CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
MORA
Sumário


1. Procede o pedido de execução específica quando a obrigação assumida pela promessa (aquisição de uma quota em sociedade) não é incompatível com a substituição da declaração negocial; não existiu convenção contrária à possibilidade de execução específica; e estava a ré em mora quando o autor pediu a execução específica.
2. A declaração da ré de não querer cumprir o contrato promessa, feita depois de confrontada com o pedido de execução específica em acção judicial, já não pode implicar que o autor fique impedido de prosseguir com a sua pretensão ou que a pretensão seja, por esse motivo, improcedente.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Apelação n.º 3492/23.6T8FAR.E1
(1.ª Secção)
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.º Adjunto: Filipe César Osório
2.º Adjunto: Fernando Marques da Silva
***
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:
I.A.
AA, autor na acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum que intentou contra “EMP01..., Lda.”, interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível Local 1 - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca Local 1, que julgou a sua pretensão totalmente improcedente.
Na sua petição inicial o autor/apelante invocou, muito em síntese, que celebrou com a ré, na qualidade de promitente vendedor e esta de promitente compradora, um contrato-promessa de venda de uma quota de uma sociedade comercial de que é sócio com a ré e que esta se recusou, injustificadamente e após interpelação, a cumprir o acordado, ou seja, a celebrar o contrato definitivo.
Pediu, por isso, que por sentença se:
“A) Supra a Declaração Negocial da Ré e declare transmitido para esta o direito à aquisição de uma quota no valor nominal de €270,00, relativa à sociedade comercial de responsabilidade limitada (…), bem como, se permita ao Autor a celebração dos competentes registos junto da Conservatória do Registo Comercial competente
B) Condene a Ré ao efectivo pagamento do preço ao Autor, no montante de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), relativa ao valor acordado pela aquisição de uma quota no valor nominal de €270,00, relativa à sociedade comercial de responsabilidade limitada (…), acrescida dos respectivos juros de mora contados à taxa anual legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
A acrescer,
C) Se digne, V.ª Ex.ª decretar o pagamento diário de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829.º-A do Código Civil, no valor diário, nunca inferior, de €300,00 (trezentos euros), enquanto não for satisfeita a obrigação;”

Contestou a ré/apelada e alegou, muito em suma, que o único activo da sociedade cuja quota pretendia adquirir era o contrato de concessão para exploração de um restaurante no domínio público hídrico, na Local 2, mas tal concessão foi revogada, o que constitui uma alteração substancial e anormal das circunstâncias em que se basearam para concretizar o negócio.
Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, fixou-se o valor da causa em 75.000.00€, delimitou-se o objeto do litígio (“apurar se o Autor, promitente-vendedor, tem direito à execução específica do contrato-promessa celebrado com a Ré ou se ocorreu perda do interesse na celebração do negócio por alteração superveniente das circunstâncias”) e fixaram-se os temas de prova.
Após a realização da audiência final, foi proferida a sentença objecto do presente recurso e que terminou com a seguinte decisão:
“Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, decide-se absolver a Ré EMP01..., Lda dos pedidos deduzidos pelo Autor AA.”

I.B.
O autor/apelante apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:
“I – O A., na qualidade de promitente vendedor no contrato promessa de cessão de participação social, peticionou contra a Ré, na qualidade de promitente adquirente, a execução especifica do referido contrato, e bem assim a condenação da Ré no pagamento da respetiva contraprestação – pagamento do respetivo preço (75 000 Euros).
II - A Ré deduziu matéria de exceção alegadamente integrante da alteração relevante das circunstâncias para se eximir ao cumprimento do contrato não só não deduziu reconvenção, como nenhuma prova apresentou.
III – O Tribunal deu como provado o contrato promessa junto aos autos e o respetivo texto, reconhecendo que era um contrato promessa de cessão de quota, e bem assim que o mesmo previa a possibilidade da sua execução especifica.
IV – O referido contrato estabelece prazo certo (termo certo) até 10 de Janeiro de 2022 para o cumprimento das reciprocas prestações das partes.
V – A Ré não se prontificou a realizar o contrato definitivo, nem o pagamento do preço que se obrigou a pagar ao A., no prazo legalmente previsto.
VI – O A. interpelou a Ré para cumprimento do contrato nos termos nele estabelecidos, sendo que a Ré não compareceu no ato e continua a não pagar o preço.
VII – Não está dado como provado nos autos matéria suscetível de integrar impossibilidade objetiva do cumprimento do contrato.
VIII – Face a esta realidade, o A. é o credor da relação contratual sub judice e a Ré a devedora.
IX – A Ré está obrigada a cumprir a sua prestação (tendo aliás entrado em mora).
X – A Ré está obrigada a pagar ao A. o preço acordado de 75 000 Euros, e bem assim juros sobre tal importância, nos termos expostos.
XI – E, para além disso, o A. pretende que o Tribunal se substitua à Ré na declaração negocial desta, indispensável à concretização do negócio.
XII – Nada impede, no caso, assim, a prevista execução especifica do contrato, estando reunidas todas as condições legais para o efeito - tal como previsto no próprio contrato e aliás como a Lei prevê.
XIII – Dado que o interesse na concretização do negócio é do promitente vendedor, o qual não recebeu qualquer valor do preço, deve, então, o Tribunal substituir-se à parte faltosa na aquisição da referida participação social, condicionando o respetivo registo a prévio e integral pagamento do preço, não só pela aplicação analógica do artº 830 do CPC, como também face à previsão constante do próprio contrato, nos termos expostos.
XIV - Violou, assim a decisão recorrida, por erro na aplicação da Lei, diversas disposições legais, nomeadamente os artigos 342, 371, 490, 607, 703 e 707 do CPC e artigos 371, 413, 433, 434, 441, 762, 798, 799, 801, 804, 808, 829-A e 830 do Cod. Civil.
TERMOS EM QUE deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que condene a Ré no pedido formulado pelo A., e em qualquer caso e sempre no pagamento da Ré ao A. do valor do preço – 75 000 Euros – e bem assim nos juros peticionados, nos termos expostos.
Pois assim se fará JUSTIÇA.”

I.C.
A ré não apresentou resposta.

I.D.
O recurso foi devidamente recebido pelo tribunal a quo.
Após os vistos, cumpre decidir.
***
II. QUESTÕES A DECIDIR:
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
De notar que o recorrente, expressamente, delimitou o recurso aos primeiros dois pedidos e, assim, abdicou de impugnar a decisão quanto à sanção pecuniária compulsória.
No caso, impõe-se apreciar:
- O eventual erro de julgamento, apreciando-se a possibilidade de execução específica do contrato promessa.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO:
III.A. Fundamentação de facto:
III.A.1 Factos provados:
Na falta de impugnação, considera-se provado, tal como constante da sentença recorrida, o seguinte:
1. Por escrito denominado “Contrato de Promessa de Cessão de quotas EMP02... Lda” datado de 10 de Janeiro de 2021, o Autor AA, na qualidade de promitente vendedor, prometeu vender à Ré EMP01..., Lda, na qualidade de promitente-compradora, por intermédio do seu legal representante com poderes para o ato, BB Cheles CC e esta prometeu comprar-lhe, pelo preço de € 75.000,00, a ser liquidado por meio de transferência bancária para o NIB do Autor, uma quota no valor nominal de € 270,00, relativa à sociedade comercial de responsabilidade limitada, EMP02... Lda, titular do N.I.P.C. ...02, com sede social na Avenida 1, ..., concelho e freguesia local 3, distrito de Local 1, devendo a execução do contrato estar concluída no prazo de um ano, devendo a notificação para a outorga do contrato de compra e venda de ser feita por interpelação do Autor por carta registada até ao 30º dia seguinte ao decurso do prazo de um ano e constando da cláusula terceira, com a epígrafe “Penalidades e Título Executivo” que:
“1. No caso da Segunda Outorgante não comunicar ao Primeiro Outorgante a intenção de compra dentro do prazo de um ano ou a cessão de quota não se realizar por facto que lhe seja imputável, o presente contrato constituirá título executivo podendo o Primeiro Outorgante demandar e recolher o pagamento da quantia de Euros: 75.000,00, sendo a cessão registada após o integral recebimento daquela quantia pelo Primeiro Outorgante.
2- No caso da Segunda Outorgante comunicar a intenção de compra e esta não for efetuada no prazo de 15 dias, por causa imputável ao Promitente Vendedor, este incorrerá numa penalização de Euros: 75.000,00 a título de cláusula penal.
3- As partes poderão optar pela execução específica do contrato.” (artigos 1º, 2º, 5º e 6º da petição inicial).
2. A Ré, na sequência do contrato promessa referido em 1), não entregou ao Autor qualquer quantia monetária (artigo 4º da petição inicial).
3. Por carta registada dirigida à Ré datada de 31 de Janeiro de 2022, o Autor comunicou ter designado o dia 21 de Fevereiro de 2022 (por lapso na primeira interpelação efetuada, a Autora indicou erroneamente o dia 19 de Fevereiro, quando, na verdade pretendia referir-se ao dia 21 do mesmo mês), pelas 11.00 horas, junto do Cartório Notarial 1, sito na Av. 2, n.º ...1, Código Postal: Código Postal 1 Cidade Local 4, como sendo a data para a celebração da escritura pública de cessão de quotas relativa à sociedade ”EMP02... Lda”, tal como resulta do doc. 3 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 7º da petição inicial).
4. A Ré não compareceu no local, hora e data designada para a celebração do prometido contrato (artigo 8º da petição inicial).
5. A Ré remeteu ao Autor uma missiva datada de 10 de fevereiro de 2022, comunicando estão disponíveis para subscrever a prometida cessão de quotas desde que seja assegurado o pagamento de uma execução fiscal a correr termos contra a sociedade cuja quota havia prometido comprar, no montante de € 34.000,00, tal como resulta do doc. 4 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 9º da petição inicial).
6. A Ré adquiriu em 2 de março de 2021 uma quota no valor de € 270,00 da EMP02... Lda, uma quota no valor de € 1960,00 a uma quota no valor de € 500,00 no capital social da EMP02... Lda, tal como resulta do doc. 5 da petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 10º da petição inicial).
7. A EMP02... Lda. é uma sociedade por quotas que se dedica com escopo regular e lucrativo à atividade de Indústria Hoteleira e turismo, designadamente restaurante, bar, snack bar, bebidas, esplanada, exploração concessionaria de praias com música ao vivo com caráter perante ou sazonal (artigo 7º da contestação).
8. A Ré declarou na contestação que não pretende adquirir a quota do Autor da EMP02... Lda (artigo 50º da contestação).

III.A.2. Factos não provados:
Do elenco dos factos não provados continuará a constar, tal como na sentença recorrida, que não se provou que:
a) O único ativo da EMP02... Lda era o contrato de concessão para a utilização do domínio público hídrico (TURH 2017GD10001) assinado no dia 10 de março de 2017, entre a Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, S.A., (sendo que a 16 de novembro de 2017, o Conselho de Administração da APDL deliberou autorizar a transmissão do TURH a favor da EMP02... Lda), na qual figurava na qualidade de concessionária (artigo 8º da contestação).
b) Foi este ativo que suscitou o interesse da Ré – a qual se dedica à atividade de gestão e exploração, direta ou indireta, de estabelecimentos hoteleiros, meios complementares de alojamento turístico, conjuntos turísticos e estabelecimentos de restauração e bebidas.; promoção, execução, desenvolvimento e comercialização de projetos imobiliários e turísticos (artigo 10º da contestação).
c) No ano de 2020 até início de 2021, a Ré encetou esforços para expandir a sua rede, procurando abrir um hotel no Cidade Local 4, e também um beach club, num conceito semelhante àquele que já explorava no Algarve e corria bem (artigo 12º da contestação).
d) Foi assim que a Ré encetou negociações para adquirir parte da sociedade EMP02... Lda, com o intuito de obter a titularidade da concessão da Local 2 e aí instalar o seu beach club no Cidade Local 4, ao qual ia chamar nome 1 (artigo 13º da contestação).
e) O único objetivo da Ré era obter a titularidade do direito de concessão da Local 2, para aí desenvolver a sua atividade (artigo 14º da contestação).
f) Nessa data, encontrava-se em desenvolvimento, ao abrigo do alvará de licenciamento relativo a obra de construção de um edifício – restaurante/ bar na Local 2 (Processo 100949/16...), as obras de construção do restaurante localizado na Local 2, já que o antigo Nome 2, um dos mais reputados restaurantes de sushi da Cidade Local 4, encerrou depois de ter sido atingido por uma tempestade e, posteriormente, um incêndio (artigo 15º da contestação).
g) A EMP03... Lda iniciou as obras de construção titulada pelo alvará de construção emitido no âmbito do Processo 100949/16..., no início do ano de 2021, adjudicando a empreitada e suportando todos os custos decorrentes da mesma, tendo sido dado conhecimento á APDL, à Capitania do Porto do Douro e à Câmara Municipal da cidade 1 do início dos trabalhos (artigo 19º da contestação).
h) A empreitada iniciou de forma pública e absolutamente pacífica, com a execução do projeto nos termos em que foi aprovado e licenciado (artigo 20º da contestação).
i) Em meados do mês de maio, quando estavam prestes a terminar os trabalhos de montagem da estrutura, fase em que a obra se apresentava apenas com o betão prefabricado à mostra, começou a fazer-se ouvir nas redes sociais, uma crítica ao aspeto necessariamente inacabado da empreitada, critica essa dirigida à utilização de betão (artigo 21º da contestação).
j) Sem que nada o tivesse feito prever antes do tema ganhar relevância nas redes sociais, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) notificou a EMP02... Lda da sua decisão cautelar e mandou parar imediatamente as obras no local da concessão (artigo 25º da contestação).
k) A obra fora devidamente licenciada (artigo 28º da contestação).
l) Em junho de 2021, a EMP02... Lda recebeu uma comunicação enviada pela Agência Portuguesa do Ambiente, com o conhecimento da Câmara Municipal da cidade 1 e da Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, ordenando a paragem da obra (artigo 32º da contestação).
m) Essa comunicação tinha como assunto “Revogação do Contrato de Concessão para a utilização do domínio público hídrico TURH n.º 2017GD100001, celebrado com a Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo; Ordem de suspensão imediata e demolição da construção do apoio de praia na Local 2, Cidade Local 4; Notificação para exercício do direito de audiência prévia”, na qual a EMP02... Lda foi informada de que a APA, enquanto Autoridade Nacional da Água, representando o Estado como garante da política nacional, determinou, a título preventivo e com efeitos imediatos, uma medida cautelar, nomeadamente aquela prevista na alínea g), do n.º 1 do artigo 41º da Lei-quadro das Contraordenações Ambientais, “Imposição das medidas que se mostrem adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma.” E essa decisão prendia-se com o risco de galgamento e inundação costeira na Local 2, e a consequente situação de elevada vulnerabilidade e exposição da esplanada aqui em causa (artigos 33º a 35º da contestação).
n) Estando ainda a correr termos um processo de inspeção, sob o n.º .../.../...35/21.0.AOT, na Inspeção Geral de Agricultura, do Mar, Ambiente e do Ordenamento do Território (artigo 37º da contestação).
o) Com a suspensão de trabalhos e demolição do equipamento, bem como a indicação de que o Contrato de Concessão iria ser revogado, a Ré viu todo o seu investimento colocado em causa (artigo 38º da contestação).
p) O motivo pelo qual ia adquirir as quotas do Autor cessou, deixou de existir, tornou-se impossível (artigo 39º da contestação).
q) A valorização atribuída às quotas se tornou injustificada, pois se a Sociedade deixa de ter o seu único ativo e forma de obter lucro, torna-se impossível à Ré justificar e valorizar o investimento, ou mesmo obter qualquer retorno (artigo 40º da contestação).
r) A EMP02... Lda cuja quota a Ré prometeu adquirir, ficou impedida, por ordem administrativa, de explorar a concessão – que era o único ativo que valorizava a empresa (artigo 42º da contestação).
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III.B. Fundamentação jurídica:
Foi celebrado entre autor/apelante e ré/apelada um contrato promessa de compra e venda – cf. artigo 410.º, n.º 1, do Código Civil – que é a convenção pela qual as partes (ambas ou apenas uma delas) se obrigam a celebrar determinado contrato (o contrato prometido).
No caso dos autos, assumiram ambas as partes a obrigação de celebrar um contrato de compra e venda de uma quota (o contrato prometido), gerando para cada uma delas uma prestação de facere (prestação de facto positivo), que consistia na obrigação de emissão de uma declaração negocial futura (para o autor/apelante de vender e para a ré/apelada de comprar) em conformidade com ali acordado.
Estas foram as obrigações principais assumidas por cada uma das partes.
Prescreve o artigo 830.º, n.º 1, do Código Civil que “se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.
A execução específica é o cumprimento forçado do contrato, na produção dos efeitos tidos em vista pelas partes em que, mediante requerimento de um dos contraentes, o Tribunal se substitui ao faltoso na manifestação de vontade por ele não tempestivamente emitida, ou seja, supre a sua omissão na obrigação de contratar.
Pressupõe, por isso, uma situação de mora ou retardamento de cumprimento pelo obrigado a contratar. É que, perante um incumprimento definitivo, nada mais resta que extrair as consequências da destruição do contrato, nomeadamente da resolução e seus efeitos indemnizatórios (neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2011, processo n.º 2766/03.7TBPTM.E1.S1[1]).
A acção de execução específica equivale, no plano funcional, à mesma coisa que a acção de cumprimento prevista no artigo 817.º do Código Civil, apenas com a diferença de que esta visa a condenação do devedor no cumprimento da prestação, enquanto a primeira, de natureza constitutiva, produz imediatamente os efeitos da omissão do devedor (sentença constitutiva). E se um dos promitentes (na promessa bilateral) não cumprir pontualmente, nos termos devidos, o contrato promessa e a outra parte intenta a acção, manifesta a vontade de ainda obter a prestação devida; equivale a dizer que o credor considera como simples atraso a violação do contrato por parte do devedor e, por isso, insiste no cumprimento retardado. Se, inversamente, o credor não tivesse, fundadamente, mais interesse na prestação, consideraria a violação do contrato como incumprimento definitivo e optaria pela resolução do mesmo [2].
Para outros autores[3], o contraente fiel pode pedir a execução específica do contrato promessa enquanto mantiver interesse na prestação. Será no estado e na pendência da mora que a execução específica encontra o seu “habitat” normal, por ser característica desse estado a subsistência do interesse do credor na realização da prestação. Demonstrada, porém, a eventualidade da subsistência do interesse do credor, mesmo após um incumprimento definitivo, demonstrada fica também a compatibilização da execução específica com os casos de incumprimento definitivo em que essa subsistência tenha lugar.
No domínio da jurisprudência, vem sendo seguido o entendimento que o recurso à execução específica do contrato-promessa pressupõe o incumprimento da promessa por parte do obrigado, desde que esse incumprimento não seja definitivo, ou seja, desde que nos encontremos perante uma situação de retardamento da prestação, perante uma situação de mora (ver, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/02/1997, processo n.º 96B549[4]; o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2014, processo n.º 1066/10.0TBVCT.G1.S1[5]; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/12/2017, processo n.º 2030/14.6T8BRG.G2[6]; o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/01/2020, processo n.º 1959/09.8TBPMS.E1[7]; e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2024, processo n.º 2182/21.9T8BCL.G1.S1[8]).
Ora, no caso dos autos, as partes optaram, expressamente, por não afastar a possibilidade de execução específica (ver n.º 3, do ponto 1.º dos factos provados, correspondente à cláusula terceira do contrato celebrado).
Por outro lado, não se vislumbra que a natureza da obrigação assumida pelas partes se oponha à possibilidade de o contraente não faltoso obter a execução específica.
Finalmente, estava fixado o prazo de um ano para que fosse cumprido o contrato, ou seja, celebrado o contrato definitivo, sendo que cabia a interpelação ao autor (ver, igualmente, ponto 1.º dos factos provados). Ora, o autor provou ter feito a interpelação no prazo devido (até ao trigésimo dia seguinte o decurso do prazo de um ano após celebração do contrato promessa), tendo procedido à marcação da escritura pública (conforme resulta da conjugação dos pontos 1.º e 3.º dos factos provados). A ré não compareceu e demonstrou estar, ainda, disposta a realizar o contrato prometido, mas desde que asseguradas outras condições que não tinham sido assumidas inicialmente (ver pontos 4.º e 5.º dos factos provados).
Assim, à data em que foi instaurada a presente acção judicial, face ao que consta da matéria de facto provada, a ré estava em mora quanto à prestação a que se obrigou. E, por sua vez, o autor considerou como simples atraso essa violação do contrato por parte da ré e, por isso, veio peticionar o cumprimento retardado.
Não provou a ré nenhum dos factos que alegou para basear a sua pretensão relacionada com a possibilidade de resolver o contrato promessa por alteração das circunstâncias.
Resta dizer que do ponto 8.º dos factos provados (a declaração feita na contestação pela ré de que não pretende adquirir a quota que havia prometido comprar) não se pode retirar o afastamento da possibilidade de execução específica.
Como defende Pedro Romano Martinez[9], quando o devedor declarou não cumprir, o regime do não cumprimento funciona em alternativa à realização coactiva da prestação. Ou seja, se o devedor (neste caso a ré) declarar que não vai cumprir, “o accipiens pode optar entre as regras do incumprimento definitivo e as da acção de cumprimento e de execução específica”.
No caso, perante a mora da ré, o autor optou pela execução específica. Até essa tomada de posição do autor não se provou ter ocorrido qualquer incumprimento definitivo da ré. A declaração da ré, depois de confrontada com o pedido de execução específica em acção judicial, já não pode implicar que o autor fique impedido de prosseguir com a sua pretensão ou que a pretensão seja, por esse motivo, improcedente.
O único que, no caso, poderia optar entre a resolução do contrato e a sua execução específica era o contraente não faltoso, ou seja, o autor[10].
Assim, mostram-se preenchidos os requisitos (ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/07/2014, processo n.º 6193/06.6TBMTS.P1.S1[11]) do artigo 830.º, n.º 1, do Código Civil:
a) a obrigação assumida pela promessa (aquisição de uma quota em sociedade) não é incompatível com a substituição da declaração negocial;
b) não existiu convenção contrária à possibilidade de execução específica;
c) estava a ré em mora quando o autor pediu a execução específica.

Deve, por isso, julgar-se procedente o recurso e revogar-se a decisão da sentença recorrida (na parte impugnada) e substituir-se por outra que declare a execução específica peticionada.

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Custas:
Conforme estabelecido no artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a regra geral na condenação em custas é a de condenar a parte vencida. E havendo uma parte vencida não se passa ao critério subsidiário que é o da condenação em custas de quem tira proveito do recurso.
A parte vencida na acção é, em grande parte, a ré. No recurso é só a ré, apesar de na fase de recurso não ter apresentado contra-alegações.
Como refere Salvador da Costa[12]: “Face ao que dispõe o artigo 529º, n.º 2 do Código, a referência deste normativo às custas não abrange a vertente da taxa de justiça, cuja responsabilidade pelo pagamento é do sujeito processual que impulsionou a ação ou a defesa lato sensu. Como o conceito de custas stricto sensu é polissémico, porque é suscetível de envolver, nos termos do n.º 1 do artigo 259.º, além da taxa de justiça, que, em regra, não é objeto de condenação – os encargos e as custas de parte, importa que o juiz, ou o coletivo de juízes, nos segmentos condenatórios das partes no pagamento de custas, expressem as vertentes a que a condenação se reporta”.
Assim, as custas da acção deverão ficar a cargo de ambas as partes, na proporção do decaimento (que se fixa em 90/100 para a ré e 10/100 para o autor) e as custas do presente recurso deverão ficar a cargo da ré/recorrida, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, por ter ficado vencida, mas não pode ser condenada em taxa de justiça, por não ter respondido ao recurso.
***
III. DECISÃO:
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em conformidade, revoga-se a sentença recorrida na parte impugnada e, em sua substituição:
a) Declara-se transmitida do autor AA para a ré “EMP01..., Lda.” a quota no valor nominal de 270,00€ (duzentos e setenta euros), relativa à sociedade comercial de responsabilidade limitada “EMP02... Lda.”, com o N.I.P.C. ...02;
b) Condena-se a ré “EMP01..., Lda.” a pagar ao autor AA a quantia de 75.000,00€ (setenta e cinco mil euros) acrescida de juros de mora contados à taxa anual legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento

Condenam-se autor e ré nas custas da acção, fixando-se o decaimento em 90/100 para a ré e 10/100 para o autor e a ré/apelada nas custas do recurso, não sendo devida taxa de justiça por ela nesta instância por não ter contra-alegado.
Notifique-se e, após trânsito, comunique-se ao Registo Comercial (cf. artigos 3.º, n.º 1, alínea e), 9.º, alínea b), 15.º e 16.º do Código do Registo Comercial).
Évora, 19/12/2024
Filipe Aveiro Marques
Filipe César Osório
Fernando Marques da Silva
__________________________________________________
[1] Acessível em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c072ea1244999d6b80257894003ec544.
[2] João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 3ª ed., pág. 105 e 106.
[3] Manuel Januário Da Costa Gomes, Em tema de contrato-promessa, AAFDL, 1990, pág. 70-71
[4] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/9B3F97D05DD86A1E802568FC003B6042.
[5] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/3843BCEF842F70E380257CE5004FB8DA.
[6] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/4A5F3225D7376FF380258225003D5759.
[7] Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b33db70fb854d319802584ff0043a667.
[8] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/31a1662a278c288680258bd4004dca2a.
[9] Da Cessação do Contrato, Almedina, pág. 140 e 141.
[10] Neste sentido ver fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2021, processo n.º 1790/17.7T8VFX.L1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/35539280d824ad5e8025867a0047ffef: “quanto aos efeitos da recusa antecipada de cumprimento, se acompanha a posição de Pinto Oliveira (…) e de Brandão Proença (…) no sentido de reconhecer que a A. adquiriu os direitos inerentes à situação de mora do devedor; em concreto o direito à execução específica do contrato-promessa”.
[11] Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8ef14b9009a8a35680257d090035784e.
[12] As Custas Processuais – Análise e Comentário, Almedina, 7.ª Ed., em anotação ao artigo 527.º do Código de Processo Civil.