre do disposto no artigo 7.º do Código das Sociedades Comerciais;
49. Em segundo lugar, e no que diz respeito aos requisitos de “publicidade”, é evidente que o contrato de uma sociedade por quotas se encontra sujeito a registo comercial, ao abrigo do disposto no artigo 166.º do Código das Sociedades Comerciais e na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Código de Registo Comercial, assegurando, assim, a necessária publicidade exigida no próprio artigo 421.º do Código Civil;
50. Em face do supra exposto, deve concluir-se que a cláusula 15.ª dos estatutos da S..., Lda. constitui uma cláusula estatutária de preferência com eficácia real;
51. Por fim, e em qualquer caso, e por se encontrarem preenchidos os pressupostos constantes da norma ora transcrita, a Recorrente desde já requer que o Tribunal a dispense do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida sobre o valor do recurso na parte que vai além dos € 275.000,00 em todas as instâncias dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais;
52. De resto, note-se que o Tribunal a quo, não obstante a ora Recorrente ter pedido a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça no recurso de apelação interposto, não se pronunciou sobre esta questão, o que constitui uma OMISSÃO DE PRONÚNCIA, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º, aplicável ex vi, artigo 666.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, o que, desde já, se INVOCA para todos os efeitos legais.
NORMAS VIOLADAS: artigos 5.º, 7.º e 18.º do Código das Sociedades Comerciais, alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Código de Registo Comercial e artigos 358.º, 405.º, 414.º, 421.º, 423.º e 1410.º do Código Civil.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL SER ADMITIDO E JULGADO INTEGRALMENTE PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE:
A) SER O ACÓRDÃO RECORRIDO REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR UM OUTRO QUE JULGUE INTEGRALMENTE PROCEDENTE A AÇÃO DE PREFERÊNCIA NSTAURADA PELA AUTORA;
B) (EM QUALQUER CASO) REQUER-SE, À CAUTELA, A DISPENSA DO PAGAMENTO DO REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA NOS TERMOS LEGAIS RELATIVAMENTE A TODAS AS INSTÂNCIAS, NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO DISPOSTO NO N.º 7 DO ARTIGO 6.º DO REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS.
Os recorridos não apresentam contra-alegações.
Se a resposta for afirmativa, importa saber se a decisão de direito carece ou não do suporte de matéria factual ainda por apurar.
1) O contrato de sociedade da ré S..., Lda. foi outorgado em 23.11.2007 com reconhecimento notarial de assinaturas e, na mesma data, foi requerido o registo da constituição da sociedade ré e da designação dos membros dos respetivos órgãos sociais, pedido que foi acompanhado da apresentação daquele contrato na Conservatória do Registo Comercial de ..., e registo que foi cumprido através da seguinte inscrição:
Insc.1 AP. ...15/20071123 15:57:05 UTC - CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE E DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ORGÃO(S) SOCIAL(AIS)
FIRMA: S..., Lda. NIPC: ...31 NATUREZA JURÍDICA: SOCIEDADE POR QUOTAS
SEDE: Rua ... Distrito: ... Concelho: ... Freguesia: ...
OBJECTO: gestão e de participações sociais de outras sociedades como forma indirecta de exercício de actividades económicas
CAPITAL: 480.000,00 Euros
Data de encerramento das contas do exercício: 31 de Dezembro
SÓCIOS E QUOTAS: QUOTA : 240.000,00 Euros
TITULAR: PINCO S.P.A.
(…)
QUOTA: 240.000,00 Euros
TITULAR: AA
(…)
FORMA DE OBRIGAR/ÓRGÃOS SOCIAIS:
Forma de obrigar: com a assinatura de um só gerente
CONSERVATÓRIA DA SEDE:
Distrito: ... Concelho: ... Conservatoria: CRComercial ...
ORGÃO(S) DESIGNADO(S):
GERÊNCIA:
AA
CC
(…)
Data da deliberação: 2007.11.23
2) O capital social da S..., Lda. (€ 700.000,00) encontra-se, atualmente, dividido em 7 quotas com os seguintes valores: - € 240.000,00; - € 61.000,00; - € 3.920,00; - € 240.000,00; - € 94.080,00; - € 54.000,00; - € 7.000,00.
3) A autora é sócia fundadora da S..., Lda., detendo duas quotas no respetivo capital social, respetivamente no valor nominal de € 240.000,00 e € 61.000,00, correspondente a 43% do capital social da 3.º ré.
4) O 1.º réu era inicialmente detentor das restantes quotas no capital social da S..., Lda.:
- Quota no valor nominal de € 240.000,00,
- Quota no valor nominal de € 94.080,00, e
- Quota no valor nominal de € 61.000,00.
5) O 1.º réu, por escritura pública outorgada no dia 2 de março de 2020, dividiu a sua quota na S..., Lda., no valor nominal de € 61.000,00, em duas novas quotas, uma no valor nominal de € 54.000,00 e outra no valor nominal € 7.000,00.
6) O 1.º réu reservou para si a referida nova quota no valor nominal de € 7.000,00, e doou à sua filha, BB, aqui 2.ª Ré, as duas quotas no valor nominal de € 240.000,00 e de € 94.080,00, bem como a nova quota de € 54.000,00, resultante da divisão em duas quotas autónomas da quota no valor nominal de € 61.000,00.
7) O contrato de sociedade da S..., Lda. estabelece no seu artigo 15.º o seguinte:
1. Os sócios são livres de transmitir entre si as quotas que detenham na sociedade, não dependendo a transmissão do consentimento da sociedade.
2. Na transmissão a terceiros, a qualquer título, de quotas detidas na sociedade, os sócios gozam de direito de preferência, nos termos das regras seguintes.
a) O sócio que pretender transmitir quotas detidas na sociedade deverá comunicar a esta, por carta registada com aviso de recepção, essa sua vontade.
b) Tal comunicação deve identificar o transmissário, as quotas a transmitir, o preço pretendido, os critérios utilizados na determinação do preço e as condições de pagamento, ou o valor atribuído tratando-se de transmissão a título gratuito.
c) Nos oito dias subsequentes à comunicação prevista na alínea b) supra, a sociedade comunicará aos restantes sócios, por carta registada com aviso de recepção, a vontade e os termos do negócio que lhe foram comunicados.
d) Nos trinta dias subsequentes à recepção da comunicação feita pela sociedade, os sócios comunicarão à sociedade, por carta registada com aviso de recepção, se pretendem ou não exercer os respectivos direitos de preferência.
e) Nos oito dias subsequentes à comunicação prevista na alínea d) supra, a sociedade informará o sócio que manifestou a vontade de transmitir a sua quota, e por carta registada com aviso de recepção, do conteúdo das respostas dos restantes sócios.
f) Caso haja mais do que um sócio preferente, as quotas serão divididos entre eles na proporção das respectivas participações no capital social.
g} Sendo a transmissão gratuita, ou no caso de ser onerosa mas o preço indicado pelo sócio transmitente, para a transmissão da quota seja manifestamente superior ao valor praticado no mercado para a transação daquele bem, o valor ou o preço a atribuir será determinado por um revisor oficial de contas (ou uma sociedade de revisores oficiais de contas) escolhido pelas partes. Na falta de acordo, a fixação do preço será realizada por três árbitros, ao abrigo da Lei número 31/86, de 29 de agosto ("Arbitragem Voluntária"). Um árbitro será escolhido pelo vendedor, o outro árbitro pelo comprador, e o terceiro árbitro por comum acordo dos árbitros entretanto designados pelo vendedor e comprador”.
3. A sociedade não reconhecerá, para efeitos alguns, as transmissões de quotas efetuadas sem a observância do disposto no presente artigo."
8) A 2.ª ré nunca foi sócia da 3.ª ré.
9) A 2.ª ré foi designada gerente da Ré S..., Lda. em 18 de outubro de 2018, tendo renunciado à gerência em 2 de julho de 2019.
Importa começar pela distinção entre as preferências legais e os simples pactos de preferência.
As preferências legais estão previstas num conjunto heterogéneo de previsões normativas, que apresentam aspectos específicos que não se encontram noutro tipo de preferências.
Consagram exemplos de direitos de preferência legais, no Código Civil, entre outros, os artigos 1380.º (direito de preferência dos proprietários de terrenos confinantes), 1409.º (direito de preferência dos comproprietários), 1535.º (direito de preferência do proprietário do solo), 1555.º (direito de preferência do proprietário onerado com a servidão de passagem), 2130.º (direito de preferência dos co-herdeiros).
As preferências voluntárias ou pactos de preferência são as que o artigo 416.º CC define como a convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa.
De maneira que pode ser a lei a atribuir a um sujeito o direito de receber, em primeiro lugar, a oferta da conclusão de determinado negócio, ou podem ser as partes a pactuar que, em caso de venda de uma coisa ou de outro negócio oneroso, o obrigado à preferência deva comunicar ao preferente «o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato» (artigo 416.º, 1 CC).
Quanto às razões que justificam os direitos de preferência legal, a análise mesmo perfunctória dos artigos citados do código civil, permite que se destaque que o titular da preferência, nos vários casos, possui uma qualificação pessoal (um status), individualizado pela lei, do qual deriva uma particular relação com o bem, o que não acontece necessariamente nos casos de preferência convencional.
Num outro plano, a fonte legal do direito de prelação apetrecha o seu titular de um particular instrumento de reacção, no caso de o obrigado à preferência não cumprir o que tinha sido acordado.
Na verdade, quando, por hipótese, o negócio translativo da propriedade for concluído com terceiro, na ausência de prévia oferta a ele dirigida, o titular da preferência pode instaurar uma acção de preferência ao abrigo do artigo 1410.º CC.
Nisto também se distingue o regime do direito legal de preferência daquele de fonte pactícia, que está, em princípio, privado de um instrumento que permita ao preferente obter uma sentença constitutiva que o coloque na posição do terceiro adquirente, gozando apenas de tutela reparatória.
Dizemos, em princípio, porquanto a lei admite que as partes atribuam eficácia real ao pacto de preferência que recaia sobre bens móveis ou móveis registáveis, mediante os requisitos de forma e de publicidade estabelecidos para o contrato-promessa (artigo 421.º, 1 CC).
Sendo este o enquadramento conceitual de partida, vejamos se pode atribuir-se eficácia real ao direito de preferência, estatutariamente estipulado.
O Código das Sociedades Comerciais (CSC) contém várias disposições nas quais se atribui um direito de preferência ou, melhor dizendo, direitos de aquisição prioritária, a saber:
i) Nas sociedades em nome colectivo:
a)- artigo 183.º, 5: execução sobre a parte do sócio.
ii) Nas sociedade por quotas:
b) artigo 205.º, 2 alínea b): venda de quota de sócio excluído;
c) artigo 231.º, 2, alínea d) e 4: recusa de consentimento da sociedade à venda de quota;
d) artigo 239.º, 5: execução de quota;
e) artigo 266.º: preferência no aumento de capital;
f) artigo 267.º, 3: recusa do consentimento da sociedade à alienação do direito de participar no aumento de capital.
iii) Nas sociedades anonimas:
g) artigo 329.º, 3, alínea c): recusa de consentimento da sociedade para a transmissão de acções:
h) artigo 367.º:preferência dos accionistas na subscrição de obrigações convertíveis:
i) artigo 372.º-B, 5: preferência dos accionistas na subscrição de obrigações com direito de subscrição de acções;
j) artigo 458.º: preferência no aumento de capital.
Explica Agostinho Cardoso Guedes, in: O exercício do direito de preferência, Publicações Universidade Católica, Porto, 2006:214, que verdadeiros direitos de preferência são, apenas, os previstos nos artigos 183.º, 5 e 239.º, 5.
Este último artigo versa sobre transmissões forçadas, o que não é propriamente o caso.
Quanto às transmissões voluntárias, ao contrário do que acontece com o regime legal aplicável às sociedades anónimas (artigo 328.º, 2, alínea b), 4 e 5)), no regime das sociedades por quotas não existe qualquer norma que faça menção à preferência estatutária das participações sociais.
Esta omissão pode ter sido devida ao facto de o legislador confiar que, neste tipo sociedade, devem ser os sócios a decidir, através de negociação, se o contrato ou o estatutos da sociedade devem ou não incluir cláusulas de preferência.
No caso sujeito, os sócios da S..., Lda. optaram, como vimos, pela inclusão no contrato de sociedade de uma «cláusula de preferência».
Tal cláusula deve ser vista como um pacto de preferência e ficar sujeito ao regime civilístico, o qual, na interpretação das instâncias, e na ausência de uma consagração expressa da eficácia real, não oferece ao preferente tutela recuperatória, ou, ao invés, na interpretação da recorrente, ser-lhe atribuída eficácia real?
Resulta da interpretação do artigo 15.º do contrato que a cláusula em questão incide sobre todas as transmissões de quotas, e portanto também sobre as doações, e que se aplica a todos os sócios que o sejam no momento em que qualquer deles tenha vontade de praticar o acto da transmissão da quota, o que não é o que se configura para a preferência pacticía.
Na cláusula não existe, porém, qualquer referência, expressa ou implícita, à eficácia real da prelação.
O legislador não disciplinou a questão da eficácia real da prelação estatutária, quando o fez em hipóteses de preferência legal, destinadas a evitar a dispersão do património, atendendo ao carácter específico da disciplina societária (autonomia negocial e papel dos sócios).
Foi o contrato social que conferiu aos sócios o direito de adquirirem preferencialmente as quotas que qualquer outro sócio entender alienar a terceiro.
O citado artigo 15.º impõe ao sócio, com intenção de vender as participações sociais próprias, a obrigação de, preventivamente, oferecer aos sócios (denuntiatio), de acordo com o processo estipulado na cláusula e com respeito pelos prazos aí previstos, o exercício do direito de preferência (spatium deliberandi).
Resulta que a alienação a terceiro da participação social só será permitida se nenhum dos sócios exercer a prelação, nos termos previstos no contrato.
A doutrina maioritária concorda em afirmar a eficácia real da cláusula de prelação estatutária.
A recorrente menciona vários autores, além de Coutinho de Abreu, cujo parecer foi junto aos autos, que defendem esta posição:
- EVARISTO MENDES e ALMEIDA COSTA: “…para poderem cumprir tal escopo, de índole organizatória e funcional, precisam [as cláusulas de preferência estatutárias] de valer não apenas relativamente aos sócios, mas também perante os potenciais cessionários «irregulares» (…)
…mais do que isso, qualquer interessado na quota, sócio e não sócio, deve inclusive admitir que a respetiva cláusula possui o conteúdo reclamado pela assinalada função; o que já depõe a favor da eficácia real como atributo natural; mercê do disposto no artigo 229.º, n.º 5, esta conclusão ainda sai reforçada” («Preferências estatutárias na cessão de quotas. Algumas questões», Revista de Legislação e Jurisprudência, 140.º:página 31);
- CALVÃO DA SILVA: “Segunda adaptação: o natural e reconhecimento efeito externo dos estatutos de uma sociedade, por isso mesmo reduzidos a escrito e devidamente registados, deve ser visto como (ou equiparado a) declaração expressa de atribuição de eficácia real ao pacto de preferência neles clausulado, em ordem a realizar a sua finalidade, sentido e razão de ser – permitir aos restantes sócios ponderar (e, querendo, evitar) a entrada para o seio da sociedade de pessoa não desejada. Nesta medida, exarar na cláusula de preferência que a mesma goza de eficácia real seria redizer o que do contrato de sociedade já resulta: é para ter eficácia externa que o contrato social se reduz a escrito e obrigatoriamente se inscreve no registo comercial, sob pena de não poder ter-se por constituída a sociedade. Logo, porque e na medida em que a preferência está consignada em cláusula do contrato social, não pode deixar de se lhe reconhecer a eficácia externa própria do contrato de que faz parte, a dispensar – et pour cause – (outra) declaração expressa de eficácia real…sua ratio essendi. A eficácia real é isso mesmo: valer o direito de preferência em relação a terceiros, sendo-lhe oponível nos mesmos termos do contrato de sociedade” («Âmbito de aplicação e eficácia real da cláusula estatutária de preferência», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3893, páginas 124 e 125).
- PEDRO DE ALBUQUERQUE: “Coutinho de Abreu (2019), 349 ss., afirmando, bem, a eficácia real do direito [de preferência] previsto nos estatutos” (Código das Sociedades Comerciais Anotado, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 801, nota 10).
-PAULO OLAVO CUNHA: “Inclinamo-nos para aderir à posição de JORGE COUTINHO DE ABREU, uma vez que não se nos afigura excessivo que quem adquira uma quota se informe previamente junto do registo comercial sobre eventuais ónus a que a mesma esteja sujeita” (Direito das Sociedades Comerciais, 7.ª Edição, Almedina, Coimbra:516).
-ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA: “Somos do parecer que as cláusulas estatutárias de preferência têm eficácia real por força do art. 421.º do C. Civ., uma vez que o pacto social revestiu a forma escrita e está sujeito a registo. Já não assim se a preferência é meramente convencional, estipulada em acordo parassocial. Frequentemente os pactos sociais estipulam um direito de preferência na cessão de quotas, em primeiro lugar a favor da sociedade e depois dos sócios” (Sociedades Comerciais e Valores Mobiliários, Coimbra Editora, Coimbra, 2008: 335 e 336).
-INÊS FILIPA SÃO PEDRO: “Se atendermos à natureza das cláusulas de preferência, esta não coincide com a do pacto de preferência regulado no art. 423.º CC. É posição unânime que as cláusulas de preferência são tipicamente de natureza social, conteúdo próprio do contrato de sociedade, em que a principal função consiste em “proteger o “exercício normal” da atividade da sociedade contra perturbações que de outro modo ocorreriam, como é próprio dos pactos sociais”. Estamos perante um interesse coletivo e de relevância sócioeconómica e não um interesse de índole particular entre os contraentes como o que se verifica nos pactos preferência. Esta função típica das cláusulas de preferência só será assegurado se for reconhecido a eficácia real, pois caso contrário, não tem força suficiente, constituindo apenas uma mera eficácia obrigacional. Considerando o que acabamos de expor, no que concerne às sociedades por quotas, concluímos aceitar a eficácia real do direito de preferência clausulado no contrato de sociedade” (Cláusulas de Cessão de Quotas, Universidade Católica, 2018:32).
- MARIA JOÃO CASTANHEIRA CARAPINHA: “No que concerne às sociedades por quotas, a doutrina é praticamente unânime ao concluir que neste tipo de sociedades o direito de preferência na transmissão de quotas é dotado de eficácia real, sendo oponível em relação a terceiros. Considerando todos os motivos expostos, também nós defendemos esta posição” (Cláusula de Preferência em Acordo Parassocial: Que Tutela para o Sócio Preferente?, Universidade de Coimbra, 2015:41).
Também há vozes discordantes. A. Soveral Martins, por exemplo, admite a eficácia real da cláusulas de preferência estatutárias só «quando fica clausulado expressamente essa eficácia real no próprio contrato de sociedade» (Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016:483, e Cessão de Quotas, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017:112 ss.).
Segundo este autor, esta é «a solução que melhor se concilia com o regime da própria sociedade de quotas: um regime muito flexível que deixa grande espaço de manobra à autonomia privada. Parece evidente que a solução que melhor serve essa autonomia é a que permite às partes a opção livre pela atribuição de eficácia real à cláusula de preferência: se querem essa eficácia real, adotam-na; se não a querem, não a adotam» (Cessão…, op. cit:118); «o que é exigível é que seja possível atribuir eficácia real à cláusula de preferência: não é exigível que essa eficácia real seja considerada como natural» (ibidem:117).
Um segundo argumento a favor da necessidade de se convencionar a eficácia real, retira-o o autor do panorama existente antes da entrada em vigor do código civil de 1966: «se a questão era discutida, é fácil de ver que a lei, se quisesse optar pela atribuição da eficácia real na ausência de convenção em sentido contrário, teria dito isso de forma clara» (idem).
A jurisprudência não tem tido oportunidade para tomar posição firme e continuada sobre esta questão.
O primeiro acórdão do STJ que identificamos sobre a matéria é de 23.3.1995, Proc. 086206.
Foi instaurada uma acção de preferência de uma quota, com fundamento no artigo 995.º CC conjugado com o artigo 6.º, § 3 da lei de 11 de Abril de 1901, e invocada a figura da preferência legal.
O Supremo apontou a incongruência desta invocação e entendeu não ser aplicável o artigo do código civil, mas sim o regime da Lei de 11 de Abril.
Se assim é, o direito de preferência não é uma preferência legal, mas uma preferência convencional. Não foi dada razão ao autor.
Além de ter sido proferido no domínio de outra legislação, este acórdão não analisa a questão da eficácia real da cláusula estatutária.
O contrário acontece com o acórdão de 12.9.2013, Proc. 388/04.4TYLSB.L1.S1.
Afirma-se aí, realmente, que «analisando o referido artigo do pacto social, no seu todo, entendemos que nem sequer de modo implícito os sócios quiseram atribuir eficácia real ao direito de preferência.
De facto parece claro que do pacto social nada resulta de modo a poder afirmar-se que o direito de preferência em questão produza efeitos em relação a terceiros. Na verdade não há qualquer declaração nesse sentido.
E não tendo o direito de preferência eficácia real (a lei fala em declaração expressa) não é possível ao autor/sócio recorrer à acção de preferência prevista no artigo 1410.º do CC».
Com a consideração devida por esta decisão, dela discordamos.
Não é difícil aproximar a dimensão holística subjacente às cláusulas de preferência contidas no contrato de sociedade, de igual dimensão existente nas preferências iure sanguinis, vicinatis ou contiguitatis ainda existentes no âmbito do direito civil, a que acima fizemos referência e agregar axiologicamente todas essa figuras, num única categoria material sujeita a idêntico regime.
Também no caso das sociedades por quotas, nas quais não raro estão presentes valores personalísticos, há um interesse superior a satisfazer com aquelas cláusulas, irredutível aos interesses particulares dos sócios.
Por outro lado, não podemos deixar de concordar com a orientação dominante na doutrina nacional e que se encontra também na mais recente doutrina italiana, como se pode conferir numa recente obra de Cesare Trapuzzano, La Prelazione, Disciplina e fattispcie, Giuffré, Milano, 2024.
Este conselheiro da Cassação Italiana afirma que «com a inserção da cláusula de prelação no estatuto [de uma sociedade] atribui-se à mesma, em substância, também um valor relevante para a sociedade, cuja organização e funcionamento o acto constitutivo e o estatuto se destinam a regular.
Nesta perspectiva se dá o justo relevo à dimensão organizativa da cláusula da prelação estatutária, sob o perfil do contributo da mesma para disciplinar, qual face de uma mesma moeda, as condições, por um lado, para o desinvestimento individual, e, por outro, para o crescimento do investimento, através do aumento da participação social já detida.
Dadas estas premissas, chega-se à conclusão de que as cláusulas em questão, servindo para cumprir uma função especificamente social, deixam de ser regulamentadas somente pelos princípios do direito dos contratos, para entrarem, ao invés, na órbita mais específica da normativa societária.
Nesta perspectiva, a jurisprudência e a doutrina expressam-se no sentido de as cláusulas estatutárias de prelação terem eficácia real, e de os seus efeitos serem oponíveis também ao terceiro adquirente» (ibidem:437).
A consequência prática desta tutela real, que se reconhece existir in casu consiste, no caso sujeito, na atribuição ao preferente de um direito potestativo que lhe permite fazer seu o negócio de alienação realizado com violação do direito de preferência (artigo 1410.º CC).
Para quem, o que não é nosso caso, exija para a validade da cláusula estatutária os requisitos de forma e de publicidade, a que alude o artigo 413.º CC ex artigo 421.º, lembramos tão-só que o contrato de sociedade da 3.ª ré foi celebrado por escritura pública e registado.
E não se diga, por fim, que o artigo 1306.º CC veda a que se confira ao direito de preferência da autora eficácia real.
Aos direitos de preferência legais têm sido tradicionalmente reconhecida eficácia real e considerados direitos reais de aquisição.
Esta classificação não é incontroversa, havendo autores, como Henrique Mesquita, que entendem que a expressão «eficácia real» só pode «ser tomada em sentido figurado ou translato» (Obrigações e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1990:228).
Seja como for, no caso sujeito, a cláusula estatutária não está a configurar qualquer direito real novo ou a atribuir à eficácia real qualquer conteúdo novo, mas sim a tutelar reforçadamente a posição do sujeito activo da preferência, mediante um jus ad rem existente noutros casos axiologicamente semelhantes.
A autora alegou, no artigo 40.º da petição inicial: «Nenhum dos Réus informou a Autora nem da intenção de alienação das quotas do Réu na S..., Lda. nem da sua concretização, omitindo da Autora essa informação».
Tendo acrescentado, no número 41º. «Da mesma forma, e tanto quanto sabe a Autora, a S..., Lda. não teve conhecimento dessa alienação e muito menos informou a Autora da mesma, como o obriga o referido artigo 15.º dos Estatutos - cfr. DOC. 10»..
Os réus, por sua vez, na sua contestação, alegaram:
«23. Contrariamente ao que a Autora afirma e pretende fazer crer, nomeadamente nos artigos 40.º e 41.º da PI – cujo teor expressamente se impugna - é falso que, quer a Autora, quer a sociedade S..., Lda. (ora Ré) não tenham sido informados da intenção do Réu AA de proceder à supracitada doação de quotas à sua filha e aqui Ré BB.
24. Efectivamente, em 30 de Outubro de 2018, o Réu AA enviou, quer à Autora Pinco, quer à sociedade S..., Lda. (ora Ré), por correio registado com aviso, uma comunicação com todos os elementos e informações legal e estatutariamente necessários relativamente à cessão de quotas que pretendia fazer, por via de doação, à sua filha BB – cf. cópia de comunicação e registos postais com avisos de recepção que ora se juntam sob documentos n.ºs 1 e 2.
25. A Autora Pinco recebeu a sobredita comunicação, como se constata na última página do documento junto sob n.º 2 (aviso de recepção assinado).
26. Na sequência desta comunicação, porém, a ora Autora Pinco (ou qualquer um dos seus legais representantes) não deu qualquer resposta, nomeadamente manifestando oposição à intenção e/ou aos termos da cessão pretendida realizar ou informando que pretenderia exercer o seu (alegado) direito de preferência.
27. Paralelamente, também a sociedade S..., Lda. não deu qualquer resposta.
28. Deve assinalar-se que a sobredita comunicação continha todos os elementos previstos no artigo 15.º/2/b) dos Estatutos da S..., Lda..
29. Não se podendo considerar relevante o facto de a comunicação ter sido remetida directamente pelo Réu AA à Autora Pinco, em vez de ter sido a S..., Lda. a informar esta última, porquanto a finalidade pretendida pela aludida disposição estatutária foi completamente atingida: informar todos os sócios, atempadamente, acerca de todos os elementos relativos ao negócio que se pretendia realizar.
30. No entanto, a Pinco não deu, como se disse, qualquer resposta (nem dentro do prazo previsto na alínea d) do artigo 15.º/2 dos Estatutos, nem em qualquer momento).
31. Destarte, também por esta razão há que considerar, sem qualquer margem para dúvidas, que a aqui Autora Pinco não pretendeu exercer o seu putativo direito de preferência.
32. O quer significa, portanto, que não o pode vir pretender exercer, agora, por via desta acção judicial».
Esta matéria tem manifesto interesse para uma decisão justa da causa, porque não basta, para a procedência da acção, o preferente demonstrar a sua qualidade de titular do direito de preferência, sendo também preciso verificar se não existem, ao contrário do que alegam os réus, factos extintivos do direito invocado ela demandante (artigo 342.º, 2 CC.
Não cabe ao Supremo que, em princípio, só conhece de direito, proceder à verificação dos factos em falta.
O Supremo, nestas situações, deve cassar o acórdão da Relação e mandar baixar o processo, a fim de ser ampliado o julgamento da matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para uma boa decisão de direito (artigo 682.º, 3).
A recorrente pediu a dispensa «do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida sobre o valor do recurso na parte que vai além dos € 275.000,00 em todas as instâncias dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais».
Temos entendido, na linha de Salvador da Costa, «que, verificados os referidos pressupostos, o juiz, nas acções, e o colectivo dos juízes, nos recursos, aquando das respectivas decisões sobre as custas, a que os artigos 607.º, n.º 6, 663.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 679.º do CPC se referem, dispensam cada uma das partes do pagamento do referido remanescente, no todo ou em parte, conforme os casos.
Nesta perspectiva, o colectivo de juízes dos tribunais superiores não pode conhecer da referida dispensa nas acções, nem o juiz da 1:ª instância pode dela conhecer no que concerne aos recursos, em quadro de observância do princípio da autonomia, consignado no artigo 1.º, n.º 2 deste Regulamento, além do mais» (Custas Processuais, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2024:115).
Isto dito, vejamos então se deve ou não dispensar-se a recorrente do pagamento do remanescente da taxa de justiça e, se sim, no todo ou em parte.
Preceitua o artigo 6.º, 7 do RCP que «Nas causas de valor superior a € 275 000,00, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».
Este artigo visa atenuar a obrigação de pagamento da taxa de justiça nas acções de valor superior a € 275.000.00. Acima deste valor acresce, a final, o pagamento de uma taxa de justiça remanescente por cada € 25 000 ou fracção, 1,5 UC, no caso da coluna B. Entendemos que a redução de 50% se mostra, no caso sujeito, perfeitamente adequada ao valor da causa, ao montante da UC e á complexidade da mesma.
Custas do recurso pelos recorridos.
Reduz-se para 50% o montante da taxa de justiça remanescente devida pela recorrente.
Luís Correia de Mendonça (Relator)
Luís Espírito Santo
Rosário Gonçalves