ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
Sumário

I - O ónus de impugnação obriga a parte a tomar posição definida, isto é, precisa ou nítida, sobre os factos, impedindo-a de se remeter a meias palavras, posições dúbias ou de meias-tintas, que deixem dúvidas sobre o que realmente ele entende sobre os factos, mas já não lhe impõe que motive a sua posição e/ou que contraponha ao facto que impugna ou considera falso o facto alternativo que entende ser o verdadeiro.
II - No actual Código de Processo Civil os ónus de alegação e de impugnação incidem somente sobre os factos essenciais (e apenas parte deles no que respeita ao ónus de alegação) que constituem a causa de pedir ou as excepções; em relação aos factos instrumentais não existe ónus de alegação (a sua não alegação não preclude a possibilidade de o tribunal os considerar desde que resultem da instrução da causa) nem de impugnação (a não impugnação dos mesmos não impede a parte de na instrução da causa produzir prova destinada a demonstrar que eles não são verdadeiros).

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:2160.20.5T8PNF.P2

*



SUMÁRIO:
……………………………………………..
……………………………………………..
………………………………………………





ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:

AA, contribuinte fiscal n.º ...88, residente em ..., Portugal, instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A... Inc., com sede em ..., ..., Estados Unidos da América, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe:
§ A título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, €204.000,00, acrescido dos juros vencidos, no montante de € 52.330,52, e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal;
§ A título de indemnização por danos não patrimoniais, montante não inferior a €5.000,00, acrescido dos juros vencidos, o montante de €2.165,48, e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.
Para o efeito alegou, em súmula, que a ré é uma empresa líder global em entretenimento digital interactivo através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas; o autor é um conhecido jogador profissional de futebol, tendo exercido a sua profissão maioritariamente, em clubes portugueses, e actuado em mais de 300 partidas oficiais como profissional, designadamente em 39 partidas da Selecção Nacional de Futebol de Portugal, alcançando bastante notoriedade internacional; o autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2011, 2012, 2015, 2016, 2017 e 2018, FIFA MANAGER, nas edições 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM - FUT nas edições 2012, 2015, 2016, 2017 e 2018 e FIFA MOBILE na edição de 2018, todos propriedade da ré; o autor jamais concedeu autorização para ser incluído nos supra identificados jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, nem conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome para tal; a ré está a utilizar a imagem e o nome do autor, a nível global, pelo menos desde 28 de Setembro de 2010, data de lançamento do jogo de vídeo FIFA 2011; a imagem do autor é individualizada nos jogos em que aparece; dessa utilização resulta o dano provocado pela exposição do autor e invenção de atributos físicos e técnicos em cada um dos jogos com a influência que tem na carreira profissional e vida daquele; por tal utilização ilícita da imagem e do nome do autor é devida ao autor uma indemnização, a título de danos patrimoniais de personalidade, em valor a fixar em função dos resultados económicos obtidos pela ré por via da comercialização dos jogos, sendo certo que essa utilização traduz ainda um enriquecimento sem causa da ré à custa do autor.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e arguindo, na parte que importa para o presente recurso, a excepção da prescrição do direito do autor.
Para o efeito, alegou que por diversas circunstâncias que concretiza, o autor conhecia ou tinha condições para conhecer as datas em que foram lançados no mercado os jogos em que o seu nome aparece e, pelo menos em 2015, já sabia que os jogadores profissionais, como ele próprio, são representados no jogo FIFA, pelo que tinha conhecimento dos pressupostos do seu direito mais de três anos antes da instauração da acção.
Dado que o processo não comportava réplica, foi proferido despacho a ordenar a notificação do autor, nos termos do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil, para se pronunciar, querendo, sobre as excepções arguidas na contestação, «com a advertência vertida nos artigo 587º, n.º 1, e 574º do Código de Processo Civil».
O autor respondeu à matéria da excepção da prescrição, defendendo que a prescrição não ocorreu porque o dano suportado pelo autor é continuado, na medida em que novas versões dos jogos são lançadas anualmente e a ré continua a vender as versões antigas dos seus jogos e por isso a violação dos direitos do autor é contínua e permanente; os direitos de personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis e não se extinguem em consequência da omissão ou da inércia de exercício por parte do seu titular, ou seja, não são passíveis de extinção pelo não uso e, portanto, são imprescritíveis.
Foi admitida a intervenção nos autos de B..., na qualidade de assistente como auxiliar da ré.
O Supremo Tribunal de Justiça decidiu que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a acção.
Foi convocada audiência prévia «com as finalidades previstas no artigo 591º, n.º 1, alíneas a) a g), do Código de Processo Civil».
Na audiência foi decidido facultar às partes alegações orais de facto e de direito para a possibilidade de conhecimento imediato da excepção peremptória da prescrição, tendo sido feitas alegações orais pelos mandatários.
A seguir o tribunal a quo conheceu da excepção da prescrição, julgando a excepção procedente e absolvendo a ré do pedido.
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
b) Entende o recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
c) O ora recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a excepção de prescrição aduzida pela ré na contestação diz respeito, já que não restam dúvidas, desde logo, que a mesma é nula.
d) Resulta à saciedade que, quando ocorreu a citação da ré, ainda não se mostravam decorridos os 3 (três) anos previstos no artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil, considerada a data de lançamento das novas versões dos jogos (sendo esta a data que releva, de acordo com o próprio entendimento do tribunal a quo, conforme plasmado na decisão recorrida).
e) É, pois, manifesta a contradição entre o raciocínio do tribunal a quo, quando considera que novas versões dos jogos com a imagem e o nome do autor ainda hoje são lançadas todos os anos, que a data relevante para a apreciação da prescrição do direito do autor é a data do lançamento dos jogos, e a conclusão de que esse direito em relação a esse mesmo jogo se encontra prescrito.
f) Deve, pois, ser declarada a nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) (parte inicial) do CPC, determinando-se a consequente remessa do processo ao tribunal a quo para que sejam, subsequentemente, seguidos os trâmites processuais decorrentes.
g) Contudo, caso assim não se entenda, o tribunal a quo incorre ainda em manifestos erros de julgamento quanto à matéria de facto e quanto às questões de direito esgrimidas nos autos, pelas partes.
h) Desde logo, o tribunal a quo não podia ter dado como provados o ponto 5. da matéria dada como provada e, em consequência, ter por assente que o autor tomou conhecimento da utilização da sua imagem e demais características logo no ano de lançamento dos jogos FIFA em 2009.
i) Essa matéria factual dada como assente nunca poderia ter ocorrido, uma vez que nenhuma prova foi produzida nos autos que a suporte, havendo uma clara violação do preceituado nos artigos 410.º e 607.º, n.ºs 4 e 5, do C.P.C.
j) Isto porque em momento algum da petição inicial se mostra alegado pelo autor que o mesmo teve conhecimento, em 2009, da inclusão da sua imagem, do seu nome e das suas características pessoais e profissionais nos jogos da ré, designadamente, nos jogos FIFA.
k) O que o autor alega (vide artigos 11.º, 25.º e 153.º da petição inicial) é que a ré está a utilizar indevidamente a imagem e o nome do autor, pelo menos, desde Setembro de 2009 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA MANAGER 10).
l) O tribunal a quo incorre num erro grosseiro de julgamento ao assumir que o momento em que a imagem, o nome e as características pessoais e profissionais do autor foram introduzidas pela ré pela primeira vez nos seus jogos, e isto terá acontecido em 2009, coincide com o momento em que o autor terá tido conhecimento que a ré se encontrava a utilizar essa imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais nos seus jogos.
m) Essa interpretação/conclusão pelo tribunal a quo é absolutamente desprovida de qualquer sentido e não encontra nenhum respaldo naquilo que se mostra alegado pelo autor na petição inicial.
n) A ré pode ter introduzido a imagem, o nome e as características pessoais e profissionais do autor nos seus jogos pela primeira vez em 2009 e o autor apenas ter tido conhecimento dessa utilização 5, 10 ou 15 anos depois.
o) Com efeito, o momento em que o lesado tem conhecimento do direito à indemnização, pode ou não coincidir com o momento de ocorrência do facto ilícito.
p) O mesmo se pode afirmar quanto ao conhecimento que o autor teve, enquanto lesado, do direito à indemnização.
q) Acresce ainda que, o facto do autor ou qualquer outra pessoa ter conhecimento da existência de algum dos jogos da ré, não significa que, consideradas a sua imensa diversidade e as suas respectivas edições, tenha necessariamente de conhecer todos os jogadores que estão incluídos nos mesmos, incluindo a sua própria pessoa.
r) Aliás, a verdade é que, nem a própria ré, na contestação apresentada, consegue afirmar – sem ser de forma dúbia – qual o exacto momento em que o autor terá tido conhecimento da inclusão da sua imagem, nome e demais características nos seus jogos.
s) Apenas sendo referido, por aquela, um conjunto de suposições e presunções, sem qualquer suporte factual, consubstanciadas no facto de a ré supor que o autor terá tido conhecimento da inclusão da sua imagem, nome e demais características, nos seus jogos, no ano de 2009, faz com que estejamos, pois, apenas perante um juízo probatório meramente assente em presunções judiciais e em regras da experiência (cf. artigo 75.º da contestação), o qual o autor contesta e não admite.
t) Aliás, essa argumentação, relativa à alegada prescrição, pela ré na contestação apresentada nestes autos é em tudo similar à apresentada em outras acções idênticas à presente e já foi alvo da devida apreciação por parte de Tribunais Superiores.
u) Nesse sentido, decidiu o tribunal da Relação de Lisboa, no que respeita a tal argumentação, que: “A apelante entende, mal, que estamos perante matéria não carecida de prova, quando é a própria que retira a sua conclusão de um juízo probatório meramente assente em presunções judiciais e em regras da experiência (art. 106.º da contestação), juízo este não admitido pelo autor, designadamente em articulado subsequente. Como é evidente, ainda que tal juízo possa (ou não) ser apropriado, o autor pode ainda produzir prova que o contrarie.” Cf. Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa, 7ª Secção, Processo: 4488/20.5T8ALM-B.L1, de 18.11.2023, disponível para consulta in www.dgsi.pt.
v) Nos presentes autos, estamos, pois e também, perante meras suposições e presunções pela ré – reitera-se sem qualquer suporte factual – quanto à data em que o autor terá tido conhecimento do lançamento dos jogos e do seu conteúdo.
w) Não podia, pois, o tribunal a quo ter decidido com base em tais suposições presunções.
x) Importa, pois, apurar nos autos em que data o autor teve tido conhecimento do lançamento dos jogos e do seu conteúdo, bem como, quando teve conhecimento, enquanto lesado, do direito à indemnização e cabe à ré que alegou a prescrição a prova dos factos que a sustentam – cf. artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
y) Por outro lado, e, também, ao contrário do que o tribunal a quo entendeu, o conhecimento do mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, ou seja, não há que antecipar qualquer solução jurídica e desconsiderar factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção.
z) Não corresponde à verdade que não exista a invocação de factos contrários aos alegados pela ré, na excepção peremptória que – irregularmente – foi conhecida de imediato (cf. artigos 36.º a 51.º da petição inicial e artigos 3.º, 4.º, 5.º, 10.º, 11.º e 12.º do requerimento de resposta às excepções).
aa) De igual modo, foi junta, pelo autor, suporte documental para prova do que alega nesses mesmos factos (cf. documentos 8, 9 e 15 juntos com a petição inicial).
bb) No caso dos autos, está alegado na petição inicial e é admitido na contestação que os jogos em causa foram comercializados a partir do seu lançamento e surgiram até, entretanto, novas versões, ou seja, há factos novos, consubstanciados nos múltiplos actos de comercialização dos jogos, os quais se prolongaram no tempo, sublinhando-se que as últimas versões lançadas são ainda lançadas no mercado actualmente.
cc) Está contestada a existência de facto ilícito, porquanto se invoca a autorização para a utilização da imagem do jogador, assim como está contestada a existência e a quantificação do dano, sendo essencial a delimitação destes aspectos factuais para se apreciar a excepção da prescrição, atentas as diversas orientações possíveis acima expostas.
dd) Tal delimitação apenas poderá resultar da prova produzida em audiência de julgamento, cabendo, tal como já referido anteriormente, à ré que alegou a prescrição a prova dos factos que a produzem – cf. artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
ee) Deste modo, não poderia o tribunal a quo ter deixado de concluir, à luz das alegações vertidas na petição inicial e admitidas na contestação, que a questão de direito consubstanciada na prescrição deveria sempre ser relegada para final, por existirem várias soluções plausíveis para a mesma e por ser essencial a produção de prova dos factos alegados pelo autor e pela ré para apreciar essa excepção.
ff) Tanto mais que a ré se limitou a aceitar a perduração do dano pela temporalidade aduzida pelo autor, bem como a sua manutenção no presente – conforme resulta admitido na contestação, que os jogos em causa continuaram a ser vendidos após o seu lançamento e foram até feitas novas versões lançadas anualmente (como o próprio tribunal dá como assente nos pontos 6. e 7. da decisão recorrida) – pelo que não podia o tribunal a quo julgar procedente a excepção de prescrição invocada, muito menos, no despacho saneador de que se recorre.
gg) Devia, pois e ao contrário do que o tribunal a quo decidiu, ter sido relegada para final o conhecimento da excepção de prescrição, porque é desta que se trata neste momento, por manifesta falta de elementos, e, nesse sentido, ordenado o prosseguimento dos autos para julgamento, proferindo despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, conforme previsto no artigo 596.º, n.º 2 do CPC.
hh) Assume ainda óbvia relevância, in casu, que o tribunal a quo nunca poderia ter dado como provados supostos factos que refere terem sido admitidos por acordo, quando não o foram por terem sido impugnados (tal como se demonstrou supra), mas ainda que não o tivessem sido, nunca haveria lugar à cominação que se mostra referida na decisão recorrida de forma a justificá-la.
ii) A argumentação do tribunal a quo, não tem o mais pequeno apoio na letra da Lei e o utilizador do Código de Processo Civil se o aplicar tal como ele está, seria apanhado de surpresa se não respondesse às excepções ou, na resposta às excepções, não impugnasse cada um dos factos alegados na contestação e, consequentemente, os factos alegados pela parte contrária fossem considerados como admitidos por acordo.
jj) Não pode funcionar aqui o ónus de impugnação de factos alegados na contestação e que se mostra previsto no artigo 587.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, pois este, como resulta da sua inserção, é restrito aos casos de admissibilidade legal de réplica previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 584.º do mesmo diploma legal e os presentes autos não comportam este articulado porque não foi deduzida reconvenção pela ré na contestação.
kk) Nem poderia ser de outro modo: sem norma legal que o preveja, não se pode aplicar uma cominação, designadamente, a prevista no artigo 574.º do Código de Processo Civil, nem pode haver uma interpretação que se traduza em criar contra a Lei, uma cominação para a falta de resposta, que iria apanhar de surpresa as partes no processo.
ll) Neste sentido, chama-se à colação o douto Acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Guimarães, nesta matéria, de 06 de Outubro de 2022, no processo n.º 97235/21.1YIPRT.G1 e as considerações de Urbano A. Lopes Dias, Blog do IPPC, comentário sinóptico de 14/04/2015 <blogippc.blogspot.com> – para os quais se remete, com particular enfase nas passagens supra transcritas – atenta a sua generosa fundamentação e porque responde taxativamente às questões no âmbito destes casos, mormente no que se reporta à alegada cominação que o tribunal a quo aplica na decisão recorrida.
mm) Logo, ao contrário do que o tribunal a quo concluiu e decidiu, o autor não estava onerado com a impugnação dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos invocados pela ré, uma vez que a matéria de facto alegada por esta nas excepções tem-se sempre por controvertida, podendo o autor, ainda oferecer contraprova sobre a mesma (art. 346.º do CC).
nn) Também por aqui, não podia, pois, o tribunal a quo ter dado como provado o ponto 5. da matéria dada como provada e ter por assente que, pelo menos desde 2009, o autor, invocante da lesão do seu direito de personalidade, adquiriu, formalmente, o direito que se propõem exercer nestes autos, por não ser legalmente admissível a cominação a que alude na decisão recorrida.
oo) E ainda tendo por referência, que a questão de direito consubstanciada na prescrição deveria sempre ser relegada para final, por existirem várias soluções plausíveis para a mesma, chegamos a outro aspecto que o tribunal a quo ignorou ostensivamente, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
pp) Conforme resulta dos autos, a pretensão do autor radica na violação ilícita do direito de personalidade, concretamente no direito ao nome e à imagem, e ainda no enriquecimento sem causa (enriquecimento por intervenção).
qq) E, atenta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, o prazo da prescrição previsto no artigo 482.º do C. Civil não se inicia enquanto o empobrecido tem outro meio ou fundamento que justifique a indemnização ou restituição – vd. neste sentido o Acórdão do TRG de 20 de Maio de 2021 no proc. 6269.20.7T8PRT-A.G1 in www.dgsi.pt.
rr) Mais uma vez ao contrário do que o tribunal a quo decidiu, nunca poderia ter operado o prazo prescricional inerente ao pedido de ressarcimento alicerçado em enriquecimento sem causa, visto que só com o trânsito em julgado da decisão que declarou prescrito o direito do autor com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, é que se iniciará a contagem daquele prazo. Neste sentido, v. ainda Ac. Relação Évora de 22/01/1998 in Col. Jur. tomo 1, 260.
ss) Teria, assim e relativamente ao pedido subsidiário baseado enriquecimento sem causa, sempre de ter sido, pelo tribunal a quo, determinado o prosseguimento dos autos, com vista à fixação dos factos assentes e da base instrutória, para efeitos de apreciação da excepção de prescrição, aduzida pela ré, na contestação.
tt) Acresce ainda que, também, ao contrário do referido pelo tribunal a quo na decisão recorrida, a mesma situação pode ter diferente enquadramentos jurídicos, designadamente, em sede de responsabilidade civil extracontratual e/ou do enriquecimento sem causa.
uu) Nem há, qualquer insuficiência na alegação dos factos necessários para o preenchimento dos requisitos previstos no artigo 473.º do Código Civil, tal como bem se mostra explanado pelo Supremo tribunal de Justiça, em douto Acórdão proferido em acção idêntica à presente, de 27 de Setembro de 2022, Processo 637/20.1T8PRT.P1.S1 e disponível em www.dgsi.com, quanto a esta matéria.
vv) Isto porque, está, nestes autos, suficientemente alegado pelo autor, que a sua imagem individualizada é utilizada pela ré a nível global, pelo menos desde Setembro de 2009 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA Manager 10), sem qualquer autorização para esse efeito, sem pagar uma contrapartida comercial pela utilização da imagem do autor nos seus jogos e os valores auferidos pela ré com a comercialização desses jogos.
ww) Por tudo o que se deixa dito, não pode, pois, o autor acompanhar a decisão sob recurso.
xx) Deve, pois e caso a invocada nulidade da decisão recorrida não proceda (o que não se concede e apenas se admite por mera cautela de patrocínio): (i) ser revogado o saneador-sentença que decidiu considerar confessados o facto constante do ponto 5. da matéria dada como provada e julgou procedente a excepção de prescrição alegada pela ré; (ii) ser declarado sem efeito esse mesmo despacho; e (iii) ser determinado o prosseguimento dos autos em 1.ª Instância com a oportuna marcação e realização aí da audiência final de discussão e julgamento.
yy) Face a tudo o que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 3 e 4, 7.º, 8.º, 9.º-A, 131.º, 195.º, n.º 1, 410.º, 413.º, 574.º, 584.º, 587.º, 595.º, 596 n.º 2, 597.º, 607.º, nº 4, parte final e 615.º, n.º 1, alínea c) (parte inicial), todos do Código de Processo Civil e ainda os artigos 218.º, 306.º, 342.º, 363.º, 473.º, 474.º, 479.º, 482.º e 498.º, todos do Código Civil.
Termos em que deverá o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência, ser declarada nula a decisão recorrida e determinada a consequente remessa do processo ao tribunal a quo, para que aí sejam, subsequentemente, seguidos os trâmites processuais decorrentes. Caso assim não se entenda – o que não se concede e apenas se admite por mera cautela de patrocínio – sempre deve ser revogada a decisão recorrida e, em consequência, ser determinado o prosseguimento dos autos, relegando para a decisão final a apreciação da verificação da excepção de prescrição.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida é nula.
ii. Se foi correctamente julgado provado o facto do ponto 5.
iii. Se a excepção da prescrição podia ser conhecida antes da instrução e julgamento da causa.
iv. Na afirmativa, se o direito do autor não está prescrito relativamente às versões dos jogos lançadas nos três anos anteriores à instauração da acção.


III. Nulidades da decisão recorrida:
O recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, por contradição entre a fundamentação e o dispositivo.
Para o recorrente é contraditório defender que para a contagem do prazo de prescrição releva a data de lançamento da nova versão do jogo que tem lugar todos os anos e decidir que se encontra prescrito o direito mesmo em relação a versões lançadas nos três anos anteriores à instauração da acção.
Salvo melhor opinião, a nulidade não existe.
Na fundamentação de direito da decisão o tribunal a quo assinalou o seguinte: (i) o direito do autor está sujeito ao prazo de prescrição de três anos; (ii) a contagem desse prazo inicia-se na data a partir da qual o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete; (iii) o desconhecimento da extensão integral dos danos não impede o início do prazo; (iv) só em relação a danos supervenientes, danos que não são consequência ou o desenvolvimento normal e previsível da lesão inicial e de que o lesado não tivesse podido ter conhecimento é que aquele prazo se inicia apenas a partir da data em que os danos forem conhecidos; (v) o prazo iniciou-se no final do ano de 2009 porque foi nessa altura que ocorreu, com o conhecimento do autor, o lançamento da edição do jogo mais antiga; (vi) o prazo de prescrição não pode ser prostergado até ao cometimento da última conduta, ou seja, até ao lançamento da última edição em questão nos autos; (vii) não se pode falar de danos supervenientes resultantes das sucessivas versões lançadas ou a lançar porque os lançamentos são mera consequência ou desenvolvimento normal e previsível do lançamento inicial.
Decidir, com assento nesta fundamentação, que o prazo de prescrição se mostra decorrido não só não é contraditório como é perfeitamente coerente.
Tendo o tribunal a quo entendido que o lançamento de uma nova versão do jogo não representa um dano superveniente que afaste a regra de que o início da contagem do prazo se afere pelo conhecimento da existência do direito, mesmo que com desconhecimento da dimensão total dos danos (v.g. porque estes são futuros ou ainda estão a produzir-se), a decisão de julgar prescrito o direito do autor com fundamento no instituto da responsabilidade civil é totalmente compatível e consentânea com a fundamentação que lhe subjaz.
Na verdade, embora releve como decisivo para a contagem do prazo de prescrição o (conhecimento pelo autor do) lançamento da versão do jogo, está absolutamente claro nessa fundamentação que isso foi assim relativamente à primeira versão cujo lançamento foi conhecida do autor, sendo os danos causados pelas sucessivas versões posteriormente lançadas danos previsíveis e não supervenientes cuja produção não interfere com a contagem do prazo.
Improcede assim a nulidade que com vem apodada a sentença.


IV. Impugnação da fundamentação de facto:
O recorrente contesta a fundamentação de facto adoptada pelo tribunal a quo, designadamente na parte em que considerou já provado o ponto 5 dessa fundamentação e cuja redacção é a seguinte:
«O autor soube da existência destes jogos e da inclusão da sua imagem nos mesmos, pelo menos, no ano do seu lançamento, ou seja, no final do ano antecedente ao ano da sua edição, tal como ficou a conhecer do respectivo conteúdo nesse mesmo ano.»
A decisão recorrida foi proferida finda a fase dos articulados da acção, após realização da audiência prévia, sem que o processo atingisse ainda a fase de instrução e julgamento.
Por conseguinte, nesta fase do processo apenas podem ser considerados provados os factos em relação aos quais conste do processo meio de prova com valor de prova plena ou em relação aos quais haja acordo das partes, o qual pode ser expresso ou ficto, como quando decorre do incumprimento de algum ónus de alegação ou impugnação.
O facto do ponto 5 respeita à data em que o autor teve conhecimento da utilização pela ré do seu nome e imagem no jogo denominado FIFA e diz-nos que o autor obteve esse conhecimento quando foi lançada a edição respectiva, isto é, no final do ano antecedente ao ano que identifica a edição em causa.
Este facto tem interesse para efeitos da prescrição do direito do autor e mais especificamente para efeitos da aplicação do disposto no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, que fixa o prazo de prescrição do direito de indemnização por responsabilidade civil por factos ilícitos em três anos a contar do conhecimento pelo lesado do direito que lhe compete, e da aplicação do disposto no artigo 482.º do Código Civil, que fixa o prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa em três anos a contar da data em que o empobrecido teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável.
A prescrição é uma excepção peremptória de direito material. A sua alegação e prova cabe ao demandado contra o qual o titular do direito pretende exercê-lo (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil). Por conseguinte, o réu tem o ónus de alegar, na contestação, os factos necessário para demonstrar o decurso do prazo de prescrição, ou seja, no caso, o facto que demonstre a data em que o autor teve conhecimento de que a sua imagem e o seu nome era utilizado pela ré no jogo que produz e comercializa.
Ao invés, não incide sobre o autor o ónus de na petição inicial alegar factos destinados a excluir a verificação da prescrição ou impeditivos desta. Isso não significa, contudo, que não se possa pronunciar sobre essa matéria, designadamente antecipando que a ré irá defender-se com a excepção; porém, ainda que o faça, se o réu na contestação não alegar a excepção da prescrição, o tribunal está impedido de conhecer da mesma, ainda que da alegação do autor possam decorrer factos em resultado dos quais, no entendimento do tribunal, o direito estaria prescrito.
Essa possibilidade também não obsta a que o autor, antecipadamente ou em resposta à alegação da excepção, possa alegar factos sobre essa matéria que o desfavoreçam e que possam aproveitar ao réu, permitindo-lhe demonstrar os factos necessários para o preenchimento da excepção.
Vejamos então o que o autor alegou a esse respeito na petição inicial.
No artigo 11.º deste articulado o autor alegou que «teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA … nas edições 2011, 2012, 2015, 2016, 2017 e 2018; FIFA MANAGER, nas edições 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2012, 2015, 2016, 2017 e 2018 e FIFA MOBILE na edição de 2018, todos propriedade da ré».
É manifesto que o autor alegou que teve conhecimento da utilização da sua imagem, nome e características pessoais e profissionais em determinados jogos editados em sucessivos anos anteriores, mas não alegou, seguramente de modo propositado, em que data teve esse conhecimento (… e não tinha de alegar esse facto).
Não se encontra em nenhum artigo da petição inicial qualquer referência ao momento temporal, relevante para efeitos da prescrição, da aquisição do conhecimento da utilização.
Não há nisso, note-se, qualquer incoerência ou contradição.
O autor antecipou de facto que a ré iria defender-se de todas as maneiras possíveis e que não deixaria de arguir a prescrição e por isso procurou, por um lado, tecer de imediato considerações de direito sobre a matéria da prescrição, designadamente sobre o modo como o prazo deverá ser contado em virtude da natureza duradoura e/ou reiterada do acto que constitui a violação ilícita do seu direito, e, por outro lado, não se comprometer sobre a data em que obteve o conhecimento dessa violação por caber à ré o ónus de o alegar e demonstrar.
Os jogos podem ter sido lançados numa determinada data e o autor apenas ter tido conhecimento de que o seu conteúdo incluía o seu nome, imagem, características pessoais e profissionais noutra data diferente, necessariamente posterior, bastando para isso que não tivesse tido acesso ao jogo imediatamente após o seu lançamento. Não há absolutamente nenhuma estranheza ou contradição lógica nesta possível localização temporal diferente dos dois acontecimentos (lançamento do jogo, conhecimento do seu conteúdo por uma pessoa concreta).
Também o facto de ser conhecido que numa determinada edição isso acontece não implica que passe a ser conhecido antecipadamente que as edições posteriores continuarão a fazê-lo, uma vez que cada versão é uma nova versão, apresentada ao público como uma versão modificada e melhorada, e cujo conteúdo é decidido pelo titular dos direitos de edição do jogo, não tendo um terceiro como saber qual foi essa decisão antes de aceder à nova versão, necessariamente depois do lançamento desta e só depois disso.
Diremos mesmo que em resultado do volume da publicidade com que o jogo é promovido o conhecimento da existência do jogo é quase do domínio público e não é por isso que todo o cidadão do planeta tem de imediato conhecimento dos jogadores cujos nomes e imagens são usadas no mesmo ou adquire o jogo para obter esse conhecimento ou estar em condições de o obter.
Não é, pois, possível, sustentar que a posição do autor na petição inicial encerra qualquer admissão da data em que teve conhecimento da utilização do seu nome e imagem, designadamente que obteve esse conhecimento mais de três anos antes da instauração da acção. O que se retira da petição inicial é apenas o facto que o tribunal a quo inseriu no ponto 2 da fundamentação de facto e que provém do citado artigo 11.º da petição inicial.
A ré na contestação ocupou-se naturalmente da arguição da excepção da prescrição.
Ciente da dificuldade em fazer a prova directa da data em que o autor teve conhecimento da utilização do seu nome e imagem (até porque, em rigor, não a conhece e dificilmente terá como a conhecer), a ré começa por alegar que o conhecimento do jogo é um facto notório, que o conhecimento e uso do jogo pelos próprios jogadores de futebol profissional é um dado comum, ocorrendo com o autor, para depois afirmar que logo aquando da sua inclusão, em 2009, no jogo FIFA MANAGER 10, o autor representou ou pôde representar que a sua imagem estava no jogo, e que em 2015, numa entrevista à televisão, o autor revelou que conhecia o jogo FIFA e sabia que os jogadores profissionais, como ele próprio, são representados no jogo.
São estas as duas datas alegadas pela ré para situar o momento do conhecimento pelo autor da utilização ilícita do seu nome e imagem. Como é óbvio, em relação a nenhuma delas existe meio de prova com valor de prova plena. Aliás, para concluir no sentido dessas datas, a própria ré apela às regras da experiência, da mesma forma que na entrevista do autor de 2015 não existe uma afirmação que diga exactamente o que a ré pretende (jogar PlayStation não é exactamente o mesmo que jogar o jogo FIFA no equipamento PlayStation).
Não obstante isso, o tribunal a quo considerou estar já provado que o autor teve conhecimento da utilização do seu nome e imagem logo «no final do ano» do lançamento do primeiro jogo em que isso ocorreu, isto o FIFA MANAGER 10, lançado em 30 de Outubro de 2009.
Esse facto, note-se, nem sequer corresponde ao alegado pela ré porque em relação a esse momento o que ela alegou foi apenas que o autor «representou ou pôde representar (era-lhe exigível) que a sua imagem estava nesse jogo».
Para justificar a decisão de julgar provado o facto do ponto 5 o tribunal a quo assinalou no proémio da fundamentação de facto ter considerado assentes os respectivos factos «considerando as admissões vertidas na petição inicial e o não cumprimento do ónus de impugnação especificada» no que respeita a esses factos.
Resulta desta afirmação que para julgar provado aquele facto o tribunal a quo entendeu que o autor admitiu na petição inicial que teve conhecimento da utilização do seu nome e imagem logo em 2009, aquando do lançamento do primeiro jogo que faz essa utilização, ou entendeu que o autor não cumpriu o ónus de impugnação especificada da alegação desse facto por parte da ré na contestação.
A primeiro argumento não é correcto: em lado algum da petição inicial o autor admitiu que teve conhecimento da utilização pela ré do seu nome e imagem logo no final de 2009.
Conforme já se referiu, foi de forma propositada que o autor não fez qualquer alusão à data em que tomou conhecimento dessa utilização, atitude que constitui uma estratégia processual perfeitamente legítima por se traduzir em deixar para a ré a alegação dos factos necessários ao preenchimento da excepção da prescrição e que nos termos legais constituem ónus desta.
O segundo argumento também não é, salvo melhor opinião, correcto.
No antigo Código de Processo Civil a réplica servia para o autor responder à matéria das excepções deduzidas pelo réu na contestação (artigo 502.º do Código de Processo Civil). Essa resposta constituía mesmo um ónus para o autor uma vez que nos termos do artigo 505.º a falta de apresentação da réplica ou a falta de impugnação nela dos factos alegados pelo réu na contestação tinha «o efeito previsto no artigo 490.º», isto é, consideravam-se «admitidos por acordo os factos que não forem impugnados».
O novo Código de Processo Civil não contém a norma que constava do artigo 505.º do antigo Código de Processo Civil, melhor dizendo, a norma que actualmente corresponde àquela apenas contém parte do que anteriormente se dispunha.
No novo Código de Processo Civil os articulados passaram a ser em regra apenas dois: a petição inicial e a contestação. Nos termos do artigo 584.º a réplica deixou de ser permitida para o autor responder à matéria das excepções alegadas pelo réu na contestação, e passou a ser admissível apenas para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção ou nas acções de simples apreciação negativa, para o autor impugnar os factos constitutivos que o réu tenha alegado e para alegar os factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo réu.
É para essa situação que rege directamente o artigo 587.º do Código de Processo Civil (que corresponde parcialmente ao antigo 505.º) a falta de apresentação da réplica ou a falta, nela, de impugnação dos novos factos alegados pelo réu (nas acções de simples apreciação negativa) tem o efeito previsto no artigo 574.º, isto é, consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a posição da parte considerada no seu conjunto, não for admissível confissão sobre eles ou só puderem ser provados por documento escrito.
Quando na contestação o réu alega excepções, a resposta do autor à matéria correspondente pode ser apresentada na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (artigo 3.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Existe alguma controvérsia quanto ao seguinte: (i) se o autor pode ou deve aproveitar a réplica cabida processualmente (por o réu ter deduzido reconvenção ou se tratar de uma acção de simples apreciação negativa e o réu ter alegado os factos constitutivos do direito) para responder antecipadamente à matéria das excepções (a que, de outro modo, podia responder mais tarde); (ii) se, não cabendo réplica, o autor tem o ónus de responder (deve) à matéria das excepções deduzidas na contestação ou apenas tem o direito de responder (pode), isto é, se caso não responda se produz o efeito cominatório de se considerarem confessados os factos da matéria da excepção não impugnados; (iii) se o tribunal pode convidar o autor a responder por escrito antes do momento processualmente definido para a resposta (audiência prévia, audiência final), sob cominação de, não respondendo, se considerarem confessados os factos articulados, e, caso não seja apresentada resposta, se produz tal cominação em relação à matéria de facto (ou seja, se o efeito cominatório que a lei não prevê explicitamente pode ser fixado por despacho judicial).
A resenha das posições conhecidas sobre essa matéria encontra-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 22-03-2018, proc. n.º 207/14.3TVLSB.L1-2, e no Acórdão da Relação de Guimarães de 06-10-2022, proc. n.º 97235/21.1YIPRT.G1, in www.dgsi.pt. No entanto, no caso não é necessário abordar e tomar posição sobre nenhuma dessas questões porque o autor foi convidado pelo tribunal a responder por escrito à matéria das excepções deduzidas pela ré na contestação, «com a advertência vertida nos artigo 587º, n.º 1, e 574º do Código de Processo Civil» e, estivesse ou não obrigado a responder e/ou sujeito à cominação assinalada no despacho, respondeu de facto a essa matéria.
Na resposta que apresentou em 04-03-2021, o autor afirma no artigo 4.º que «contesta todos os factos articulados pela ré, que alegadamente servem de suporte às peticionadas excepções, porquanto, ou não são verdadeiros ou é falsa a interpretação que lhes é dada pela ré». Depois no artigo 5.º afirma que «impugna todos os documentos juntos e que lhe servem de sustentação, porquanto deles não se extraem as consequências pretendidas pela ré».
Recorde-se que um desses documentos é o registo videográfico da entrevista que o autor deu em 2015 e na qual, na interpretação que a ré pretende que se faça da resposta do autor a uma pergunta, ele teria admitido jogar (logo, conhecer) o jogo FIFA. A seguir, nos artigos 6.º a 18.º, o autor ocupa-se de desenvolver as razões de natureza jurídica em função das quais entende que a excepção improcede.
O que é o ónus de impugnação? É o dever de tomar posição definida perante os factos, para impedir que estes se considerem confessados (artigo 574.º do Código de Processo Civil).
A parte sobre a qual recai esse ónus não pode remeter-se a meias palavras, a posições dúbias ou de meias-tintas, que deixam dúvidas sobre o que realmente ele entende sobre os factos carecidos de impugnação. É isso o que significa tomar posição definida, ou seja, assumir em relação ao facto uma posição esclarecida, precisa ou nítida.
Todavia, esse ónus já não reclama que a parte contraponha ao facto que impugna ou considera falso outro facto, o facto que entende ser então o verdadeiro. Por outras palavras, o ónus de impugnação é um ónus de tomar uma posição clara sobre o facto carecido de impugnação, não um ónus de motivar a sua posição e/ou de contrapor aos factos impugnados os factos que a seu ver correspondem à verdade.
Escreveu Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, volume III, 4.ª edição, reimpressão, pág. 50, a propósito do artigo 494.º do Código de Processo Civil então vigente que ditava que o réu deve tomar posição definida quanto aos factos articulados na petição:
«O que quer isto dizer? Quer dizer que, perante os factos articulados pelo autor na petição inicial, o réu não pode ficar numa atitude de silêncio, de indiferença ou de passividade; tem de se pronunciar sobre eles, tem de declarar se os aceita como exactos, ou se os repele como contrários à verdade. Se nada disser, entende-se que os admite como verdadeiros».
Nas palavras de Antunes Varela J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, 1985, pág. 314,
«o réu, ao elaborar a contestação, tem que tomar posição definida perante os factos narrados pelo autor, como fundamento da sua pretensão. Não pode remeter-se a uma posição cómoda de silêncio ou inércia. Pelo contrário, tem que declarar, no articulado da sua defesa, se aceita esses factos como reais, ou se os repele como inexistentes».
Para Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, 2015, volume II, pág. 145:
“ na contestação «deve o réu tomar posição definida (que não especificada por cada um deles) perante os factos que constituem a causa de pedir pelo autor invocada na petição» (cf. o nº 1 do art. 574º). O réu ou demandado não podem remeter-se a uma atitude passiva (de não pronúncia) sobre os factos articulados pelo autor. Daí não se segue que tal impugnação careça de ser motivada (fundamentada), através de uma contra-versão dos factos alegados pelo autor, bastando para satisfação daquele ónus a mera negação expressa do ou desses factos”.
Segundo Montalvão Machado/Paulo Pimenta, in O Novo Processo Civil cit., págs. 172-173, há impugnação válida quando:
«o réu rejeita a veracidade dos factos aduzidos pelo autor, seja porque constituam puras inverdades, seja porque não tenham ocorrido da forma alegada, seja porque, simplesmente, os desconhece (não tendo obrigação de os conhecer).»
Para Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa, 3.ª edição, 2013, pág. 101, esse ónus é satisfeito quando:
«o réu afirma a inocorrência do facto alegado pelo autor ou a verificação de outro facto com ele incompatível. Mas se estiver em dúvida sobre a realidade de determinado facto, a manifestação dessa dúvida basta para constituir impugnação, desde que não se trate de facto pessoal ou de que ele deva ter conhecimento, valendo como admissão no caso contrário».
Para Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, 3.ª edição, 2024, pág. 205, o ónus de na contestação o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor significa que:
«o réu não pode remeter-se a uma atitude passiva, não se pronunciando sobre os factos articulados pelo autor, devendo, isso sim, impugnar os factos que não reconheça ou não aceite. Tal impugnação não carece, porem, de ser motivada, através de uma contraversão dos factos articulados pelo autor. Basta a mera negação expressa do ou dos factos alegados. Se o réu não tomar posição sobre aqueles factos, entende-se que os admite como exactos.»
Para Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, pág. 647, o ónus de impugnação significa que:
«o réu não pode remeter-se a uma atitude passiva, não se pronunciando sobre os factos articulados pelo autor, devendo impugnar os factos que não reconheça ou não aceite como verdadeiros. Tal impugnação não carece, porem, de ser motivada, através de uma contraversão dos factos articulados pelo autor, bastando a mera negação expressa de factos alegados na petição (…).»
Como se vê, é unanime a posição segundo a qual o réu só tem de tomar uma posição clara sobre os factos alegados pelo autor, afirmando se os aceita ou os impugna, por os considerar não verdadeiros ou os desconhecer, não sendo eles pessoais. Ao invés, esse ónus do autor não exige que ele contraponha aos factos alegados pelo autor que considera não verdadeiros, a versão dos factos que na sua opinião são os verdadeiros, nem, tão pouco, que motive a sua posição, alegando porque os considera falsos ou donde retira a falsidade desses factos.
Ora, no caso, como vimos, na resposta à contestação, o autor afirma, no artigo 4.º do seu articulado, que contesta todos os factos articulados pela ré de suporte às excepções, porque esses factos ou não são verdadeiros ou é falsa a interpretação que lhes é dada pela ré. E de seguida, afirma que impugna os documentos juntos para servirem de sustentação a esses factos porque estes não consentem as consequências pretendidas pela ré.
Por outras palavras, o autor não se limitou a tecer considerações de direito sobre a excepção da prescrição e a defender, com base nelas, que esta deve improceder, o que faz nos artigos 6.º a 18.º. Prévia e cumulativamente, o autor tomou posição definida sobre os factos alegados para fundamentar a excepção da prescrição e que correspondem basicamente aos factos atinentes à data em que o autor teve conhecimento de que o seu nome e imagem estavam a ser utilizados pela ré no jogo FIFA, afirmando que esses factos são falsos.
De referir que grande parte desses factos, quase a sua totalidade, são meros factos indiciários ou instrumentais uma vez que a ré não consegue afirmar em que data teve o autor efectivamente conhecimento daquela utilização e, por isso, alega factos destinados a permitir, por apelo às regras da experiência e a presunções naturais, alcançar um convicção sobre uma data em que tal conhecimento já existia ou se deve considerar que existia.
No actual Código de Processo Civil o ónus de impugnação incide somente sobre os factos essenciais que constituem a causa de pedir, leia-se, por aplicação ao autor do ónus de impugnar os factos alegados pelo réu na contestação em sede de defesa por excepção, sobre os factos essenciais que constituem a excepção.
Isso é assim porque nos termos do artigo 5.º, n.º 1, atinente ao dever de alegação, as partes apenas estão oneradas com o dever de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, e nos termos do n.º 1 do artigo 574.º, que consagra o ónus de impugnação, ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, esclarecendo a parte final do n.º 2 que a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.
Em conformidade com essa restrição dos deveres de alegação e do ónus de impugnação aos factos essenciais, permite o n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil, que além dos factos articulados pelas partes, o juiz possa considerar «os factos instrumentais que resultem da instrução da causa».
Daí que se possa ler em Paulo Pimenta, loc. cit., pág. 207, o seguinte: «face ao nº 1 do art. 5º, o ónus de alegação do autor na petição inicial limita-se aos “factos essenciais que constituem a causa de pedir”. Daqui resulta, além do mais, não haver preclusão quanto a factos (essenciais) complementares ou concretizadores dos inicialmente alegados. E mais resulta não haver ónus de alegação nem, tão pouco, preclusão quanto a factos instrumentais. É na base disto que o nº 1 do artigo 574º reconduz o ónus de impugnação do réu aos “factos que constituem a causa de pedir”
E em Ferreira de Almeida, loc. cit., pág. 146, o seguinte:
«A estatuição do nº 2 do artº 574º (admissão por acordo dos factos não oportunamente impugnados) encontra-se umbilicalmente ligada à da al. a) do nº 2 do artº 5º (oficiosidade da consideração dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa). O 1º e o 2º segmentos do nº 2 daquele primeiro preceito - devidamente reportados e conjugados com a aludida oficiosidade - devem ser interpretados em ordem à admissibilidade da prova da veracidade/verosimilhança ou da inveracidade/ inverosimilhança dos factos instrumentais, independentemente da impugnação ou não impugnação dos correspondentes factos essenciais. Com efeito, como resultado da actividade instrutória, pode ser processualmente adquirida, não só a provada “inveracidade” de um facto instrumental não impugnado, como também a prova da “veracidade” de um facto instrumental incompatível com a admissão por acordo de um facto essencial não impugnado. A eventual preclusão dessa prova (por força de um pressuposto efeito cominatório/probatório) quando o correspondente facto essencial não houvesse sido impugnado poderia redundar numa decisão final segundo uma verdade meramente formal em detrimento da sempre almejada verdade material. Assim, se adquirido no processo um dado facto instrumental considerado inverídico, não pode o mesmo “servir de base à inferência do correspondente facto essencial, pelo que não pode dar-se por processualmente adquirido (por admissão) esse facto essencial.»
Ao fazer esta afirmação o autor está a acompanhar a posição de Miguel Teixeira de Sousa expressa no blog do IPPC, na entrada de 21/01/2015, no endereço electrónico https://blogippc.blogspot.com, que discute a questão de saber como compatibilizar a não impugnação dos factos essenciais alicerçados em presunções decorrentes de factos instrumentais com a possibilidade de na instrução da causa se vir a apurar um facto instrumental incompatível com o facto essencial não impugnado. Teixeira de Sousa defende ali o seguinte:
«-Se o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC – que, recorde-se, permite a aquisição de factos instrumentais durante a instrução da causa - não tem nenhuma relevância para a conjugação da primeira e segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC, então pode concluir-se que apenas factos instrumentais alegados por uma das partes e que não tenham sido impugnados pela contraparte podem vir a ser dados como não provados;
- Pelo contrário, se o estabelecido no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC releva para a interpretação do art. 574.º, n.º 2, CPC, então há que concluir que, durante a instrução da causa, pode ser adquirida não só a prova da não veracidade de um facto instrumental não impugnado, mas também a prova da veracidade de um facto instrumental incompatível com a admissão por acordo de um facto essencial não impugnado.
A conjugação da não impugnação do facto essencial com a não preclusão da prova da não veracidade do facto instrumental também não impugnado pode ser entendida no sentido de que aquela não impugnação preclude esta prova, ou seja, de que a não impugnação do facto essencial - e, portanto, a sua admissão por acordo - preclude a prova da não veracidade do facto instrumental. Nesta interpretação, o disposto no art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC só é aplicável se o correspondente facto essencial tiver sido impugnado; se assim não suceder, a prova da não veracidade do facto instrumental encontra-se precludida, pelo que nada pode afastar a admissão por acordo do facto essencial.
É discutível que esta seja a melhor forma de conjugar aqueles elementos legais. O principal argumento que pode ser aduzido contra aquela solução é o de que a preclusão da prova da não veracidade do facto instrumental quando o correspondente facto essencial não tenha sido impugnado conduz à decisão do processo segundo uma verdade formal ou, até talvez melhor, a uma decisão contra veritatem. Foi adquirido no processo que o facto instrumental não é verdadeiro e que, portanto, este facto não pode servir de base à inferência do facto essencial; ainda assim, mantém-se adquirido para o processo o correspondente facto essencial, mesmo na hipótese de não ter sido provado nenhum outro facto instrumental do qual se possa inferir a sua verdade.
Um outro argumento contra aquela solução é retirado da possibilidade da aquisição de factos instrumentais durante a instrução incompatíveis com o facto essencial (art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC). Este preceito permite que o juiz considere os factos instrumentais que resultem da instrução da causa: esses factos instrumentais são certamente os factos que provam algum dos factos essenciais alegados pelas partes; mas, segundo parece, nada impede que o juiz também possa considerar factos instrumentais que provem a não veracidade de um facto essencial invocado pela parte e não impugnado pela contraparte.
Do exposto decorre que a primeira e a segunda partes do n.º 2 do art. 574.º CPC devem ser conjugadas no sentido de que a prova da não veracidade do facto instrumental é admissível tanto quando o correspondente facto essencial tenha sido impugnado, como quando este facto não tenha sido impugnado; dito de outro modo: o art. 574.º, n.º 2 2.ª parte, CPC é aplicável qualquer que tenha sido a posição da parte quanto ao facto essencial alegado pela outra parte, isto é, mesmo que, nos termos no art. 574.º, n.º 2 1.ª parte, CPC, esse facto essencial deva considerar-se admitido por acordo por falta de impugnação.
Além disso, do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), CPC resulta a possibilidade da aquisição de factos instrumentais contrários a factos essenciais alegados pelas partes. Não há nenhum motivo para se entender que os factos instrumentais que podem ser adquiridos durante a instrução da causa só possam ser aqueles que confirmem factos essenciais alegados pelas partes; também estão sujeitos à mesma regra de aquisição factos que contrariam esses factos essenciais.
Assim, em função da prova realizada, o juiz pode considerar, por exemplo:
- A prova do rastro de travagem, apesar de este não ter sido alegado pelo autor; em concreto, o juiz pode dar como provada a velocidade excessiva do veículo alegada por aquela parte com base neste facto adquirido durante a instrução da causa;
- A prova de uma deficiência mecânica no veículo, apesar de este facto não ter sido alegado pelo réu; com base nesta prova, o juiz pode dar como não provada a negligência do condutor, mesmo no caso de o réu não ter impugnado este facto essencial.
Se assim é, pode então concluir-se que os factos instrumentais adquiridos durante a instrução da causa permitem tanto uma prova positiva ou confirmatória de um facto essencial alegado, como uma prova negativa ou infirmatória de um facto essencial invocado e não impugnado (e, portanto, admitido por acordo). O actual processo civil português permite que se considere não provado um facto essencial não impugnado e, portanto, admitido por acordo: isso é o que sucede quando, apesar de o facto essencial não ter sido impugnado, for dado como provado um facto instrumental incompatível com aquele facto essencial.
Até agora considerou-se apenas o caso em que o réu não impugna nem o facto essencial, nem o facto instrumental alegado pelo autor. Os resultados adquiridos também valem, no entanto, para duas outras hipóteses:
– Aquela em que o autor alegou o facto essencial e o facto instrumental, mas o réu impugnou apenas este facto (situação correspondente à segunda hipótese referida no n.º 2); se for provado um facto instrumental incompatível com o facto essencial não impugnado, há que considerar este facto como não provado;
– Aquela em que o autor só alegou o facto essencial e em que o réu não o impugnou; também nesta situação, a não impugnação do facto essencial e a correspondente admissão por acordo não impedem que este venha a ser considerado não provado se for demonstrado um facto instrumental incompatível com a sua verdade.»
Como quer que seja, a situação com que nos deparamos no caso é a de os factos alegados pela ré para sustentar a excepção da prescrição, os quais, recorde-se, são quase exclusivamente instrumentais, sendo o facto essencial apenas o de que mais de três anos antes da instauração da acção o autor conhecia (ou devia conhecer) que o seu nome e imagem estavam a ser utilizados pela ré, terem sido objecto de impugnação válida por parte do autor na resposta que foi convidado a apresentar antes da audiência prévia, porquanto ele afirmou expressamente que esses factos não são verdadeiros ou não consentem a extrapolação que a partir dele a ré pretende fazer.
Por conseguinte, o facto do ponto 5 (que nem sequer corresponde ao facto essencial alegado pela ré para consubstanciar a defesa da prescrição do direito do autor) não se encontra ainda provado; ao invés, está validamente impugnado, carece de prova e essa prova resultará essencialmente da demonstração de factos instrumentais que pode ser feita livremente na audiência de julgamento.
Sendo assim, o facto do ponto 5 deve ser considerado como controvertido.


V. Fundamentação de facto:
Expurgada do facto que acaba de ser abordado (ponto 5), a decisão recorrida apresenta a seguinte fundamentação de facto:
1. A ré A... Inc., através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interactivo.
2. O autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2011, 2012, 2015, 2016, 2017 e 2018; FIFA MANAGER, nas edições 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT3 2012, 2015, 2016, 2017 e 2018 e FIFA MOBILE na edição de 2018.
3. As datas de lançamento destes jogos foram aproximadamente as seguintes:
a) FIFA 11: 28.09.2010, nos EUA e 01.10.2010, na Europa;
b) FIFA 12: 27.09.2011, nos EUA e 30.09.2011, na Europa;
c) FIFA 15: 23.09.2014, nos EUA e 25.09.2014, na Europa;
d) FIFA 16: 22.09.2015, nos EUA e 24.09.2015, na Europa;
e) FIFA 17: 27.09.2016, nos EUA e 29.09.2016, na Europa;
f) FIFA 18: 29.09.2017, em todo o mundo;
g) FIFA MANAGER 10: 30.10.2009, em todo o mundo;
h) FIFA MANAGER 11: 29.10.2010, na Europa e 03.11.2010, nos EUA;
i) FIFA MANAGER 12: 14.10.2011;
j) FIFA MANAGER 13: 26.10.2012, na Europa;
k) FIFA MANAGER 14: 25.10.2013, na Europa; e
l) FIFA MOBILE 18: 01.11.2017, em todo o mundo.
4. O FIFA ULTIMATE TEAM é um modo de jogo online dentro do jogo FIFA e não um jogo diferente.
6. As novas versões dos jogos electrónicos FIFA e FIFA MANAGER são lançadas anualmente, permitindo actualizações semanais via internet, com a utilização da imagem e do nome do autor.
7. Estes jogos continuam a ser difundidos e vendidos em Portugal e em todo o mundo.
8. O autor não concedeu autorização à ré para ser incluído nestes jogos.
9. A presente acção foi instaurada em 27 Agosto de 2020.
10. A ré foi citada para os termos da presente acção em Novembro de 2020.


VI. Matéria de Direito:
A decisão recorrida foi proferida uma vez findos os articulados da acção, ou seja, trata-se de um despacho saneador no qual se conheceu de imediato da excepção peremptória da prescrição e se absolveu a ré do pedido.
Nos termos do artigo 595.º do Código de Processo Civil, o despacho saneador destina-se, entre outras finalidades, a «conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória».
Esta norma permite ao juiz, imediatamente após o fim dos articulados, conhecer do mérito da causa através da apreciação do pedido ou de alguma excepção peremptória. Esse conhecimento está, nos termos expressos da norma, dependente de um pressuposto: que não haja necessidade de produzir mais provas sobre a matéria sobre que irá recair esse conhecimento.
Esse pressuposto estará verificado desde logo nos casos em que a apreciação do pedido ou da excepção seja absolutamente independente do apuramento de factos: se o conhecimento do mérito do pedido ou da excepção não depende de factos, não há necessidade de provar factos.
Estará igualmente verificado nos casos em que toda a matéria de facto necessária para o conhecimento a ter lugar se encontrar já provada por confissão ou por documento com valor de prova plena. Nessa situação, o conhecimento imediato no saneador é possível porque, ao terem sido admitidos por acordo ou falta de impugnação ou haver nos autos prova plena dos mesmos, os factos indispensáveis já se encontram definitivamente provados.
Aquele pressuposto estará ainda preenchido nos casos, menos comuns, de os factos que permanecem controvertidos serem absolutamente indiferentes para o conhecimento ou de os factos que permanecem controvertidos só admitirem prova documental e a parte tenha sido notificada para os juntar.
Em qualquer das situações mencionadas, o juiz está em condições de conhecer do mérito por não ser necessária outra prova. Fora dessas situações, estando o julgamento dependente de factos que carecem de prova que deva ser produzida na audiência de julgamento (v.g. prova por declarações), o juiz não pode conhecer de imediato do mérito e deve fazer prosseguir a acção para a audiência de julgamento.
Face ao que ficou decidido em sede de fundamentação de facto e mais precisamente em resultado da eliminação dessa fundamentação do ponto 5, é manifesto que a decisão recorrida deve ser revogada.
Essa fundamentação ainda não permite afirmar em que data o autor teve conhecimento do direito que lhe compete, facto que é essencial para decidir se a excepção da prescrição do direito do autor é procedente ou improcedente.
Este facto é ainda, na fase actual do processo, controvertido, e terá de ser averiguado na instrução da causa, no decurso da produção de prova, e julgado em função da prova que vier a ser produzida e dos factos instrumentais que vierem a ser demonstrados.
Em consequência, a decisão deve ser revogada e o conhecimento da excepção relegado para final.
Diga-se que a excepção da prescrição é uma só, razão pela qual deve ser objecto de uma decisão unitária ainda que possam haver danos geradores de um direito de indemnização que mereça tratamento eventualmente diferenciado (v.g. distinguindo os danos que resultem das versões ou edições do jogo lançadas apenas dentro dos três anos anteriores à instauração da acção – citação da ré).


VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida relegando para final o conhecimento da excepção da prescrição e determinando por isso o prosseguimento dos autos para instrução e julgamento.
Custas do recurso pela recorrida, a qual vai condenada a pagar ao recorrente, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
*



Porto, 9 de Janeiro de 2025.
*

Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 868)
1.º Adjunto: Isabel Silva
2.º Adjunto: Ana Luísa Loureiro








[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]