I. Tendo o administrador da insolvência procedido a alteração da lista de credores prevista no art.º 129º, n.º 1 do CIRE, aditando, dentro do prazo para impugnação da lista (art.º 130, n.º 1 do CIRE), como reconhecido, um crédito que havia sido reclamado, criou no credor a expetativa de que tal crédito viria a ser apreciado pelo tribunal, sendo desnecessário impugnar a lista de credores inicial.
A tutela da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito Democrático, que o artigo 2º da CRP consagra, impõe que o credor não seja liminarmente penalizado por uma incorreção formal imputável ao administrador da insolvência.
II. A dilação prevista no n.º 5 do artigo 139.º do CPC é aplicável ao apenso de verificação e graduação de créditos em processo de insolvência, por força do artigo 17º do CIRE, não sendo essa solução excluída pela natureza urgente dos processos de natureza insolvencial.
Recorrentes:
- Arrow Global Limited
- Abanca – Corporación Bancaria, SA – Sucursal em Portugal
*1. Nos presentes autos de reclamação de créditos, apensos ao processo de insolvência de “Farmácia ..., Unipessoal, Lda.”, em 17.11.2023, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos com o seguinte dispositivo:
«A) Julgo verificados os seguintes créditos:
1. Abanca Corporación Bancaria, S.A. comum 370.330,48, reduzido a 278.875,39 €-comum, dos quais 2.537,33 € subordinados
2. Banco Comercial Português, SA. comum 350.650,98
3. Banco Santander Totta, SA. comum 74.426,99
4. Deutsche Bank Aktiengesellschaft comum 27.163,35
5. G..., Lda. - comum 8.544,67
6. Instituto da Segurança Social Centro Distrital de ... comum 64.656,87
7. AA privilegiado 10.552,15
8. K... LIMITED - Sucursal em Portugal comum 600.000,00
9. L..., Lda. comum 1.651,28
10. Ministério Público - Procuradoria do Juízo de Comércio de ... -privilegiado 3.080,22, comum 194.759,36, total 197.839,58
11. Ministério Público - Procuradoria do Juízo de Comércio de ... comum 812,50
12. M..., Lda. comum 1.686,13
13. Novo Banco, S.A. comum 8.236,99
14. BB privilegiado 14.560,68
15. E do apenso E o crédito comum de € 76,50 reconhecido ao Ministério Público.
16. O do apenso F ao mesmo credor no valor de € 306, comum.
B) Para serem pagos pelo produto da liquidação:
Quanto aos bens móveis:
1. Em primeiro lugar, os créditos privilegiados dos trabalhadores.
2. Em segundo lugar: Créditos privilegiados reconhecidos ao credor Fazenda Nacional, representado pelo Ministério Público.
3. Em terceiro lugar, na mesma posição rateadamente créditos comuns nos valores apontados supra.»
2. Na fundamentação da sentença foi determinado que seria considerada apenas a primeira lista definitiva de créditos reconhecidos, porquanto “a junção de subsequentes listas constitui, assim, ato que a lei não prevê e cuja prática influi no exame e decisão da causa.”
Decidiu-se também rejeitar, por intempestiva, a impugnação à lista de créditos reconhecidos deduzida pela ABANCA CORPORACIÓN BANCARIA, S. A., SUCURSAL EM PORTUGAL, através da refª: ...39.
3. Tanto a credora ABANCA, como a credora Arrow Global Limited, interpuseram recurso de apelação, tendo o TRL julgado os recursos improcedentes, com um voto de vencido.
A segunda instância julgou, assim:
«1. A apelação interposta pela credora Arrow Global Limited totalmente improcedente, por não provada;
2. A apelação interposta pela credora Abanca – Corporación Bancaria, SA – Sucursal em Portugal totalmente improcedente, por não provada;
3. Mantendo-se, em ambos os casos, o decidido pela 1.ª instância.»
Contra essa decisão foram interpostos recursos de revista, tanto pela credora “Arrow” como pela credora “Abanca”.
4. Nas suas alegações de recurso, a “Arrow Global Limited” formulou as seguintes conclusões:
«A. O presente recurso tem por objeto a sentença de verificação e graduação de créditos proferida pela 1ª instância confirmada agora no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que não graduou o crédito garantido da ora Apelante sobre um acordo de reconhecimento e regularização de dívida com penhor mercantil de estabelecimento comercial e fiança.
B. O referido crédito encontra-se garantido por penhor mercantil conferindo à apelante o direito do seu crédito ser graduado como garantido.
C. Não foram reconhecidos créditos à aqui Apelante no valor de €1.247.054,99, em virtude de o mesmo constar da última lista do art. 129º CIRE apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência e não da primeira.
D. No caso concreto a assembleia de credores foi realizada em 26/09/2017, tendo a lista de créditos definitiva sido elaborada a 02/10/2017. A Apelante esteve presente votando a favor das deliberações discutidas na assembleia.
E. Para a Apelante a lista apresentada em 02/10/2017 era definitiva e válida. E ainda se encontrava dentro do prazo do art. 130º n.º 1 do CIRE.
F. Pelo que não havia razão para a apelante reagir legalmente contra a mesma.
G. Foi abalada a confiança do credor, um dos princípios basilares do nosso Estado de Direito com assento constitucional.
H. A Apelante reclama o seu crédito que é reconhecido pelo senhor Administrador acompanhando todo o processo e no final, o mesmo não lhe é reconhecido em sede de 1ª instância.
I. A aqui Recorrente é a actual detentora de todo o valor reclamado a título de crédito garantido e o seu crédito deve ser graduado e pago pela preferência que legalmente lhe competir.
J. Consequentemente, deve o crédito garantido da Apelante ser graduado no valor global de €1.247.054,99.
Termos em que, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente:
1 - Revogar-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa na parte em que não procedeu à correcta verificação e graduação dos créditos da Recorrente no valor global de €1.247.054,99.
2 – Verificar e graduar o crédito reclamado como garantido a favor da ora Recorrente nos termos ora peticionados, tudo com as legais consequências.»
5. Nas suas alegações de recurso, a “Abanca – Corporación Bancaria, SA – Sucursal em Portugal” formulou as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso de revista interposto na sequência do douto Acórdão da Relação de Lisboa, que julgou totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela ora recorrente, reputando a impugnação deduzida nos termos do art. 130.º do CIRE à lista de créditos definitiva a que alude o art. 129.º do CIRE como extemporânea.
2. Sucede que o percurso lógico dedutivo percorrido pelo Douto Tribunal a quo enferma, em si mesmo, uma contradição insanável – como seja, a de que os prazos vertidos nos arts. 129.º e 130.º do CIRE são contínuos, para depois concluir que, pelo contrário, o prazo se inicia com a prática de um acto – mas que, além disso, culmina numa decisão absolutamente contrária às que vêm sido proferidas pelas instâncias superiores, em particular por este Douto Supremo Tribunal de Justiça.
3. Com efeito, a decisão recorrida desconsidera em absoluto a aplicação do comummente denominado prazo de condescendência vertido no n.º 5 do art. 139.º do CPC aos processos de insolvência.
4. Vale por isto dizer que a decisão recorrida é frontalmente contrária à proferida no Acórdão Fundamento (Ac. do STJ, de 12/12/2023, Proc. n.º 3410/21.6T8VNG-Q.P1.S1) – para além de outros – pelo que sempre estarão verificados os pressupostos de que depende a admissibilidade recursiva da presente decisão, como seja o antagonismo sobre uma mesma questão fundamental de direito, corporizada em decisões proferidas na vigência da mesma legislação.
5. Incorrendo na decisão de que se recorre, surge como inabalável o raciocínio expendido pelo douto julgador, ao fixar como momentos relevantes a data da sentença declaratória de insolvência, a fixação da data em que foi junta aos autos a lista definitiva de créditos, bem como a data em que foi deduzida a impugnação oferecida pela ora recorrente.
6. É o insigne julgador que escreve que “Como já anteriormente referido, o prazo de 10 dias previsto neste preceito (n.º 1 do art. 130.º do CIRE) para a presentação da impugnação inicia-se, por regra, imediatamente após o decurso do fixado no n.º 1 do artigo anterior (art. 129.º do CIRE). Só assim não será nas situações do n.º 4 do artigo 129.º”.
7. Contudo, acto contínuo, avança igualmente que “Tendo a lista a que se reporta o art. 129.º sido apresentada no dia 21/09/2017, o prazo de 10 dias para a sua impugnação iniciou-se no dia seguinte…”
8. Estamos, portanto, de modo irremediável perante uma contradição insanável, que não pode merecer o conforto do sistema jurídico in totum.
9. Com efeito, como marcos temporalmente relevantes – e indisputáveis – temos a data em que foi proferida a sentença declaratória de insolvência (10/08/2017); o prazo de 30 dias que da mesma consta para que fossem reclamados créditos com terminus em 10/09/20217 (cfr. n.º 1 do art. 128.º do CIRE); o prazo para a apresentação da lista de créditos definitiva nos termos do n.º 1 do art. 129.º que findou em 25/09/2017; e, no estrito respeito do n.º 1 do art. 130.º do CIRE, o prazo para impugnar a referida lista, em 05/10/2017.
10. Não se concebe como é que o Digno Julgador, depois de reputar uma contagem sucessiva dos prazos vertidos nos arts. 129.º e 130.º do CIRE, opta por, em respeito à junção de uma lista que não foi notificada a nenhum sujeito processual, deturpar essa mesma contagem de prazo.
11. Seguimos de perto a explanação vertida a este respeito no Ac. da Relação de Guimarães, de 03/03/2022, Proc. n.º 4054/20.5T8VNF-H.GI, quando refere «Face ao já exposto, verifica-se que no regime legal consagrado nos arts. 128.º e seguintes do CIRE o legislador optou por um sistema de prazos legais sucessivos, em que o início do prazo seguinte tem lugar logo após o termo do prazo que o precede sem necessidade de intermediação por notificação dos actos objecto de contraditório (isto é, o novo prazo desencadeia-se automaticamente, sem qualquer outra qualquer dependência, no desencadeamento da respectiva contagem, que não seja, e apenas, a do expirar do outro e precedente prazo).
12. O entendimento prosseguido pelo Digno Tribunal a quo consubstancia um afrontamento aos direitos dos sujeitos processuais, ceifando de modo incompreensível e insuportável prazos legalmente consagrados, sem qualquer justificação.
13. Apuradas as normas aplicáveis in casu, resulta, assim, sem margem para dúvidas, que terminando o prazo para qualquer interessado impugnar a lista definitiva no dia 05/10/2017, mas tratando-se de feriado nacional, equivale por dizer – nos termos do n.º 2 do art. 138.º do CPC e al. e) do art. 279.º do CC – que este se transferiu para o dia 06/10/2017, data em que a impugnação foi tempestivamente deduzida!
14. Mas sem prescindir e seguindo o raciocínio do Douto Tribuna a quo, deparamo-nos com a propalada violação ostensiva da posição jurisprudencial dominante.
15. Assim, admitindo que o prazo para impugnar a lista se iniciou no dia seguinte à junção aos autos e terminou no dia 02/10/2017, então, e por respeito ao vertido no n.º 5 do art. 139.º do CPC, sempre o acto em crise, tendo sido praticado no dia 06/10/2017, seria tempestivo, ainda que na dependência do pagamento da respectiva multa!
16. Regressando à quaestio em discussão nos presentes autos e no Acórdão Fundamento, saber se o denominado “prazo de condescendência” é aplicável aos prazos perentórios constantes do CIRE, temos como indubitável uma resposta afirmativa.
17. Conforme resulta do Acórdão Fundamento, temos que «Efetivamente, o art. 17º/1 do CIRE manda aplicar subsidiariamente o CPC em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE e as razões de urgência e celeridade processual do processo de insolvência não justificam, só por si, a não aplicação subsidiária do CPC, ou seja, não justificam a não concessão do prazo de tolerância ou condescendência previsto no artigo 139.º/5 do CPC, prazo esse que, sublinha-se, não se questiona (nunca se questionou) seja aplicado aos demais processos de natureza urgente previstos na lei processual»
18. Esta conclusão surge suficientemente densificada neste Digno Venerando Tribunal ad quem, como seja por respeito ao decidido no Ac. de 22/06/2021, Proc. n.º 3985/20.7T8VNF.G1.S1: «Não se vislumbra motivo sério, fundado e atendível para excluir a aplicação geral do prazo de condescendência consignado no artigo 139º, nº 5, do Código de Processo Civil aos processos de revitalização, cuja especialidade de regime se circunscreve aos artigos 17º-A a 17º-J, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE).
As disposições legais deste processo especial não o afastam, nem a sua exclusão é minimamente sugerida em qualquer outra disposição do CIRE. Pelo contrário, o artigo 17º, nº 1, do CIRE, avoca genericamente a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições daquele diploma, competindo extrair todas as ilações e consequências práticas daí advenientes.
As invocadas razões de extrema urgência e/ou invulgar celeridade e da relativa rigidez processual (vide artigo 17º-A, nº 3, do CIRE) não justificam, por si só, a não concessão do prazo de tolerância ou condescendência previsto no artigo 139º, nº 5, do Código de Processo Civil, sendo certo que ninguém questiona, nem nunca questionou, a sua normal e corrente aplicação aos demais processos de natureza urgente previstos na lei processual.
Este prazo de condescendência, legalmente instituído, reveste abrangência geral e beneficia nos mesmos termos as partes em todos os processos, indiscriminadamente, não fazendo sentido retirá-lo, de forma selectiva e cirúrgica, deste tipo de acções, sem que o legislador – podendo fazê-lo – o tenha feito.» (realce e sublinhados nossos)
19. Ou ainda no Ac. deste mesmo STJ, de 12/01/2022, Proc. n.º 5106/20.7T8VNG-B.P1.S1, onde se pode ler: «E este entendimento veio a ser claramente consagrado no referido acórdão de 22.06.2021, proferido na 6ª Secção do STJ, à qual cabe a competência específica para conhecer das matérias insolvênciais e conexas.
Nestes termos, e tendo presente que a razão pela qual o art.14º do CIRE admite o recurso de revista é, precisamente, a de orientar a jurisprudência em matérias insolvênciais, é esta a jurisprudência que seguimos no presente acórdão, subscrevendo e importando para o caso concreto os fundamentos decisórios explanados no referido acórdão do STJ de 22.06.2021. (realce e sublinhados nossos).
20. Destarte, cremos que é inequívoco que o propalado prazo de condescendência que resulta do n.º 5 do art.139.º do CPC aplica-se sem restrições aos presentes autos, pelo que, mesmo que admita o entendimento constante da decisão recorrida – isto é, desconsideração do elemento literal dos arts. 129.º e 130.º do CIRE – e considerando o dia 02/10/2017 como o último dia do prazo, então, sempre por respeito à prerrogativa do aludido n.º 5 do art. 139.º do CPC, a prática do acto no dia 06/10/2017 (uma vez que o dia 05/10/2017 foi feriado nacional) equivale ao 3.º dia útil subsquente, pelo que terá que reputar-se como tempestivo (ainda que dependente do pagamento da correspondente multa, nos termos do n.º 6 da aludida norma).
21. O Acórdão recorrido configura, deste modo, uma irremediável contradição com outro(s), proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que decidiu de forma diferente esta mesma questão fundamental de direito, pelo que se impõe a V.as Ex.as a revogação do referido aresto e a sua revogação por um que julgue a impugnação à lista de créditos reconhecidos deduzida pela recorrente como tempestiva (em singelo ou por respeito ao preceituado nos n.ºs 5 e 6 do art. 139.º do CPC) – à semelhança dos demais actos praticados sucessivamente – determinando a baixa dos autos à primeira instância, para que o Tribunal se pronuncie sobre os fundamentos de facto e direito tempestivamente oferecidos.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso interposto ser julgado totalmente procedente, revogando-se o Acórdão recorrido, proferindo-se, em sua substituição, uma decisão que julgue a impugnação oferecida pela recorrente como tempestiva (mesmo que por recurso à previsão do n.º 5 do art. 139.º do CPC), determinando a baixa dos autos à 1.ª instância para que haja lugar à apreciação dos fundamentos que não foram alvo de julgamento.»
6. A insolvente apresentou resposta, na qual concluiu pela improcedência dos recursos.
Cabe apreciar
1. Admissibilidade e objeto dos recursos
1.1. Quanto ao recurso da Arrow Global Limited
O recurso de revista da Arrow Global Limited, nas palavras da recorrente:
«(…) tem por objeto a sentença de verificação e graduação de créditos proferida pela 1ª instância confirmada agora no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que não graduou o crédito garantido da ora apelante sobre um acordo de reconhecimento e regularização de dívida com penhor mercantil de estabelecimento comercial e fiança. (…)
Não foram reconhecidos créditos à aqui Apelante no valor de €1.247.054,99 em virtude de o mesmo constar da última lista do art.º 129º CIRE, apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência, e não da primeira.
No caso concreto, a assembleia de credores foi realizada em 26/09/2017, tendo a lista de créditos definitiva sido elaborada a 02/10/2017. A Apelante esteve presente votando a favor das deliberações discutidas na assembleia.
Para a Apelante a lista apresentada em 02/10/2017 era definitiva e válida. E ainda se encontrava dentro do prazo do art.º 130º n.º 1 do CIRE.»
O acórdão recorrido, embora tenha confirmado a decisão da primeira instância, teve um voto de vencido com o seguinte teor:
«A signatária não acompanha o sentido decisório e a fundamentação do Acórdão, pelos seguintes fundamentos: A “nova” lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos – da qual já consta como reconhecido o crédito da credora, ora apelante, Arrow Global Limited, a qual teve intervenção na Assembleia para aprovação do relatório a que alude o artº 155º do CIRE e votou favoravelmente as propostas ali formuladas - foi apresentada pelo Administrador da Insolvência dentro do prazo estabelecido no artigo 130º, n.º 1, do CIRE para efeitos de impugnação da lista inicialmente apresentada e na qual o crédito desta credora não constava nem como reconhecido, nem como não reconhecido. Com efeito, a lista inicial foi apresentada no dia 21/09/2017, pelo que o prazo de 10 dias para efeitos de impugnação terminava no dia 01/10/2017, Domingo, transferindo-se, assim, para o dia seguinte;
Entendo que viola o princípio da protecção da confiança, inerente ao Estado de Direito democrático consagrado no artº 2º da Constituição da República Portuguesa, a rejeição desta “nova” lista quando, dentro do prazo da impugnação da lista de credores e de acordo com o teor da mesma, o Administrador da Insolvência veio reconhecer a omissão pela sua parte deste crédito na lista que inicialmente apresentou.
Por estes motivos, admitiria a lista nos termos da apresentada no dia 02/10/2017 e, em consequência, julgaria os recursos procedentes.»
O voto de vencido descaracteriza a dupla conformidade decisória, nos termos do n.º 3 do art.º 671.º do CPC, pelo que o recurso da Arrow Global Limited é admissível.
O recurso de revista da credora Abanca diz respeito à decisão que considerou extemporânea a impugnação deduzida por esta credora, nos termos do art.º 130.º do CIRE, à lista definitiva de créditos a que se refere o art.º 129.º do CIRE.
A decisão da primeira instância, sobre a qual o acórdão recorrido se pronunciou, é uma decisão interlocutória, pois não decidiu sobre o mérito do apenso de reclamação e verificação de créditos nem pôs termo à instância, pelo que não integra o tipo de decisões previstas no art.º 617.º, n.º 1, do CPC. Acresce que, neste tipo de decisões a existência de um voto de vencido é irrelevante.
A decisão do acórdão recorrido, que a Abanca impugna, respeita, portanto, a uma questão de natureza adjetiva, no âmbito de incidente de reclamação de créditos, apenso ao processo de insolvência, nos termos do art.º 671.º, n.º 2, do CPC.
Preceitua o art.º. 671.º, n.º 2, do CPC:
«Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:
a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;
b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»
A recorrente entende que, para efeito do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 671.º do CPC, o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão do STJ, de 12.12.2023 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo n.º 3410/21.6T8VNG-Q.P1.S1, já transitado em julgado, que indica como acórdão fundamento.
Procedendo ao confronto entre os dois arestos, concluiu-se que, embora a factualidade e a problemática central de cada um deles não seja idêntica, ambos trataram (além de outros aspetos) a mesma questão jurídica de saber se o acréscimo do prazo previsto no art.º 139.º, n.º 5, do CPC também se aplica a processos de natureza insolvencial (no caso concreto à impugnação da lista de credores, e no acórdão fundamento no âmbito do incidente da qualificação da insolvência).
Nas alegações do seu recurso de apelação (no que agora releva), a credora ABANCA invocou expressamente (particularmente nos pontos 26 e 30 das respetivas conclusões) o disposto no artigo 139º, n.º 5 do CPC para justificar a tempestividade da impugnação que havia apresentado à lista de créditos.
Sobre essa pretensão, afirma-se no acórdão recorrido: «(…) mostra-se totalmente destituído de fundamento legal o alegado nos pontos 29 e 30 das conclusões de recurso (seja em face do específico modo pelo qual, nesta matéria, os prazos estão previstos e devem ser contados, seja pela ausência de disposição legal que permita sustentar a tese defendida pela apelante).»
Nestes termos, embora não verbalize de forma explicita que o artigo 139º, n.º 5 do CPC não tem aplicação ao caso concreto, o acórdão recorrido sustenta, claramente, essa solução ao remeter para os pontos n.º 29 e 30 das conclusões da apelante, onde ela expressamente clama pela aplicação da solução prevista nesse referido artigo.
Efetivamente, no ponto n.º 30 das referidas conclusões, a então apelante alegava, além do mais, que «(…) deveria a impugnação à lista de créditos deduzida pela credora reclamante, aqui recorrente, ser julgada tempestiva e devidamente apreciada, porquanto foi apresentada em juízo no 1º dia útil com multa, nos termos do artigo 139.º, n.º 5, al. a) do CPC.»
É, assim, inequívoco que o acórdão recorrido entendeu que o disposto no artigo 139º, n.º 5, alínea a) do CPC não tem aplicação ao caso concreto pelo que, apesar de o credor recorrente ter pago a multa respeitante à apresentação do requerimento no primeiro dia útil posterior ao prazo legal, considerou esse requerimento extemporâneo.
Deste modo, considerando que o disposto no artigo 139º, n.º 5 do CPC não tem aplicação em processos de natureza insolvencial, o acórdão recorrido encontra-se em contradição com o acórdão do STJ que é indicado como acórdão fundamento (bem como com outros acórdãos do STJ no mesmo sentido, que infra se referirá).
Encontra-se, assim, verificada a hipótese prevista no artigo 671.º, n.º 2, al. b), do CPC, pelo que a revista é admitida.
1.3. Objeto dos recursos:
As questões a decidir são:
- do erro de direito por não ter sido verificado e graduado o crédito de que a Arrow Global Limited se arroga;
- do erro de direito processual por ter sido rejeitada a impugnação à lista de créditos apresentada pela ABANCA com fundamento na sua extemporaneidade.
2. A factualidade relevante
A sentença fixou os seguintes factos, que não foram alterados pelo acórdão recorrido:
I. O Administrador da Insolvência elaborou a relação de créditos reconhecidos da qual constam os seguintes créditos, expressos em Euros:
1. Abanca Corporación Bancaria, S.A: comum 370.330,48, reduzido a 278.875,39 € -comum, dos quais 2.537,33 € subordinados
2. Banco Comercial Português, SA: comum 350.650,98
3. Banco Santander Totta, SA: comum 74.426,99
4. Deutsche Bank Aktiengesellschaft: comum 27.163,35
5. G..., Lda.: comum 8.544,67
6. Instituto da Segurança Social Centro Distrital de ...: comum 64.656,87
7. AA: privilegiado 10.552,15
8. K... LIMITED - Sucursal em Portugal: comum 600.000,00
9. L..., Lda.: comum 1.651,28
10. Ministério Público - Procuradoria do Juízo de Comércio de ... - privilegiado 3.080,22, comum 194.759,36, total 197.839,58
11. Ministério Público - Procuradoria do Juízo de Comércio de ...: comum 812,50.
12. M..., Lda.: comum 1.686,13
13. Novo Banco, S.A: comum 8.236,99
14. BB: privilegiado 14.560,68
15. E do apenso E o crédito comum de € 76,50 reconhecido ao Ministério Público.
16. O do apenso F ao mesmo credor no valor de € 306, comum.
II. Foram apreendidos bens móveis conforme apenso M.
De acordo com o relatório do acórdão recorrido são ainda tomados em consideração os seguintes factos:
- Farmácia ..., Unipessoal, Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida em 10.08.2017, já transitada em julgado.
- Em 19.09.2017, pelo Administrador de Insolvência (AI) foi apresentado o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, tendo a assembleia de credores para apreciação do mesmo ocorrido no dia 26 do mesmo mês.
- Nesta última foram aprovadas as seguintes propostas: a) manutenção da atividade da insolvente; b) apresentação do plano de insolvência no prazo de 30 dias, com suspensão da liquidação da partilha; e c) atribuição da administração à devedora (todas elas com o voto favorável, entre outros, de Arrow Global Limited).
- Por despacho de 30.10.2018, em face da ausência de qualquer plano de insolvência, foi determinado que os autos prosseguissem para liquidação, cessando a suspensão da liquidação e partilha que havia sido ordenada.
- Em 21.09.2017, o AI apresentou a lista definitiva dos créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o artigo 129.º do CIRE, tendo sido autuado o competente apenso de reclamação de créditos (ou seja, em momento anterior àquele em que se realizou a assembleia de credores, mas já após ter decorrido o prazo legal para apresentação das reclamações).
- No dia 25 do mesmo mês (por sua iniciativa e sem adiantar qualquer justificação), o AI juntou nova lista, a qual apenas divergiu da anteriormente apresentada no seguinte aspeto: o crédito reconhecido à credora BB passou a ser identificado – montante reclamado e reconhecido: 14.560,60€ (13.523,86€ de capital e 1.036,82€ de juros), fundamento: salários; natureza: privilegiado –, quando na primeira lista apenas estava identificada a credora.
- E, em 02.10.2017 (novamente por sua iniciativa e sem adiantar justificação) voltou a apresentar uma terceira lista.
- Nesta última, manteve inalterados os créditos anteriormente reconhecidos, aditando, no entanto, mais dois:
Credora Arrow Global Limited - montante reclamado e reconhecido: 1.247.054,99€; fundamento: fornecimento de bens; natureza: garantido (1.214.385,132€) e comum (32.669,86€); e
Credor P...- montante reclamado e reconhecido: 8.988,67€ (6.137,12€ de capital e 2.851,55€ de juros); fundamento: fornecimento de bens; natureza: comum.
- A listagem apresentada pelo AI foi alvo de impugnações:
Em 06.10.2017, pela credora Abanca – Corporación Bancaria, SA, Sucursal em Portugal, por entender, no que aqui releva, que o seu crédito deveria ser classificado como garantido, por beneficiar de penhor sobre o estabelecimento comercial de farmácia. Sobre esta impugnação pronunciaram-se a credora K... LIMITED– Sucursal em Portugal (em 20/10/2017) e a insolvente (em 27/12/2017);
Em 27.10.2017, pela insolvente. Sobre esta impugnação pronunciou-se a credora Abanca – Corporación Bancaria, SA, Sucursal em Portugal (em 30/10/2017).
- Em 21.06.2021, a credora Abanca – Corporación Bancaria, SA, Sucursal em Portugal, requereu a redução do seu pedido. Concluiu o seu requerimento nos seguintes moldes: “Termos em que se requer a redução do pedido formulado para os seguintes valores: - Mútuo com hipoteca: capital = 272.596,78 €. Descoberto: capital = 3.723,00 €, juros = 2.457,32 €; imposto do selo = 98,29 €; num total de 278.875,39 €, dos quais 2.537,33 € serão subordinados (correspondentes aos juros e imposto do selo vencidos após a sentença declaratória de insolvência).”
- Deste requerimento também foi notificada a apelante Arrow Global Limited – (Ref.ª Citius ...01).
- Foram apreendidos para a massa insolvente o alvará n.º ...58 emitido pelo I... e bens móveis – apenso M.
3. O direito aplicável
3.1. Quanto ao recurso da credora Arrow.
3.1.1. A recorrente pede que seja revogado o acórdão do TRL «na parte em que não procedeu à correta verificação e graduação dos créditos da Recorrente no valor global de €1.247.054,99». Tal como pede que se decida «verificar e graduar o crédito reclamado como garantido a favor da ora Recorrente».
3.1.2. O acórdão recorrido sustentou a sua decisão, em síntese, nas razões que se extratam:
«Estando o reconhecimento de créditos por parte do AI sujeito a uma específica tramitação (obrigando ao respeito pela forma e pelos prazos previstos no artigo 128.º) qualquer outro “reconhecimento” - designadamente através da apresentação de sucessivas listas de créditos reconhecidos e não reconhecidos, por esse meio se inserindo novos credores que não constassem da lista apresentada em primeiro lugar - será processualmente inadmissível, seja por não observar o previsto no artigo 129.º, n.º 1, seja porque isso obstaria a que os demais interessados pudessem impugnar o novo crédito ou, pelo menos, implicaria conceder novo prazo para esse efeito (quando o legalmente previsto havia já decorrido), o que a lei não consente. A proceder-se dessa forma estar-se-ia a desvirtuar a estabilidade e segurança jurídica que o legislador visou com a tramitação prevista para a reclamação de créditos.
Eventuais alterações à lista definitiva de créditos reconhecidos apenas poderão ocorrer na sequência de apreciação judicial de impugnação que à mesma venha a ser deduzida – cfr. artigo 130.º, n.º 1 -, sem prejuízo da apreciação oficiosa de eventual erro (manifesto) que a mesma revele (n.º 3 do mesmo artigo 130.º).
Visando o apenso de verificação e graduação de créditos a estabilização do passivo do insolvente, e estando prevista, como se referiu, específica tramitação processual para tanto, uma vez apresentada pelo AI a lista de credores reconhecidos e de credores não reconhecidos a que alude o artigo 129.º, inviabilizada fica a possibilidade de a mesma vir a ser alterada (designadamente por inserção de novos créditos), fora das situações expressamente ressalvadas.
Não assiste, assim, razão à apelante quando refere que a lista aqui em apreço apenas foi “elaborada a 02/10/2017” – conclusão D) das alegações de recurso.
Claro está que o facto de não ser admissível a sucessiva apresentação de listas pelo AI, não obsta a que a lista inicialmente apresentada seja sujeita a correcções que se prendam unicamente com meros lapsos ou erros materiais (o que não será admissível é que sejam introduzidas alterações substanciais – alterações jurídico-substantivas -, como sucedeu com a lista apresentada em 02/10/2017).
Aliás, apesar de não ter sido referido pelo AI, foi precisamente um lapso material que determinou a apresentação de uma “segunda” lista, em 25/09/2017.
Com efeito, na primeira lista (de 21/09/2017), não obstante ter sido relacionada como credora reconhecida BB, por evidente lapso, nada se consignou quanto ao respectivo crédito – tendo ficado por preencher, no quadro elaborado pelo AI, qual o montante reclamado e reconhecido, bem como o fundamento e natureza do crédito. Tal omissão veio a ser colmatada na segunda lista, sem, contudo, interferir com a listagem dos credores que tinham já sido reconhecidos (ou seja, sem que daí tenha resultado qualquer alteração substancial do que anteriormente havia sido consignado).
Por assim ser, o tribunal valorou tão somente a lista inicialmente apresentada em 21/09/2017.
Isto posto, dir-se-á que:
- A lista apresentada pelo AI em 21/09/2017, respeitou o prazo previsto no artigo 129.º, n.º 1;
- Desconhece-se se, e quando, a apelante reclamou junto do AI o crédito em questão (a reclamação não consta do processo e sequer a credora refere quando o terá sido, limitando-se a alegar que o reclamou – cfr. ponto 3 da motivação de recurso);
- Da referida lista não consta o crédito de que a apelante se arroga (seja como reconhecido, seja como não reconhecido);
- Por assim ser, não se tratando de uma situação enquadrável na previsão do n.º 4 do artigo 129.º, não teria o AI de ter notificado a apelante para os efeitos aí previstos (diferente seria caso o crédito constasse da lista dos não reconhecidos);
- Sempre a apelante à lista teve acesso (ou se assim não sucedeu, tal omissão só à mesma será imputável); aliás, há a realçar que, em momento algum, a apelante alegou que a lista apresentada em 21/09/2017 não tenha sido do seu conhecimento aquando da sua apresentação; (…)
- A apelante reunia todas as condições para se inteirar se o seu crédito havia ou não sido inserido na lista apresentada e, uma vez constada a sua exclusão, reagir através dos meios legalmente previstos (a saber, apresentando a respectiva impugnação nos 10 dias subsequentes);
- Não o tendo feito e, consequentemente, não tendo impugnado a lista, quando tal lhe era possível e exigível, sibi imputet;
Em síntese:
- Não constam do incidente de reclamação de créditos quaisquer outros elementos que permitissem concluir pela existência do invocado crédito (e, nessa sequência, pela existência de eventual erro manifesto na lista que devesse ter sido sindicado pelo juiz)
- Na eventualidade de ter sido tempestivamente apresentada a reclamação de créditos pela apelante (o que se desconhece, já que nada foi junto que o comprove), e apenas por erro imputável do AI o crédito não tenha sido inserido na lista de créditos reconhecidos ou na lista de créditos não reconhecidos, qualquer notificação que tivesse sido omitida constituiria irregularidade que, influenciando a decisão a proferir em sede de verificação e graduação de créditos, traduziria uma nulidade nos termos previstos pelo artigo 195.º, n.º 1 do CPC, nulidade essa que teria de ter sido invocada nos moldes previstos pelo artigo 199.º, n.º 1 do mesmo código – sendo que, caso tivesse actuado com a diligência que o caso exigia, ter-se-ia facilmente apercebido que o seu crédito não havia sido incluído na lista apresentada em 21/09/2017 (e, nessa sequência, reagido atempadamente perante tal exclusão, bem como perante a putativa omissão do cumprimento do n.º 4 do artigo 129.º, tanto mais que foi notificada do que de relevante sucedeu no apenso de reclamação de créditos, como foram as impugnações apresentadas à lista).»
3.1.3. Vejamos o quadro legal pertinente:
Dispõe o art. 128.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE:
«1 - Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem:
a) A sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros;
b) As condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas;
c) A sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável;
d) A existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes;
e) A taxa de juros moratórios aplicável.
f) O número de identificação bancária ou outro equivalente.
2 - O requerimento é endereçado ao administrador da insolvência e apresentado por transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 17.º.»
Preceitua o art. 129.º, n.º 1, do CIRE:
«Nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento.»
Estabelece o art. 130.º do CIRE:
«1 - Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
2 - Relativamente aos credores avisados por carta registada, o prazo de 10 dias conta-se a partir do 3.º dia útil posterior à data da respectiva expedição.
3 - Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta.»
Assim, conforme se extrai do disposto nos artigos 128.º e 129.º do CIRE, na sentença de declaração de insolvência, o juiz fixa prazo até 30 dias para os credores apresentarem as reclamações de créditos, as quais são remetidas pelos credores ao administrador da insolvência.
É com base nestas reclamações, e de acordo com outros factos que lhe cheguem ao conhecimento, que o administrador da insolvência procede à elaboração da lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos.
Terminado o prazo para as reclamações, 15 dias após o termo do prazo para a reclamação de créditos, o administrador da insolvência apresenta junto do processo de insolvência a lista definitiva de credores reconhecidos e não reconhecidos, dando início ao apenso de verificação e graduação de créditos.
É neste momento que se inicia o prazo de 10 dias para a apresentação de impugnação à lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos – artigo 130.º, n.º 1, do CIRE.
No caso concreto, o acórdão recorrido, confirmando o decidido na primeira instância, entendeu que, uma vez que o administrador da insolvência apresentou três listas de credores aos autos, a única que deveria ser considerada era a primeira dessas listas.
3.1.4. Numa perspetiva de generalizável linearidade técnica e pedagógica, apontando as regras que os administradores de insolvência devem seguir para que não existam atropelos ao exercício sequencial dos vários direitos dos credores, o acórdão recorrido não mereceria censura, na medida em que tal decisão acentua os interesses gerais de certeza e segurança inerentes às matérias insolvenciais. Todavia, a especificidade do caso sub judice interpela fortemente o sentido de justiça do caso concreto, que o julgador não pode deixar de ter.
Efetivamente, ao corrigir a lista de créditos, aditando o crédito do credor-recorrente, na terceira lista apresentada, o administrador da insolvência criou neste credor a expectativa de que tal crédito iria ser apreciado pelo tribunal.
Caso a solução tivesse sido a oposta, naturalmente que esse credor teria tido a oportunidade de apresentar reclamação.
Tendo o aditamento à 1ª lista, através da 3ª lista, sido apresentado, pelo administrador da insolvência, dentro do prazo legal para a impugnação da lista de credores, é perfeitamente razoável que o credor tenha considerado existir uma desnecessidade de apresentar reclamação contra o facto de o seu crédito não constar da primeira lista.
Efetivamente, essa última lista, embora legalmente não prevista, surge, no caso concreto, como um ato complementar ou integrativo da informação que devia inicialmente ter constado da primeira lista (pois o credor havia reclamado o seu crédito), criando no credor (como razoavelmente criaria em qualquer outro colocado no seu lugar) a expectativa de ser desnecessário impugnar a lista, porque a tutela do direito que alcançaria por meio dessa impugnação já se encontrava realizada pela “auto-correção” operada pelo administrador da insolvência.
O administrador da insolvência, pela posição que ocupa no sistema judicial, toma decisões suscetíveis de gerarem confiança nos credores.
Assim, ao rejeitar a correção constante da 3ª lista, o tribunal acabou por não garantir plenamente ao credor-recorrente o direito de acesso ao tribunal, previsto no artigo 2º do CPC, não se pronunciando (nem favoravelmente, nem desfavoravelmente) sobre um eventual direito de crédito que o administrador da insolvência havia inscrito como crédito reconhecido.
O voto de vencido, constante do acórdão recorrido, aponta no sentido que se afigura ser o mais correto da decisão, ao apelar à tutela da confiança que o recorrente depositou no comportamento do administrador da insolvência, enquanto operador do sistema de justiça e enquanto sujeito a quem as reclamações de créditos são dirigidas.
Efetivamente, a tutela da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito Democrático, que o artigo 2º da Constituição da República Portuguesa consagra, impõe que o credor não seja liminarmente penalizado por uma incorreção formal imputável ao administrador da insolvência, devendo ser-lhe reconhecido o direito de ver a sua reclamação de créditos apreciada pelo tribunal.
Nesta medida, deve a pretensão do recorrente ser procedente, com a consequente revogação do acórdão nesta parte e a descida dos autos à primeira instância, para que o tribunal se possa pronunciar sobre a verificação, ou não, do crédito do recorrente.
Todavia, não pode o STJ decidir diretamente sobre a verificação e graduação do crédito da recorrente, na medida que a primeira instância não chegou a pronunciar-se sobre tal matéria, ou seja, não considerou o crédito nem como verificado nem como não verificado, dado tal crédito não constar da 1ª lista – a única que o tribunal tomou em consideração, por não ter admitido a possibilidade do aditamento constante da 3ª lista.
Assim, devem os autos descer à primeira instância para que o tribunal se pronuncie sobre o crédito da credora-recorrente, reconhecido pelo administrador da insolvência no segundo aditamento à lista de credores (3ª lista), verificando-o e graduando-o, ou não, segundo os elementos decisórios de que disponha.
3.2.1. Entende o recorrente que o acórdão recorrido incorreu em erro de direito processual por ter sido rejeitada a impugnação à lista de créditos apresentada, com fundamento na sua extemporaneidade.
3.2.2. O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão nos termos que, em síntese, se extratam:
«No caso, o crédito da apelante Abanca foi tempestivamente reclamado e reconhecido pelo AI, estando incluído na lista que o mesmo apresentou no dia 21/09/2017.
Sucede que esta credora reclamou o crédito como tendo natureza garantida e foi o mesmo reconhecido como sendo comum, o que levou a que a mesma apresentasse impugnação à lista em 06/10/2017.
Tal impugnação não foi considerada com fundamento da sua extemporaneidade.
E, também nós diremos, dúvidas inexistem de a impugnação ter sido apresentada para além do prazo previsto para o efeito, como se demonstrará.
Uma vez apresentada a lista pelo AI, terá a mesma que conter todos os elementos necessários (nos moldes descritos pelo n.º 2 do artigo 129.º) para que possa ser proferida a competente decisão de verificação e graduação dos créditos, até porque, relembra-se, na ausência de impugnações à mesma, poderá ela ser de imediato homologada, com a subsequente graduação dos créditos daí resultante (n.º 3 do artigo 130.º).
Porém, decorrendo da lista algum erro manifesto (evidente e notório), o qual poderá incidir, não apenas sobre questões de facto, como ainda sobre questões de direito, pode e deve o juiz proceder à sua correcção (solicitando, se necessário for, as informações/esclarecimentos ou junção de elementos que o caso requeira).
Na presente situação, importa assinalar que - com relação ao crédito da apelante - os autos não continham quaisquer elementos que pudessem levar o tribunal a quo a ponderar a existência de qualquer erro e, nessa medida, a diligenciar pela obtenção de elementos tendentes a aferir se assim sucedia (a sindicância do juiz terá que ter subjacente um erro evidenciado pelo constante da lista ou dos elementos carreados para o processo na sua globalidade).
Na verdade, a lista apenas poderá ser alterada: a) por apreciação oficiosa em caso de erro manifesto; ou b) como consequência de ser julgada procedente alguma impugnação que à mesma tenha sido apresentada.
(…) a questão que se coloca com relação a esta credora apelante é a referente à omissão do cumprimento da notificação prevista no n.º 4 do artigo 129.º, notificação essa que se impunha (já que o crédito foi reconhecido em moldes distintos daqueles em que foi reclamado).
Numa primeira leitura, dir-se-á assistir razão à apelante quando defende que tal omissão consubstancia nulidade processual susceptível de influir na decisão a proferir (em matéria de verificação de créditos) e, nessa medida, na impugnação apresentada. Com efeito, tratando-se de credor avisado por carta registada (nos termos do n.º 4 do artigo 129.º), o prazo de 10 dias para impugnação da lista inicia-se apenas “a partir do 3.º dia útil posterior à data da respetiva expedição” (artigo 130.º, n.º 2).
Porém, não se poderá deixar de realçar que, no caso, a falta do aviso a que alude o n.º 4 do artigo 129.º não constituiu impedimento a que a apelante exercesse o direito a impugnar a lista (uma vez que a impugnação foi efectivamente apresentada).
Simplesmente, não o fez dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 130.º e, caso tivesse sido avisada, tal prazo seria mais alargado, a saber, o previsto no n.º 2 do mesmo preceito.
Sucede que, para que a apelante pudesse beneficiar deste prazo mais alargado, teria a mesma de ter suscitado a descrita irregularidade (falta de aviso) no prazo de 10 dias. (…)
Ora, a apelante não invocou tal vício quando deduziu impugnação à lista (em 06/10/2017) – sendo que, nesse momento, tinha já conhecimento da omissão que agora invoca -, assim como também não o fez quando apresentou resposta à impugnação deduzida pela insolvente (em 30/10/2017). E manteve tal postura nas subsequentes intervenções processuais – requerimentos de 14/11/2017 e de 21/06/2021.
Ter-lhe-ia sido possível, e exigível, que, em momento anterior, tivesse invocado a irregularidade passível de constituir nulidade (o que só agora, em sede de alegações, veio fazer). Não o tendo feito, impõe-se concluir que renunciou à sua arguição, razão pela qual a cometida irregularidade sempre se terá de ter por sanada – cfr. artigos 197.º, n.º 2, e 199.º, n.º 1, ambos do CPC. (…)
Por fim, mostra-se totalmente destituído de fundamento legal o alegado nos pontos 29 e 30 das conclusões de recurso (seja em face do específico modo pelo qual, nesta matéria, os prazos estão previstos e devem ser contados, seja pela ausência de disposição legal que permita sustentar a tese defendida pela apelante).
Em síntese:
- Tendo a lista a que se reporta o artigo 129.º sido apresentada no dia 21/09/2017, o prazo de 10 dias para a sua impugnação iniciou-se no dia seguinte e terminou no dia 02/10/2017, já que o último dia, 01/10, coincidiu com um domingo – cfr. artigo 279.º, al. e), do CCivil;
- Da lista de credores apresentada pelo AI e do processo (processo principal e apensos) não resultava qualquer erro manifesto (referente ao crédito da apelante) que importasse apurar ou corrigir; e
- Aquando da impugnação à lista apresentada pela apelante, em 06/10/2017, já o prazo legalmente previsto para esse efeito se mostrava exaurido (mesmo que, para a sua contagem se recorresse ao disposto no artigo 139.º do CPC).
Por assim ser, bem andou o tribunal recorrido ao considerar a mesma extemporânea, rejeitando a sua apreciação de mérito.
Termos em que terá a pretensão recursória da credora Abanca de improceder.»
3.2.3. Entende a recorrente que a impugnação à lista definitiva de créditos que apresentou em 06.10.2017 é tempestiva, além do mais, porque lhe é aplicável o acréscimo de prazo previsto no n.º 5 do art.º 139.º do CPC.
Vejamos.
Em 21.09.2017, o administrador da insolvência apresentou a lista definitiva dos créditos reconhecidos e não reconhecidos a que alude o artigo 129.º do CIRE.
Em 25.09.2017, o administrador da insolvência juntou nova lista, a qual apenas divergia da anterior relativamente à quantificação e qualificação do crédito reconhecido à credora BB, quando na primeira lista apenas estava identificada a credora.
Em 02.10.2017, o administrador apresentou uma terceira lista, na qual foi aditado o crédito respeitante à credora Arrow Global Limited, nos seguintes termos: montante reclamado e reconhecido: 1.247.054,99€; fundamento: fornecimento de bens; natureza: garantido (1.214.385,132€) e comum (32.669,86€).
Nos termos do artigo 130.º, n.º 1, do CIRE, o credor dispõe de 10 dias para impugnar a lista de créditos.
Caso se entenda que a data a considerar como o início da contagem do prazo para a impugnação é o dia 21.09.2017 (data da entrega da primeira lista, sem as posteriores correções) constata-se que a impugnação foi deduzida em prazo, atendendo ao acréscimo de prazo previsto no n.º 5 do artigo 139.º do CPC.
Efetivamente, atendendo a esta data, o prazo para impugnação terminaria no dia 02.10.2017, porque é o primeiro dia útil seguinte ao término do prazo (dia 01.10, domingo). Acrescentando os 3 dias úteis de multa previstos no n.º 5 do artigo 139.º do CPC, o último dia de prazo recai no dia 06.10.2017, devido ao facto de o dia 05.10 ser feriado nacional.
A jurisprudência do STJ (concretamente a da 6ª Secção à qual compete a matéria da insolvência) tem entendido que o regime previsto no artigo 139.º, n.º 5, do CPC também é aplicável em processos de natureza insolvencial, sem prejuízo da natureza urgente destes processos.
Veja-se neste sentido, para além do acórdão fundamento, ainda as seguintes decisões:
- Acórdão do STJ, de 22.06.2021 (relator Luís Espírito Santo), no proc. n.º 3985/20.7T8VNF.G1.S1, no qual se sumariou:
«O artigo 139º, nº 5, do Código de Processo Civil, que confere às partes um prazo de condescendência ou tolerância, habilitando-as a praticar o acto processual nos três dias seguintes ao termo do respectivo prazo, mediante o pagamento da multa correspondente, é aplicável nos processos especiais de revitalização previstos nos artigos 17ºA e 17ºJ do CIRE.
Este prazo de condescendência reveste abrangência geral que beneficia as partes em todos os processos, indiscriminadamente, não fazendo sentido retirá-lo, de forma selectiva e cirúrgica, neste tipo de acções, sem que o legislador – podendo fazê-lo – o tenha feito.
Ainda que se aceite que o Processo Especial de Revitalização consista num procedimento com vincado peso extrajudicial, dominado pela autonomia de vontade dos interessados, o certo é que não deixa, em momento algum, de revestir igualmente a natureza de processo judicial, com enfâse na concessão da primazia devida à tutela jurisdicional dos direitos de acção e de defesa dos intervenientes, garantidos pelo sistema unitariamente considerado, que não deverá ser comprimida, desvalorizada ou menorizada, a pretexto de difusos e indefinidos desígnios de celeridade e uniformidade de prazos que, sendo em si meramente instrumentais ou operativos, não constituem valores essenciais e determinantes para definição das prerrogativas a conceder às partes.
Retirar tal faculdade dos processos de revitalização, sem que a lei lhe dê o imprescindível respaldo, constituiria, para este tipo de acções judiciais, uma interpretação infundada que redundaria num inexplicável retrocesso na concessão de garantias às partes, enquanto contributo para a administração da justiça que assente, de forma prevalecente ou tendencial, na prossecução do princípio da verdade material e não no resultado do funcionamento de automatismos de índole estritamente formal»
- Acórdão do STJ, de 12.01.2022 (relatora Maria Olinda Garcia), no processo n.º 5106/20.7T8VNG-B.P1.S1, no qual se sumariou:
«A dilação prevista no n.º 5 do art. 139.º do CPC é aplicável ao Processo Especial de Revitalização, regulado nos arts. 17.º-A a 17.º-J do CIRE (por remissão do art. 17.º do CIRE), concretamente ao prazo de 5 dias previsto no art. 17.º-F, n.º 2, in fine, para a devedora apresentar alterações ao plano de recuperação conducente à revitalização.»
- Acórdão do STJ, de 15.03.2023 (relatora Maria Olinda Garcia), no processo n.º 1687/22.9T8BRR-C.L1.S1, no qual se sumariou:
«A reclamação de créditos, prevista no n.º 2 do art.17º-D do CIRE, que o credor apresentou no 21º dia do prazo (tendo pago a inerente multa) deve considerar-se tempestiva, porque a dilação prevista no n.º 5 do art.º 139º do CPC é aplicável ao Processo Especial de Revitalização, regulado nos artigos 17º-A a 17º-J do CIRE (por remissão do art.º 17º do CIRE).»
Na linha desta jurisprudência, entende-se que a dilação de prazos prevista no artigo 139º, n.º 5 do CPC também se aplica ao apenso de verificação e graduação de créditos, concretamente, no que interessa para o presente caso, ao prazo previsto no artigo 130.º, n.º 1, do CIRE, por força da remissão operada pelo artigo 17º do CIRE.
Assim, concluiu-se pela procedência do recurso de revista da credora Abanca, revogando-se o acórdão recorrido nesta parte, e determinando que seja admitida, por tempestiva, a sua impugnação à lista de créditos, com as inerentes consequências legais, devendo os autos baixar à primeira instância para que conheça do teor desta impugnação.
- Julgar procedente o recurso de revista da ARROW GLOBAL LIMITED, revogando-se o acórdão recorrido nesta parte, devendo os autos baixar à primeira instância para que o tribunal de pronuncie sobre a verificação, ou não, do crédito da recorrente, com as inerentes consequências legais.
- Julgar procedente o recurso de revista da credora ABANCA – CORPORACIÓN BANCARIA, S.A., SUCURSAL EM PORTUGAL, revogando-se o acórdão recorrido nesta parte, e determinando que seja admitida, por tempestiva, a sua impugnação à lista de créditos, com as inerentes consequências legais, devendo os autos baixar à primeira instância para que conheça do teor dessa impugnação.
Custas: pela massa insolvente, nos termos do artigo 303.º do CIRE.
Lisboa, 14.01.2025
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Luís Correia de Mendonça
Luís Espírito Santo