INJUNÇÃO
REQUISITOS
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário


1. Não pode fazer uso do requerimento de injunção a requerente com pretensão que se insere no domínio da responsabilidade civil contratual.
2. A violação dos requisitos substantivos que possibilitam a utilização da injunção constitui excepção dilatória inominada que inquina todo o processo, obstando a que se possa conhecer do mérito da causa.
3. Sendo a excepção de conhecimento oficioso, pode e deve ser conhecida pelo Tribunal de recurso ainda que o Tribunal recorrido se não tenha pronunciado sobre essa questão.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Apelação n.º 34614/22.3YIPRT.E1
(1.ª Secção)
***

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:
I.A.
“EMP01... Unipessoal, Lda.”, requerida na injunção que contra ela havia sido instaurada por “EMP02... S.L.”, interpôs recurso da decisão final proferida pelo Juízo Local Cível Local 1, do Tribunal Judicial da Comarca Local 2, que julgou a pretensão da requerente totalmente procedente.

Na injunção, a requerente “EMP02... S.L.” pediu a notificação da requerida no sentido de lhe ser paga a quantia de 7.826,42€ e, para tanto, alegou o seguinte:
“A Requerente é uma sociedade comercial de direito espanhol, que se dedica à atividade de transporte rodoviário de mercadorias.
No âmbito do desenvolvimento da sua atividade, a Requerente solicitou a realização de diversos serviços de transporte à Requerida, empresa esta também afeta à atividade de transporte rodoviário de mercadorias.
Porém, da prestação de serviços de transporte pela Requerida à Requerente, resultaram para esta os prejuízos e encargos constantes das faturas que ora se discriminam e que a Requerida não lhe pagou:
- Fatura n.º 0351-21, emitida em 25/09/2021 e com vencimento em 30/10/2021, no valor de €1.200,00;
- Fatura n.º 0370-21, emitida em 30/09/2021 e com vencimento em 30/11/2021, no valor de €250,00;
- Fatura n.º 0503-21, emitida em 01/12/2021 e com vencimento em 01/01/2022, no valor de €6.124,00.
A Requerida foi devidamente informada dos fundamentos que levaram à emissão das referidas faturas, tendo concordado com a sua emissão e tendo-se comprometido, através do seu representante legal, ao pagamento das mesmas, o que não veio a ocorrer. Sobre o capital em dívida, acrescem juros de mora à taxa legal comercial, que se contabilizam em €150,42.”

Uma vez que a requerida apresentou oposição, foi a injunção distribuída junto do Tribunal a quo que, por sua vez, despachou no sentido de ser a requerente convidada a aperfeiçoar o seu requerimento.

Apresentado o aperfeiçoamento, foi imediatamente designada data para realização do julgamento, findo o qual foi proferida a sentença em recurso.
I.B.
A requerida/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“1. A prova testemunhal produzida não foi devidamente valorada, pelo que se impõe a reapreciação da prova gravada;
2. O facto considerado provado sob o n.º 3 da douta sentença face à prova testemunhal produzida devia ter sido considerado como não provado;
3. No que respeita à fatura n.º 0351-21, emitida em 25/09/2021 e com vencimento em 30/10/2021, no valor de € 1.200,00, “Viaje em vacío com coble chófer para carga em Local 3”, uma vez que foi a Apelada a finalizar o serviço, visto que o veículo de serviço da Apelante avariou, foi esta quem recebeu a retribuição do serviço prestado;
4. O depoimento da testemunha AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos), a ter sido devidamente valorado, permitiria ter dado como não provado que a Apelante tenha assumido a responsabilidade dos custos que a Apelante tenha suportado para substituir o camião da Apelante;
5. Relativamente à fatura n.º 0503-21, emitida em 01/12/2021 e com vencimento em 01/01/2022, no valor de € 6.124,00, referente à “(...) congelación de mercancia por negligencia del chófer.” respeita à mercadoria entregue em 19 de agosto de 2021, sem que tenha existido qualquer reclamação, e por isso se estranha que apenas tenha sido emitida 4 meses depois com os supostos prejuízos;
6. Tanto é que, após essa data, a Apelada encetou conversações com a Apelante com o propósito de contratar os seus serviços (o que veio a acontecer!);
7. Os serviços de transporte efetuados pela Apelante foram sempre prestados sem qualquer tipo de reclamação por parte da Apelada;
8. Os depoimentos das testemunhas BB, (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 12 de maio de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com início às 11:36:27 horas e fim às 12:13:27 horas) e AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos), a terem sido valorados, permitiriam dar como não provado que a Apelada tenha sofrido um prejuízo em resultado de um erro do motorista da Apelante;
9. A douta sentença considerou como provado sob o facto n.º 4 da douta sentença que, face à prova testemunhal produzida, devia ter sido considerado como não provado, pelo que foi incorretamente julgado;
10. É falso que a Apelante tenha sido informada pela Apelada dos fundamentos que levaram à emissão das referidas faturas, e muito menos que se tenha comprometido ao pagamento das mesmas;
11. A Apelante só teve conhecimento do alegado desagrado da Apelada na prestação dos seus serviços, com a consequente emissão das referidas faturas, em janeiro de 2022, quando a fornecedora de gasóleo da Requerida informou que não poderia efetuar mais fornecimentos a crédito, porquanto a seguradora de Crédito (Crédito & Caucion) lhe tinha dado instruções nesse sentido;
12. Isto porque, alegadamente, a Apelante era uma empresa de risco elevado pelo facto de ter uma dívida por pagar à segurada da Crédito & Caucion, a ora Apelada;
13. A verdade é que os serviços a que se referem as supostas faturas em dívidas remontam a agosto e setembro de 2021, sendo que nunca a Apelada (nem até aquela data, nem posteriormente!) enviou faturas que titulassem a referida dívida;
14. Os depoimentos da testemunha AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos) e do legal representante da Ré, CC (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 32 minutos e 41 segundos), a terem sido valorados, permitiria dar como não provado que a Apelante tenha sido informada pela Apelada dos fundamentos que levaram à emissão das referidas faturas e que se tenha comprometido ao pagamento das mesmas;
15. Os factos considerados provados sob os n.ºs 9, 13, 14 e 15 da douta sentença, face à prova testemunhal produzida, deveriam ter sido considerados como não provados;
16. Os serviços de transporte efetuados pela Apelante foram prestados de forma perfeita, nunca tendo havido qualquer reclamação ou imputação de danos por parte da Apelada;
17. Os supostos problemas com os transportes efetuados pela Apelante apenas surgem após interpelação à “EMP03...” para que esta procedesse ao pagamento de uma fatura em dívida;
18. Tanto assim é que, após o serviço que titula a referida fatura, a Apelada solicitou os serviços da Apelante em outubro de 2021;
19. Não se concebe como é que a Apelada, considerando-se lesada pelo serviço deficiente da Apelante, poderia requerer novamente os seus serviços;
20. Efetivamente, a Apelada não sofreu um prejuízo na ordem dos € 6.124,00, como alega.
21. Os depoimentos das testemunhas BB (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 12 de maio de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com início às 11:36:27 horas e fim às 12:13:27 horas), AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos) e do legal representante da Ré, CC (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 32 minutos e 41 segundos), a terem sido valorados, permitiriam dar como não provado que a Apelada tenha sofrido um prejuízo em resultado de um erro do motorista da Apelante;
22. A douta sentença considerou como provado o facto n.º 12 da douta sentença que, face à prova testemunhal produzida, devia ter sido considerado como não provado, pelo que foi incorretamente julgado;
23. Naturalmente, não se pode concordar com a decisão proferida quanto ao facto de se dar por provado que o motorista da Apelante colocou a parte da frente do reboque a 4.º C e a parte de trás a – 2º C;
24. A Apelante apenas fazia o serviço de transporte, sendo propriedade da Apelante o reboque refrigerador;
25. Como tal qualquer irregularidade que o reboque tenha apresentado é da inteira responsabilidade da Apelada, enquanto proprietária;
26. Tratando-se de um reboque frigorífico monotemperatura, as definições da temperatura estão interligadas. Assim, inevitavelmente, a temperatura regulada será a temperatura a final definida, não se apresentando independente;
27. Os depoimentos das testemunhas BB (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 12 de maio de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com início às 11:36:27 horas e fim às 12:13:27 horas) e AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos), a terem sido valorados, permitiriam dar como não provado que que o motorista da Apelante, experiente em reboques frigoríficos, colocou a parte da frente do reboque a 4.º C e a parte de trás a – 2º C;
28. O facto considerado provados sob o n.º 18 da douta sentença, face à prova testemunhal produzida, deveria ter sido considerado como não provado;
29. Não corresponde à verdade que a Apelante tenha sido esclarecida da ocorrência cuja responsabilidade lhe é imputada, e muito menos que se tenha comprometido ao pagamento das mesmas;
30. Ao dar como provado o facto suprarreferido, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo violou o disposto no artigo 342.º do Código Civil;
31. O depoimento do legal representante da Apelante, CC, (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 32 minutos e 41 segundos) a ter sido devidamente valorado, permitiria ter dado como não provado que a Apelante foi desde logo informada, na pessoa do seu legal representante, de todo o sucedido por WhatsApp, tendo este sempre assumido total responsabilidade pelos prejuízos causados;
32. A douta sentença considerou como provados os factos n.º 27 e 28 da douta sentença que, face à prova testemunhal produzida, devia ter sido considerado como não provado, pelo que foi incorretamente julgado;
33. Uma vez o serviço não finalizado pela Apelante, é por demais evidente que esta não pode ter recebido qualquer quantia referente ao mesmo;
34. Tendo sido a Apelada a finalizar o serviço, em virtude de o veículo da Apelante ter avariado, foi esta exclusivamente quem recebeu a retribuição do serviço prestado;
35. Dúvidas houvesse, era a Apelada quem pagava à Apelante pelos serviços prestados, pelo que, uma vez não realizado o serviço, nada recebeu;
36. Nunca poderia a Apelante ter assumido a responsabilidade pelos custos quando, na verdade, nada auferiu, não tendo qualquer montante a ressarcir à Apelada;
37. Os depoimentos da testemunha AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos) e do legal representante da Ré, CC (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 32 minutos e 41 segundos), a terem sido valorados, permitiria dar como não provado que a Apelada tenha assumido a responsabilidade dos custos ocasionados à Apelada pelo incidente;
38. Os factos considerados provados sob os n.ºs 38 e 41 da douta sentença, face à prova testemunhal produzida, deveriam ter sido considerados como não provados;
39. No seguimento do pedido do gestor de tráfego da Apelada, a Apelante prestou o serviço à empresa “EMP03..., Lda.”, tendo, posteriormente, emitido fatura à própria, conforme lhe havia solicitado;
40. Pelo que, em momento algum a Apelante, na pessoa do seu representante legal, comprometeu-se a anular a referida fatura realizando acertos de contas pendentes, porquanto nunca a Apelante teve conhecimento ou reconheceu qualquer dívida para com a Apelada;
41. Os depoimentos da testemunha AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos) e do legal representante da Ré, CC (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 32 minutos e 41 segundos), a terem sido valorados, permitiria dar como não provado que a Apelada e a Apelante tenham acordados acertos de contas entre dívidas;
42. A douta sentença considerou como não provado o facto n.º I da douta sentença que, face à prova testemunhal produzida, devia ter sido considerado como provado, pelo que foi incorretamente julgado;
43. No âmbito do desenvolvimento da sua atividade, a Apelada solicitou a realização de serviços de transporte à Apelante, que foram cabalmente cumpridos por esta;
44. A matéria revidenda respeita aos serviços prestados entre agosto e setembro de 2021.
45. Acontece que, em 26 de outubro de 2021 a Apelada entregou à Apelante quatro pagarés para o pagamento da dívida existente à data, no valor toal de € 26.845,60, sendo que só em 5 de dezembro de 2021 é que a Apelada pagou as faturas em dívida à Apelante;
46. Até essa data, a Apelante nunca apresentou qualquer reclamação referente aos serviços de transporte efetuados pela Apelante;
47. Não só a Apelada não tinha qualquer reclamação do trabalho desempenhado pela Apalante como, em 14 de outubro de 2021, o gestor de tráfego da Apelada solicitou à Apelada que prestasse um serviço urgente de marisco vivo para a País 1;
48. Uma vez mais não se concebe como é que uma empresa que tinha aparentemente diversas reclamações e prejuízos provocados pela Apelante possa, a posteriori, vir contratar os seus serviços;
49. Uma vez que a Apelada ainda devia o montante de € 26.845,60, a Apelante recusou o serviço, vindo posteriormente aceitar a prestação do mesmo a outra empresa (portuguesa) do grupo, denominada “EMP03..., Lda.”, que deveria pagar o serviço;
50. A “EMP03..., Lda.”, não pagou o serviço, obrigando a Apelante à sua interpelação para pagamento, por carta datada de 11 de janeiro de 2022;
51. Como referido, só após a EMP03... ter recebido a referida carta de interpelação que lhe foi remetida é que começaram a surgir os supostos problemas com os transportes efetuados pela Apelante à Apelada (não antes!);
52. O depoimento da testemunha AA (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos), a ter sido devidamente valorado, permitiria dar como provado que até 5 de dezembro de 2021 a Apelada não apresentou qualquer reclamação referente aos serviços prestados pela Apelante;
53. Por fim, a douta sentença considerou como não provado o facto n.º II da douta sentença que, face à prova testemunhal produzida, devia ter sido considerado como provado, pelo que foi incorretamente julgado;
54. Conforme aludido, porque, alegadamente, a Apelante era uma empresa de risco elevado pelo facto de ter uma dívida por pagar à segurada da Crédito & Caucion, a ora Apelada, no dia 12 de janeiro de 2022, a empresa AS 24, fornecedora de gasóleo da Requerida informou a Apelante que não poderia efetuar mais fornecimentos a crédito;
55. Só pós diversos contactos com a Crédito & Caucion, é que a Apelante teve conhecimento da dívida que lhe vinha a ser imputada (referentes aos serviços prestados entre agosto e setembro de 2021), porquanto nunca a Apelada (nem até aquela data, nem posteriormente!) enviou faturas que titulassem a suposta dívida;
56. Porquanto os advogados desta entidade remeteram à Apelante, por email datado de 22 de janeiro de 2022, os documentos que supostamente titulavam a dívida, no valor total de € 7.574,00;
57. Os depoimentos da testemunha AA prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 1 hora, 16 minutos e 9 segundos) e do legal representante da Ré, CC (prestado na audiência de discussão e julgamento realizada em 07 de junho de 2023, gravado no sistema Habilus Media Studio, com a duração de 32 minutos e 41 segundos), a terem sido valorados, permitiria dar como provado que só em 22 de janeiro de 2022 tiveram conhecimento das referidas faturas.
58. A douta sentença viola o disposto nos artigos 342.º e ss. do Código Civil.”
I.C.
A requerente/apelada veio apresentar contra-alegações onde defende a manutenção da decisão recorrida.
I.D.
O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo, como sendo de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.

Já neste Tribunal da Relação foi proferido despacho (23/11/2024) a convidar as partes para se pronunciarem sobre uma questão prévia não debatida nos autos e relativa à eventual falta de verificação das condições de natureza substantiva que permitem o uso do procedimento de injunção.

A requerente/recorrida pronunciou-se (requerimento de 2/12/2024, referência Citius 50643494) e terminou concluindo que: “jamais pode proceder a absolvição da recorrente da instância nos termos em que vem suscitado no despacho datado de 25/11/2024 do Tribunal da Relação de Évora”. Para tanto, em suma, diz que não tem o Tribunal da Relação competência para se pronunciar sobre algo que não consta do recurso da recorrente, sob pena de violação do princípio do dispositivo.

A requerida/recorrente pronunciou-se (requerimento de 5/12/2024, referência Citius 50692357) no sentido de que se trata de uma exceção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do n.º 2 do artigo 576.º e artigo 577.º, ambos do Código de Processo Civil.

Após os vistos, cumpre decidir.


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II. QUESTÕES A DECIDIR:
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).

No caso impõe-se apreciar a questão prévia da falta de verificação das condições de natureza substantiva que permitem o uso do procedimento de injunção e, sobretudo, a possibilidade do seu conhecimento oficioso.

Caso se verifique existirem tais condições ou não ser tal questão de conhecimento oficioso impõe-se, então, apreciar a impugnação da decisão de facto e a verificação do eventual erro de julgamento que levou à condenação da requerida/recorrente.


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III. QUESTÃO PRÉVIA:
Decorre do artigo 7.º do Regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª Instância (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, com as suas sucessivas alterações, a última das quais pela Lei 117/2019, de 13 de Setembro) que se considera injunção “a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro”.

O artigo 1.º do diploma preambular dispõe que se trata do “regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15 000”.

Por seu turno, do artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, resulta sem margem para grandes dúvidas que tal diploma se aplica “a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais”. São expressamente excluídos do âmbito de aplicação desse diploma (que visou estabelecer medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais) os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil (cf. artigo 2.º, n.º 2, alínea c), do referido diploma).

Ora, como se verifica da leitura do requerimento de injunção que foi apresentado pela requerente/recorrida, a mesma não pretendeu exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de um contrato nem a remuneração de uma transacção comercial, mas apenas exigir a responsabilização da requerida (e ora recorrente) pelo incumprimento do contrato (ou cumprimento defeituoso). Nas suas palavras, invocou a requerente/recorrida que “da prestação de serviços de transporte pela Requerida à Requerente, resultaram para esta os prejuízos e encargos”, situando-se a sua pretensão no domínio da responsabilidade civil contratual.

Como se alertou oportunamente, tem sido entendido pela jurisprudência maioritária que, quando não se verifiquem as condições de natureza substantiva que permitem o uso do procedimento de injunção – versar exclusivamente sobre deveres principais de prestação em cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato –, nem o seu valor seja superior à alçada da Relação, o processo torna-se inaproveitável e a absolvição da instância faz terminar a acção pela procedência da excepção dilatória inominada de uso indevido/inadequado da providência de injunção.

Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/02/2021, (processo n.º 52149/19.0YIPRT.E1[[1]]): “A pretensão que pode ser exercida no processo de injunção é apenas aquela que se baseia em relações contratuais, cujo objeto da prestação seja diretamente referido a uma determinada quantidade monetária, ou seja, obrigações pecuniárias que tenham como fonte direta um contrato e não obrigações que tenham como origem outra fonte, nomeadamente, dívida derivada de responsabilidade civil”.

No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/05/2021 (processo n.º 12191/20.0YIPRT.E1[[2]]) decidiu-se que: “Se o procedimento de injunção for usado fora das hipóteses em que a lei o admite, verifica-se uma excepção dilatória inominada, determinante da absolvição do réu da instância”.

No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12/01/2023 (processo n.º 129/22.4T8ABF.E1[[3]]) decidiu-se que:

“I. É de excluir do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 269/98 de 1 de Setembro, o pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias que não emerjam diretamente do contrato, que não estão no mesmo expressamente fixadas e definidas, mas resultem antes do seu incumprimento culposo, da sua denúncia não atempada, ou de qualquer outra causa que, embora fundada no contrato, não se cinja à exigência do cumprimento deste, mas outrossim à verificação do seu incumprimento, da legitimidade da sua resolução, da intempestividade da sua denúncia etc.

II. Tais procedimentos com a linearidade de tramitação prevista no diploma só são compagináveis quando os pressupostos que presidiram à criação destes expedientes céleres e simples de cobrança de dívidas se verifiquem efectivamente.

III. O uso indevido e inadequado dos procedimentos previstos no mesmo diploma consubstancia uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição do Réu da instância.”

Dos fundamentos deste último retira-se, ainda, que: “o conceito de obrigação pecuniária aludido no diploma citado conexiona-se com o pedido de cumprimento da prestação convencionada contratualmente e já não quando tal pedido se funde, ou tenha como fonte o instituto da responsabilidade civil contratual , i.e. quando se pretenda , por exemplo, a reintegração do património em consequência do incumprimento de uma obrigação contratualmente ajustada. De igual sorte é de excluir da sua aplicação o cumprimento de obrigações pecuniárias que não emerjam diretamente do contrato, que não estão no mesmo expressamente fixadas e definidas, mas resultem antes do seu incumprimento culposo, da sua denúncia não atempada, ou de qualquer outra causa que, embora fundada no contrato, não se cinja à exigência do cumprimento deste, mas outrossim à verificação do seu incumprimento, da legitimidade da sua resolução, da intempestividade da sua denúncia etc. Tais procedimentos com a linearidade de tramitação prevista no diploma só são compagináveis quando os pressupostos que presidiram à criação destes expedientes céleres e simples de cobrança de dívidas se verifiquem efectivamente”.

Mais recentemente, no Acórdão desta Relação de 21/11/2024 (processo n.º 14700/23.3YIPRT.E1[[4]]) decidiu-se que: “A questão tem merecido a atenção dos nossos tribunais superiores, vindo a ganhar peso o entendimento de que quando se não verifiquem as condições de natureza substantiva que permitem o uso do procedimento de injunção – versar exclusivamente deveres principais de prestação em cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato -, nem o seu valor seja superior à alçada da Relação, o processo torna-se inaproveitável e a absolvição da instância faz terminar a acção pela procedência da excepção dilatória inominada de uso indevido / inadequado da providência de injunção. Afastam, por isso, a aplicação a tais casos, do regime da excepção do erro na forma do processo, previsto no n.º 1 do artigo 193º do CPC, na medida em que esta “…importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei”, tendo como único limite ao aproveitamento, resultar deste uma diminuição de garantias do réu (cfr. n.º 2).”.

Quando não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização (as condições de natureza substantiva que a lei impõe para que seja decretada a injunção), não se permite qualquer adequação processual pois, caso contrário, estava encontrado o meio para, ilegitimamente, se tentar obter título executivo e para se defraudarem as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção.

Concluindo: com excepção dos casos em que o procedimento se transmute numa acção de processo comum por dispor de valor superior à alçada do Tribunal da Relação (já que, nesse caso – que não se verifica nos autos, dado o valor do pedido –, passamos a estar perante um processo comum e não um processo especial[[5]]), a violação dos requisitos substantivos que possibilitam a utilização da injunção constitui excepção dilatória inominada que inquina todo o processo, obstando a que se possa conhecer do mérito da causa, com a necessária absolvição da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, todos do Código de Processo Civil.

De resto, face à tomada de posição das partes já na fase de recurso, não existe qualquer divergência de entendimento nesse ponto.

A requerente/recorrida, no entanto, apenas vem invocar que se trata de excepção que este Tribunal de recurso não poderia conhecer.

Ora, existe unanimidade na jurisprudência, como se retira, por exemplo, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/01/2024 (processo nº 3547/17.6T8LLE-B.E1-A.S1[[6]]), no sentido de que os recursos apenas servem “à reapreciação ou reponderação da decisão de questões oportunamente suscitadas, salvo quando se trate de questões de conhecimento oficioso”.

As excepções dilatórias, quer elas sejam nominadas ou inominadas, conforme decorre do disposto no artigo 578.º do Código de Processo Civil são, em regra, de conhecimento oficioso (regra que apenas comporta os desvios previstos na lei e que, no caso, não têm aplicação).

Sendo a excepção em causa de conhecimento oficioso, pode e deve ser conhecida pelo Tribunal de recurso ainda que o Tribunal recorrido se não tenha pronunciado sobre essa questão.

Como ensina Abrantes Geraldes[[7]] “a unicidade da instância que se inicia com a propositura da ação leva a concluir que a persistência da falta de certos pressupostos processuais na fase de recurso ou o surgimento superveniente de outras faltas são questões a que o tribunal de recurso não deve ficar alheio”.

A procedência desta questão prévia (que, de forma inevitável, leva à procedência do recurso no sentido da revogação da decisão recorrida) prejudica, naturalmente, o conhecimento das demais questões que se colocavam à apreciação deste Tribunal.


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As custas do presente recurso deverão ficar a cargo da requerente/apelada, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, por ter ficado totalmente vencida.

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IV. DECISÃO:
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em conformidade, revogando-se a decisão recorrida, absolve-se a requerida/apelante da instância.

Condena-se a requerente/apelada nas custas do recurso.

Notifique.

Évora, 19/12/2024
Filipe Aveiro Marques
Manuel Bargado
Susana Ferrão da Costa Cabral
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[1] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/2db75682f38ae0eb802586930075ed92.
[2] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/555115d4b4ea6749802586ea004e47d2.
[3] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/f6c9b25c8277d54b8025894f003ffc8f.
[4] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/c69182bf6dd6a5d680258be70039fc8b e em que o ora relator participou como adjunto.
[5] Ver fundamentos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/02/2012, processo n.º 319937/10.3YIPRT.L1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/92ad4ef836c09c6d802579aa00373762.
[6] Acessível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/970eb2492ae11d3a80258aa3005f4931.
[7] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pág. 375.