I - Encontrada pela GNR, após alerta de trabalhadores de uma empresa de construção, a quantia monetária de 436.300,00 euros e não tendo o arguido, constituído como tal quando após mais de 1 (um) mês de saber deste facto se apresentou como seu proprietário, demonstrado que era sua propriedade, nem havendo outra ou outras pessoas que se arrogassem sê-lo, deverá ser declarada perdida a favor do Estado.
II - A tal não obsta o facto de o processo de inquérito instaurado ter sido arquivado nos termos do art.º 277º, n.º 2 do CPP, pois a perda tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.
II - É admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que inovatoriamente declara perdida a favor do Estado esta quantia monetária, quando em 1ª instância tinha sido indeferida a requerida perda.
Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório
1.1. No Processo n.º 281/21.6GFPNF.P1, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo de Instrução Criminal de ...-J2, foi proferida decisão em que se decidiu indeferir a requerida perda a favor do Estado do dinheiro apreendido nestes autos, por não se verificar o primeiro dos pressupostos previstos no art.º 109º, n.º 1 no art.º 110º, n.º 1, ambos do Código Penal.
1.2. Inconformado, o Ministério Publico interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, que, concedendo provimento ao recurso proferindo acórdão com a seguinte decisão: “Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a 1ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, declarando perdidas a favor do Estado as quantias monetárias descritas a fls. 26 a 28 apreendidas à ordem dos autos.”
1.3. Inconformado com o decidido, em recurso, pelo Tribunal da Relação do Porto, recorre, agora, o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo, a final:
“Conclusões:
I-Acordaram os Juízes que compõe a 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em “conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, declarando perdidas a favor do Estado as quantias monetárias descritas a fls. 26 a 28 apreendidas à ordem dos autos.
II-A douta decisão recorrida padece, todavia, de inúmeros erros in judicando, que inquinam o mérito da causa e que, consequentemente, permitiram declarar perdidas a favor do Estado as quantias que foram apreendidas à ordem dos autos pertencentes ao Recorrente.
III-Salvo melhor opinião, o Tribunal não valorou o elemento crucial para determinar que a propriedade das quantias é do Recorrente, que são tanto o vestígio palmar do Recorrente encontrado na bolsa plástica que continha dinheiro no interior do cofre cinzento, bem como os vestígios digitais do Recorrente detetados na pelicula transparente que envolvia três dos cofres apreendidos.
IV-Destarte, não se concebe a posição que o Tribunal a quo toma em descorar e não valorar o facto do ADN do Recorrente estar nas quantias, e valorar o facto de este não entregar as chaves dos cofres, pelo que o mesmo já explicou o motivo de não estar na posse das mesmas.
V-Verifica-se erro notório na apreciação da prova, uma vez que na apreciação crítica das provas, o Tribunal olvidou e não valorou, como devia, a recolha de vestígios nos cofres e nas peliculas que envolviam o dinheiro, infringindo, assim, o disposto no artigo 127º, conjugado com o artigo 163º, nº 1 do C. de Processo Penal.
VI-Na verdade e salvo melhor opinião, do exame pericial e relatório pericial, resulta que o Recorrente pegou obrigatoriamente nos cofres e nas peliculas que envolviam o dinheiro, pelo que, não se vê outra explicação, por mais inverosímil que seja, para o facto de a sua impressão digital se encontrar nos cofres e na pelicula transparente, a não ser este ser o legitimo proprietário dos mesmos.
VII-Pelo que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos atinentes à propriedade dos bens, e incorreu em erro notório na apreciação da prova, porquanto, daqueles meios de prova conjugados com as regras da experiência comum, resulta uma prova positiva dos mesmos.
VIII-Cabe ao juiz decidir tendo em conta o seu bom senso e as regras da experiência comum, mas nunca desligado das provas concretamente produzidas.
IX-In casu, entendemos, salvo o devido respeito, que o Tribunal a quo formou uma convicção incorreta, na medida em que fez, na humilde opinião do ora recorrente, um juízo errado da prova produzida.
X-De facto, não existe prova nos autos que corrobore que o Recorrente tenha praticado um crime, tampouco haja indícios da prática de um facto ilícito típico.
XI-Aliás, houve despacho de arquivamento por se reconhecer que não foram recolhidos indícios suficientes da prática de nenhum ilícito criminal.
XII-Constituem indícios suficientes os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime e de que alguém determinado é responsável;
XIII-Tais elementos, logicamente relacionados e conjugados, hão-de formar uma presunção da existência do facto e da responsabilidade do agente, criando a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação.
XIV-Só este critério da possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o princípio in dubio pro reo.
XV-Descendo ao caso concreto, e devidamente peneirado o acervo probatório constante dos autos, não brotam elementos de prova que permitam comprovar que o as quantias do Recorrente resultam:
a. Diretamente de factos contra o património, sendo o produto de furtos, roubos a residências, dependência bancária, ATM, eventual lucro do crime de burlas;
b. Do produto da venda de estupefacientes, passagem de moeda falsa;
c. De crimes fiscais; e
d. De branqueamento de capitais
Tal como refere o Ministério Público, ao tentar justificar o facto de estas quantias, assim em “dinheiro vivo”, poderiam resultar deste tipo de ilícitos.
XVI-Percorrendo toda prova, não resultam elementos que permitam demonstrar sem dúvidas que o Recorrente tenha praticado um facto ilícito típico.
XVII-Salvo melhor opinião, crê o Recorrente que nos autos não foram recolhidos elementos de prova que, quando conjugados com as regras da experiência e do senso comum, permitam concluir com elevada probabilidade que as quantias apreendidas à ordem dos autos são provenientes da prática de um crime, uma vez que a “prova” existente são meras suposições, não havendo nenhum alicerce probatório que suportem as suposições feitas pelo Tribunal a quo.
XVIII-Inúmeras são as vezes que o Tribunal a quo recorre às regras da experiência comum para, desse modo, julgar provado um determinado facto que direta ou indiretamente possibilitou a declaração de perdidas as quantias a favor do Estado.
XIX-As “regras da lógica e da experiência comum” que o nosso sistema penal, não permite, de modo algum, que o juiz forme uma convicção subjetiva ou emocional para julgar provado ou não um concreto facto.
XX-Efetivamente, embora o sistema de prova livre represente uma liberdade associada ao dever de procurar a verdade material, a verdade é que este propósito não permite ao juiz uma liberdade de convicção subjetiva, nem emocional, até porque um dos objetivos de uma sentença ou acórdão é convencer os intervenientes do bom fundamento da decisão.
XXI-Descendo ao caso dos autos, entende o arguido, salvo o devido respeito, que o Tribunal a quo formou a sua convicção com base nas regras da experiência comum em detrimento dos meios de prova produzidos.
XXII-No ordenamento jurídico-penal português, o regime da perda encontra-se regulado tanto no Código Penal como em diversa legislação avulsa.
XXIII-O regime geral, encontra-se previsto nos artigos 109.º a 112.º-A do Código Penal (regime substantivo), e artigos 178.º a 186.º, 191.º a 194.º e 227.º e 228.º do Código de Processo Penal (regime processual) – a declaração de perda de vantagens constitui uma consequência jurídica que se insere no direito substantivo (ou material) e que é efetivada por mecanismos de natureza processual.
XXIV-Na ótica do Tribunal a quo, “o que está em causa são manifestamente vantagens económicas”, todavia, questiona-se, qual o ilícito criminal praticado pelo Recorrente que leve à conclusão de que as quantias, que o mesmo já justificou como as auferiu, são provenientes de facto ilícito típico.
XXV-Ao interpretar o artigo 110º C. Penal é clarividente que não é necessário verificar-se uma condenação pela prática de um crime, TODAVIA, é necessário que haja pelo menos indícios de que os crimes mencionados (crimes de fraude qualificada, branqueamento de capitais, eventuais crimes contra o património ou a propriedade (furto, burla, rapto ou extorsão) e tráfico de estupefacientes) hajam sido praticados, o que, salvo melhor opinião, não há UM INDíCIO da prática de qualquer facto ilícito típico.
XXVI-Pelo que não se compreende como o Tribunal a quo, na ausência de meios de prova pode dar o salto para concluir que o Recorrente em causa praticou um facto ilícito típico, e dessa prática (não fundamentada, nem com qualquer evidência de indícios) possa ter tido vantagens económicas.
XXVII-Entende o Recorrente, por conseguinte, que o Acórdão recorrido deverá ser revogado, concedendo-se como provado que as quantias ao Recorrente pertencem, como as mesmas têm origem lícita, não as declarando perdidas a favor do Estado.
Princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas:
* Artigo 127º do C. de Processo Penal.
* Artigos 163º, nº 1 do C. de Processo Penal.
* Artigo 110º do C. Penal.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, QUE V. EXAS. DOUTAMENTE MELHOR SUPRIRÃO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DISSO, SER ALTERADA A, ALIÁS, DOUTA DECISÃO RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE CONTEMPLE AS CONCLUSÕES ATRÁS ADUZIDAS.”
1.4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, pela Exma Procuradora Geral Adjunta, pronunciando-se pela improcedência, e concluindo que: “Entendemos que não assiste razão ao recorrente e que deve ser negado provimento ao recurso interposto e mantido nos seus precisos termos o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, porque fundado, sem que se lhe possa apontar qualquer vício ou nulidade, nomeadamente os referidos na motivação de recurso pelo Recorrente.”
1.5. Por despacho da Exma Desembargadora Relatora foi proferida decisão de não admissão do recurso, do qual foi apresentada reclamação, que, foi deferida.
1.6. Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer, concluindo que (i)deverá o presente recurso ser rejeitado, por irrecorribilidade da decisão recorrida, ou, se assim não se entender, (ii)deverá o recurso ser julgado provido e procedente, com revogação da decisão recorrida, nos termos definidos em III.
Foi cumprido o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP.
O processo foi aos vistos e à conferência,
Decidindo,
2. Fundamentação.
2.1. Dados do processo e factos provados.
2.1.1. Consta do acórdão recorrido que “com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais e ocorrências processuais que constam dos autos:
a) Os presentes autos tiveram o seu início com o auto de notícia datado de 04.11.2021, no qual se dá conta que num muro existente na Rua do ..., em ..., foi encontrada uma avultada quantia em dinheiro.
b) Nessa sequência, em 04.11.2021, foram apreendidos quatro cofres metálicos, todos eles envoltos em película transparente, que se encontravam dissimulados atrás de pedras, num muro em pedra, de propriedade da sociedade I..., S.A., que confronta com a Rua do ..., em ....
No interior dos ditos cofres foi encontrada a quantia total de € 436.300,00 (constituída por 77 notas de €500,00; 192 notas de €200,00; 1142 notas de €100,00; 4904 notas de €50,00), que foi apreendida à ordem dos presentes autos, organizada em diversos sacos plásticos da seguinte forma:
- cofre B1 de cor preto: 12 sacos plásticos, contendo no seu interior €65.350,00, em notas do BCE;
- cofre B2 de cor cinzento: 22 sacos plásticos, contendo no seu interior €165.450,00, em notas do BCE;
- cofre B3 de cor vermelho: 22 sacos plásticos, contendo no seu interior €60.600,00, em notas do BCE;
- cofre B4 de cor preto: 8 sacos plásticos, contendo no seu interior €144.900,00, em notas do BCE.
Os cofres B1 e B2 foram encontrados no mesmo local do muro e os cofres B3 e B4 foram encontrados num local distinto do mesmo muro.
Uma das notas de €50,00 apreendidas revelou ser falsa.
c) Em 05.11.2021 foi efectuada recolha dos seguintes vestígios lofoscópicos:
- na face traseira de um dos cofres de cor preta (A1.1);
- numa bolsa plástica contendo dinheiro, no interior do cofre de cor preta (A1.2.);
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor preta (A1.), tendo sido revelados 8 vestígios lofoscópicos, com as referências alfanuméricas “A1.3, A1.4, A1.5, A1.6, A1.7, A1.8, A1.9 e A.10”;
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor cinzenta (A2.), tendo sido revelado 1 vestígio lofoscópico, com a referência alfanumérica “A2.1”;
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor vermelha (A3.), tendo sido revelados 3 vestígios lofoscópicos, com as referências alfanuméricas “A3.1, A3.2. e A3.3.”
Após realização do respectivo exame verificou-se o seguinte:
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.1.”, que assentava “na face traseira de cofre metálico”, não apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie palmar, referenciado como “A1.2.”, que assentava “em bolsa plástica contendo dinheiro, no interior de cofre metálico”, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.3.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.4.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.5.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.6.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.7.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.8.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.9.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.10.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A2.1.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia um outro cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A3.1.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia um outro cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A3.2.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A.3.3.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
Após efectuada a comparação dos vestígios lofoscópicos “A1.2, A1.3, A1.4, A1.5, A1.6, A1.7, A1.8, A1.9, A.10, A2.1, A3.1, A3.2 e A3.3.” com as impressões digitais e palmares de AA concluiu-se que:
- o vestígio “A1.2” identifica-se com a região superior do quirograma correspondente à palma da sua mão esquerda;
- o vestígio “A1.3” identifica-se com o dactilograma correspondente ao dedo polegar da sua mão esquerda;
- o vestígio “A1.4” identifica-se com o dactilograma correspondente ao dedo polegar da sua mão direita;
- os vestígios “A1.5” e “A1.8” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo anelar da sua mão esquerda;
- os vestígios “A1.6, A1.7, A1.8, A2.1 e A3.1” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo médio da sua mão esquerda;
- os vestígios “A1.10, A3.2 e A3.3.” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo anelar da sua mão direita.
d) Em 16.12.2021, AA, veio requerer a restituição das quantias apreendidas nos seguintes termos:
“O aqui participante processual, oportunamente a melhor identificar nos autos, é o dono e legítimo proprietário dos cofres e das quantias apreendidas nos mesmos, conforme demonstrará.
As aludidas quantias não foram obtidas através de ato que constitua crime ou qualquer tipo de ilícito de outra natureza.
Pretendendo, por isso, que a posse lhe seja restituída, com a brevidade possível, efectuadas as diligências de inquérito que se imponham, manifestando-se disponível para prestar, processualmente, todos os esclarecimentos que se impõe.”
e) Em 10.03.2022, AA, foi constituído arguido.
f) Nessa data, o arguido prestou declarações perante o magistrado do Ministério Público, dizendo sucintamente:
“Emigrou pela primeira vez para a ... aos 17 anos tendo ir trabalhar para a construção civil, auferindo cerca de 4000 marcos por mês.
Esteve na ... cerca de 3 anos e meio, tendo depois trocado para a ..., local onde se encontra actualmente.
Encontra-se há cerca de 22 anos emigrado na ..., encontrando-se actualmente desempregado.
Na ... trabalhou na construção civil como operário, depois como ... de máquinas. Na ... reside em ..., no cantão francês, juntamente com a sua mulher e filha maior.
Tem uma relação com o local onde as quantias foram encontradas.
Certo dia, o seu pai disse-lhe que já tinha também compensado financeiramente os seus irmãos, pelo que indicou que o mesmo se deveria deslocar a um muro que se encontrava em frente aos balneários deste campo de futebol, que por de trás de uma pedra no muro, tinha uma caixa de madeira.
Cerca de um ano depois deslocou-se a esse local, tendo retirado a referida pedra e encontrado uma caixa de madeira, contendo a quantia de cerca de 52.000 mil euros. Estes fatos ocorreram há cerca de oito anos, quando o seu pai ainda era vivo.
O seu pai à data já não residia em ..., já que o mesmo morava nas ....
O muro será propriedade da pedreira do senhor BB, os balneários em causa confrontam com o caminho público e ficam em frente ao referido muro.
Uma vez que a sua esposa tinha alguma propensão para o consumo excessivo, acumulando dívidas de cerca de 60.000 euros em cartões de crédito, optou por deixar o dinheiro naquele local não revelando à sua esposa, da sua origem.
Comprou um apartamento em ..., local onde durante algum tempo guardou dinheiro vivo. Depois vendeu essa casa e ficou sem local onde guardar o mesmo.
Ao longo da sua vida de trabalho foi sempre acumulando diversas quantias em dinheiro vivo, como forma de poupança.
A sua esposa tem o referido problema com questões de dinheiro, motivo pelo qual optou por guardar diversas quantias em dinheiro vivo sem o conhecimento dela.
Por outro lado, tendo apenas a 2.a classe, tem manifesta dificuldade em abrir conta bancária, sem intervenção do segundo titular, o que revelaria à sua esposa a existência dessas mesmas quantias.
Com a falência do novo banco também veio abalar a sua confiança no sistema bancário.
No fundo optou por fazer aquilo que o seu pai fez, que foi justamente esconder todos os proveitos de uma vida de trabalho no muro.
Pese embora ter passado a sua infância naquele local, desde que emigrou para a ..., nunca mais residiu em ..., ou nas imediações do muro.
Este muro é de outra pessoa, nem o arguido tem naquele local nenhuma propriedade.
Vinha a Portugal apenas duas a três vezes por ano.
Pegou no investimento inicial do seu pai, cerca de € 52.000,00 e todos os anos que vinha a Portugal trazia consigo diversas quantias em dinheiro vivo proveniente dos aforramentos.
Antes do seu pai lhe dar os €52.000,00, já tinha em sua casa em ..., cerca de € 300,000,00.
Todos os anos trazia diversas quantias em dinheiro que variavam entre os 20 e os 40 mil euros.
Não tem registos bancários da conversão de francos em euros.
Recebeu cerca de 40 mil euros em duas indemnizações provenientes de acidentes laborais, que levantou parcialmente e que faz parte da quantia encontrada no dito muro.
Foi o arguido quem comprou os cofres em causa, estando no interior do cofre cinzento acondicionados cerca de € 220 mil euros. Quanto aos demais cofres, não se recorda exactamente da cor uma vez que ao longo dos anos foi trocando, tendo chegado a ter um vermelho, um azul e um preto.
Tendo sido pedida a exibição ou a entrega das chaves dos cofres, ou cópia, o mesmo disse que não tinha, explicando que quando viu as notícias sobre o achamento dos cofres, reparou que as mesmas estavam ligadas a um assassinato que teria existido há uns anos atrás. Assustado e com receio de ver associado a esse mesmo caso, se reclamasse a quantia, deitou as chaves ao lixo no aeroporto, quando estava prestes a passar no detector de metais.
Colocou no muro quatro cofres diferentes, apenas sabendo que um deles era cinzento, não se recordando, pelos motivos já indicados, da cor dos demais.
Um dos cofres tinha € 220.000,00, dois tinham € 60,000,00 cada um e o quarto com quantia que poderia oscilar entre € 90.000,00 e € 110.000,00, não se recordando em concreto qual.
Encontrava-se escrito à mão, por fora dos cofres, com uma caneta permanente a quantia exacta existente nos cofres.
O dinheiro encontrava-se dentro de sacas próprias para acondicionar quantias que comprou nas lojas dos chineses e cujo exemplar ora junta.
Os cofres estavam embrulhados em película aderente.
Os maços das notas estavam presos por elásticos de cor beje.
Que não tem nenhuma fotografia com os cofres na mão, no local, nem nunca disse a ninguém que tinha dinheiro naquele local.
Em quase todos os cofres encontra-se rasurada a quantia anterior e adicionada a nova quantia com a já referida caneta de tinta permanente.
O muro em causa é composto de pedras grandes, tendo outras pedras mais pequenas. Retirou as pedras, colocando no buraco os cofres.
Existia na zona da bilheteira, do outro lado do muro, por baixo do entulho, € 80.000,00 em notas em duas sacas.
Quando vinha a Portugal ia à zona do muro, sempre de noite, por forma a não revelar a sua localização.
A última vez que foi ao local, antes da quantia ter sido encontrada, foi quando chegou da ... e durante o dia.
Deslocou-se ao local porque precisava de dinheiro.
Estacionou junto ao muro, fingindo que estava a urinar, tendo tirado um cofre do muro. Meteu o cofre dentro do carro e chegou-se mais á frente, tendo reparado numa máquina que estava a fazer um trabalho. Tirou um maço de notas que normalmente costumavam ter cerca de 5.000 euros, voltando a por o cofre no local.
Apercebeu-se que, entretanto, chegou uma carrinha de trabalho, mantendo-se contudo por aquele local. Interpelou os trabalhadores tendo-lhes perguntado há quanto tempo estava aquilo abandonado, referindo-se aos balneários. Mais perguntando se iam deitar o muro abaixo. Os trabalhadores disseram que estavam a por postes de electricidade para o campo de tiro.
Entretanto chegou um outro senhor àquele local e esteve a conversar com ele sobre o estado de abandono dos balneários. Após terminar a conversa ausentou-se daquele local tendo sido a última vez que viu os cofres. Suspeita que um ou alguns destes trabalhadores o terão visto a mexer no muro tendo dado o consequente alerta.
Compromete-se a juntar aos autos toda a documentação bancária que conseguir recolher.”
g) Em 06.07.2023, foi proferido despacho de arquivamento dos presentes autos com o seguinte teor (transcrição integral):
“I.
Os presentes autos tiveram o seu início com a informação de fls. 6 no qual a GNR dá conta que, no dia 04 de Novembro de 2021, foi chamada a deslocar-se à Rua ..., em ..., área desta comarca, em virtude de populares terem detectado um sujeito não identificado exibindo um comportamento estranho junto a um muro existente naquele local.
Uma vez aí, os militares de GNR descobriram, ocultos num interior de um muro de "pedra posta", 4 cofres, que uma vez abertos, revelaram conterem a quantia total de €436.300,00.
Ora, uma vez que todo o circunstancialismo supra descrito fazia suspeitar que as quantias em causa poderiam ser produto directo do crime, vantagem, lucro ou recompensa pelo mesmo gerada, foram as mesmas apreendidas à ordem dos autos.
**
II.
Os factos supra descritos, em abstracto e tal e qual foram participados são susceptíveis e integrarem a prática dos crimes fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais, eventualmente crimes contra o património não especificados (furto, burla, roubo, rapto ou extorsão) ou, ainda, tráfico de estupefacientes, p. e p. nos termos do art. 103. e 104.° do RGIT, 368- A do Cód. Penal, bem como 204.°, 217, 210.°, 223.° do mesmo diploma e, ainda, art. 23.° do DL 15/93.
**
III.
A)
Foi ordenada a abertura do presente inquérito tendo sido as diligências iniciais de recolha de prova efectuados pelo NIC da GNR.
Atentas as suspeitas de eventuais crimes fiscais e branqueamento de capitais, foi a competência de delegada na A.T. do Porto, tendo, igualmente intervindo nos autos, o GRA - Gabinete de Recuperação de activos.
Foram, ainda, solicitadas informações operacionais ao NIC e à PJ.
No decurso de investigação foram inquiridos CC, DD, EE.
Foi efectuada a recolha de vestígios lofoscópicos, auto de levantamento celular, recolhidas informações bancárias e fiscais, bem como analisa a diversa documentação junta aos autos pelo arguido de cariz laboral, judicial e bancária e, ainda, certidões permanentes e certidão matricial.
Foi constituído como arguido e interrogado nessa qualidade AA.
**
Não obstante uma das notas ter sido considerada falsa, não foi possível apreender a mesma, proceder à sua análise e associa-la eventualmente a um outro inquérito pendente ou findo.
Uma vez que as notas apreendidas foram de imediato depositadas, tendo, consequentemente sido misturadas com outras provenientes de outras origens, não foi possível identificar os seus números de serie a determinar o seu ponto de entrada em circulação.
**
B) Compulsados os autos, das diligências de prova realizadas afigura-se-nos que se mostram indiciados os factos seguintes:
a) No dia 04 de Novembro de 2021, a GNR foi chamada à Rua ..., em ..., por funcionários da P...., empresa de electricidade, que procediam trabalhos de reparação de uma linha.
b) O motivo de alerta assentou na circunstância de um indivíduo, de identidade não concretamente apurada, exibir um comportamento suspeito junto a um muro de "pedra posta" que se encontra naquele local.
c) Cerca das 13:30, a patrulha da GNR localizou, oculto no interior do referido muro, embrulhados em película transparente, 4 cofres de pequenas dimensões, contendo:
a. (Cofre B1) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €63.350,00;
b. (Cofre B2) - 22 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €165.450,00;
c. (Cofre B3) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €60.600,00;
d. (Cofre B4) - 8 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €144.900,00;
d) Tais cofres continham a quantia global de €436.300,00 (quatrocentos e trinta e seis mil euros) sendo 77 notas de €500,00, 192 de €200,00, 1142 de €100,00 e 4.902 de €50,00.
e) Uma das notas apreendidas revelou ser falsa.
f) Foi realizado recolha dactilogramas na película transparente que envolvia os cofres, tendo-se logrado obter vestígios com potencial identificativo.
g) O muro em questão situa-se na Rua ..., em ..., freguesia do concelho de ..., confrontando com a via pública.
h) Tal muro é propriedade da sociedade I..., S.A., sociedade anónima, que tem como objecto social a exploração de uma pedreira, encontrando-se descrito na conservatória do registo predial de ..., freguesia de ..., sob os artigos 2100, 691, 670 e 174.
i) A 16 de Dezembro de 2021, AA, por requerimento dirigido ao inquérito, veio arrogar-se proprietário quantias supra-referidas e que vieram a ser apreendidas à ordem dos autos.
j) O mesmo veio a ser constituído como arguido e interrogado nessa qualidade, tendo nessa ocasião sido devidamente resenhado.
k) Foi efectuado exame lofoscópico, comparando-se os vestígios recolhidos na película transparente com a resenha do arguido, tendo-se concluído que correspondem ao mesmo. l) Pese embora lhe ter sido solicitado, o a arguido não forneceu qualquer chave dos cofres em causa m) O arguido é emigrante na ... residindo, pelo menos desde 2012, na Route ....
n) Só no ano de 2022 é que o arguido passou a ter residência fiscal em Portugal.
o) O arguido não reside, nem nunca residiu, junto ao local onde as quantias em causa foram localizadas.
p) Desde 2012 até a 2022 o arguido, juntamente com a sua esposa, terão recebido cerca de €1.000.000,00, a título de rendimentos do trabalho e indemnizações laborais.
q) O arguido recebeu tais quantias sempre em francos Suíços, moeda legal do pais onde residia,
r) Pese embora ter sido expressamente solicitado, o arguido não entregou qualquer tipo de comprovativo da conversão dos francos suíços em euros.
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Pois bem, aqui chegados, perante todo o circunstancialismo supra exposto afigura-se-nos manifesto que as quantias apreendidas, ocultas nos buracos de um muro num local ermo, foram ali colocadas para evitar a sua detecção por quaisquer entidades oficiais, donde resulta a sua quase certa natureza ilícita.
Alias, tal acepção decorre não só das regras da experiência e do senso-comum, como sendo igualmente uma prática com que já nos deparamos noutros inquéritos.
Na verdade, Portugal não só tem um sistema bancário robusto como existem outras opções (cofres bancários) para, com segurança, guardar quantias tão elevadas, não havendo qualquer outro tipo de explicação razoável para conservar eventuais poupanças do trabalho daquela forma, atento o elevadíssimo risco de perda total.
Este dinheiro, assim oculto, não seria apreendido a ordem de eventual processo crime, não só servindo como prova do mesmo, como sendo recuperado e devolvido aos seus legítimos proprietários, ou perdido a favor do estado.
Isto posto, tipicamente esta quantias, assim em "dinheiro vivo", poderiam resultar directamente de factos contra o património, sendo o produto de furtos, roubos a residências, dependência bancárias, ATM, eventual lucro do crime de burlas.
Da mesma forma, poderia resultar do produto da venda de estupefacientes, ou passagem de moeda falsa, tipicamente geradoras de elevadíssimos proveitos, pese embora de notas com denominações inferiores.
Estas quantias, poderiam ainda terem sido rendimentos ocultos à autoridade tribuária, recebimento de prestações do Estado (crimes fiscais), eventualmente resultariam da conversão de outros produtos do crime em dinheiro, assim se ocultando a sua proveniência ilícita (branqueamento de capitais).
Com efeito, no caso vertente seguiu-se um caminho inverso ao que tipicamente costuma suceder nos inquéritos já que se partiu do resultado do crime, seu produto, lucro ou recompensa para do mesmo se tentar concretizar a sua tipificação e seus autores.
O caso vertente mereceu amplíssima cobertura noticiosa, de âmbito nacional, sendo que apenas AA veio aos autos reclamar as quantias como sendo suas, tornando-se assim o principal suspeito.
Sucede, porém, que nos termos melhor infra descritos, afigura-se-nos que não foram recolhidos indícios suficientes que nos permitissem concluir tais quantias eram propriedade daquele já que, em síntese, considerou- se que a sua versão dos factos/justificação foi considerada, do ponto de vista das regras da experiencia e senso- comum, fantasiosa, a motivação inerente à conduta inverosímil, não residir em Portugal, sequer nas imediações do dito muro, não ter a chave dos cofres nem qualquer comprovativo da conversão de francos Suíços em euros.
Sem prescindir, é certo que das diligências de investigação realizadas não se logrou determinar, em concreto que o arguido AA por si, ou como parte um grupo organizados, tenha, nesta área de actuação, praticado furtos, a residência ou instituições bancárias produzindo, de uma vez só ou como resultado de múltiplas ocasiões, valores idênticos aos dos presentes autos.
O mesmo se diga no que concerne ao eventual tráfico de estupefaciente, não se logrou recolher indícios concretos que o arguido se dedica ou dedicou a esta actividade, nem se localizaram outros sujeitos ou grupos, actuando nesta área, ou suas imediações, que tenham movimentado valores na ordem desta grandeza.
Já no que tange crimes fiscais, cumpre salientar que a sociedade proprietária do muro (I..., S.A.) não é suspeita, nem arguida, em qualquer tipo de esquema de fraude fiscal, ou burla tributária, seja por ocultação de rendimentos à AT seja por pedidos de reembolso de elevado valor, nem se conhecem operadores económicos nas imediações com movimentos semelhantes ao dos autos.
O mesmo se diga quanto ao arguido que, ao não ser residente em Portugal não é sujeito passivo fiscal neste pais, não tendo, assim, que proceder ao pagamento de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.
Por seu turno, a nota falsa descoberta nos autos não foi ligada a qualquer processo, ao arguido, ou a qualquer grupo.
Ainda, não se logrou se logrou identificar em concreto qualquer esquema de branqueamento de capitais, activo nesta mesma área, que gere proveitos da magnitude das quantias encontradas e do qual seja o arguido, ou outros suspeitos, intervenientes.
Nesta conformidade, pese embora ser certo que as quantias (nos termos já supra descritos) são provenientes de crime, não obstante as diligências de investigação realizadas não foi possível relacionar as quer com o arguido (nos termos melhor infra descritos), que com qualquer ilícitos típicos.
*
Ora, no momento de encerramento do inquérito, o juízo de conformação do exercício da acção penal, orientada pelo princípio da legalidade, a cargo do Ministério Público, pauta-se pela determinação concreta de "indícios suficientes" da verificação do crime, da identificação do seu agente e da sua responsabilidade.
Quanto à definição de indícios suficientes, dispõe o artigo 283°, n.° 2 do Código de Processo Penal: "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança."
Ora a suficiência indiciária afere-se em função das provas e indícios, ou seja dos elementos de facto trazidos pelos meios probatórios ao processo, os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão probabilidades sérias de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.
Daqui resulta que uma acusação se sedimenta em provas desde que elas satisfaçam a ideia de "indiciação suficiente", não estando, contudo, excluído que uma condenação se baseie, nos seus aspectos determinantes, apenas em indícios.
O critério decisivo é que por força desta indiciação suficiente derive, em prognose, a possibilidade razoável de condenação do arguido em julgamento.
A força probatória dos indícios determina-se pelo seu número, pelo seu concurso unânime ou predominante e pelas consequências que se podem concluir dos factos geradores dos indícios.
Como refere Carlos Adérito Teixeira, in "Indícios Suficientes: Parâmetro de Racionalidade e Instância de Legitimação Concreta do Poder-Dever de Acusar, Revista do CEJ, n° 1, 2° semestre de 2004, p. 189 "O juízo de indiciação suficiente deve, assim, ter por equivalente o juízo de condenação em julgamento."
Nesta conformidade, das diligências de prova realizadas no decurso do inquérito não existem indícios credíveis, de forma suficiente e de acordo com os princípios atrás expostos, permitam imputar ao arguido, ou a qualquer outro suspeitos factos susceptíveis de integrarem um crime concreto.
Pelo exposto, determina-se o arquivamento dos autos nos termos e ao abrigo do disposto no art. 277.°, n.° 2, do CPP.”
h) Nesse mesmo despacho, quanto às quantias apreendidas nos autos, o Ministério Público promoveu que fossem declaradas perdidas a favor do Estado nos seguintes termos:
“IV. Da perda das quantias apreendidas a favor do Estado.
Nos presentes autos foram apreendidos 4 cofres, embrulhados em película transparente, 4 cofres de pequenas dimensões, contendo:
a. (Cofre B1) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €63.350,00;
b. (Cofre B2) - 22 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €165.450,00;
c. (Cofre B3) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €60.600,00;
d. (Cofre B4) - 8 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €144.900,00; Tais cofres continham a quantia global de €436.300,00 (quatrocentos e trinta e seis mil euros) sendo 77 notas de €500,00, 192 de €200,00, 1142 de €100,00 e 4.902 de €50,00.
Pelo que cumpre dar-lhes o devido destino.
No caso vertente, desde logo cumpre salientar que os factos supra descritos mereceram ampla cobertura noticiosa de âmbito nacional (…) sendo que, contudo, apenas houve uma pessoa a vir aos autos reclamar a sua propriedade.
Com efeito, AA veio efectivamente aos autos reclamar as quantias apreendidas, assim tornando-se o principal suspeito, sendo que, quando interrogado, referiu em síntese que:
a) Emigrou pela primeira vez para a ... aos 17 anos tendo ir trabalhar para a construção civil, auferindo cerca de 4000 marcos por mês.
b) Esteve na ... cerca de 3 anos e meio, tendo depois trocado para a ..., local onde se encontra atualmente. Assim sendo encontra-se há cerca de 22 anos emigrado na ..., encontrando-se atualmente desempregado.
c) Na ... trabalhou na construção civil como operário, depois como manobrador de máquinas. Na ... reside em ..., no cantão francês, juntamente com a sua mulher e filha maior.
d) O seu pai disse-lhe que já tinha também compensado financeiramente os seus irmãos, pelo que indicou que o mesmo se deveria deslocar a um muro que se encontrava em frente aos balneários deste campo de futebol, que por de trás de uma pedra no muro, tinha uma caixa de madeira. Cerca de um ano depois deslocou-se a esse local, tendo retirado a referida pedra e encontrou uma caixa de madeira contendo a quantia de cerca de 52.000 mil euros. Refere que estes fatos ocorreram há cerca de oito anos, quando o seu pai ainda era vivo.
e) Uma vez que a sua esposa tinha alguma propensão para o consumo excessivo, acumulando dívidas de cerca de 60.000 euros em cartões de crédito, optou por deixar o dinheiro naquele local não revelando à sua esposa, da sua origem.
f) Salienta que a sua esposa tem o referido problema com questões de dinheiro, motivo pelo qual optou por guardar diversas quantias em dinheiro vivo sem o conhecimento dela.
g) Por outro lado, tendo apenas a 2.a classe, tem manifesta dificuldade em abrir conta bancária, sem intervenção do segundo titular, o que revelaria à sua esposa a existência dessas mesmas quantias.
h) Com a falência do novo banco também veio abalar a sua confiança no sistema bancário. No fundo optou por fazer aquilo que o seu pai fez, que foi justamente esconder todos os proveitos de uma vida de trabalho no muro.
i) Pese embora ter passado a sua infância naquele local, desde que emigrou para a ..., nunca mais residiu em ..., ou nas imediações do muro.
j) Este muro é de outra pessoa, nem o arguido tem naquele local nenhuma propriedade.
k) Por outro lado vinha a Portugal apenas duas a três vezes por ano.
l) Não tem registos bancários da conversão de francos em euros.
m) Tendo sido pedida a exibição ou a entrega das chaves dos cofres, ou cópia, o mesmo disse que não tinha.
n) Que não tem nenhuma fotografia com os cofres na mão, no local, nem nunca disse a ninguém que tinha dinheiro naquele local.
o) Em quase todos os cofres encontra-se rasurada a quantia anterior e adicionada a nova quantia com a já referida caneta de tinta permanente.
p) Estacionou junto ao muro, fingindo que estava a urinar, tendo tirado um cofre do muro. Meteu o cofre dentro do carro e chegou-se mais á frente, tendo reparado numa máquina que estava a fazer um trabalho. Tirou um maço de notas que normalmente costumavam ter cerca de 5.000 euros, voltando a por o cofre no local.
q) Apercebeu-se que, entretanto, chegou uma carrinha de trabalho, mantendo-se contudo por aquele local. Interpelou os trabalhadores tendo-lhes perguntado à quanto tempo estava aquilo abandonado, referindo-se aos balneários. Mais perguntando se iam deitar o muro abaixo. Os trabalhadores disseram que estavam a por postes de electricidade para o campo de tiro.
r) Esteve a conversar com esta sobre o estado de abandono dos balneários. Após terminar a conversa ausentou-se daquele local tendo sido a última vez que viu os cofres. Suspeita que um ou alguns destes trabalhadores o terão visto a mexer no muro tendo dado o consequente alerta.
Pois bem, cumpre desde logo salientar que se considera a versão dos factos apresentada pelo arguido fantasiosa, inverosímil, desprovida de qualquer lógica, isto do ponto de vista das regras da experiência e do senso-comum.
Com efeito, afigura-se-nos absolutamente implausível que qualquer pessoa fosse guardar dinheiro num muro de uma propriedade que não é sua, quando reside a milhares de quilómetros de distância e onde apenas regressa duas a três vezes por ano. A ser assim, o arguido não teria qualquer forma de vigiar adequadamente o dinheiro, assegurando que tal muro não é reparado, alterado, derrubado pelo seu proprietário que se trata de uma empresa de exploração de pedra.
Salienta-se que o muro em causa não fica num local ermo, perdido na vegetação no meio do monte e num local de difícil acesso, mas sim confronta com um caminho público de acesso à empresa, junto a uma estada municipal, dotado de iluminação pública e por onde circulam centenas de pessoas.
Acresce que o arguido, não reside desde há vários anos junto aquele local, tendo a sua residência habitual, quando se deslocava a Portugal, em ....
Por outro lado, o motivo pelo qual o arguido alega ter procedido desta maneira (desconfiança do sistema bancário - associado à queda no BES) também se julga como sendo destituída de lógico ou senso-comum, querendo o arguido fazer crer que o dinheiro estaria mais seguro escondido no muro do que numa instituição bancária ..., local da sua residência.
Ora, a ... é o país com o sistema bancário mais robusto e seguro do mundo, com apertadíssimas regras de colaboração com entidade judiciais, local onde inúmeros cidadãos de vários países depositam o seu dinheiro justamente por esse mesmo motivo. Acresce que esses mesmos depósitos estariam assegurados pelos fundo interbancário e nacional em caso de insolvência de qualquer uma das instituições.
Sem prescindir do supra exposto, ainda que houvesse alguma desconfiança para com os bancos, é certo que sempre existiram outras alternativas como cofres bancários (dependente do pagamento de uma pequena quantia mensal) ou guardar o dinheiro no interior da própria residência igualmente em cofre seguro.
Isto posto, pese embora resultar dos autos que o arguido, entre 2012 e 2022, recebeu cerca de um milhão de euros título de rendimento de trabalho e indemnizações, não deixa de ser certo que recebeu tais quantias em francos Suíços e nãoeuros, moeda das quantias apreendidas.
Tais quantias parecem, de facto, impressionantes, mas importa referir que foram recebidas ao longo de 10 anos, sendo consabido que a ... tem um custo de vida muito elevado, sendo custos como alojamento, alimentação, educação e serviços altíssimos.
Por outro lado, afigura-se-nos muito importante o facto de, pese embora lhe ter sido expressamente solicitado, o arguido não ter exibido qualquer tipo de documento comprovativo que levantamento em euros ou conversão de Francos Suíços em euros.
Na verdade, o dinheiro recebido pelo arguido encontrava-se "dentro do sistema bancário", em francos suíços, não existindo qualquer prova da sua conversão, no todo em ou parte, em euros, moeda que foi apreendida.
Com efeito, perante a elevada quantia em dinheiro envolvida nos autos, caso fosse realmente sua, sempre teria de ter alguma prova da conversão da moeda de origem, na moeda de apreensão, assim ficando por explicar "transmutação" de uma moeda na outra.
Acresce, ainda, que é de crucial importância o facto de, novamente, não obstante lhe ter sido solicitado, o arguido nunca exibiu ou entregou qualquer uma das chaves daqueles cofres.
Desta forma, carece de explicação como o arguido abria os cofres para movimentar as quantias apreendidas.
Na verdade, entendemos que a posse efectiva das chaves dos cofres seria um elemento crucial para determinar a propriedade sobre as quantias, pois seria um elemento que o ser verdadeiro titular teria.
Ao exposto salienta-se, também, que o arguido não deu qualquer tipo explicação plausível para só ter vindo reclamar a propriedade das quantias em causa cerca de um mês e meio depois da apreensão dos cofres, e numa altura em que os factos já tinham tido ampla divulgação noticiosa, sendo assim conhecidos da população em geral.
Da mesma forma, fica por explicar por que motivo o arguido, se de facto fosse o proprietário das quantias, ao aperceber-se da presença dos trabalhadores e havendo o risco sério da detecção do dinheiro, simplesmente não tirou os cofres do muro e ausentando-se daquele local na sua posse.
Aqui chegados, não descuramos o facto dos vestígios palmares do arguido foram detectados no papel transparente que envolvia os cofres.
Sucede, porém, que para nós apenas tal apenas significa que o mesmo, seja por sorte seja por ter alguma informação privilegiada, entrou em contacto com a parte exterior dos cofres, não servindo, de forma alguma, para provar que o mesmo era seu proprietário, sobretudo quando conjugamos todo o circunstancialismo supra exposto com as regras da experiência e do senso-comum.
Nesta conformidade, em síntese, afigura-se-nos que o arguido não logrou demonstrar minimamente que os cofres e as quantias que foram apreendidas à ordem dos autos lhe pertenciam efectivamente.
Isto posto, mais se considera que perante o circunstancialismo supra exposto as quantias apreendidas, ocultas nos buracos de um muro num local ligeiramente afastado da via pública, foram por certo ali colocadas para evitar a sua detecção por quaisquer entidades oficiais, donde resulta a sua natureza ilícita.
Ora, tal acepção decorre não só das regras da experiência e do senso-comum, como sendo igualmente uma prática com que já nos deparamos noutros inquéritos.
Como já referimos, Portugal não só tem um sistema bancário robusto como existem outras opções (cofres bancários) para, com segurança, guardar quantias tão elevadas, não havendo qualquer outro tipo de explicação razoável para conservar eventuais poupanças do trabalho daquela forma, atento o elevadíssimo risco de perda total.
Este dinheiro, assim oculto, não seria apreendido a ordem de eventual processo crime, não só servindo como prova do mesmo, como sendo recuperado e devolvido aos seus legítimos proprietários, ou perdido a favor do estado.
Na verdade, novamente fazendo-se apelo às regras da lógica, julgamos não haver qualquer outro tipo de explicação plausível que possa explicar ou justificar esse mesmo circunstancialismo.
Acresce que, com a excepção do arguido (que reiteramos não logrou demonstrar minimamente a titularidade das quantias) mais ninguém veio aos autos reclamar a sua propriedade, isto não obstante a ampla divulgação mediática que a apreensão colheu.
*
Com efeito, dispõe o artigo 178.°, n.° 1 do CPP que "são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova."
Ademais, estatui o art. 109.°, do Código Penal que
1- São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
2- O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
Dispõe, ainda, o artigos 110.° do Código penal que:
1- São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2- O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
No caso vertente, uma vez que resulta fortemente indiciado dos autos que as quantias apreendidas foram produzidas pela prática de um facto ilícito típico, constituindo o seu produto lucro ou recompensa, devem consequentemente ser declaradas perdidas a favor do estado, isto nos termos das disposições conjugadas nos artigos. 109.°, n.° 1 e 2, e 110.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal, o que se promove.
Nesta conformidade, apresente os autos ao M.° Juiz de Instrução Criminal para, nos termos e ao abrigo dos disposto nos art. 109.°, 110.°, do Código Penal e art. 185.° e 268.°, n.° 1, alínea e) do Código Processo Penal A QUEM SE PROMOVE QUE declare perdidas a favor do estado as quantias apreendidas à ordem dos autos e melhor descritas a fls. 26 e 31.”
i) Notificado para se pronunciar, o arguido veio em 25.10.2023 reiterar o pedido de devolução do dinheiro apreendido nos autos, alegando ser o seu proprietário e a sua proveniência lícita.
j) Na sequência da promoção do pedido de declaração de perda a favor do Estado foi proferida a decisão recorrida supra transcrita.”
2.2. Direito
2.2.1. O recurso tem por objeto um acórdão proferido pelo tribunal da Relação, que concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, “revogou o despacho recorrido, declarando perdidas a favor do Estado as quantias monetárias descritas a fls. 26 a 28 apreendidas à ordem dos autos.”
É pelas conclusões que se afere o objecto do recurso (402º, 403º, 410º e 412º do CPP), sem prejuízo, dos poderes de conhecimento oficioso (artigo 410.º, n.º 2, do CPP, AFJ n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995, 410º, n.º 3 e artigo 379.º, n.º 2, do CPP).
Entende o Recorrente, por conseguinte, que o Acórdão recorrido deverá ser revogado, concedendo-se como provado que (i)as quantias ao Recorrente pertencem, como (ii)as mesmas têm origem lícita, (iii)não as declarando perdidas a favor do Estado. Defende que se verifica erro notório na apreciação da prova, e que foram violadas ou incorrectamente aplicadas as seguintes disposições legais:
(i)artigo 127º do C. de Processo Penal,
(ii)artigos 163º, nº 1 do C. de Processo Penal, e
(iii)artigo 110º do C. Penal.
Mais entende o Ministério Público que,
(iv)deverá o presente recurso ser rejeitado, por irrecorribilidade da decisão recorrida.
2.2.2. (In)admissibilidade do recurso
2.2.2.1. Como se disse, o arguido vem interpor recurso de um acórdão da Relação que, em recurso, “revogou o despacho recorrido, declarando perdidas a favor do Estado as quantias monetárias descritas a fls. 26 a 28 apreendidas à ordem dos autos.”
Suscitou o Exmo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal, como questão prévia, que o acórdão proferido a 06.03.2024, pelo Tribunal da Relação do Porto, não é susceptível de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, atentas as disposições conjugadas dos art.ºs. 400º, n.º 1, al. c), 414º, n.º 2, 420º, n.º 1, al. b) e 432º, n.º 1, al. b), todos do Código de Processo Penal.
Deverá, assim, o tribunal começar por conhecer e decidir desta questão prévia, suscitada pelo Ministério Público (art.ºs 311º, 338º e 368º do CPP).
A este propósito refere António Gama1, que “questão de discussão, ainda, tem a ver com o recurso da decisão do TR, que em recurso, confirma a perda de bens” … “o STJ, nem sempre convocando a mesma fundamentação, tem negado nesses casos a recorribilidade das decisões proferidas em recurso pelo TR, mas todas essas decisões são de dupla conforme.”
Mais refere ainda que, “se nas situações que se reconduzem a dupla conforme não se suscitam dúvidas quanto à irrecorribilidade para o STJ da decisão de perda proferida em recurso pelo TR, pese embora o STJ ainda não afine por uma fundamentação uniforme, a declaração inovatória de perda no TR, revertendo decisão da 1ª instância, apresenta novas dificuldades, não sendo inequívoca a (ir)recorribilidade.” … “O caminho das alçadas e da revista excepcional tem sido vedada pelo STJ, o que vale por dizer vedado o recurso às normas do CPC. Importa, porém, salientar que o valor não pode ser afastado em absoluto da equação da irrecorribilidade sob pena de soluções desproporcionadas, quando as quantias são muito elevadas.” … “Se a aplicação de garantia patrimonial, em recurso pelo TR, quando em 1ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida, é recorrível para o STJ (n.º 1, al. c), parte final), não vemos como a declaração inovatória de perda no TR possa ser irrecorrível.”
Levando em conta esta orientação decide-se ser a decisão recorrível mantendo-se a admissão do recurso interposto.
2.2.2.2. Erro notório na apreciação da prova, violação do princípio da livre apreciação da prova e do disposto no art.º 127º, bem como do art.º 163º, n.º 1, ambos do CPP.
a.Conclui o recorrente que “verifica-se erro notório na apreciação da prova, uma vez que na apreciação crítica das provas, o Tribunal olvidou e não valorou, como devia, a recolha de vestígios nos cofres e nas peliculas que envolviam o dinheiro, infringindo, assim, o disposto no artigo 127º, conjugado com o artigo 163º, nº 1 do C. de Processo Penal.”
Entende que foram violados princípios e normas, ou incorrectamente aplicadas normas como a do art.º 127º e art.º 163º, n.º 1, ambos do CPP.
Em resumo, sobretudo conclui que “descendo ao caso dos autos, entende o arguido, salvo o devido respeito, que o Tribunal a quo formou a sua convicção com base nas regras da experiência comum em detrimento dos meios de prova produzidos.” – cls. xxi - e … Não valorizou … “o vestígio palmar do Recorrente encontrado na bolsa plástica que continha dinheiro no interior do cofre cinzento, bem como os vestígios digitais do Recorrente detetados na pelicula transparente que envolvia três dos cofres apreendido. Destarte, não se concebe a posição que o Tribunal a quo toma em descorar e não valorar o facto do ADN do Recorrente estar nas quantias, e valorar o facto de este não entregar as chaves dos cofres”.
b.Sob a epígrafe “livre apreciação da prova”, dispõe este preceito que salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Consagra, assim, o art.º 127º citado, expressamente, o princípio da livre apreciação da prova, da livre convicção, de prova moral e de persuasão racional2 princípio estruturante do processo penal, enquanto princípio relativo à prova.
A liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o de perseguir a verdade material.
Assim, a apreciação deverá ser recondutível a critérios objectivos e, em geral susceptível de motivação e de controlo3.
O princípio da livre apreciação da prova, está, porém, vinculado ao princípio da descoberta da verdade material, está sujeito a critérios de racionalidade, com vista à assumir como provado um facto que esteja “para além de toda a dúvida razoável” (“proof beyond reasonable doubt”)4.
O processo de formação da convicção do juiz faz-se por referência às regras da experiência, ou máximas da experiência, ou de acordo com as regras da experiência comum, do homem médio, em cada momento e espaço socio-cultural.
As regras da experiência assentam naqueles “comportamentos que exprimem aquilo que sucede na maior parte das vezes” (“id quod plerumque accidit”) que se extrai de generalizações empíricas, do que sucede em casos semelhantes5.
Necessário é que a razão da sua utilização seja motivada, fundamentada, explicitada para poder ser entendida sem dúvidas e permita ser reavaliada, se necessário, em fase posterior.
O princípio da livre apreciação da prova, apenas será violado nas situações (i)de prova legal não considerada, (ii)de situações de arbitrariedade, (iii)de juízos subjectivos, imotivados e (iv)nas situações em que, segundo as regras de experiência de um homem médio, da prova produzida, não seja possível extrair a prova do facto dado por assente6.
Dispõe o art.º 163º, n.º 1, do CPP, sob a epígrafe Valor da prova pericial, que, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, que o recorrente entende foi também violado, ou incorrectamente interpretado.
Por outro lado, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
… … …
c) Erro notório na apreciação da prova.
… … …
Estando em causa este vício, o recorrente deverá especificar nas alegações e depois nas conclusões com as respectivas especificidades, a existência do erro notório na apreciação da prova, no que concerne aos factos que foram dados como provados ou não provados, ressaltando em que se consubstancia tal erro”.
c.Porém, da leitura do acórdão pode ver-se sem esforço que os factos apurados nas perícias feitas foram valorizados e, aliás, dados como assentes.
Aí se diz na alínea c) dos factos processuais e factuais, que “c) Em 05.11.2021 foi efectuada recolha dos seguintes vestígios lofoscópicos:
- na face traseira de um dos cofres de cor preta (A1.1);
- numa bolsa plástica contendo dinheiro, no interior do cofre de cor preta (A1.2.);
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor preta (A1.), tendo sido revelados 8 vestígios lofoscópicos, com as referências alfanuméricas “A1.3, A1.4, A1.5, A1.6, A1.7, A1.8, A1.9 e A.10”;
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor cinzenta (A2.), tendo sido revelado 1 vestígio lofoscópico, com a referência alfanumérica “A2.1”;
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor vermelha (A3.), tendo sido revelados 3 vestígios lofoscópicos, com as referências alfanuméricas “A3.1, A3.2. e A3.3.”
Após realização do respectivo exame verificou-se o seguinte:
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.1.”, que assentava “na face traseira de cofre metálico”, não apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie palmar, referenciado como “A1.2.”, que assentava “em bolsa plástica contendo dinheiro, no interior de cofre metálico”, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.3.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.4.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.5.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.6.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.7.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.8.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.9.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.10.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A2.1.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia um outro cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A3.1.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia um outro cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A3.2.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A.3.3.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
Após efectuada a comparação dos vestígios lofoscópicos “A1.2, A1.3, A1.4, A1.5, A1.6, A1.7, A1.8, A1.9, A.10, A2.1, A3.1, A3.2 e A3.3.” com as impressões digitais e palmares de AA concluiu-se que:
- o vestígio “A1.2” identifica-se com a região superior do quirograma correspondente à palma da sua mão esquerda;
- o vestígio “A1.3” identifica-se com o dactilograma correspondente ao dedo polegar da sua mão esquerda;
- o vestígio “A1.4” identifica-se com o dactilograma correspondente ao dedo polegar da sua mão direita;
- os vestígios “A1.5” e “A1.8” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo anelar da sua mão esquerda;
- os vestígios “A1.6, A1.7, A1.8, A2.1 e A3.1” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo médio da sua mão esquerda;
- os vestígios “A1.10, A3.2 e A3.3.” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo anelar da sua mão direita.”
E, na apreciação que faz o acórdão recorrido, a eles se refere, dizendo, “não olvidamos o vestígio palmar do arguido encontrado na bolsa plástica que continha o dinheiro no interior do cofre cinzento apreendido, nem os vestígios digitais do arguido detectados na película transparente que envolvia os três cofres apreendidos.
Mas tal circunstância não permite demonstrar inequivocamente que o arguido era de facto o proprietário dos cofres e do dinheiro apreendido, não tendo sido recolhidos quaisquer elementos de prova que permitam aferir em que circunstâncias o arguido tomou conhecimento da existência dos ditos cofres naquele local e de que forma e com que finalidade o arguido logrou ter contacto com alguns dos cofres apreendidos.”
Na verdade, é para notar que, como no acórdão se diz, “os cofres e o dinheiro não foram apreendidos directamente ao arguido (ou seja, não foram encontrados na sua posse), nem foram encontrados em local da sua propriedade.”
Depois, faz o acórdão completa apreciação de toda a factualidade, dizendo, “a propósito da relação com o local onde o dinheiro foi apreendido importa realçar que as declarações do arguido não se revelaram de todo verosímeis – há cerca de oito anos, o seu pai teria lhe dito que se deveria deslocar a um muro que se encontrava em frente aos balneários do campo de futebol, onde teria deixado por trás de uma pedra desse mesmo muro uma caixa em madeira, contendo no seu interior cerca de € 52.000 –, sendo que nessa altura o seu pai já nem sequer vivia em ... e, deslocando-se o arguido duas a três vezes ao ano a Portugal, não se compreende por que motivo se terá deslocado ao local apenas cerca de um ano depois da conversa com o seu pai.
Acresce, ainda, que tendo o arguido nessa altura um apartamento em ..., onde guardava dinheiro, não se percebe por que razão o arguido não guardou aí os alegados € 52.000 em vez de ter optado por alegadamente deixar o dinheiro no dito muro.
Em segundo lugar, o dito muro, que não é da propriedade do arguido, confronta com um caminho público, facilmente acessível a qualquer pessoa que por ali transite, não tendo o arguido qualquer controlo sobre esse muro.
Em terceiro lugar, o arguido não residia há vários anos em Portugal (mas sim a milhares de quilómetros de distância), deslocando-se apenas duas a três vezes por ano a Portugal, permanecendo nessas deslocações na sua residência sita em ..., estando assim impossibilitado de vigiar o dinheiro dissimulado no dito muro.
Donde, não se alcança como o dinheiro ocultado no dito muro nestas circunstâncias estaria mais seguro do que numa instituição bancária, designadamente, na ... (local onde o arguido residia há cerca de 22 anos), país que reconhecidamente é conhecido por ter um dos sistemas bancários mais seguros do mundo.
Ademais, mesmo que o arguido não confiasse no sistema bancário, sempre teria ao seu dispor outras opções viáveis e certamente seguras (designadamente, alugar um cofre bancário).
Em quarto lugar, o arguido não tem as chaves dos cofres, não obstante ter sido interpelado para as entregar aos autos, não se depreendendo, pois, de que forma o arguido tinha acesso ao dinheiro que se encontrava no seu interior.
Refira-se que consideramos inverosímil a explicação dada pelo arguido – quando viu as notícias sobre o achamento dos cofres, reparou que as mesmas estavam ligadas a um assassinato que teria existido há uns anos atrás; assustado e com receio de ser associado a esse mesmo caso, se reclamasse a quantia, deitou as chaves ao lixo no aeroporto, quando estava prestes a passar no detector de metais – já que não se concebe como alguém conseguiria, sem mais, associar as ditas chaves (supostamente em poder do arguido) aos cofres apreendidos nos autos, bem como não vislumbramos que necessidade tinha o arguido em levar consigo para a ... as ditas chaves quando as poderia ter guardado na sua residência sita em ....”
… … …
“Diga-se que, se o arguido fosse realmente proprietário dos ditos cofres e do dinheiro guardado no seu interior, certamente saberia com precisão a cor de cada um dos cofres em causa, bem como indicaria com exactidão os valores contidos no interior de cada um deles. Ora, aquando das suas declarações prestadas em inquérito, o arguido apenas conseguiu identificar a cor de um dos cofres (cinzento), onde foram encontrados vestígios digitais do arguido na película transparente que o envolvia e das várias verbas que identificou como estando no interior de cada um dos cofres apreendidos, apenas duas delas se aproximaram dos valores que realmente foram apreendidos, sendo que o valor indicado como estando no interior do cofre cinzento não coincide de todo com a quantia efectivamente encontrada nesse cofre.
Aliás, se o arguido fosse de facto proprietário do dinheiro e dos cofres apreendidos, não se concebe que o arguido só tenha reclamado a sua propriedade cerca de um mês e meio depois da sua apreensão à ordem dos autos.
Em quinto lugar, o arguido não juntou, apesar de ter sido interpelado para esse efeito, qualquer comprovativo da conversão de francos suíços em euros.
Na verdade, pese embora o arguido tenha auferido na ... cerca de um milhão de euros ao longo dos anos de 2012 a 2022 (em rendimentos de trabalho e indemnizações), essas quantias foram lhe pagas em francos suíços e não em euros, moeda do dinheiro apreendido, não tendo o arguido explicado como e de que forma teria sido feita essa conversão.
Em sexto lugar, se o arguido fosse o proprietário dos cofres e do dinheiro apreendidos, também não se percebe porque motivo não retirou do dito muro os cofres quando se apercebeu da presença dos trabalhadores naquele local. Note-se que o próprio arguido admitiu ter suspeitado que os trabalhadores o terão visto a mexer no muro e, mesmo assim, ausentou-se tranquilamente do local, sem sequer se assegurar que os cofres e o dinheiro que se encontrava no seu interior permaneceriam dissimulados naquele local.
Por todo o exposto, a versão dos factos apresentada pelo arguido revelou-se completamente irrealista, inverosímil e claramente atentatória às regras da experiência comum e destituída de qualquer lógica.
Em suma: perante a factualidade indiciária, em conjugação com as regras da experiência comum temos que concluir que, os cofres e os montantes monetários apreendidos não são da propriedade do arguido, tendo sido validamente apreendidos nos autos atento o disposto no artigo 178º do CPP.”
De acordo com o principio da livre apreciação da prova, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica.
O recorrente deve expor ao tribunal ad quem as razões da sua discordância, procurando convencer da sua pertinência, a fim de que este tribunal se debruce sobre elas e decida se procedem ou não.
Inexiste qualquer argumento, por mínimo que seja, para procurar evidenciar o alegado erro de julgamento, que tinha de constar da decisão recorrida, e ser notório, facilmente visível, o que não acontece.
O principal argumento aduzido são os “vestígios lofoscópicos” já referidos, mas que, como é por demais evidente, só por si desacompanhados de outros elementos de prova, não fazem prova da propriedade dos cofres e quantias monetárias apreendidos. Com eles apenas se faz prova de que o recorrente teve contacto com algumas embalagens. Mas quando, como e em que circunstâncias, nada disso se demonstrou. E outros elementos de prova não existem e os referidos, a versão dos factos dada pelo recorrente, é inverosímil, sem sentido não podendo ser considerados, como concluiu o acórdão recorrido.
Ou seja, não se verifica, ao longo do acórdão recorrido, nenhuma situação de prova legal não considerada, pois o acórdão recorrido a todos se referiu e analisou criticamente.
Por outro lado, em caso algum tomou decisões arbitrárias, antes considerou todas as hipóteses antes de decidir, como em nenhum momento do acórdão faz apelo a juízos subjectivos, imotivados, antes conclui com base em factos e de acordo com as regras da experiência comum, do homem médio suposto pela ordem jurídica, sendo certo que dentro destas e da prova produzida, as decisões tomadas são correctas e aquelas qua a maioria extraia.
Analisando o acórdão recorrido, em momento algum ou passagem se pode concluir estarmos em presença de alguma das situações supra referidas.
O que o recorrente não concorda, é com a valoração da prova efectuada pelo Tribunal recorrido e pretende substituir essa valoração pela sua própria valoração. Tem opinião diferente quanto ao valor da prova produzida. O que não constitui erro ou violação do princípio da livre apreciação da prova ou da prova pericial, pois esta não faz a prova da propriedade.
Só há que concluir que não foi violado o princípio da livre apreciação da prova e valorização da prova pericial.
2.2.2.4. Violação do disposto no artigo 110.º do Código Penal.
a.Nas conclusões XXII a XXVI, o recorrente vem defender ainda que foi violado o disposto no artigo 110º do Cód. Penal. Defende que “o regime geral, encontra-se previsto nos artigos 109.º a 112.º-A do Código Penal (regime substantivo), e artigos 178.º a 186.º, 191.º a 194.º e 227.º e 228.º do Código de Processo Penal (regime processual) – a declaração de perda de vantagens constitui uma consequência jurídica que se insere no direito substantivo (ou material) e que é efetivada por mecanismos de natureza processual. Na ótica do Tribunal a quo, “o que está em causa são manifestamente vantagens económicas”, todavia, questiona-se, qual o ilícito criminal praticado pelo Recorrente que leve à conclusão de que as quantias, que o mesmo já justificou como as auferiu, são provenientes de facto ilícito típico. Ao interpretar o artigo 110º C. Penal é clarividente que não é necessário verificar-se uma condenação pela prática de um crime, TODAVIA, é necessário que haja pelo menos indícios de que os crimes mencionados (crimes de fraude qualificada, branqueamento de capitais, eventuais crimes contra o património ou a propriedade (furto, burla, rapto ou extorsão) e tráfico de estupefacientes) hajam sido praticados, o que, salvo melhor opinião, não há UM INDíCIO da prática de qualquer facto ilícito típico. Pelo que não se compreende como o Tribunal a quo, na ausência de meios de prova pode dar o salto para concluir que o Recorrente em causa praticou um facto ilícito típico, e dessa prática (não fundamentada, nem com qualquer evidência de indícios) possa ter tido vantagens económicas.”
b.Diga-se, que este processo foi instaurado como processo de inquérito com base na participação feita pela GNR, onde são narrados os factos que aqui se investigam, saber da origem e titularidade das quantias em dinheiro encontradas e identificadas nas alíneas a) e b) dos factos provados.
Sendo pedida a entrega de ½ do valor ao abrigo do artigo 1324º do Código Civil, esta pretensão foi recusada.
Quando o recorrente pediu o levantamento da apreensão e a entrega destas quantias monetárias, foi este pedido recusado (i)por não fazer prova de que lhe pertence e mesmo nesta hipótese, (ii)sempre teria proveniência ilícita.
O despacho de arquivamento, nunca afasta a verificação de um crime, e fundamenta-se no disposto no artigo 277º, n.º 2 do CPP, considerando a insuficiência de indícios sobre quem foram os seus agentes.
Quanto aos objectos conclui que “o arguido não logrou demonstrar minimamente que os cofres e as quantias que foram apreendidas à ordem dos autos lhe pertenciam efectivamente.”
Por isso o Ministério Público, no mesmo despacho requereu ao Juiz de Instrução Criminal para nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 109º, 110º do Código Penal e artigos 185º, 268º, 1, e) do Código de Processo Penal que se declarassem perdidas a favor do Estado as quantias apreendidas à ordem dos autos e melhor descritas a fls. 26 e 31.
Sendo o processo de natureza criminal, o seu “objecto”, inclui, assim, todas as matérias e todas as consequências do crime, o que inclui a perda de vantagens e o confisco de bens,” como se diz no Ac. do STJ de 02.02.20227.
Acrescendo, ainda, a singularidade deste caso em que as quantias apreendidas nos autos não foram apreendidas ao arguido ou outrem, mas encontradas no interior de um muro, que não é propriedade do arguido nem localizado próximo da sua residência, mas antes em lugar distante, sendo, por isso, elas próprias “objecto” do crime, (“corpo de delito”), objecto de investigação sobre a sua origem e finalidades podendo ser instrumento, produto, recompensa ou vantagem do crime, bem como do, ou dos seus autores.
c.Por outro lado, são conhecidas as diferentes opiniões e divergências existentes na doutrina e jurisprudência sobre a natureza do confisco, da perda de bens, instrumentos produtos e vantagens8.
Para Paulo Pinto de Albuquerque9, “a perda dos objectos é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção. Não se trata de uma pena acessória porque não tem qualquer relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação porque não depende sequer da existência de uma condenação (non conviction based confiscation).” Também não se trata de uma medida de segurança, pois não se baseia na perigosidade do agente. A perda dos objectos é uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, porque ela se funda na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes decorrente dos objectos”…
Embora não fosse possível concluir pela autoria do crime, quem foi ou foram os seus agentes, nunca outra hipótese foi considerada nos autos a não ser a da prática de um ilícito penal tipificado, de um crime.
Proferido despacho de arquivamento, nos termos do art.º 277º, n.º 2, do CPP, havia que dar destino às quantias apreendidas.
Como supra referido, a perda dos objectos não é um efeito da condenação, porque não depende desta, como por exemplo nos casos de morte ou inimputabilidade do agente ou quando o arguido seja declarado contumaz, prosseguindo o processo para esse efeito (novo art.º 128º, n.º 1 do Cód. Penal e novo art.º 335º n.º 5 do Cód. Proc. Penal), como refere, ainda, Paulo Pinto de Albuquerque10.
Mais refere que uso da “palavra “incluindo” revela o carácter não exaustivo dos dois exemplos fornecidos pelo legislador”11.
Assim, outras situações serão possíveis, como a dos presentes autos em que, verificando-se a prática de um ilícito penal não foi possível descobrir o seu autor ou os seus autores.
Mas que, quer os despachos do Ministério Público ao longo do Inquérito quer o acórdão recorrido, concluem à luz das regras da experiência, que se trata de instrumento, produto, recompensa ou vantagem de crime.
d.Neste caso, não sendo possível concluir que o recorrente é autor do mesmo, não foi o mesmo acusado. A dúvida, só podia resolver-se a favor do arguido, não podendo prejudicá-lo, em obediência ao princípio in dúbio pro reo.
E este, por sua vez, não conseguiu fazer prova da titularidade das quantias encontradas e apreendidas, e cuja entrega, por mais do que uma vez requereu, sendo-lhe indeferida. Neste caso a dúvida resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
Não logrando fazer prova de que estes cofres e quantias monetárias lhe pertencem, não podiam ser-lhe entregues e só podiam ser declaradas perdidas a favor do Estado.
3 - Decisão
Nestes termos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em,
-julgar improcedente o recurso, interposto pelo arguido AA, confirmando, antes, o acórdão recorrido;
-condenar em custas o recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs (art.º 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).
António Augusto Manso (relator)
Antero Luís (Adjunto)
Horácio Correia Pinto (Adjunto)
_______
1-Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, vol. V, p. 62.
2-Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Teoria da Prova, UCP Editora, Lisboa, p. 118.
3-Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra Editora, p.203.
4-5-José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AAVV, Almedina, Coimbra, vol. II, p. 94/95.
6-Ac. STJ, 09.05.2024, proc. n.º 580/16.9T9OER.L1.S1, in www.dgsi.pt.
7-proferido no processo n.º 3519/16.8T8LLE.E1.S1, www.dgsi.pt.
8-v. AFJ n.º 5/2024, de 09.05.
9-Comentário ao Código Penal, 6ª edição, UCE, 2024, p. 520.
10-Ac. STJ, 09.05.2024, proc. n.º 580/16.9T9OER.L1.S1, in www.dgsi.pt.
11-proferido no processo n.º 3519/16.8T8LLE.E1.S1, www.dgsi.pt.