RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
NEGLIGÊNCIA
CONSENTIMENTO
PRESUNÇÃO DE CULPA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ANIMAL
MORTE
Sumário


I. No âmbito da responsabilidade médica, a responsabilidade do prestador do serviço médico tem natureza contratual ou extracontratual, sendo aceite de forma consensual que, podendo ocorrer as duas, a responsabilidade contratual consome a responsabilidade extracontratual.
II. Porém, na responsabilidade médica veterinária a questão não se coloca, porquanto a responsabilidade extracontratual decorrente de ato médico praticado em humanos, encontra-se direcionada, nesses casos, para violação de direitos absolutos reportados a pessoas e, obviamente, não a animais, pelo que a situação em apreço deve ser enquadrada na responsabilidade civil contratual.
III. Tendo-se provado que foi praticado ato médico veterinário do qual resultou a morte do animal, tendo o mesmo sido praticado com violação da leges artis (administração off-label de um medicamento) e sem ter sido previamente obtido consentimento informado do proprietário/curador do animal, verifica-se que a presunção de culpa prevista no artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, não foi ilidida.
IV. A indemnização por danos não patrimoniais derivados da morte de um animal causada por negligência médica veterinária, depende da prova da existência de prejuízos emocionais e psicológicos que decorrem da ligação emocional entre o proprietário/curador e o animal.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 1019/23.9T8PTG.E1 (Apelação)
Tribunal recorrido: TJ Comarca Local 1, Juízo Local Cível ... – J...
Apelante: AA
Apelada: EMP01..., Lda

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
AA intentou ação declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, contra EMP01... LDA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:
(i) a título de danos patrimoniais, a quantia de €3.250,00, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
(ii) a título de danos morais, a quantia de €3.000,00, acrescida de juros de mora desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Para fundamentar a pretensão, alegou que, em agosto de 2020, contratou a Ré para prestar serviços de veterinária aos seus animais (desparasitação e vacinação).
Em 20-08-2020, uma médica veterinária ao serviço da Ré, administrou por via endovenosa à égua «Nome 1» o desparasitante Ivermectina.
Instantes após a administração do referido medicamente, a égua caiu morta no chão, à frente da filha da Autora e de duas crianças, a neta e a sobrinha.
Posteriormente, veio a tomar conhecimento que o referido desparasitante não está licenciado para equídeos, uma vez que a sua utilização tem efeitos secundários que podem pôr em risco a vida do animal.
A Ré sabia desses riscos e sem obter previamente o consentimento informado da Autora, administrou o medicamento por via endovenosa causando a morte do animal.
Deste modo, a Ré incorreu em responsabilidade civil contratual pela morte do animal e pelos danos causados, correspondendo os danos patrimoniais ao custo de aquisição de outro animal em substituição do falecido e os danos morais os sofridos em face das circunstâncias em que ocorreu a morte do animal.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.

Inconformada, apelou a Autora, impugnando a decisão de facto e de direito, pugnando pela revogação da sentença e pela sua substituição em ordem a obter a procedência dos pedidos formulados, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Por sentença proferida nos presentes autos, veio o Tribunal a quo declarar totalmente improcedente a acção e, consequentemente, absolveu a R da totalidade pedido.
2. Os presentes autos reportam-se a uma intervenção da R que foi contratada pela ora Recorrente para proceder à desparasitação de um equídeo de que esta última era dona, tendo no âmbito da intervenção realizada sido administrado ivermetcina injectável, medicamento esse que não é recomendado para administração naquele tipo de animais. Isto porque, para além das várias contraindicações que tem, existe um elevado risco de choque anafilático na administração a cavalos, tendo, por esse motivo, sido criado um outro medicamente para administração por via oral – ivermectina em pasta.
3. Apesar da R ter o perfeito conhecimento dos riscos que o animal corria através da administração da ivermectina injectável, a mesma não solicitou qualquer consentimento informado à ora Recorrente, tendo o animal, logo após a administração do medicamento off label, vindo a cair no chão, começando com espasmos violentos e a falecer.
4. Desde logo, quanto à matéria que o Tribunal a quo entendeu valorar para efeito de prova, de nenhuma forma se poderá entender nem aceitar que o mesmo faça tábua rasa de documentação de essencial valoração para apreciação dos presentes autos.
5. Veja-se que não se entende como o Tribunal a quo decide afastar o Relatório Clínico elaborado em 16.09.2020 pela Dra. BB, Médica Veterinária que administrou o medicamento, bem como os emails que a mesma remeteu para a seguradora no sentido de acionar o seguro de responsabilidade civil.
6. Toda essa documentação foi elaborada pela Dra. BB logo a seguir o episódio que vitimou a égua da A, tendo a mesma, após o referido episódio, continuado a trabalhar para a R durante mais dois anos, sem que tal circunstância afectasse de alguma forma o relacionamento entre as partes.
7. Da prova documental e testemunhal da BB resulta um relato absolutamente espontâneo do que se sucedeu e qual a interpretação dada pela médica veterinária da R quanto à morte da égua da A.
8. Mas mais, esse mesmo Relatório Clínico elaborado pela médica veterinária foi junto pela própria R!
A. DO FACTO PROVADO N.º 6
9. Através da decisão recorrida, entendeu o Tribunal a quo dar como provado que:
“6. Apesar disso (da ivermectina estar apenas aprovada para equídeos para administração por via oral em forma de pasta) é prática habitual da Ré, como da maioria dos médicos veterinários, administrar Ivermectina, por via endovenosa, a equídeos, aquando a sua desparasitação, a qual é efectuada na mesma data que a vacinação.”
(parêntesis e negrito nossos)
10. Através do referido facto provado, resulta que o Tribunal a quo entendeu colocar a referência de que a maioria dos médicos veterinários realiza a desparasitação com ivermectina injectável, situação que não é admissível. Veja-se que a única pessoa que de forma absolutamente genérica – entenda-se, sem indicar sequer um caso específico – mencionou que vários médicos veterinários procedem dessa forma (administram em cavalos ivermectina injectável) foi a Dra. BB.
11. Ao contrário, quando questionada a testemunha Dra. CC, também ela médica veterinária, sobre se a administração de ivermectina seria prática habitual, a mesma referiu que o tratamento de cavalos não é a sua área mas que, no seguimento do sucedido, contactou com colegas seus especializados no tratamento de equídeos e que lhe referiram que tal não é prática rotineira e que, se alguém o faz, tal é absolutamente errado.
12. Relativamente ao ponto 6 da matéria dada como provada, necessário será que a mesma seja alterada no sentido de não constar que a utilização de ivermectina injectável em equídeo é prática da maioria dos médicos veterinários, porquanto tal não foi, de nenhuma forma, provado nos autos.
13. Assim, do texto do ponto 6 da matéria dada como provada, deverá passar a constar apenas o seguinte texto:
“6. Apesar disso, é prática habitual da Ré administrar a Ivermectina, por via endovenosa, a equídeos, aquando da sua desparasitação, a qual é efectuada na mesma data que a vacinação”
B. DO FACTO PROVADO N.º 7
14. No ponto 7 da matéria dada como provada, é mencionado o seguinte:
“7. Foi a médica veterinária, BB, que, naquela data, escolheu injectar o medicamento Ivermectina, aquando da desparasitação do equídeo “Nome 1”.
15. Conforme resulta da prova produzida pela própria testemunha BB – médica veterinária que administrou o medicamento off-label – a mesma, para efeitos de administração do medicamento, seguiu o protocolo de desparasitação que havia sido definido pela própria R., a qual, tinha a perfeita consciência de que o medicamento a administrar em equídeos era off-label, e que, portanto, para a sua administração, sabia ser essencial a obtenção do consentimento informado da A.
16. Questionada novamente sobre a existência do protocolo de desparasitação existente na R, a testemunha foi perentória a afirmar que existia e que a mesma tinha tido participação – junto com os sócios gerentes da R - na sua elaboração.
17. Deste modo, deverá o ponto 7 da matéria de facto ser alterado, devendo passar a constar o seguinte texto:
“7. Foi a médica veterinária, BB, que, naquela data, de acordo com a sua independência técnica e protocolos estabelecidos na R, decidiu injectar o medicamento Ivermectina aquando da desparasitação do equídeo “Nome 1”.
C. DO FACTO PROVADO N.º 8
18. Na sentença proferida, entendeu como provado que a égua “Nome 1” sempre foi desparasitada através da administração de ivermectina injectável, pelo menos desde 2010:
“8. A égua “Nome 1” foi sempre desparasitada dessa forma, pelo menos, desde 2010, sem ter existido qualquer complicação ou reacção adversa.”
19. Do documento da DGAV apenas resulta que foi administrado à égua da A ivermectina injectável em 14.05.2018 e 28.08.2019, sendo que quando foi administrado em 20.08.2020 a égua veio a falecer.
20. Conforme mencionado pela Testemunha DD, era ele próprio que sempre fazia a desparasitação dos animais da quinta através da administração da ivermectina em pasta, desde 2011/2012 até, pelo menos 2016, altura em que a quinta foi vendida pela A.
21. No entanto, a testemunha DD continuou a trabalhar a part-time numa outra quinta da A, sendo que, desde essa altura, não controlava como controlava antes as questões relacionadas com as intervenções veterinárias dos animais.
22. Considerando a prova testemunhal produzida pela testemunha DD, deverá a matéria de facto que resulta do ponto 8 ser alterada com base nos únicos elementos objectivos que resultam do boletim clínico da DGAV junto como Doc. 1 com a pi.
23. Assim, deverá o ponto 8 dos factos dados como provados passar a ter a seguinte redacção: “A égua “Nome 1” em 14.05.2018 e 28.08.2019 foi desparasitada com ivermectina injectável, não tendo existido qualquer complicação ou reacção adversa.”
D. DO FACTO PROVADO N.º 12
24. No facto provado n.º 12, entendeu o Tribunal a quo dar como provado que qualquer o medicamento que seja pode provocar um choque anafilático.
“12. Sendo do conhecimento da Ré, bem como da médica veterinária, BB, qua a administração por via endovenosa da Ivermectina é susceptível de provocar um “choque anafilático” em equinos, como aliás, sucede com a administração de qualquer outro medicamento.”
25. Veja-se que não se entende, de todo, como pode o Tribunal a quo dar como provado um facto que, todo e qualquer ser humano com algum senso comum, sabe não corresponder à verdade?!
26. O Tribunal a quo não se questiona se tal corresponderá realmente à verdade?
27. Para que desse tal matéria como provada, o Tribunal a quo não só necessitaria de realizar um estudo exaustivo de todos os medicamentos existentes no mercado como também de prova pericial que sustentasse tal facto que deu como provado.
28. Por esse mesmo motivo, deverá o facto provado em 12 ser alterado, passando a não constar que qualquer medicamento existente no mercado é susceptível de causa um choque anafilático:
“12. Sendo do conhecimento da Ré, bem como da médica veterinária, BB, que a administração por via endovenosa da Ivermectina é susceptível de provocar um “choque anafilático em equinos.”
E. DO FACTO PROVADO N.º 21
29. No facto provado n.º 21, entendeu o Tribunal a quo fazer cópia do que se encontra no parecer do elaborado pela Ordem dos Médicos Veterinários – cfr. ponto 14 desse mesmo relatório:
“21. A administração off-label baseia-se no conceito de liberdade de decisão pertencente ao médico veterinário no que considera ser mais benéfico para os seus pacientes.”
30. Se se considerar que tal matéria se enquadra na matéria de facto, necessário será incluir que, apesar do médico veterinário poder ter liberdade técnica de escolher o tratamento a administrar, certo é que, para o efeito, deverá sempre existir o consentimento informado por parte do dono do animal.
31. Neste sentido, a admitir-se o ponto 21 da matéria de facto, necessário será que do mesmo conste a seguinte redacção:
“21. A administração off-label baseia-se no conceito de liberdade de decisão pertencente ao médico veterinário no que considera ser mais benéfico para os seus pacientes, devendo existir sempre prévio consentimento informado do dono do animal.”
F. DO FACTO PROVADO N.º 22.
32. Considerou igualmente o Tribunal a quo introduzir no ponto 22 da meteria dada como provada o que resulta na integra do ponto 15 do parecer proferido pela Ordem dos Médicos Veterinários:
“22. Não sendo uma actuação irregular ou ilegal, a prescrição off-label envolve a utilização de um medicamento para uma determinada indicação que não foi objecto de avaliação, ou pelo menos de validação por parte da entidade responsável pela colocação do medicamento no mercado. Essa prescrição não assenta, por isso, na evidência científica robusta que conduziu à autorização de introdução no mercado desse produto.”
33. Cumpre referir que a utilização de um medicamento off-label, apenas não é irregular e ilegal caso exista o prévio consentimento informado do paciente /dono do animal.
34. Tal resulta não apenas da jurisprudência que tem vindo a ser produzida a este respeito mas também do próprio ponto 17 do parecer da Ordem dos Médicos Veterinários e que estranhamente não foi colocado como facto provado.
35. Se o Tribunal entendeu colocar os pontos 13, 14, 15, 16 do parecer elaborado pela Ordem dos Médicos Veterinários na base de factos provados, não se percebe porque não colocou igualmente o 17 que é a conclusão dos referido pontos e que, naturalmente, compromete a posição da R no presente litígio.
36. Assim sendo, necessário será proceder à introdução na matéria de facto da referência à necessidade de existência do consentimento informado, conforme se redige:
“22. Não sendo uma actuação irregular ou ilegal – caso exista o prévio consentimento informado do dono do animal - a prescrição off-label envolve a utilização de um medicamento para uma determinada indicação que não foi objecto de avaliação, ou pelo menos de validação por parte da entidade responsável pela colocação do medicamento no mercado. Essa prescrição não assenta, por isso, na evidência científica robusta que conduziu à autorização de introdução no mercado desse produto.”
G. DA NECESSIDADE DE ADICIONAR UM FACTO ENTRE A MATÉRIA DE FACTO 23 E 24
37. No caso de se entender dar como válido a permanência na matéria de facto o que resulta dos pontos 20, 21, 22 e 23 – que corresponde aos pontos 13, 14, 15 e 16 do parecer elaborado pela Ordem dos Médicos Veterinários - deverá ser acrescentada a conclusão relativamente aos mesmos expressa no ponto 17 do parecer da Ordem dos Médicos Veterinários, sendo introduzido um ponto com a seguinte redacção:
“17. Considerando as questões suscitadas, e sobretudo os riscos que a prescrição de medicamentos off-label poderá importar, o cumprimento dos deveres éticos do médico veterinário para com os detentores dos animais a tratar inclui, também, a obrigação de obter o consentimento informado destes últimos. Assim, o médico veterinário tem a obrigação de revelar ao detentor, de forma transparente, que a prescrição é off-label, de explicar os motivos que justificam essa solução terapêutica e de respeitar a vontade do detentor nessa matéria.”
H. DA NECESSIDADE DE ADICIONAR UM FACTO ENTRE A MATÉRIA DE FACTO 24 E 25
38. Conforme resulta da matéria de facto provada n.º 25, foi pela mandatária da A remetida carta para a R a solicitar o pagamento de uma indemnização no valor de € 5.000,00.
39. No seguimento da referida missiva, foi apresentada pela R uma proposta de resolução extrajudicial da questão, a qual passava pela entrega de um equino desbastado, conforme resulta do Doc. 6 junto aos autos com o requerimento apresentado em 23.11.2023, com a ref. 2419535:
“A última proposta apresentada pela Clínica foi, de facto, um equino desbastado (tal como requerido e peticionado pela relatora no início das conversações), a qual foi recusada, tendo assim as conversações terminado.”
40. Importante será referir que a proposta apresentada pela R foi rejeitada pelo facto de, à data da sua apresentação, já a ter adquirido um novo cavalo.
41. Apesar da A ter tentado fazer a prova do referido em sede de julgamento, inexplicavelmente, o Tribunal a quo não o permitiu.
42. Na verdade, a prova que se pretendia fazer era a de que efectivamente havia sido feita uma proposta para resolução do litígio mas que a mesma não havia sido aceite pelo facto de já ter sido adquirido um novo cavalo, questão esta que resultava do tema da prova n.º 4.
43. Neste sentido, deverá ser acrescentada à matéria de facto um ponto, o qual deverá ter a seguinte redacção:
“No seguimento da carta remetida pela A, foi proposto pela R a entrega de um equino desbastado, tendo a proposta sido rejeitada pela A pelo facto de, àquela data, já ter adquirido um novo cavalo.”
I. DO FACTO PROVADO N.º 32
44. Entendeu o Tribunal a quo que a idade da égua não foi concretamente apurada, mas que seria entre 25 e 32 anos de idade.
“32. O cavalo da A. tinha uma idade não concretamente apurada, mas compreendida entre 25 a 32 anos de idade.”
45. No decorrer do julgamento, foram várias as testemunhas questionadas sobre a idade do cavalo, nomeadamente a BB, DD e EE.
46. Tanto a BB como o DD não sabiam de forma concreta a idade da égua, tendo respondido de forma vaga e genérica.
47. No entanto, a testemunha EE, no seguimento da questão que lhe foi colocada, respondeu de forma concreta, informando que a égua “Nome 1” tinhas nascido em 1995 porque correspondia à data em que se havia casado e, portanto, no momento do falecimento a égua teria 25 anos.
48. Assim, deverá o tema da prova ser alterado no sentido de passar a constar a idade concreta da égua, conforme a seguinte redacção:
“32. À data do falecimento da égua da A, a mesma tinha 25 anos de idade.”
J. O FACTO PROVADO N.º 33
49. No ponto 33 da matéria dada como provada, de nenhuma forma se poderá aceitar que o Tribunal a quo entenda que a seguradora da médica veterinária BB tenha declinado a responsabilidade pelo facto de não ter existido autópsia, facto que é absolutamente falso!
50. Analisado o processo, veio a seguradora declinar a responsabilidade pelo facto da veterinária da R ter administrado um medicamento off label, bem sabendo que o mesmo poderia causar um choque anafilático ao equino, conforme resulta dos Docs. 1 e 2 juntos com o requerimento datado de 23.11.2023 e com a ref. 2419535.
51. Deste modo, deverá o facto provado n.º 33 ser necessariamente alterado, devendo a passar a ter a seguinte redacção:
“A médica veterinária, BB, após a ocorrência, acionou o seu seguro de responsabilidade civil profissional, o qual, a 12/01/2021, declinou qualquer responsabilidade em virtude de a médica veterinária ter administrado um medicamento off label que sabia poder provocar um choque anafilático no equino.”
K. DOS FACTOS NÃO PROVADOS DAS ALÍNEAS A. E E.
52. A decisão recorrida, deu como não provado que a égua da A tivesse sofrido um choque anafilático após a administração da Ivermectina endovenosa e também que esse não seria um efeito secundário do medicamento.
“A. O equídeo “Nome 1” foi vítima de um choque anafilático irreversível e fatal causado pela administração da Ivermectina endovenosa, sendo este um dos efeitos secundários do referido medicamento.”
53. De igual modo, entendeu o Tribunal a quo que não foi provado que a égua “Nome 1” fosse um animal saudável.
“E. A égua “Nome 1” era um animal muito saudável.”
54. Primeiramente, cumpre referir que, conforme depoimento das testemunhas questionadas sobre o estado de saúde do animal, todas referiram que era um animal robusto, com muita força e saudável, nomeadamente, CC, BB, DD, FF e EE.
55. O referido animal não tinha registo de qualquer outra patologia, sendo que há vários anos que era acompanhado em termos veterinários pela R.
56. A R bem sabia que o animal se encontrava bem de saúde antes da administração do medicamento off-label (ivermectina injectável).
57. Veja-se que foi a própria médica veterinária que administrou o medicamento que no relatório clínico que elaborou e que remeteu para a sua seguradora – com o conhecimento da sua entidade patronal, a R – menciona que a égua “encontrava-se normotérmica, com mucosas rosadas, e auscultação cardio-pulmonar sem alterações aparentes.”
58. No relatório clínico elaborado pela médica veterinária da R, é a própria a mencionar que a égua da A morreu de choque anafilático.
59. Não foi obtido pela R qualquer consentimento informado relativamente à utilização do medicamento na égua da A, nomeadamente quanto aos riscos existentes, e autorização para o uso do fármaco.
60. A título de exemplo, temos a seguinte prova que vai no sentido do medicamento não dever ser administrado a cavalos:
 relatório clínico elaborado pela médica veterinária BB, no qual a mesma relata o sucedido e menciona que o medicamento não é indicado para equinos e, portanto, é off-label;
 o depoimento da própria médica veterinária BB;
 a decisão do seguro que declina a assunção de responsabilidade pelo facto de ter sido administrado um medicamento (ivermectina endovenosa) off-label;
 parecer elaborado pela Ordem dos Médicos Veterinários, o qual menciona que a administração da ivermectina injectável não está aprovada para administração em cavalos e que, portanto, é off-label;
 depoimento da médica veterinária CC que explicou de forma pormenorizada a razão pela qual o medicamento não é indicado para equinos e quais os efeitos secundários possíveis relacionados com a sua administração.
61. Assim sendo, deverá esta mesma matéria que foi dada como não provada – constante das alíneas A e E - ser incluída na matéria de facto provada entre os pontos 4 e 5, devendo constar aí a seguinte redacção:
“A égua “Nome 1” era um animal saudável, tendo sido vítima de um choque anafilático irreversível e fatal pela administração da Ivermectina endovenosa, sendo este um dos efeitos secundários do referido medicamento.”
L. DO FACTO NÃO PROVADO DA ALÍNEA D.
62. Quanto ao facto que o Tribunal a quo deu como não provado na alínea D., não entende ao certo a A qual o sentido do mesmo.
“D. sendo certo que, se a Ré o tivesse feito, nunca a A. teria permitido a administração do mesmo ao equídeo “Nome 1”.”
63. Isto porque não é claro quanto ao seu conteúdo nem quando à matéria que fundamenta o mesmo.
64. Será que o Tribunal a quo pretende dar como não provado que se a A soubesse que o medicamento que a R iria administrar era off-label e que existia um outro que era o efectivamente aprovado para administração em cavalos qua a mesma optaria pelo off-label?
65. …escusado será dizer que dar isso como não provado é, nada mais, nada menos, que absurdo!
66. Note-se que a testemunha DD mencionou que a A sempre pedia para ser administrada ivermectina em pasta, sendo ele que ia à farmácia aviar a receita emitida pelo veterinário da R.
67. Não existindo outro método indicado para desparasitação de cavalos, normal seria que a A pedisse à testemunha que fosse comprar a ivermectina em pasta para proceder à desparasitação dos cavalos…
68. De facto, o que resulta da matéria de factos não provado D não faz qualquer sentido, devendo essa alínea retirada.
V. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO
69. Na fundamentação de Direito, a sentença recorrida enquadra - e bem – o episódio em análise na responsabilidade civil contratual.
70. Essencial será mencionar que o referido serviço foi prestado de forma manifestamente ilegal e irregular através da administração de um medicamento off-label sem que existisse consentimento informado da A relativamente aos riscos inerentes a essa mesma administração.
71. A responsabilidade civil contratual em saúde divide-se entre a responsabilidade por má prática médica/ negligência, com base na violação das leges artis (sticto senso) e a responsabilidade por violação do consentimento informado, quer por falta de informação, quer por falta de consentimento ou consentimento inválido.
72. Ora, na sentença recorrida, mal andou o Tribunal a quo ao enquadrar os presentes autos numa situação de má prática médica / negligência, colocando na esfera jurídica da A o ónus da prova relativamente ao sucedido quanto à efectiva razão do decesso da égua da A e danos por esta sofridos.
73. Veja-se que, na responsabilidade civil contratual pela prática de acto médico sem que haja consentimento informado do lesado, a mesma concretiza-se, desde logo, pela falta desse mesmo consentimento, pendendo sobre a R a prova de que o mesmo foi obtido previamente à realização do acto.
74. Ou seja, o primeiro dano provocado no lesado é a impossibilidade de autodeterminação do mesmo perante um acto médico que foi realizado, podendo, subsequentemente, provocar outros danos negativos e cumulativos, como foi o caso dos presentes autos em que, instantes após a administração do medicamento off-label (ivermectina endovenosa – não aprovada para uso em cavalos) se deu a morte da égua Nome 1 e todos os danos morais sofridos pela A.
75. Isto para se referir que impendia sobre a R o ónus da prova de que obteve o consentimento informado da A previamente à prática do acto, facto que aquela não logrou fazer prova – muito pelo contrário.
C. DO ÓNUS DA PROVA
76. A respeito da questão do ónus da prova, tanto a doutrina como a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça são unânimes ao definir que, nas situações de falta de consentimento informado, o mesmo impende sobre quem praticou o facto ilícito – ou seja a R.
77. Competia à R fazer prova de que esse consentimento havia sido prestado de forma cabal e esclarecida junto da A, facto que manifestamente não ocorreu!
78. Assim sendo, muito mal andou o Tribunal a quo ao determinar que o ónus da prova relativamente à responsabilidade do acto médico praticado era da responsabilidade da A, devendo, naturalmente tal matéria merecer a maior censura.
D. DO NEXO DE CAUSALIDADE
79. Mal andou o Tribunal a quo ao determinar a não existência de nexo de causalidade porquanto o mesmo é flagrante que existe – desde logo pela não obtenção do consentimento informado previamente à prática do acto médico.
80. Ora, nos presentes autos, conforme já mencionado, importa aferir a responsabilidade por acto médico praticado pela falta de consentimento informado, dispensando-se, portanto, à A a necessidade de realização de prova relativamente ao nexo causal existente entre o facto ilícito e o dano.
81. Isto porque, conforme já referido anteriormente a respeito do ónus da prova, o nexo causal é aferido pela falta do consentimento.
82. Tratando-se de responsabilidade civil contratual por falta de consentimento informado por realização da desparasitação com um medicamento off-label, a prova negativa desse mesmo nexo de causalidade incumbia à R!
83. Ou seja, impendia sobre a R a prova de que existiu o consentimento informado para a administração do fármaco off-label, prova esse que, de todo, não foi feita!
84. Tal entendimento resulta da jurisprudência unânime produzida pelo Supremo Tribunal de Justiça a este respeito.
85. Não tendo a A prestado qualquer consentimento informado para a administração de um medicamento off-label para realização da desparasitação da sua égua, encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual por falta de consentimento informado:
 ilicitude (administração do fármaco off-label sem prévia obtenção da ora Recorrente do consentimento informado);
 culpa, a qual se presume nos termos do art. 799.º, n.º 1 do CC;
 nexo de causalidade entre o facto - intervenção médica não consentida - e o dano, no sentido em que aquela é a causa adequada do dano;
 demais danos patrimoniais e não patrimoniais que se encontram provados nos autos e refletidos na matéria de facto.
86. Ainda que se adoptasse a teoria da causalidade adequada para aferir do nexo de causalidade entre a administração do fármaco off-label e a morte da égua da A, absolutamente exótico seria que essa correlação directa não fosse estabelecida.
87. Do parecer elaborado pela Ordem dos Médicos Veterinários, se depreende que a administração do medicamento off-label na égua da A comportou riscos elevados, nomeadamente, o de originar um choque anafilático, conforme explicado pela médica veterinária, BB, e da testemunha, também ela médica veterinária, CC.
88. Importante também será referir que a veterinária que administrou o medicamento, BB, realizou um exame prévio ao animal encontrando-se naquele instante normotérmico, com mucosas rosadas e auscultação cardio-pulmonar sem alterações aparentes, sendo que, logo após a administração do fármaco off-label, o animal entrou em paragem cardiorrespiratória tendo caído no chão e vindo a falecer momentos depois.
89. A R, nenhuma prova logrou fazer de que, mesmo tendo sido adoptadas todas as boas práticas médicas – que seria impossível porque o medicamento administrado era off-label e existe fármaco indicado expressamente para o efeito – os danos à égua da A se teriam sucedido na de igual modo naquele mesmo instante.
90. Ou seja, incumbia à R provar que o choque anafilático que originou a paragem cardiorrespiratória sofrida pela égua da A imediatamente após a administração do fármaco off-label teria sucedido na mesma, naquele preciso instante, o que não logrou fazer.
91. Termos em que deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determina a responsabilidade civil contratual da R por falta de consentimento informado quanto à administração do fármaco off-label (ivermectina endovenosa), devendo a mesma ser condenada a indemnizar a A pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, conforme peticionado e provado.»

Na resposta ao recurso, o recorrido defendeu a confirmação da sentença recorrida.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Impugnação da decisão de facto;
- Caso proceda a impugnação da decisão de facto: verificação dos pressupostos da indemnização civil decorrente da morte do animal.

B- De Facto[1]
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
«1. A Ré explora o estabelecimento de clínica médica veterinária, aberto ao público, sito na Rua 1, em Local 1.
2. Em Agosto de 2020, a A. ajustou com a R. a prestação de serviços veterinários de desparasitação e vacinação dos seus animais.
3. Nesse sentido, no dia 20/08/2020, deslocou-se à propriedade da A., BB, médica veterinária, funcionária da Ré, a qual administrou o desparasitante animal, denominado Ivermectina, por via endovenosa, à égua “Nome 1”, de que a A. é dona.
4. Alguns minutos depois da administração do referido medicamento, a égua “Nome 1” caiu morta no chão à frente da filha da A., e de duas crianças, suas familiares.
5. A Ivermectina apenas está aprovada para equídeos se administrada por via oral, na forma de pasta, não sendo recomendada a sua administração a cavalos por via endovenosa.
6. Apesar disso é prática habitual da Ré, como da maioria dos médicos veterinários, administrar a Ivermectina, por via endovenosa, a equídeos, aquando da sua desparasitação, a qual é efectuada na mesma data que a vacinação.
Redação após a procedência da impugnação da decisão de facto:
«6. Apesar disso é prática habitual da Ré, administrar a Ivermectina, por via endovenosa, a equídeos, aquando da sua desparasitação, a qual é efectuada na mesma data que a vacinação.»
7. Foi a médica veterinária, BB, que, naquela data, escolheu injectar o medicamento Ivermectina, aquando da desparasitação do equídeo “Nome 1”. [Eliminado dos factos provados após apreciação da impugnação da decisão de facto]
8. A égua “Nome 1” foi sempre desparasitada dessa forma, pelo menos, desde 2010, sem ter existido qualquer complicação ou reação adversa.
Redação após a procedência da impugnação da decisão de facto:
«8. A égua “Nome 1”, em 14-05-2018 e 28-08-2019, foi desparasitada com Ivermectina injetável, não tendo existido qualquer complicação ou reação adversa.»
9. Nunca a Ré, ou a médica veterinária, BB, informaram a A. sobre a opção de essa forma de administração, ou sobre os motivos que justificavam esta solução terapêutica para a desparasitação do equídeo “Nome 1”.
10. Assim como, nunca a Ré, nem a médica veterinária, BB, informaram a A. sobre os riscos inerentes à administração endovenosa da Ivermectina.
11. Nem alguma vez foi solicitado à A. que prestasse o seu consentimento prévio para a administração do referido medicamento dessa forma.
12. Sendo do conhecimento da Ré, bem como da médica veterinária, BB, que a administração por via endovenosa da Ivermectina é susceptível de provocar um “choque anafilático” em equinos, como aliás, sucede com a administração de qualquer outro medicamento.
Redação após procedência da impugnação da decisão de facto:
«12.Sendo do conhecimento da Ré, bem como da médica veterinária, BB, que a administração por via endovenosa da Ivermectina é susceptível de provocar um “choque anafilático” em equinos.»
13. Os médicos veterinários que trabalham para a R., inclusivamente o seu director clínico, acordaram, no decorrer de uma reunião, que a desparasitação de equinos seria feita através da administração de Ivermectina por via endovenosa (em utilização off-label).
14. Bem sabendo a Ré que, para equídeos, apenas, a Ivermectina em pasta, para administração oral, se encontra aprovada.
15. A médica veterinária, BB, esteve presente nessa reunião e nada disse em contrário, nem transmitiu s ninguém qualquer preocupação sobre tal procedimento.
16. Todos os profissionais que trabalham para a ré têm, no exercício da sua profissão, independência técnica.
17. Após a morte do cavalo da A., a médica veterinária, BB, não voltou a administrar a Ivermectina a equídeos, por via endovenosa, sem que a R. a tal tenha obstado.
18. À data da ocorrência, a Ré já prestava serviços médicos veterinários aos animais da A. há, pelo menos, 10 anos.
19. A literatura científica disponível é escassa quanto à segurança da utilização da Ivermectina parenteral em equídeos, particularmente nos equinos.
20. Considera-se uma utilização off-label de um produto, quando a sua utilização não esteja em conformidade com o resumo das características desse produto, seja na afecção a tratar, na espécie de destino, ou na dose e via de administração utilizada.
21. A administração off-label baseia-se no conceito da liberdade de decisão pertencente ao médico veterinário no que considera ser mais benéfico para os seus pacientes.
22. Não sendo uma actuação irregular ou ilegal, a prescrição off-label envolve a utilização de um medicamento para uma determinada indicação que não foi objecto de avaliação, ou pelo menos de validação por parte da entidade responsável pela colocação do medicamento no mercado. Essa prescrição não assenta, por isso, na evidência científica robusta que conduziu à autorização de introdução no mercado desse produto.
23. Por conseguinte, devido à falta, ou insuficiência, de escrutínio científico, quanto à segurança e efectividade da utilização de um medicamento, para uma indicação que não foi aprovada, no quadro da autorização de introdução no mercado, a decisão do médico veterinário prescritor, quanto a uma utilização off-label, comporta um risco acrescido para a segurança dos animais a tratar.
Pontos 21, 22 e 23: Eliminados dos factos provados na sequência da decisão sobre a impugnação da decisão de facto.
24. Através de carta registada com aviso de recepção, datada de 12/02/2021, e recepcionada pela Ré, em 15/02/2021, a A. solicitou à Ré o pagamento de uma indemnização em valor não inferior a 5.000,00€, pelos prejuízos por si sofridos em consequência da morte do animal.
25. A égua “Nome 1” estava com a família da A. há, pelo menos, vinte e cinco anos, era um animal robusto, muito dócil e fácil de montar tanto por adultos, como por crianças.
26. A égua “Nome 1”, para além do seu valor patrimonial, tinha também um valor afectivo para a A. e sua família.
27. Todos confiavam no animal e lhe reconheciam inteligência, e um carácter calmo, e afável.
28. Além disso, o choque e a dor de ter perdido um animal de estimação, que fazia parte da família há tantos anos, de forma abrupta, constituiu uma grande perda que tem sido difícil de superar, tanto à A. como à sua família.
29. A filha da A. adquiriu um outro equídeo, com o que despendeu a quantia de 3.250,00€.
30. Não foi feita a necropsia ao cavalo após o seu decesso.
31. A esperança de vida de um cavalo oscila entre 25 a 30 anos.
32. O cavalo da A. tinha uma idade não concretamente apurada, mas compreendida entre 25 a 32 anos de idade.
Ponto 32: Mantida a redação após apreciação da impugnação da decisão de facto.
33. A médica veterinária, BB, após a ocorrência, acionou o seu seguro de responsabilidade civil profissional, o qual, a 14/10/2020, declinou qualquer responsabilidade em virtude da ausência de necropsia.»
Ponto 33: Eliminado dos factos provados após apreciação da impugnação da decisão de facto.
Factos provados por terem transitado das alíneas A e E dos factos não provados:
«O equídeo “Nome 1” foi vítima de um choque anafiláctico irreversível e fatal causado pela administração da Ivermectina endovenosa, sendo este um dos efeitos secundários do referido medicamento.
«A égua “Nome 1” era um animal muito saudável.»

FACTOS NÃO PROVADOS
«A. O equídeo “Nome 1” foi vítima de um choque anafiláctico irreversível e fatal causado pela administração da Ivermectina endovenosa, sendo este um dos efeitos secundários do referido medicamento. [Eliminada dos factos não provados tendo transitado para os factos provados após apreciação da impugnação da decisão de facto]
B. Bem sabendo a Ré que a A. trata todos os seus animais como animais de estimação.
C. No entanto, a Ré só passou a fazer a desparasitação da égua “Nome 1” a partir de 2015. [Mantida após a reapreciação da decisão de facto]
D. Sendo certo que, se a Ré o tivesse feito, nunca a A. teria permitido a administração do mesmo ao equídeo “Nome 1”.
E. A égua “Nome 1” era um animal muito saudável.
[Eliminada dos factos não provados tendo transitado para os factos provados após apreciação da impugnação da decisão de facto]
F. A égua “Nome 1” recebeu treino ao longo da sua vida e serviu ainda a propriedade da A. em actividades de turismo rural, sendo por isso um animal que trazia valor e rendimento.
G. As crianças pequenas podiam montar e brincar com a “Nome 1” sem que nenhum adulto estivesse por perto.»

C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1- Impugnação da decisão de facto
Desde que preenchidos os requisitos do artigo 640.º do CPC, compete à Relação no âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do CPC, reapreciar a decisão de facto, em ordem a formar uma convicção própria com base na análise global e crítica da prova carreada para os autos, aferindo da correta valoração dos meios de prova produzidos e dos respetivos ónus de prova, tendo em conta a fundamentação da decisão de facto, bem como as razões da discordância invocadas pela impugnante.
No caso, a recorrente cumpriu minimamente os ónus previstos no artigo 640.º do CPC, pelo que se passa à reapreciação da decisão de facto impugnada.

Facto provado 6 («Apesar disso é prática habitual da Ré, como da maioria dos médicos veterinários, administrar a Ivermectina, por via endovenosa, a equídeos, aquando da sua desparasitação, a qual é efectuada na mesma data que a vacinação.».
Defende a impugnante que deve ser excluído o segmento sublinhado dada a insuficiência dos meios de prova sobre essa factualidade, uma vez que a testemunha BB foi a única que mencionou tal prática por parte dos médicos veterinários e a testemunha CC, também médica veterinária, na sua prática não trata de cavalos.
A impugnação merece deferimento, não só pelas razões invocadas pela recorrente, mas também porque o segmento em causa tem natureza conclusiva.
Nestes termos, altera-se a redação do ponto 6 dos factos provados que passa a ter a seguinte redação:
6. Apesar disso é prática habitual da Ré administrar a Ivermectina, por via endovenosa, a equídeos, aquando da sua desparasitação, a qual é efetuada na mesma data que a vacinação.

Facto provado 7 («7. Foi a médica veterinária, BB, que, naquela data, escolheu injectar o medicamento Ivermectina, aquando da desparasitação do equídeo “Nome 1”.»
Pretende a recorrente que seja alterada a redação deste facto para: «Foi a médica veterinária, BB, que, naquela data, de acordo com a sua independência técnica e protocolos estabelecidos na R., decidiu injectar o medicamento Ivermectina aquando da desparasitação do equídeo «Nome 1».»
Invoca para o efeito o depoimento da referida médica veterinária que declarou que seguiu o protocolo existente na Ré.
Auditado o depoimento, verifica-se que efetivamente a testemunha afirmou que seguiu o protocolo e que o mesmo constaria de atas de reunião realizadas na Ré pelos gerentes da mesma e médicos veterinários que ali trabalham.
Não tendo essas atas/protocolos sido juntos aos autos, nem outra prova capaz de demonstrar esse facto, a prova produzida revela-se manifestamente insuficiente para dar como provado se a decisão de administrar o desparasitante foi da lavra da médica veterinária (como parece apontar a redação do ponto 8) ou se se limitou a seguir o protocolo, como pretende a recorrente.
Nestes termos, apenas se provou que foi a referida médica que injetou o desparasitante, o que já consta do ponto 3 dos factos provados (não impugnado).
Nestes termos, decide-se eliminar o ponto facto 7. dos factos provados.

Facto provado 8 («8. A égua “Nome 1” foi sempre desparasitada dessa forma, pelo menos, desde 2010, sem ter existido qualquer complicação ou reação adversa.»)
Pretende a recorrente que seja alterada a redação deste facto como propõe na Conclusão 23, alegando que a única prova documental sobre a administração de desparasitante consta do documento da DGAV e o depoimento da testemunha DD (em tempos, tratou de animal), ou seja, que a única prova objetiva (documental) apenas revela a existência de duas desparasitações com Ivermectina injetável, sem complicação ou reação adversa.
Analisada a prova invocada, também assiste razão à recorrente.
O único meio de prova fiável sobre a administração de desparasitante consta do referido documento e se outras administrações ocorreram, a falta de registo não permite confirmar a administração nem a respetiva data. Consequentemente, por essa razão, o depoimento da testemunha DD não permite dar como provado outras datas.
Nestes termos, procede a impugnação, alterando-se a redação do ponto 8 dos factos provados que passa a ser a seguinte:
8. A égua “Nome 1”, em 14-05-2018 e 28-08-2019, foi desparasitada com Ivermectina injetável, não tendo existido qualquer complicação ou reação adversa.

Facto provado 12 («12. Sendo do conhecimento da Ré, bem como da médica veterinária, BB, que a administração por via endovenosa da Ivermectina é susceptível de provocar um “choque anafilático” em equinos, como aliás, sucede com a administração de qualquer outro medicamento.»)
Pretende a recorrente que seja alterada a redação deste facto como propõe na Conclusão 28, ou seja, que elimina a parte supra sublinhada.
Para o efeito alega que o segmento em causa é genérico e não assenta em meio de prova idóneo como seja a prova pericial sobre os efeitos adversos de qualquer medicamento.
Analisando a impugnação, é manifesto que a mesma procede, pois trata-se de uma afirmação genérica por não se reportar apenas a determinados medicamentos mas a um universo, não descrito, de medicamentos, para além da afirmação não ter qualquer sustentação probatória.
Nestes termos, altera-se a redação do ponto 12 dos factos provados, que passa a ser a seguinte:
12. Sendo do conhecimento da Ré, bem como da médica veterinária, BB, que a administração por via endovenosa da Ivermectina é suscetível de provocar um “choque anafilático” em equinos.

Facto provados 21 e 22 e adição de um facto entre os factos provados 23 e 24
A recorrente questiona a decisão do tribunal a quo ao introduzir na matéria de facto apenas parte do parecer da Ordem dos Médicos Veterinários excluindo que ali se menciona que a administração off-label de um medicamento carece de consentimento informado do dono do animal, ou seja, é necessário explicar-lhe os motivos que justificam a administração naqueles termos, os riscos associados, devendo respeitar a vontade do cuidador do animal.
Na análise da impugnação, verifica-se que o teor dos pontos 21 a 23 dos factos provados é retirada do referido parecer.
Ora, os pareceres técnicos correspondem a prova pericial e têm como finalidade, como prescreve o artigo 388.º do CPC, a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.
Porém, não suprem a falta de alegação dos factos correspondentes a que se destina a prova. Por conseguinte, o conteúdo de um parecer pericial apenas releva se os correspondentes factos tiverem sido alegados e forem controvertidos nos autos.
Assim, e numa visão rigorosa dos factos a considerar em face da alegação das partes, os pontos 19 a 23 deveriam ser excluídos da decisão de facto porque todos eles assentam no teor do referido parecer da Ordem dos Médicos Veterinários.
Sucede, porém, que após o julgamento foi proferido o despacho de 18-02-2024, que foi notificado às partes para as mesmas se pronunciarem nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), in fine, do CPC, constando do elenco dos factos alinhados nesse despacho os pontos 19 a 23.
O preceito supra citado permite a introdução de factos não alegados pelas partes que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes tenham alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a oportunidade de se pronunciar.
No caso, os factos complementares ou concretizadores de que o tribunal se socorreu reportam-se a explicitar o que é uma administração off-label de um medicamento, em que termos e circunstâncias um veterinário pode decidir pela administração off-label e constatação de que a administração nesses termos comporta riscos para o animal.
Tudo o mais que consta do referido parecer e que foi transcrito acriticamente para os referidos pontos de factos, extravasa a previsão do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), in fine, do CPC, por se situar já num patamar conclusivo.
Como também extravasaria a mesma previsão normativa acrescentar o pretendido pela recorrente por ter natureza conclusiva e até entrar no foro jurídico, ou seja, se o consentimento informado permite desresponsabilizar o médico que administra um medicamente off-label.
Nestes termos, não se justifica o aditamento pretendido por ter natureza conclusiva.
E por identidade de razão, devem eliminar-se dos pontos 19 a 23 todos os segmentos conclusivos.
O teor dos 19 e 20 dos factos provados tem natureza factual, pelo que se mantêm no elenco dos factos provados.
O teor do ponto 21 dos factos provados tem natureza conclusiva, pois apenas expressa o critério que, no entender do parecer, deve presidir à administração off-label; mas trata-se, naturalmente, de uma opinião ainda que possa assentar no cumprimento de deveres deontológicos, pelo que tem de ser eliminado do elenco dos factos provados.
O teor dos pontos 22 e 23, na parte estritamente factual, em nada acrescentam ao que já consta dos pontos 19 e 20, ou seja, o que significa a administração off-label (cfr. pontos 19 e 20) e que a mesma comporta riscos (pontos 10 e 11).
Nestes termos, em apreciação da impugnação, eliminam-se os pontos 21, 22 e 23 dos factos provados.

Aditamento de factualidade a inserir entre os pontos 24 e 25 dos factos provados
Alega a recorrente que deve ser acrescentada a resposta dada pela Ré à carta referida no ponto 24 dos factos provados no sentido de, através do doc. 6 apresentado nos autos em 23.11.2023 (ref.ª 2419535), ter sido proposta a resolução extrajudicial do litígio mediante a entrega pela Ré à Autora de um equino desbastado, que foi rejeitada por a Autora naquela data já ter adquirido um novo cavalo.
Na apreciação da impugnação é mister referir que as negociações malogradas e extrajudiciais das partes em nada influenciam a decisão da causa.
Por essa razão, a resposta/proposta e razão da não aceitação em nada interfere com a mesma, afigurando-se inútil a sua inclusão na decisão de facto , tratando-se de ato inútil, logo proibido (cfr. artigo 130.º do CPC).
Já a notificação que consta do ponto 25 dos factos provados reporta-se à data a partir da qual a Autora notificou a Ré para pagar os danos invocados nesta ação, o que, em termos abstratos, poderá influir no tempo em incumprimento.
Nestes termos, improcede a impugnação da decisão de facto quanto ao requerido aditamento.

Facto provado 32 (32. O cavalo da A. tinha uma idade não concretamente apurada, mas compreendida entre 25 a 32 anos de idade.»)
A recorrente pretende que se dê como provado que tinha 25 anos de idade, invocando o depoimento da testemunha EE que relacionou a data do seu casamento com o nascimento da égua.
Analisada a prova, não procede a impugnação.
O depoimento da referida testemunha oscilou entre dizer que a égua tinha nascido em 1991, pelo que teria 29 anos (o que confirmaria os depoimentos de BB - que mencionou duas datas: 1991 e 2000, diferindo as mesmas em função da data da introdução do chip de identificação do animal - e DD - que disse ter o animal entre 29 e 30 anos) e 25 anos por alusão à data do casamento da testemunha.
O certo é que não ficou completamente esclarecida a idade do animal, pelo que a redação do ponto 32 espelha a prova produzida, pelo que improcede a impugnação quanto a este ponto.

Facto provado 33 («33. A médica veterinária, BB, após a ocorrência, acionou o seu seguro de responsabilidade civil profissional, o qual, a 14/10/2020, declinou qualquer responsabilidade em virtude da ausência de necropsia.»)
Pretende a recorrente que seja alterada a redação deste ponto de facto na parte supra sublinhada e que se adite, antes, «em virtude de a médica veterinária ter administrado um medicamento off-label que sabia poder provocar um choque anafilático no equino.»
Invoca para o efeito erro de julgamento por o tribunal a quo não ter considerado os docs. 1 e 2 juntos aos autos em 23-11-2023 (ref.ª 2419535).
Analisada a impugnação, o que se verifica é que o facto em causa é irrelevante para a decisão a proferir, uma vez que apenas se reporta ao motivo que a seguradora entendeu considerar para excluir a cobertura do seguro. Num primeiro momento, a falta de necropsia e, após reclamação da segurada, a existência de dolo por ter administrado um medicamento off-label que sabia poder provocar um choque anafilático.
Ora, não é com base na avaliação que a seguradora faz dos factos que esta ação vai ser julgada, pelo que o ponto 33 revela-se indiferente para o desfecho desta causa, pelo que nem sequer deve constar do elenco dos factos provados atento o disposto no artigo 130.º do CPC.
Nestes termos, decide-se eliminar dos factos provados o ponto 33.

Alínea A dos factos não provados («A. O equídeo “Nome 1” foi vítima de um choque anafiláctico irreversível e fatal causado pela administração da Ivermectina endovenosa, sendo este um dos efeitos secundários do referido medicamento.»)
Alínea E dos factos não provados («A égua “Nome 1” era um animal muito saudável.»)
Pretende a recorrente que estes factos passe a constar dos factos provados invocando para o efeito os seguintes meios de prova:
- o Relatório Clínico que a médica que administrou o medicamento;
- o depoimento testemunha da mesma;
- A decisão do seguro para excluir a cobertura do sinistro;
- O Parecer da Ordem dos Veterinários;
- O depoimento da testemunha CC, médica veterinária.
Na fundamentação da decisão de facto sobre esta matéria consta o seguinte:
«Quanto às alíneas A e E, a decisão adveio do facto de não ter sido realizada necropsia ao animal, nem efectuado qualquer exame médico para além de observação visual, não sendo assim, possível, a nenhuma das testemunhas afirmar, com credibilidade, a causa da morte do cavalo, ou o seu estado de saúde antes do seu decesso, especialmente tenho em conta a sua idade bastante avançada.
Note-se que, para além da médica que administrou a vacina e o desparasitante, e que tem interesse directo e pessoal no desfecho deste processo, mais nenhuma testemunha, com experiência em equinos –, o que, desde logo, exclui a prima da A. –, foi trazida ao processo, não foi junta a bula do desparasitante (apenas da vacina), nem foi requerida a produção de prova pericial.»
Auditados os meios de prova, e salvo o devido respeito, não se pode concordar com o modo como a 1.ª instância formou a sua convicção, tendo-se formada convicção diferente.
A desconsideração do depoimento da testemunha BB, médica que administrou o desparasitante, não se afigura adequado, uma vez que o mesmo, ainda que prestado em data em que a testemunha mantém um litígio com a Ré, vem confirmar factos anteriores a esse litígio e que constam do Relatório Clínico que subscreveu em 16-09-2020, pouco tempo depois dos factos em apreciação.
Ora, esta testemunha tem conhecimento direito dos factos e conhecimentos médicos que permitem, com elevada plausibilidade, considerar que o decesso do animal se deveu a «choque anafilático agudo, irreversível e fatal» verificado imediatamente após a administração do desparasitante Ivermectina por via endovenosa a par da vacinação com Equilis Prequenza Te, como é referido no Relatório Clínico que subscreveu.
Por outro lado, e de acordo com o Parecer da Ordem dos Médicos junto aos autos, a administração injetável do referido desparasitante a equídeos não é aconselhável e em Portugal é aconselhada a administração oral. Também consta deste Parecer que a administração off-label comporta riscos acrescidos para a segurança dos animais a tratar.
A falta de realização de necropsia não invalida esta factualidade, ou seja, a administração do desparasitante off-label e a ocorrência da morte quase imediatamente após a administração (cfr. facto provado 4 onde consta que a morte ocorreu «alguns minutos depois da administração»).
É certo que também foi administrada uma vacina imediatamente a seguir ao desparasitante.
Porém, não ficou provada qualquer interferência nociva entre os dois medicamentos.
De qualquer modo, a existir, também em nada alterava o facto do animal ter falecido em consequência do ato médico veterinário realizado.
No que concerne à idade do animal, não ficou provado que o desparasitante não deva ser administrado a animais com a idade da égua «Nome 1», nem que a mesma tivesse um estado de saúde que desaconselhava a administração do mesmo.
Em relação ao estado de saúde do animal, também consta do referido Relatório Clínico a observação que no ato foi feita e do mesmo resulta que o equídeo estava saudável e em condições de lhe ser ministrado o desparasitante e a vacinação.
Em face do exposto, procede a impugnação, pelo que se eliminam dos factos não provados as alíneas A e E que passam a integrar a matéria de facto provada.

Alínea D dos factos não provados
(«C. No entanto, a Ré só passou a fazer a desparasitação da égua “Nome 1” a partir de 2015.«)
Alega a recorrente que esta alínea não faz qualquer sentido, devendo ser retirada dos factos não provados.
A impugnação não procede, porquanto de um facto não provado nada se retira, nem de positivo, nem de negativo.
Retirar a alínea em causa, por si só, é pura inutilidade, logo tal ato não deve ser praticado (artigo 130.º do CPC).
Nestes termos improcede a impugnação quanto à alínea D dos factos não provados.

2. Dos pressupostos da indemnização civil decorrente da morte do animal
Estabilizado o quadro fático após a reapreciação da impugnação da decisão de facto, parcialmente procedente, importa analisar se a Ré deve ser responsabilizada pela morte da égua «Nome 1» perante a Autora, sua dona e cuidadora.
Vejamos, então.
Encontra-se adquirido para nos autos, sem dissídio das partes, que entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato de prestação de serviço médico-veterinários a que se aplica o disposto no artigo 1154.º do Código Civil (CC), não se encontrando sujeito a forma especial (artigo 219.º do CC).
A atividade médico veterinária não difere da atividade médica em geral no que concerne à distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultado.
Através da obrigação de meios, o devedor obriga-se a realizar a sua atividade, sem que possa garantir o resultado esperado, embora se obrigue a desenvolver as diligências necessárias a obter o resultado esperado.
Através da obrigação de resultado, o devedor obriga-se não apenas a realizar a sua atividade, mas também, e principalmente, a produzir o resultado esperado pelo credor. Neste tipo de obrigação, o devedor responde pelo incumprimento se o resultado alcançado não for o esperado.
Como é admitido consensualmente, a atividade média é, sobretudo, desenvolvida como constituindo para o devedor uma obrigação de meios.
No caso, a obrigação de meios a que a Ré se obrigou, ainda que praticada através da médica veterinária, Dr.ª BB, que exercia aquela atividade na Ré, consistia na administração de um desparasitante e uma vacina ao equídeo da Autora, a égua «Nome 1».
O que efetivamente aconteceu, cumprindo a Ré, deste modo, a obrigação de meios a que se obrigou.
A questão que se coloca é se no decurso desse cumprimento, considerando o resultado fatal que adveio para o animal, cumpriu essa obrigação de meios de forma esperada e de acordo com a leges artis, acrescendo, no caso, se se verificou a obtenção de consentimento esclarecido por parte da dona do animal.
Tendo a obrigação da Ré sido praticada no âmbito do referido contrato de prestação de serviço, estamos, pois, no âmbito de uma relação contratual e mais concretamente no âmbito da responsabilidade civil contratual.
É também sabido que no âmbito da responsabilidade médica se discute se a responsabilidade do prestador do serviço médico tem natureza contratual ou extracontratual, sendo aceite de forma consensual que, podendo ocorrer as duas, a responsabilidade contratual consome a responsabilidade extracontratual.
Todavia, na responsabilidade médica veterinária a questão não se coloca, porquanto a responsabilidade extracontratual decorrente de ato médico praticado em humanos, encontra-se direcionada, nesses casos, para violação de direitos absolutos reportados a pessoas e, obviamente, não a animais, pelo que a situação em apreço deve ser enquadrada na responsabilidade civil contratual.
Contudo, a existência de obrigação de indemnizar pressupõe, seja na responsabilidade contratual, seja na extracontratual, a verificação dos mesmos pressupostos, ou seja, os previstos no artigo 483.º do CC.
Na obrigação contratual, o facto objetivamente ilícito consiste na inexecução da obrigação; a culpa do agente na produção do facto, presume-se (artigo 799.º, n.º 1, do CC); exigindo-se igualmente a existência de prejuízo para o credor e o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
Atendendo-se a que a obrigação do médico é uma obrigação de meios, sobre ele recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, e portanto sem culpa, se se quiser eximir à sua responsabilidade decorrente de incumprimento. Ou seja, em regra, o que está em causa é a prova que agiu em conformidade com a leges artis, onde se inclui a prova que cumpriu a obrigação de informação e que obteve o consentimento esclarecido sobre o ato praticado.
Assim, o ónus de prova dos pressupostos da responsabilidade civil contratual, ressalvada a presunção de culpa em que há inversão do ónus de prova (artigo 344.º, n.º 1, do CC), impediam sobre a Autora (artigo 342.º, n.º 1, do CC).
No caso sub judice, atenta a alteração da decisão de facto, logrou a Autora cumprir o seu ónus de prova, enquanto a Ré não logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia.
Não há dúvida que a Autora alegou e provou que no âmbito da relação contratual celebrada com a Ré esta violou a sua obrigação contratual, atento o dano produzido. Pretendia a Autora a desparasitação e vacina do equídeo de modo a manter a saúde do animal, e, apesar de tal obrigação ter sido cumprida, o ato veterinário provocou a morte do animal, o que corresponde a um resultado inesperado e indesejável.
A existência de nexo de casualidade entre o ato médico veterinário praticado e a morte ficou estabelecida nos factos provados com a alteração da decisão de facto, porquanto ficou provado que a égua era um animal saudável e que a morte ocorreu por via de um choque anafiláctico irreversível e fatal causado pela administração da Ivermectina endovenosa, sendo este um dos efeitos secundários do referido medicamento.
Resta apurar da culpa do agente que praticou este ato médico e se a presunção de culpa prevista no artigo 799.º do CC se encontra ilidida em face dos factos provados.
A resposta é, sem dúvida, negativa.
Por dois motivos.
Primeiro, porque a administração foi feita off-label, significando tal que o desparasitante foi administrado por via endovenosa quando o medicamento está indicado para ser administrado a equídeos apenas em pasta (por via oral), o que causou um choque anafilático irreversível e fatal, sendo este um dos efeitos secundários do medicamento.
Este modo de atuar evidencia uma violação grosseira das leges artis revelando um comportamento negligente e imprevidente.
Sublinhando-se que a prova revela que a Ré assumia esse tipo de administração offf-label como consta do facto provado 12 (cfr. também facto provado 6), o que evidencia uma violação sistemática e reiterada das regras de prudência e cuidado.
O facto de anteriormente já ter sido administrado o desparasitante por via injetável sem qualquer complicação ou reação adversa (facto provado 8) pode conferir maior confiança a quem administra um medicamento off-label, mas não elimina objetivamente o risco, pois não se pode inferir que nas administrações seguintes não ocorra uma reação adversa.
Segundo, mesma sabendo a Ré e a médica, que administrava o desparasitante ao serviço daquela, que o medicamento apenas estava aprovado para ser administrado por via oral, e que a administração injetável implicava riscos para a vida do animal dado o efeito secundário que poderia verificar-se – choque anafilático irreversível e fatal –, a opção pela administração endovenosa não foi explicada à Autora nem foi colhido o seu consentimento informado para aquela forma de administração (cfr. factos provados 9 a 11).
O que igualmente evidencia uma violação groseira da leges artis revelando um comportamento negligente e imprevidente.
A elisão da presunção de culpa a cargo da Ré exigia que tivesse provado que não ocorreu violação da leges artis e que obteve previamente o consentimento informado por parte da Autora.
Porém, nada disso conseguiu a Ré provar, ou seja, não elidiu a presunção de culpa que sobre si impendia.
Estando provados os demais requisitos da responsabilidade civil contratual, a Ré encontra-se obrigada a indemnizar a Autora, respondendo pelos atos dos seus auxiliares nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC, uma vez que resulta dos factos provados que a médica que administrou o desparasitante o faz enquanto trabalhava para a Ré (facto provado 3).
A autonomia técnica desta profissional não exonera a responsabilidade da Ré considerando que não ficou provado que a mesma tenha agido à revelia da Ré, bem pelo contrário, como ficou demonstrado nos pontos 3, 6, 12, 13, 14 e 15 dos factos provados.
No que concerne à obrigação de indemnização, atento o disposto nos artigos 562.º e 566.º do CC, dada a impossibilidade de restituição in natura, estamos perante uma indemnização por sucedâneo.
O valor peticionado a título de danos patrimoniais cifra-se em €3.250,00, para além dos juros de mora vencidos e vincendos.
Ficou provado no ponto 29 que esse foi o valor despendido pela Autora pela aquisição de outro equídeo para substituir a égua «Nome 1».
Por conseguinte, deve ser esse o valor da correspondente indemnização a esse título.
Também peticionou a Autora uma compensação por danos não patrimoniais no valor de €3.000,00, mais juros de mora vencidos e vincendos.
A regra sobre indemnização por danos não patrimoniais consta do artigo 496.º do CC, sendo indemnizáveis os danos que pela sua relevância mereçam a tutela do direito.
Atualmente na legislação portuguesa, e desde a entrada em vigor da Lei n.º Lei n.º 8/2017, de 03-03 (Estabeleceu um estatuto jurídico dos animais) e demais legislação relacionada com a proteção e bem estar animal, que os animais deixarem de ser considerados «coisas» para serem reconhecidos como seres vivos dotados de sensibilidade (cfr. artigo 201.º-B do CC) e passaram a ser objeto de proteção jurídica contra maus-tratos e atos de crueldade, beneficiando inclusivamente de proteção jurídico-penal.
Tal significa que o dano não patrimonial relacionado com sentimentos por «animais» ou «coisas», os chamados danos de afeição (sentimental loss) que se referem a um sofrimento emocional ou psicológico causado pela perda ou lesão grave de um animal com o qual se mantém uma forte ligação afetiva, ou perda de uma coisa com elevado valor estimativo para o lesado, que outrora justificava o afastamento do arbitramento de indemnizações deste tipo de danos, encontra-se atualmente ultrapassada em relação aos animais.
Neste sentido, em caso de lesão de animal da qual resulte a morte, o artigo 493.º-A, n.º 3, do CC, prevê o ressarcimento de danos não patrimoniais do proprietário; porém, o preceito aplica-se a animais de companhia, o que, evidentemente, excluiu um equídeo.
Todavia, a indemnização por danos não patrimoniais derivados da morte de um animal, nomeadamente causada por negligência médica veterinária, como é o caso, não está à partida excluída, mas depende da prova da existência de prejuízos emocionais e psicológicos que decorrem da ligação emocional entre o proprietário e o animal.
Afigurando-se-nos que não sendo despiciendo nessa aferição levar em conta o tipo de utilização que é dado ao animal. Efetivamente, parece intuitivo que poderá haver uma ligação emocional diferenciada se a utilização do animal for apenas para lazer, ou para competição, ou apenas para exploração em trabalhos rurais ou atividades semelhantes.
No caso dos autos, dos factos provados sob os pontos 25 a 28 não decorre de forma clara que tipo de utilização era dada à égua «Nome 1» (ser montada por adultos e crianças não especifica mais do que a utilização normal deste tipo de animal). Dizer-se que tinha «valor estimativo para a A. e sua família» e que a perda foi um «choque» que causou «dor» e que se verificou uma «grande perda que tem sido difícil de superar», são expressões demasiados genéricas para delas se poder retirar algo de mais concreto no que concerne à ligação emocional existente entre Autora e o animal que permita evidenciar a existência de danos graves que justifiquem o arbitramento de uma compensação por danos não patrimoniais.
Deste modo, e salvo melhor opinião, os factos provados não permitem fixar uma indemnização ao abrigo do artigo 496.º do CC, improcedendo nesta parte a apelação.

Dado o recíproco decaimento, as custas ficam a cargo da apelante e da apelada, na proporção do vencimento (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença na parte em que absolveu a Ré do pedido de pagamento de danos patrimoniais à Autora, fixando-se os mesmos em €3.250.00 (Três mil, duzentos e cinquenta euros), acrescidos de juros, a taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até efetivo e integral pagamento, mantendo-se a sentença na parte restante.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 19-12-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Ricardo Miranda Peixoto (1.º Adjunto)
José António Moita (2.º Adjunto)
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[1] A itálico são assinalados os pontos ou segmentos impugnados e à frente de cada um deles, a negrito, a redação após a procedência da impugnação da decisão de facto ou a menção à improcedência, conforme os casos.