I - O Tribunal da Relação é a autoridade judiciária competente para conhecer do processo judicial de execução do Mandado de Detenção Europeu – MDE - (art.º 15º da Lei 65/2003, de 26 de Agosto).
II - Neste caso o acórdão do Tribunal da Relação decidiu julgar improcedente as invocadas razões de recusa da execução e ordenou a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido contra o requerido, ora peticionante pela autoridade judiciária espanhola, para efeitos de execução de pena privativa da liberdade, determinando a sua entrega temporária ao Estado-Membro de emissão, consignando que o requerido não renunciou ao princípio da especialidade.
III - Consignou, ainda, que essa entrega era feita com a condição de o Reino de Espanha prestar as necessárias garantias de que o requerido seria entregue ao Estado Português sempre que fosse solicitada a sua comparência em diligência processual em que a sua comparência fosse obrigatória no decurso do Processo n.º 197/20.3... ou para eventual cumprimento de pena privativa da liberdade em que viesse a ser condenado no seio do referido processo, e,
IV - Oportunamente, transitado este acórdão (confirmada que seja previamente a existência da garantia acima mencionada), no mais curto espaço temporal possível e sem exceder 10 dias (artigo 29º, nº 2 do RJMDE), ordenou que se proceda à entrega do requerido e aqui peticionante às autoridades judiciárias de Espanha, através da emissão dos devidos mandados de detenção e entrega.
V - A 16.12.2025, o Reino de Espanha, pelas Autoridades Judiciárias competentes, prestou a garantia do cumprimento das condições exigidas pelas autoridades portuguesas.
VI - E o acórdão do Tribunal da Relação transitou em julgado a 26.12.2024, iniciando-se, nesta data, o decurso do prazo de 10 dias para a entrega, que expirou a 06.01.2025.
VII - E, não tendo sido fixado qualquer outro prazo em que se pudesse fundamentar e manter a detenção do requerente, é esta ilegal, por se manter para além do prazo fixado na Lei e no acórdão do Tribunal da Relação, nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 222º do CPP.
VIII - Assim, acorda-se em declarar a prisão ilegal e, em consequência, em ordenar a libertação imediata do requerente (art.º 223º, n.º 4, al. d) do CPP).
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório
1.1. AA, requerido no processo de execução de mandado de detenção europeu em referência, que corre termos no Tribunal da Relação de Lisboa, à ordem do qual se encontra detido, alegando encontrar-se atualmente em prisão ilegal, apresenta petição de habeas corpus, ao abrigo do disposto na al. c), do n.º 2, do artigo 222.º do Código de Processo Penal, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1º - Sintetizando no que tange e ao que importa, em 19/11/2024, foi proferido douto acórdão pelo TRL, que, além do mais, ordenou a execução do MDE, decidindo-se que transitado o aresto e em 10 dias, sem os exceder, nos termos do artº29º-2 do RJMDE, se procedesse à entrega do requerido às autoridades judiciárias de Espanha, através da emissão dos devidos mandados de detenção e entrega.
2º - Foi interposto recurso do acórdão para o STJ.
3º - Em 11/12/2024 o STJ confirmou o acórdão recorrido.
4º - Esse acórdão transitou em julgado no dia 26/12/2024, como resulta da certidão junta aos autos (refª ......94).
5º - Porque transitado, como se disse, a 26/12/2024, os 10 dias vertidos no art. º 29º, 2 do RJMDE findaram no dia 6/1/2025, sendo que o requerido permanece detido no EP de ... e o MDE não foi cumprido no prazo aludido, nem foi requerido ou concedido qualquer prazo aditado a esse ou alguma justificação ou prorrogação, nem foi proferido despacho judicial algum no seguimento do trânsito em julgado do acórdão.
6º - Consecutivamente, verifica-se uma situação de prisão ilegal, que funda o habeas corpus, para que o requerido seja restituído à liberdade
7º - Invoca-se, por semelhante, o decidido no Ac. STJ de 26/7/2023, Procº257/23.9YRLSB-A.S1, 3ª secção, Rel. Cons. Lopes da Mota, que, com a vénia que é devida, aqui se repristina
8º - I - Os motivos de «ilegalidade da prisão», que constituem os fundamentos da providência de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal (CPP). A prisão é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no artigo 27.º da Constituição e das condições que a lei determinar, em que se inclui a detenção de pessoa contra a qual esteja em curso processo de extradição [n.º 3, al. c)].
II. O mandado de detenção europeu («MDE»), instituído pela Decisão-Quadro («DQ») 2002/584/JAI do Conselho, de 13.6.2002, transposta para o direito interno pela Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, teve como objetivo substituir o sistema formal de extradição multilateral baseado na Convenção Europeia de Extradição de 1957, do Conselho da Europa.
III. Embora a DQ 2002/584 não tenha efeito direto, uma vez que foi adotada com fundamento no antigo terceiro pilar da UE, o seu caráter vinculativo cria, para os tribunais nacionais, aos quais compete aplicar o direito da União, uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional, por recurso à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia «TJUE») sobre a interpretação dos atos adotados pelas instituições da União (artigo 267 «TFUE»).
IV. O artigo 29.º da Lei n.º 65/2003 não contém disposição idêntica à do n.º 5 do artigo 23.º da DQ 2002/584/JAI que estabelece que “se, findos os prazos referidos nos n.ºs 2 a 4, a pessoa ainda se encontrar detida, deve ser posta em liberdade”, o que poderia sugerir que, decorridos o prazo de 10 dias a contar do dia em que a decisão de execução do MDE se tornou definitiva (n.º 2 do preceito) ou os prazos fixados nos termos dos n.ºs 3 e 4, a pessoa procurada poderia ser mantida em detenção, em qualquer circunstância, para além do termo desses prazos.
V. Tal conclusão não é, porém, admissível, devendo, para o efeito, ter-se em conta o primado do direito da União, o princípio de interpretação conforme e a jurisprudência do TJUE, bem como o disposto no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, que remete diretamente para direito da União ao dispor que o MDE é executado «em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI».
VI. A decisão de suspender a entrega da pessoa procurada para que seja sujeita a procedimento penal ou para que possa cumprir a pena em Portugal ou de, em lugar de diferir a entrega, entregar temporariamente a pessoa procurada ao Estado de emissão, nos termos do artigo 31.º da Lei n.º 65/2003, deve ser tomada pela autoridade judiciária de execução.
VII. Quando tal decisão não tiver sido tomada por essa autoridade e os prazos previstos no artigo 23.º, n.ºs 2 a 4, da DQ 2002/584 (a que corresponde o artigo 29.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 65/2003) tiverem terminado, a pessoa que é objeto do MDE deve ser posta em liberdade, em conformidade com o artigo 23.º, n.º 5, da mesma decisão‑quadro (acórdão do TJUE de 08.12.2022, no processo C‑492/22 PPU, CJ).
VIII. O julgamento do processo de execução do MDE é da competência da secção criminal do tribunal da relação (artigo 15.º da Lei 65/2003), à qual, funcionando com três juízes (artigo 12.º, n.º 4, do CPP), compete proferir decisão através de acórdão (artigo 97.º, n.ºs 1 e 2, do CPP) sobre a execução do MDE (artigo 22.º da Lei n.º 65/2003), e, então, proferida essa decisão, decidir se é caso de suspender a entrega da pessoa procurada, ou, em vez disso, entregar temporariamente a pessoa procurada ao Estado de emissão, nos termos do artigo 31.º da Lei n.º 65/2003.
IX. O acórdão proferido nada disse sobre o diferimento da entrega nem sobre a entrega temporária, nos termos deste preceito, e não consta que tivesse ocorrido motivo de força maior que impedisse a entrega em dez dias ou que a entrega devesse ser suspensa por motivos humanitários (artigo 29.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 65/2003).
X. Pelo que o prazo de entrega do detido ao Estado de emissão do MDE era o prazo de dez dias, fixado no artigo 29.º, n.º 2, a Lei n.º 65/2003, a contar da decisão definitiva.
XI. O acórdão transitou em julgado no dia 16.06.2023, data a partir da qual começou a correr o prazo de 10 dias para efetivação da entrega e nenhum dos atos processuais posteriormente praticados teve por efeito suspender, interromper ou prolongar tal prazo para além do limite máximo de 10 dias – nem a promoção do Ministério Público de 21.06.2013, no sentido de serem solicitadas garantias ao Reino de Espanha de devolução do detido para cumprimento de pena, nem o despacho da juíza desembargadora relatora que deferiu tal promoção, nem o despacho do juiz desembargador de turno, de 17.07.2013, que ordena a entrega temporária.
XII. Para além de ter sido proferido após o termo final do prazo de 10 dias para entrega, este despacho não prolongou nem fez renascer esse prazo, nem fixou qualquer prazo para entrega temporária, nomeadamente com base no artigo 12.º da DQ 2002/584/JAI (artigo 18.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003), que agora pudesse ser convocado, independentemente da questão de saber da competência do juiz singular para o determinar, sendo que o seu objeto não diz respeito à execução do acórdão sobre a execução do MDE, mas a matéria que nele deveria ser apreciada e decidida.
XIII. Pelo que, mostrando-se ultrapassado o termo do prazo de 10 dias fixado no artigo 29.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003 para entrega do requerente à autoridade de emissão do MDE e não tendo sido fixado qualquer outro prazo em que legalmente se pudesse fundamentar a manutenção da detenção, impõe-se concluir que a situação de detenção é ilegal por se manter para além do prazo fixado na lei, nos termos da al. c) do n.º 2, do artigo 222.º do CPP.
XIV. Assim, acorda-se em declarar ilegal a prisão e, consequentemente, em ordenar a imediata libertação do peticionante.
9º - Ou seja, resulta ser inequívoco que o cumprimento e a entrega têm de ser efetivados em 10 dias após o trânsito em julgado, o que não acontecendo dita a ilegalidade da prisão quando mantida, como flui da conclusão sumariada do aresto citado em XIII
10º - Quando for definitiva a decisão de execução do MDE, iniciam-se outros prazos máximos, para além dos previstos relativamente à pendência do procedimento.
11º - O nº2 do artº29º do RJMDE define a regra geral, que é clara: a entrega deve ter lugar no prazo máximo de 10 dias a contar da decisão definitiva de execução do MDE
12º - Se não for feita, deve haver libertação (Medidas de coação, Teoria e Prática, Rui Cardoso, UCP Editora, pág. 730).
13º - Tanto mais que se não verifica situação alguma das elencadas nos nºs 3, 4 e 5 da norma.
14º - Por isso, que se requer a providência, nos sobreditos termos legais e alicerçada no artº222º-2-c) do CPP, conjugado com o artº29º-2 da Lei 65/2003.
15º - Porque à luz do invocado, a prisão já se demonstra ilegal ao dia de hoje em face da entrega do requerido não ter sido concretizada tempestivamente, em 10 dias após o trânsito em julgado.
16º - Face ao exposto e à semelhança do acórdão do STJ citado (que, aliás, invoca outras decisões no mesmo sentido), deve a providência ser concedida e ser o requerido e peticionante libertado em termos imediatos.
Em aditamento veio depois juntar requerimento com o seguinte esclarecimento:
AA, requerido nos presentes autos, tendo requerido a antecedente providência de HABEAS CORPUS, vem, respeitosamente, aditar que na alegação articulada em 5º da petição, onde se disse que “(…) o MDE não foi cumprido no prazo aludido, nem foi requerido ou concedido qualquer prazo aditado a esse ou alguma justificação ou prorrogação, nem foi proferido despacho judicial algum no seguimento do trânsito em julgado do acórdão” (sublinhado de agora), quis significar-se que não foi proferido despacho judicial algum que contrariasse a necessidade de execução e entrega naquele prazo de 10 dias, uma vez que, na realidade, foi proferido despacho judicial mas sem ter o efeito interruptivo do mesmo.
1.2. A Senhora Juíza titular do processo prestou a informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por despacho exarado no processo, sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão do requerente, dele fazendo constar o seguinte:
“Informa-se o Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que:
- em 22.10.2024, o requerido foi ouvido neste Tribunal da Relação, tendo sido determinado, além do mais, que ficasse preso preventivamente à ordem destes autos caso fosse entretanto restituído à liberdade no seio do processo nº 197/20.3..., do Juízo de Instrução Criminal de ..., Juiz 1, à ordem do qual estava, à data, preso preventivamente – fls. 46 a 48;
- em 28.10.2024, o requerido passou a estar preso preventivamente à ordem destes autos – fls. 79vº;
- em 19.11.2024, foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação, determinando, entre o mais, a entrega temporária do requerido sob condição a prestar – fls. 98 a 112;
- tendo sido interposto recurso pelo requerido, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, em 11.12.2024, no qual confirmou o acórdão de 19.11.2024 – fls. 177 a 194;
- tal acórdão transitou em julgado em 26.12.2024, tendo os autos baixado a esta Relação em 03.01.2025 (cfr. fls. 202, 203 e 204);
- em 06.01.2025 proferiu-se despacho determinando a abertura de vista ao Ministério Público por, em 16.12.2024, ter sido prestada a garantia de que dependia a entrega do requerido.
1.3. O processo encontra-se instruído com certidão da documentação processual tida por pertinente, junta com esta informação, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, ou seja:
(i)-Auto de audição de detido (art.º 18º da Lei 65/2003, de 23.08);
(ii)-Despacho onde se dá conta de que foram emitidos mandados de desligamento do processo à ordem do qual se encontrava preso preventivamente e de ligamento à ordem destes autos;
(iii)-Mandados de desligamento e ligamento;
(iv)-Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.11.2024;
(v)-Requerimento de recurso para o STJ, do peticionante e motivação;
(vi)-Despacho de admissão de recurso;
(vii)-Resposta do Ministério Público;
(viii)-Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça;
(ix)-Certidão de trânsito em julgado do acórdão, a 26.12.2024;
(x)-Despacho que “ponderando a junção do expediente de 16.12.2024 (referência citius 726214)” ordena que se “abra vista ao Ministério Público”;
(xi)-Expediente vindo de Espanha, ou seja, Ofício da Audiência Nacional, Sala Penal, Ejecutorias, de 16.12.2024, para o Tribunal da Relação de Lisboa e Despacho que decide aprovar e relaciona as garantias necessárias exigidas pelas autoridades judiciárias portuguesas.
1.4. Podendo ser obtidos para a apreciação e decisão da providência do habeas corpus, todos os elementos informativos e documentais necessários, afiguram-se suficientes para a decisão, os elementos que estão disponíveis nos autos.
1.5. Convocada a secção criminal e notificados, o Ministério Público e o defensor, realizou-se a audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.
Após, reuniu o tribunal para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que seguem.
2. Fundamentação
2.1. Dados de facto.
2.1.1. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos elementos/documentos juntos, resulta esclarecido, em síntese e no mais relevante para a decisão, que:
(i).O requerente, à data de início deste processo de execução de Mandado de Detenção Europeu – MDE -, encontrava-se preso preventivamente à ordem do processo n.º 197/20.3..., do Juízo de Instrução Criminal de ...-J1;
(ii).No âmbito deste processo, em 22.10.2024, o requerido foi ouvido no Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sido determinado, além do mais, que ficasse detido à ordem destes autos caso fosse, entretanto, restituído à liberdade no seio do processo nº 197/20.3..., do Juízo de Instrução Criminal de ..., Juiz 1fls. 46 a 48;
(iii)- em 28.10.2024, o requerente passou a estar detido à ordem destes autos – fls. 79vº;
(iv)-em 19.11.2024, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação, determinando, entre o mais, a entrega temporária do requerido sob condição a prestar – fls. 98 a 112;
(v)-tendo sido interposto recurso pelo requerente, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, em 11.12.2024, no qual confirmou o acórdão do Tribunal da Relação de 19.11.2024 – fls. 177 a 194;
(vi)- tal acórdão transitou em julgado em 26.12.2024, tendo os autos baixado à Relação em 03.01.2025 (cfr. fls. 202, 203 e 204);
(vii)-em 06.01.2025 foi proferido despacho determinando a abertura de vista ao Ministério Público por, em 16.12.2024, ter sido prestada a garantia de que dependia a entrega do requerido.
2.2. Direito
2.2.1. No capítulo dos Direitos Liberdades e Garantias pessoais, prevê o art.º 27º da Constituição da Republica Portuguesa-CRP, sob a epígrafe “direito à liberdade e à segurança”, que todos têm direito à liberdade e à segurança, ninguém podendo ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de (i)sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de (ii)aplicação judicial de medida de segurança.
O direito à liberdade é entendido como o direito à liberdade de movimentos, à liberdade ambulatória, à liberdade física, à livre circulação nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que a cada cidadão aprouverem.
Constitui, assim, um direito fundamental dos cidadãos constitucionalmente garantido, ou uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, mas também tutelado por instrumentos jurídicos internacionais aos quais Portugal está vinculado, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos-CEDH e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos-PIDCP.
O art.º 5º da CEDH, reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”, ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.
Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal1.
E nos termos do art.º 9º do PIDCP prevê-se que, “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.
Determina, ainda, que, “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal.
Não sendo um direito absoluto, o direito a não ser detido, preso ou privado da liberdade, total ou parcialmente, o art.º 27º n.º 3 da CRP elenca os casos em que se pode ser privado da liberdade, o que consta, também, das alíneas a), b), c) d) e f) do n.º 1 do art.º 5º da CEDH, preceito, no qual se inspirou o art.º 27º da CRP2.
As condições e o tempo de prisão, são disciplinadas por lei, como previsto, ainda, pelo citado art.º 27º, n.º 3, da CRP.
Não sendo respeitadas ou sendo violadas, prevê a CRP e o CPP meios processuais de reacção a eventual detenção ou prisão ilegal.
Para além dos meios normais de reacção, (como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso), preveem os artigos 31º da CRP e 222º do CPP, a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude por virtude de prisão ou detenção ilegais.
O artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa – CRP -, sob a epígrafe Habeas Corpus, dispõe que:
«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.”
Consagra, pois, este preceito constitucional, o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais.
Densificando o artigo 31.º n.º 1 da CRP, dispõe o artigo 222.º do CPP que:
“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou,
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”
O pedido de habeas corpus, no sentido da jurisprudência e doutrina, visa reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal e constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma e com fim cautelar, destinada a pôr termo no mais curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade3. Extraordinária porque singular, com finalidade e processamento próprios4.
A concessão do habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada5, não se admitindo, no nosso regime constitucional e legal, habeas corpus preventivo.
Além disso, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, de enumeração taxativa.
Assim, o STJ apenas tem de verificar, (a)se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, (b)se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c)se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial6.
E nos casos de abuso de poder, este há de ser facilmente perceptível dos elementos constantes do processo, há de tratar-se de um “erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito”, em todas situações elencadas nas três alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, entendimento que tem sido reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça7.
Além disso, no que aqui releva, o MDE, como resulta do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, é uma decisão judiciária emitida pela autoridade judiciária competente de um Estado-Membro da União Europeia, com vista à detenção e entrega, pela autoridade judiciária competente de outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas da liberdade.
Como se refere no Ac. do STJ de 26.07.20238, que aqui se segue, “o MDE é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo (artigo 1.º, n.º 2), cujo sentido, conteúdo e extensão, na falta de definição legal, devem ser preenchidos por recurso ao direito da UE e à jurisprudência do TJUE (em https://curia.europa.eu) relativa à interpretação das respetivas disposições, nos termos da citada alínea b) do artigo 267.º do TFUE.
De acordo com este princípio, uma decisão definitiva proferida por uma autoridade judiciária competente de um Estado-Membro («Estado de emissão»), em conformidade com o direito interno desse Estado, tem um efeito pleno e direto no território dos demais Estados-Membros, concretamente no Estado em que deva ser executada («Estado de execução»), como se de uma decisão de uma autoridade judiciária deste Estado se tratasse, desde que não se verifique motivo de não execução.
Nesta base, a autoridade judiciária do Estado de execução encontra-se obrigada a executar o MDE que, emitido de acordo com o formulário anexo à DQ 2002/584/JAI (com a alteração introduzida pela DQ 2009/299/JAI), preencha os requisitos legais, estando limitado e reservado à autoridade judiciária de execução um papel de controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, a qual só pode ser negada em caso de procedência de motivo obrigatório ou facultativo de não execução (artigos 3.º, 4.º e 4.º-A da Decisão-Quadro, a que correspondem os artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003) ou de falta de prestação de garantias que possam ser exigidas (artigo 5.º da DQ, a que corresponde o artigo 13.º da Lei n.º 65/2003) – assim, nomeadamente, os acórdãos do TJUE proferidos nos processos C-388/08, de 1.12.2008, C-123/08, de 6-10-2009, C-261/09, de 16.11.2010, C-42/11, de 5.9.2012, e C-396/11, de 29.1.2013 e, entre muitos outros, mais recentemente, o acórdão de 11.3.2020, no processo C‑314/18 e o acórdão de 26.10.2021, nos processos apensos C‑428/21 PPU e C‑429/21 PPU).
É neste quadro que se deve apreciar e decidir se o requerente atualmente se encontra ou não legalmente detido, dentro dos prazos fixados na lei, para ser entregue à autoridade judiciária de emissão do MDE e se, em consequência, ocorre ou não o invocado fundamento em ilegalidade decorrente do facto de a prisão – que, neste contexto, compreende a situação de privação da liberdade determinada em consequência da «detenção» (no sentido que lhe é conferido pela Constituição) ordenada por um juiz – se manter para além do prazo (fundamento a que se refere o n.º 2, al. c), do CPP).”
2.2.2. Neste caso acordaram os Juízes Desembargadores da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente as invocadas razões de recusa da execução (considerando assim prejudicada a requerida revisão da sentença estrangeira e o cumprimento da pena em território nacional), declarando inexistir qualquer obstáculo à execução imediata do Mandado apresentado e, uma vez que se mostram preenchidos os legais pressupostos:
a) Ordenaram a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido contra o requerido AA, melhor, identificado nos autos, pela autoridade judiciária espanhola, para efeitos de execução de pena privativa da liberdade, determinando-se a sua entrega temporária ao Estado-Membro de emissão, consignando-se que o requerido não renunciou ao princípio da especialidade;
b) Consignaram que essa entrega é feita com a condição de o Reino de Espanha prestar as necessárias garantias de que o requerido será entregue ao Estado Português sempre que seja solicitada a sua comparência em diligência processual em que a sua comparência seja obrigatória no decurso do Processo n.º 197/20.3... ou para eventual cumprimento de pena privativa da liberdade em que venha a ser condenado no seio do referido processo;
c) Ordenaram as necessárias notificações ao Ministério Público junto deste Tribunal Superior, à autoridade judiciária de emissão (artigo 28º do RJMDE), através da Autoridade Central (PGR) (artigo 9º do RJMDE), ao requerido, ao Ilustre Mandatário, e ao Gabinete Nacional da Interpol;
d) Oportunamente, transitado este acórdão (confirmada que seja previamente a existência da garantia acima mencionada), no mais curto espaço temporal possível e sem exceder 10 dias (artigo 29º, nº 2 do RJMDE), ordenaram que se proceda à entrega do requerido AA às autoridades judiciárias de Espanha, através da emissão dos devidos mandados de detenção e entrega;
e) Consideraram inalterado o estatuto processual do Requerido por se manterem inalterados os pressupostos de facto e de direito que fundamentaram a aplicação da medida de coação de prisão preventiva;
f) Determinaram, desde já e independentemente do trânsito em julgado da presente decisão, que se contacte a Autoridade Central Nacional para que seja obtido da autoridade emitente do mandado a garantia exigida, sob pena de, não sendo prestada tal garantia, a entrega ser recusada.
O Tribunal da Relação é a autoridade judiciária competente para conhecer do processo judicial de execução do Mandado de Detenção Europeu – MDE (art.º 15º da Lei 65/2003, de 26 de Agosto).
Compete-lhe, como o fez, proferir decisão sobre a execução do MDE (art.º 22º da Lei 65/2003) – al. a) do dispositivo.
Proferida esta decisão e uma vez que o peticionante é arguido no processo n.º 197/20.3..., pendente no Juízo de Instrução Criminal de ...-J1, competia-lhe, ainda, decidir se é caso de suspender a entrega da pessoa procurada para ser sujeita a procedimento penal em Portugal, ou eventual cumprimento de pena privativa de liberdade em que venha a ser condenado no âmbito deste processo.
Em alternativa, se é caso para entregar a pessoa procurada ao Estado Membro de Emissão temporariamente, em condições a fixar em acordo escrito com a Autoridade Judiciária de Emissão vinculativo para todas as autoridades do Estado Membro de Emissão, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do art.º 31º da lei 65/20039, pela qual optou.
Com efeito, o tribunal pode, após ter proferido decisão no sentido da execução do mandado de detenção europeu, suspender a entrega da pessoa procurada, para que seja sujeita a procedimento penal em Portugal ou, no caso de já ter sido condenada por sentença transitada em julgado, para que possa cumprir, em Portugal, a pena respectiva. – art.º 31º n.º 1 da Lei 65/2003.
Em lugar de diferir a entrega o tribunal pode decidir entregar a pessoa procurada ao Estado membro de emissão, temporariamente, em condições a fixar em acordo escrito com a autoridade judiciária de emissão, vinculativo para todas as autoridades do Estado membro de emissão – art.º 31º n.º 3 da Lei 65/2003.
O acórdão proferido (i)ordena, assim, a execução do MDE emitido contra o requerido AA, e, (ii)determina a sua entrega temporária ao Estado Membro de Emissão – al. a) do dispositivo.
Na al. b) foi fixada a condição de entrega, de o Reino de Espanha prestar as necessárias garantias de que o requerido será entregue ao Estado Português sempre que seja solicitada a sua comparência em diligência processual em que a sua comparência seja obrigatória no decurso do Processo n.º 197/20.3... ou para eventual cumprimento de pena privativa da liberdade em que venha a ser condenado no seio do referido processo.
E, na al. d) do mesmo dispositivo mais ordena que se proceda à entrega, logo que (i)transitado em julgado o acórdão, (ii)confirmada que seja previamente a existência de garantia mencionada na al. b), e, (iii)no mais curto espaço temporal possível e sem exceder 10 dias (art.º 29º, n.º 2, da Lei 65/2003).
Assim, o acórdão do Tribunal da Relação ordena a entrega temporária da pessoa procurada o requerido AA e fixa em 10 dias o prazo para a entrega, a contar do trânsito em julgado e da prévia existência da garantia pedida, conforme al. b) do dispositivo, únicos requisitos de que dependia a entrega.
O Reino de Espanha, pelas Autoridades Judiciárias, prestou as necessárias garantias de que o requerido será entregue ao Estado Português sempre que seja solicitada a sua comparência em diligência processual em que a sua comparência seja obrigatória no decurso do Processo n.º 197/20.3... ou para eventual cumprimento de pena privativa da liberdade em que venha a ser condenado no seio do referido processo, como se vê do expediente junto a 16.12.2024, (oficio da “Audiência Nacional, Sala Penal, Ejecutorias, enviado segunda-feira, 16 de dezembro de 2024, para correio Oficial Lisboa Tribunal da Relação, referente à EJECUTORIA 109/2017- PIEZA 23 - AA), juntando cópia do despacho com a seguinte “decisão:
“aprova-se a prestação das garantias exigidas pelas autoridades judiciárias portuguesas para a execução do MDE emitido contra o condenado AA, a fim de que, quando solicitado, seja devolvido pelo Reino de Espanha o mais rapidamente possível.”
Antes do trânsito em julgado do acórdão do Tribunal da Relação. O acórdão do Tribunal da Relação transitou em julgado, como certificado, a 26.12.2024, estando, assim, verificados, nesta data, os dois requisitos que a al. d) do dispositivo previa para que se procedesse à entrega.
Iniciando-se o decurso do prazo de 10 dias para a entrega a partir do trânsito em julgado, a 26.12.2024.
Depois desta data, nenhum dos actos processuais posteriormente praticados, nomeadamente o despacho judicial de 06.01.2025, teve por efeito suspender, interromper ou prolongar tal prazo para além do limite máximo de 10 dias10.
De acordo com a informação prestada “tal acórdão transitou em julgado em 26.12.2024, tendo os autos baixado a esta Relação em 03.01.2025 (cfr. fls. 202, 203 e 204) e em 06.01.2025 foi proferido despacho determinando a abertura de vista ao Ministério Público por, em 16.12.2024, ter sido prestada a garantia de que dependia a entrega do requerido.”
Donde se conclui estar ultrapassado o termo do prazo de 10 dias fixado no acórdão do Tribunal da Relação para entrega do requerido à autoridade judiciária de emissão do MDE.
E, não tendo sido fixado qualquer outro prazo em que se pudesse legalmente fundamentar e manter a detenção do peticionante, é esta ilegal, por se manter para além do prazo fixado na Lei e no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 222º do CPP.
Assim deve ser ordenada a imediata libertação do detido (art.º 223º, n.º 4 al. d) do CPP), sem prejuízo das medidas que se mostrem necessárias com vista a evitar eventual perigo de fuga.
3. Decisão
Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4, alínea d), do artigo 223.º do CPP, acorda-se na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em declarar ilegal a prisão e mandar apresentar o detido no Tribunal da Relação imediatamente ou no prazo máximo de 24horas para libertação e aplicação das medidas de coação que no caso couberem – (art.º 223º, n.º 4, al. c)do CPP).
Passe mandados de libertação e condução à apresentação na Relação.
Comunique de imediato ao proc. n.º 3151/24.2YRLSB-A.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa, para conhecimento e ponderação de aplicação de medida de coação não detentiva.
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 15 de janeiro de 2025.
António Augusto Manso (relator)
Carlos Campos Lobo (Adjunto)
Horácio Correia Pinto (Adjunto)
Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)
_________
(1) - v. ac. do STJ, de 14.07.2021, proc. 2885/10.3TXLSB-AA.S1, www.dgsi.pt.
(2) - v. ac. do STJ, de 24.04.2024, Proc. n.º 2592.08.7PAPTM-C.S1, www.dgsi.pt.
(3) - v. ac. do STJ de 02.06.2021, 156/19.9T9STR-A.S1, www.dgsi.pt.)
(4) - Eduardo Maia Costa, 2016, p. 48, citado por Tiago Caiado Milheiro in Comentário Judiciário ao CPP, AAVV, Coimbra, Almedina, tomo III, em anotação ao art.º 222º do CPP.
(5) – ac. do STJ de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, in www.dgsi.pt.
6- ac. do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TD PRT-A.S1, www.dgsi.pt
7- ac. do STJ de 20.11.2019, proc. n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1,www.dgsi.pt.
8-9-10-ac. do STJ de 26.07.2023, proferido no processo n.º 257/23.9YRLSB-A.S1, in www.dgsi.pt.