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DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
COMPROPRIEDADE
PAGAMENTO DE EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
Sumário
I - Sendo o título constitutivo da compropriedade um contrato, a sua génese e fundamento reside na vontade das partes. II - Não sendo questionada a autoria da escritura pública nem arguida a sua falsidade, o documento tem-se por autêntico. III - A força probatória plena do documento autêntico não abrange a veracidade e/ou sinceridade das declarações prestadas nem demonstra a inexistência de vícios de vontade. IV - As declarações negociais, não sendo a sua validade e eficácia jurídica postas em causa pela divergência entre elas e a vontade real dos declarantes ou por vício na sua formação, têm a eficácia que o direito material lhes atribuir. V - As quotas dos comproprietários são definidas no título constitutivo e, na falta de indicação em contrário do documento que o suporta, presumem-se quantitativamente iguais. VI - O pagamento por um dos consortes das prestações do empréstimo bancário contraído para a aquisição da fracção comum não altera a proporção da participação dos comproprietários, sem prejuízo da compensação de créditos a que haja lugar.
Texto Integral
Proc. n.º 396/24.9T8GDM.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 3
Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha
2.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva
Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório.
Recorrente: AA
Recorrida: BB
BB
propôs contra AA
acção de divisão de coisa comum relativamente ao imóvel de que alega serem comproprietários por ambos o terem adquirido antes de contraírem casamento entretanto dissolvido por divórcio.
Com o seu requerimento, indicou prova.
Citada, a requerida apresentou contestação impugnando que o requerente seja comproprietário do imóvel em causa porquanto o mesmo foi adquirido com dinheiros que o seu avô lhe doou e pedindo que lhe seja reconhecida a propriedade plena sobre o mesmo.
Com a Contestação, a requerida indicou prova.
Em resposta, o requerente sem prejuízo de entender que a requerida não deduziu qualquer reconvenção que cubra o seu pedido e admitindo que algumas das quantias mencionadas pela requerente foram doadas pelo seu avô, defendeu que não foram doadas à requerida mas antes a esta e a si, que, de resto, também contribuiu para o património comum com dinheiros próprios.
Junto o assento de casamento que solicitou, o Tribunal proferiu a seguinte decisão:
I. RELATÓRIO
BB, contribuinte fiscal ..., divorciado, residente na Rua ..., ..., 13º, hab. ..., ... Porto, propôs a presente Ação de Divisão de Coisa Comum destinada a colocar termo à compropriedade do imóvel identificado na petição inicial, contra AA, contribuinte fiscal ..., divorciada, residente na Rua ..., ..., 1º Esqº tras., ... ..., Gondomar
*
Devidamente citada, a Ré ofereceu contestação por meio da qual sustenta que o imóvel não é detido em compropriedade por ambos, mas é um bem próprio seu por ter sido integralmente pago com dinheiro que lhe foi doado pelo seu avô.
Os autos estão dotados de todos os elementos que habilitam o tribunal a decidir.
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O Tribunal é competente.
Não há nulidades que invalidem totalmente o processado.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e tem Advogado constituído.
Não há outras nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
A. A divisibilidade do bem
B. As quotas do autor e da ré
III. FUNDAMENTAÇÃO
De facto
1. A fração autónoma designada pela letra “Y”, correspondente a uma habitação situada no primeiro andar esquerdo traseiras (bloco ...), com aparcamento na cave, com entrada pelos números ... e ..., do prédio sito na Rua ..., da União de freguesias ... e ..., concelho de Gondomar, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... - Y e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ..., mostrando-se, pela Ap. ... de 2004/08/30, o direito de propriedade averbado a favor de Autor e Ré.
2. A 12 de outubro de 2004, Autor e Ré outorgaram acordo escrito intitulado “Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca”, na qual se identificam como “Segundos Outorgantes”, sendo “Primeira Outorgante” “A..., S.A.”, e no qual consta, com relevância para os autos, que esta vende aos segundos outorgantes, pelo preço de € 87.788,00 que já recebeu, a fração supra identificada, ali declarando o Autor e a Ré que aceitam a venda, que a fração se destina a sua habitação própria e permanente e que, para pagamento do referido preço, utilizaram o saldo da sua conta poupança habitação aberta no Banco 1..., S.A.
3. No mesmo escrito, Autor e Ré confessaram-se solidariamente devedores ao “Terceiro Outorgante”, o Banco 1..., S.A. da quantia de € 70.000,00, que receberam a título de empréstimo concedido ao abrigo do regime de crédito à habitação regulado pelo Decreto-Lei n.º 349/98.11.11, pelo prazo de 480 meses para ser aplicado na referida aquisição, para garantia do qual constituíram hipoteca sobre a referida fração, a favor do Banco.
4. Em 03 de junho de 2006, Autor e Ré contraíram casamento civil sob o regime da comunhão de adquiridos, casamento que foi dissolvido por divórcio por sentença transitada em julgado em 08 de fevereiro de 2024.
5. Autor e Ré não chegam a acordo quanto à divisão.
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Motivação
Para dar como provados os factos que antecedem, o Tribunal atendeu ao teor da descrição predial, da caderneta predial e da escritura pública e cópia do assento de casamento e, quanto ao facto 5), na confissão resultante da não impugnação.
De Direito
Assente a matéria de facto relevante, vejamos o enquadramento jurídico da questão suscitada, de forma a decidir do pedido, nos termos dos arts. 926.º e segs. do C.P.Civil.
A compropriedade consiste na titularidade simultânea do direito de propriedade por duas ou mais pessoas relativamente à mesma coisa. Trata-se de um direito a uma quota alíquota do bem e não a parte determinada do mesmo na proporção da quota de cada uma.
A compropriedade ou propriedade em comum apresenta uma estrutura individualística, em que existe uma comunhão por quotas ideais, isto é, cada comproprietário ou consorte tem direito a uma quota ideal ou fração do objeto comum. A quota do direito subjetivo integra o património geral de cada comproprietário. (vd. Carlos Alberto da Mota Pinto - Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Ed. Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 349 e Heinrich Ewald Hörster – A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p. 197)
É, pois, a comunhão num único direito de propriedade, gozando cada consorte de direitos qualitativamente iguais, o que permite distinguir de figuras próximas como o condomínio, o concurso de direitos ou a comunhão de mão comum (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, 2.ª Edição, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 346 e 347).
Por esse motivo, os consortes exercem em conjunto os direitos e faculdades que pertencem ao proprietário singular, participando separadamente nas vantagens e encargos da coisa na proporção das suas quotas.
É, no entanto, claramente opção do legislador que a propriedade individual é preferível como forma de permitir um melhor aproveitamento das potencialidades da coisa sem a criação de litígios.
Nesse sentido dispõe o art. 1412.º do Cód. Civil o princípio de que nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, a não ser que tenha sido convencionado que a coisa se conserve indivisa.
A compropriedade pode cessar através de partilha amigável ou judicial.
In casu, resulta provado que o direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “Y”, correspondente a uma habitação situada no primeiro andar esquerdo traseiras (bloco ...), com aparcamento na cave, com entrada pelos números ... e ..., do prédio sito na Rua ..., da União de freguesias ... e ..., concelho de Gondomar, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ... - Y e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ..., mostra averbado a favor de Autor e Ré.
A Ré suscita, todavia, a questão de o bem não ser detido em compropriedade, sendo um bem próprio por ter sido pago com valores que lhe foram doados.
Resulta provado que, em 03 de junho de 2006, Autor e Ré contraíram casamento sob o regime da comunhão de adquiridos.
Nos termos do art. 1722.º do Cód. Civil «1. São considerados próprios dos cônjuges:
a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento;
b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação;
c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
2. Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum:
a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele;
b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento;
c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade;
d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento».
No presente caso, o bem imóvel foi adquirido anteriormente ao casamento, pelo que, ao abrigo da citada alínea a) do n.º 1, as quotas da compropriedade constituem bens próprios de Autor e Ré.
Se o imóvel tivesse adquirido posteriormente à celebração do casamento com fundos próprios de um dos cônjuges, poderia estar em causa a hipótese de sub-rogação.
Nos termos do disposto no art. 1723.º, al. c) do mesmo diploma: «Conservam a qualidade de bens próprios:
a) Os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca direta;
b) O preço dos bens próprios alienados;
c) Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges».
Como explica Rute Teixeira Pedro (in Código Civil Anotado, Volume II, 2.ª edição Revista e Atualizada, Almedina, 2021), o art. 1723.º “contempla a situação de ocorrência de uma sub-rogação real, isto é, a verificação da saída de um bem de um dado património e a entrada de outro no mesmo património, havendo um nexo entre os dois efeitos jurídicos, que podem ser desencadeados pelo mesmo ato (nesse caso, a sub-rogação será direta), ou por atos diversos, mas que apresentam uma conexão juridicamente relevante (sub-rogação indireta ou reemprego)”.
A lei enuncia assim várias modalidades em que a sub-rogação pode operar. As alíneas a) e
b) preveem a sub-rogação real direta, nos casos de troca direta com bens próprios de um dos cônjuges ou do preço dos bens próprios alienados. Nestes casos, a sub-rogação opera automaticamente, já que se verifica um nexo entre os dois efeitos jurídicos – a saída de um dado património e a entrada de outro.
Para a verificação de uma situação de sub-rogação indireta, nos termos da alínea c) do art.º 1723 (que é a hipótese que poderia estar em causa se o bem tivesse sido adquirido posteriormente à celebração do casamento), a norma prevê dois requisitos: a menção da proveniência do dinheiro ou valores no documento de aquisição ou equivalente, e a intervenção de ambos os cônjuges.
Nos presentes autos, nada consta do documento de aquisição e inexiste documento equivalente, até porque o bem foi adquirido quando Autor e Ré não eram ainda casados.
No caso, o título de aquisição é uma escritura pública de compra e venda, mútuo e hipoteca da qual resulta que o preço pelo qual a fração em causa nos autos foi adquirida (€ 87.788,00) foi paga por recurso a mútuo bancário (€ 70.000,00) e o remanescente por mobilização do saldo de conta poupança habitação de que Autor e Ré eram titulares.
Os factos alegados pela Ré para sustentar a sua pretensão de que se reconheça que o imóvel é apenas de sua propriedade não se reportam ao momento da aquisição do imóvel, mas a momento posterior e visam demonstrar que foi com recurso a dinheiro que lhe foi doado pelo seu avô que foi sendo liquidado o mútuo contraído pelas partes, de que ambos se confessaram solidariamente devedores.
Essas amortizações do empréstimo não afetam a natureza comum do imóvel, podendo, quando muito, sustentar o exercício do direito de regresso pela Ré. (art. 524.º do Cód. Civil).
É certo que a Autora alega que o valor pago a título de sinal (€ 25.000,00) também tem origem em doação de seu avô. Porém, não consta do título de aquisição que tenha sido entregue qualquer sinal.
Como explica o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08 de maio de 2012 (processo n.º 2800/09.8T2SNT.L1-7, in www.dgsi.pt): “A atribuição da percentagem da quota que cada um dos comproprietários na coisa comum fixa-se no momento da sua aquisição. E, a presunção de igualdade das quotas, prevista no nº2 do art. 1304º, só poderá ser afastada por elementos constantes do próprio título de aquisição e já não por elementos exteriores ao mesmo (sendo, assim, inadmissível a produção de prova testemunhal para prova de que a comparticipação de um dos comproprietários na aquisição do imóvel foi superior à dos demais, porque, por ex. suportou uma parte superior do preço do mesmo)”
Resulta demonstrado que Autor e Ré declararam aceitar a venda que lhes foi feita, não constando do título a proporção em que a adquiriram, pelo que, segundo o preceituado no art. 1403.º, n.º 2 do Cód. Civil, as suas quotas presumem-se iguais.
Segundo o disposto no art. 209.º do Cód. Civil «São divisíveis as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam».
Não se logrou demonstrar que o imóvel em causa é passível de ser dividido sem alterar a sua substância.
Conclui-se, pois, pela indivisibilidade legal do prédio urbano objeto da presente ação especial de divisão de coisa comum.
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IV. Responsabilidade pelas custas
Custas pelo Autor e pela Ré na proporção das quotas, visto ser esta a proporção em que tiram proveito da ação. – art. 527.º, n.º 1 in fine do C.P.Civil e art. 7.º, n.º 1 do R.C.Processuais
Valor da ação: € 69 897,45. – cfr. arts. 302.º, n.º 1, 305.º e 306.º, n.º 2 do C.P.Civil
V. DECISÃO
Pelo exposto, julgo verificada a situação de compropriedade, sendo fixada em ½ cada uma das quotas de Autor e Ré, declarando a fração autónoma descrita nos factos provados indivisível.
Custas pelo Autor e pela Ré na proporção das quotas
Registe e notifique.
Diligencie pelo registo da ação. – cfr. arts. 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, alínea a) e 8.º-B, n.º 3, todos do Código do Registo Predial.
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Para realização da conferência prevista no art. 929.º, n.º 2, do C.P.Civil, designo o próximo dia 26 de junho, pelas 14h00m.
Notifique”.
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a requerida, que, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“I - Alega a Ré, aqui Recorrente, na sua Contestação que o bem imóvel objeto da divisão de coisa comum foi totalmente pago com dinheiro doado pelo seu Avô.
II - Desde logo, aquando do Contrato Promessa de Compra e Venda, a quantia entregue ao promitente Vendedor a título de Sinal e princípio de pagamento, bem como todas as despesas com escritura e registos, foi feito com dinheiro doado pelo seu Avô, bem como a liquidação do mútuo que Autor e Ré contraíram aquando da aquisição
do imóvel.
III - Como bem salienta o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 13-04-2021, “aquilo que foi adquirido à custa da doação conserva a qualidade de bem próprio”.
IV - Entende, porém, a Meritíssima Juiz “a quo “que do título de aquisição não consta que tenha sido entregue qualquer sinal, nem que o imóvel foi pago com valores que haviam sido doados a Ré, aqui Recorrente.
V - Sendo certo que, que no título de aquisição, como resulta dos números 2 e 3 dos factos provados, consta que o imóvel foi adquirido pelo preço de 87.788,00 Euros e que foi pago com recurso a mútuo bancário no montante de 70.000,00 Euros.
VI - O que significa que a diferença entre o preço da aquisição do imóvel e o mútuo bancário foi pago como sinal e princípio de pagamento.
VII – Muito embora tal não conste do título de aquisição – Escritura Publica -, nos termos do Acórdão Uniformizador da Jurisprudência (AUJ nº 12/2015) a prova de que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou bens próprios pode ser feita por qualquer meio.
VII – Foram, assim, violados os artigos 1722 e 1723 al c) do Código Civil”.
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A recorrida não apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:
● o imóvel dos autos foi adquirido exclusivamente com dinheiro da requerida, e, em caso negativo,
● a proporção da quota de cada uma das partes.
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III. Fundamentação de facto.
Os factos a considerar para apreciar as questões objecto do presente recurso são os que constam do relatório supra e ainda o seguinte teor da escritura de compra e venda do imóvel dos autos:
(…)
(…)
(…)
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IV. Fundamentação de direito.
Delimitadas as questões essenciais a decidir, nos termos sobreditos sob o ponto II, cumpre apreciá-las, para o que se começa por convocar o art. 1403.º do CC que, sob a epígrafe de “Noção”, dispõe: primeiro que existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (n.º 1); segundo que os direitos dos consortes ou comproprietários sobre coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes (n.º 2) e terceiro que as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo (n.º 2).
Do mesmo passo, importa salientar que, como escreve A. Santos Justo (e se pode ler no acórdão do STJ de 7/06/2022, rel. Jorge Arcanjo, Proc. n.º 1517/20.6T8FAR.E1.S1, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2022:1517.20.6T8FAR.E1.S1.A4/), “a compropriedade pode ser constituída por:
1. negócio jurídico inter vivos ou mortis causa;
2. disposição legal.
(…)
3. decisão judicial (…)” (in “Direitos Reais”, Quid Juris, Sociedade Editora, 7.ª Edição, pág. 346).
Na situação dos autos, foi por via de um contrato de compra e venda que as partes, ainda solteiras, adquiriram o imóvel em causa para a sua habitação própria e permanente, utilizando para pagamento do preço de 87.788,00 € o saldo da sua conta poupança-habitação aberta no Banco 1... que para o efeito lhes concedeu um empréstimo de 70.000,00 € de que aqueles se confessaram solidariamente responsáveis.
Da escritura através do qual o identificado contrato foi celebrado resulta, pois, que requerente e requerida adquiriram ambos o direito de propriedade sobre o identificado imóvel, tornando-se, assim, comproprietários do mesmo (sobre a natureza jurídica da compropriedade vide, entre outros, A. Santos Justo, in loc. cit., págs. 346 e ss.; Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in “Direitos Reais”, Livraria Almedina, págs. 254 e ss. e Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, págs. 344 e ss.).
Alega a requerida que o preço do imóvel foi totalmente pago com dinheiros que o seu avô lhe doou e que, portanto, o direito de propriedade sobre o imóvel é exclusivamente seu.
Vejamos se assim é.
A compropriedade, como vimos, tem na sua origem um determinado título constitutivo, que, sendo ele um contrato com eficácia real, por um lado, assenta na vontade dos respectivos contraentes, a que o art. 405.º do CC dá guarida, e, por outro, produz os efeitos que lhe são essenciais, entre os quais, para além dos efeitos obrigacionais de entregar a coisa e pagar o preço a que os arts. 874.º e 879.º, als. b) e c) do CC se referem, se conta o efeito real da transmissão da titularidade do direito de propriedade contemplado pelos arts. 408.º, 874.º, 879.º, al. a), e 1317.º, al. a) do CC (sobre a eficácia real da compra e venda vide com interesse Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, 3.º volume, 1991, Associação Académica, Faculdade de Direito de Lisboa, págs. 21 e ss.).
Dirigindo o que vem de se dizer à matéria dos autos, temos que através do contrato de compra e venda em apreço o direito de propriedade sobre o imóvel que dele foi objecto foi transferido da vendedora para os compradores, aqui requerente e requerida.
Na verdade, não foi questionada a autoria da respectiva escritura pública nem foi arguida a sua falsidade nos termos dos arts. 370.º a 372.º do CC, e, como tal, temos como certa a sua autenticidade, com a consequente prova plena dos factos que nela são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
Como explica Luís Filipe Pires de Sousa, “O documento autêntico faz prova plena sobre as seguintes vertentes: a sua proveniência; a identidade dos declarantes, se feita com base no conhecimento pessoal do notário (cf. art. 48.º, n.º 1., al. a)., do CN); as declarações proferidas pelas partes e rececionadas pelo oficial público; os atos realizados pelo documentador ou a que o mesmo assistiu; a data e lugar da outorga. Na sua essência, a força probatória plena reporta-se aos factos ocorridos na presença do oficial público/notário e aos atos que o mesmo declarou praticar, ou seja, aquilo que o mesmo atesta conhecer de visu et de auditu ex propriis sensibus.
No que tange às declarações proferidas pelas partes perante o oficial público, a eficácia probatória de prova plena reporta-se apenas ao conteúdo extrínseco das declarações, ou seja, ao facto histórico que as partes proferiram declarações com aquele teor perante o oficial público documentador. A força probatória não se estende ao conteúdo intrínseco das declarações, isto é, à veracidade, sinceridade e validade do que foi afirmado pelas partes perante o oficial público. O âmbito precípuo da eficácia privilegiadas de prova plena não abarca a circunstância de as declarações proferidas pelas partes serem ou não verdadeiras (no caso das declarações de ciência, sendo que nestas se representa apenas um estado das coisas) ou de serem ou não válidas (no caso das declarações de vontade, nas quais se modifica um estado das coisas) porquanto a veracidade/sinceridade/validade das declarações está subtraída às percepções do documentador” (in “Direito Probatório Material” Comentado, Almedina, pág. 136).
Sobre este assunto são particularmente elucidativas as palavras do Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 2/10/2007 (Proc. 56/03.4TBVGS; rel. Hélder Roque) que, por isso, se deixam transcritas: “O apelante não questionou a autoria da escritura pública, ao não arguir a falsidade do documento, nos termos das disposições combinadas dos artigos 370º a 372º, do CC, o que corresponde ao estabelecimento da sua autenticidade. Assim sendo, não é controvertido o valor de prova plena do documento, quanto às declarações negociais de ambas as rés nele representadas, atento o preceituado pelo artigo 371º, nº 1, do CC, mas já não, em princípio, quanto à conformidade das suas declarações com a respectiva vontade real dos outorgantes, isto é, quanto ao valor de prova plena de que as mesmas sejam verdadeiras, não tendo ficado provada a sinceridade das afirmações dos outorgantes, ou antes que estas não tenham sido viciadas por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado.
Estabelecido que um documento autêntico tem força probatória plena, as declarações dos seus outorgantes, indiscutíveis na sua materialidade, têm a eficácia que lhes competir, segundo outras normas de direito material, alheias ao instituto do documento, ou seja, revestindo a natureza de declarações de ciência, terão, se desfavoráveis, eficácia como confissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 371º, nº 2 e 358º, do CC, enquanto que, se forem declarações de vontade, se constituírem ou integrarem um negócio jurídico, a validade deste só poderá ser posta em causa, nas hipóteses tipificadas de divergência entre elas e a vontade real dos declarantes ou de vício na formação desta, porquanto, tratando-se de declarações de índole dispositiva ou negocial, o documento vale como título constitutivo da obrigação, faz prova plena do negócio jurídico realizado, a qual, porém, não se estende, nem à sinceridade, nem à eficácia jurídica das declarações.
Na hipótese em apreço, as declarações de vontade das partes subscritoras do documento em análise, constituem, por si só, um contrato de compra e venda, porquanto este não é um negócio real «quoad constitutionem», mas antes um negócio real «quoad effectum», em que a constituição da relação contratual não depende da entrega da coisa, que não é seu elemento constitutivo, uma vez que basta, para a celebração do negócio jurídico, o consenso das partes, dando-se, por via de regra, a transferência do direito, designadamente, real, objecto do negócio jurídico, por mero efeito do contrato, nos termos do disposto pelo artigo 408º, nº 1, do CC . E, mesmo para quem entenda que a declaração não é o único elemento da estrutura do negócio jurídico, mas, também, igualmente, a vontade real das partes, tal não significa que esta tenha de ser provada, representando a declaração um facto constitutivo da situação jurídica resultante do negócio jurídico, enquanto que a falta da vontade real correspondente constitui, com sujeição aos requisitos exigidos para cada tipo de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, um facto impeditivo dos efeitos da declaração, que, como tal, tem de ser alegado por aquele contra quem o negócio jurídico é feito valer.
Assim, só através da alegação e da prova da ocorrência de algum dos casos tipificados de divergência entre a vontade e a declaração das partes ou de vício na formação da vontade, é que podia ser posta em causa, não já a força probatória do documento que formalizou o contrato de compra e venda, que faz prova plena do facto constitutivo do contrato, mas a sua validade ou eficácia jurídica” (in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2007:56.03.4TBVGS.D8/).
Retomando a situação dos autos, verifica-se que a requerida não alegou nenhum caso tipificado de divergência entre a vontade e a declaração das partes ou de vício na formação da vontade em ordem a por em causa a validade ou eficácia jurídica do contrato de compra e venda pelo qual a propriedade do imóvel foi adquirida por si e pelo requerente. É quanto basta, portanto, para se poder concluir que ambos são titulares do respectivo direito de propriedade sobre esse imóvel e que, portanto, são comproprietários do mesmo.
A propriedade do imóvel em discussão não é, pois, exclusiva da requerida, antes sendo comum a esta e ao requerente, que, enquanto comproprietário, pode, ao abrigo do art. 1412.º do CC, e nos termos adjectivos previstos nos arts. 925.º e ss. do CPC, exigir a divisão, se não em substância, por via da adjudicação ou da venda.
Note-se, desde já, que se trata de um bem adquirido por requerente e requerida em 12/10/2004, antes de terem contraído casamento em 3/06/2006, a que, portanto, não é aplicável o disposto no art. 1723.º do CC – nem consequentemente o AUJ n.º 12/2015 - destinado à aquisição por um dos cônjuges, casado segundo o regime da comunhão de adquiridos de bens, na constância do matrimónio, o que, como vimos, não sucede.
Requerente e requerida têm sobre o imóvel direitos qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes, presumindo-se iguais na falta de indicação em contrário do título executivo, nos termos do supra citado art. 1403.º, n.º 2 do CPC.
A este propósito, Antunes Varela esclarece que “Quando, portanto, o título constitutivo da compropriedade seja omisso a respeito da medida das quotas, cada uma delas é expressa por um número fraccionário, tendo por numerador uma unidade e, por denominador, o número dos consortes. É esse número fraccionário que exprime, em princípio, a proporção em que os diversos condóminos participam nas vantagens e encargos da coisa (art. 1405.º, 1).
A indicação em contrário, a que alude a parte final do artigo 1403.º, n.º 2, não tem de ser expressa.
Assim, se a participação dos consortes nas vantagens e encargos da coisa for estabelecida em proporção diversa, isso bastará, na ausência de outros elementos sobre a vontade do autor ou autores da declaração, para afastar a presunção legal (…).
Deve considerar-se igualmente afastadas a presunção legal, na falta de elementos em sentido contrário, quando do título constitutivo resulte ter sido desigual o montante desembolsado por cada comproprietário para a aquisição de coisa comum.” (in “Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, Limitada, pág. 349).
Volvendo aos caso em discussão, do contrato de compra e venda o que se colhe é que a fracção dele objecto se destina à habitação própria e permanente de requerente e requerida; que para pagamento do referido preço foi utilizado o saldo da sua conta poupança-habitação aberta no Banco 1... e que requerente e requerida se confessaram solidariamente devedores ao mesmo Banco da quantia de 70.000,00 € que dele receberam a título de empréstimo. Do título constitutivo da compropriedade não consta indicação de que as quotas de requerente e requerida sejam quantitativamente distintas. Pelo contrário, a fracção destina-se à habitação de ambos; para pagamento do preço foi utilizado o saldo da conta poupança-habitação de ambos, que se responsabilizaram solidariamente pelo pagamento do empréstimo bancário contraído para a respectiva aquisição. Assim, as quotas de requerente e requerida têm de presumir-se quantitativamente iguais.
Na realidade, tal como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/05/2012, citado pelo tribunal a quo “A compropriedade constitui-se por negócio jurídico, sempre que seja atribuída, por contrato ou testamento o direito de propriedade sobre uma coisa relativamente a vários titulares[9]. Tendo por base um negócio jurídico (no caso em apreço, um contrato de compra venda), o título constitutivo é o título negocial, ou seja, a escritura de compra e venda. A transferência da propriedade do imóvel opera-se no momento da celebração do contrato de compra e venda (independentemente do pagamento (ou não) do preço, que apenas consiste numa das obrigações decorrentes do contrato nos termos do art. 879º, al. c) do CC). E, como tal, a atribuição da percentagem da quota que cada um dos comproprietários na coisa comum fixa-se no momento da sua aquisição. E, a presunção de igualdade das quotas, prevista no nº2 do art. 1304º, só poderá ser afastada por elementos constantes do próprio título de aquisição e já não por elementos exteriores ao mesmo[10] (sendo, assim, inadmissível a produção de prova testemunhal para prova de que a comparticipação de um dos comproprietários na aquisição do imóvel foi superior à dos demais, porque, por ex. suportou uma parte superior do preço do mesmo)- in www.dgsi.
Neste conspecto, sem prejuízo da modificação da medida inicial das quotas por acordo desde que sujeito às regras de forma e de publicidade a que o acto constitutivo da propriedade está sujeito (neste sentido Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, Coimbra Editora, Limitada, pág. 349), não é o pagamento ulterior das prestações do empréstimo bancário que determina a medida das quotas de cada um dos comproprietários, sem prejuízo da compensação de créditos a que haja lugar.
Com efeito, nos termos do art. 1405.º, n.º 1 do CC, os comproprietários, separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas.
O Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 17/06/2014 (Proc. 2548/12.5TJLSB.L1-1, rel. Maria Adelaide Domingos) a respeito deste preceito legal escreve que “Quer isto dizer que as vantagens proporcionadas pela coisa comum, assim como os encargos por ela determinados, serão repartidos entre os comproprietários de harmonia com a medida da fracção ideal de cada um deles no direito de propriedade sobre a dita coisa.”[1] No que concerne à medida, nada tendo sido estipulado, como sucede no caso presente, as quotas dos comproprietários presumem-se iguais (artigo 1403.º, n.º 2 do Código Civil), e igual será, por isso, a sua participação nas vantagens e nos encargos. As vantagens reportam-se a proventos ou proveitos que a coisa comum proporciona (por exemplo, frutos civis). Os encargos, como o próprio nome indica, são ónus, normalmente, despesas que oneram os comproprietários, e que decorrem da existência do bem. Têm diversa índole e podem ir desde contribuições devidas ao Estado ou a outras entidades, a despesas relacionadas com a sua conservação, bem como despesas originadas com o pagamento da sua aquisição e outras associadas àquele ato, mormente quando a aquisição foi feita através de um empréstimo bancário, ao qual se encontram associadas outras obrigações contraídas nesse âmbito, como sejam, seguros de vida, multirrisco, etc. A lei estabelece, pois, um princípio de comparticipação obrigatória e proporcional à quota-parte de responsabilidade a cargo dos comproprietários (a não ser que a comparte renuncie ao seu direito nos termos previstos na lei), que se encontra reiterado no artigo 1411.º do Código Civil a propósito das benfeitorias necessárias. Não se afigura, assim, que seja juridicamente discutível defender-se que os reembolsos pedidos pelo autor, considerando as causas que os determinaram, e que se encontram sintetizadas nas várias alíneas do pedido, não sejam encargos com a coisa comum. E sendo-o, corresponsabilizam a ora apelante na proporção correspondente a metade do valor despendido. Tendo um deles pago valor superior à sua quota-parte, assiste-lhe o direito de reembolso a cargo da comparte e na medida da respetiva quota-parte da sua responsabilidade. As relações jurídicas que se estabelecem entre comproprietários inerentes ao cumprimento dos encargos devidos pela, ou por causa, da coisa comum, são de natureza meramente obrigacional, por conseguinte se um deles cumpre na totalidade a obrigação comum, fica detentor de um direito de crédito sobre o consorte na medida da contribuição deste, que pode exercer em juízo através dos meios processuais comuns” (com interesse vide igualmente acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/03/2023, Proc. 8188/21.0T8VNG.P1, rel. Alexandra Pelayo, ambos in www.dgsi.pt).
Certo que da escritura do contrato de compra e venda se extrai que o preço do imóvel, 87.788,00 €, só em parte foi pago com recurso ao referido empréstimo bancário de 70.000,00 €. Se assim, nem por isso se divisa desse documento que a diferença de valores tenha sido suportada apenas por um dos comproprietários.
Nesta medida, não constando do título constitutivo da compropriedade a proporção em que requerente e requerida adquiriram o imóvel, bem andou o Tribunal recorrido em, ao abrigo do art. 1403.º, n.º 2 do CC, considerar iguais as respectivas quotas.
Termos em que, mantendo-se a decisão recorrida, se julga improcedente a presente apelação.
As custas do recurso são da responsabilidade da Recorrida por ter ficado vencida (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
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V. Decisão
Perante o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, julgando improcedente o recurso, manter a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
Porto, 13/1/2025
Carla Fraga Torres
Eugénia Cunha
Teresa Pinto da Silva