I - Com a apresentação da reclamação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte inicia-se um incidente que assume natureza de incidente processado autonomamente para os efeitos da alínea a) do nº 1 do artigo 644º do Código de Processo Civil.
II - Qualquer despacho proferido nesse incidente antes da sua apreciação final apenas pode ser alvo de impugnação recursória nos termos previstos no nº 3 do artigo 644º do Código de Processo Civil.
III - A alínea d) do nº 2 do artigo 644º do Código de Processo Civil apenas contempla as situações restritas em que o recurso ou é imediatamente conhecido ou deixa de revestir, em absoluto e definitivamente, qualquer utilidade prática aquando o seu ulterior conhecimento.
IV - O direito de recurso é restringível pelo legislador ordinário, ao qual apenas estará vedada a abolição completa ou a afetação substancial (entendida como redução intolerável ou arbitrária) desse direito.
V - Respeitados estes limites (materiais) o legislador ordinário poderá ampliar ou restringir os recursos civis, mormente através da alteração dos respetivos pressupostos de admissibilidade, sendo que, a propósito da restrição quanto à subida imediata dos recursos, o Tribunal Constitucional já tomou posição quanto a essa questão, afirmando que esse regime não ofende o princípio constitucional da igualdade ou do acesso ao direito (mormente na sua vertente de tutela jurisdicional efetiva), expressando uma opção legislativa, baseada na tutela da celeridade processual, que não se pode configurar como injustificada, irrazoável ou arbitrária.
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto – Juízo Central Cível, Juiz 6
Relator: Miguel Baldaia Morais
1ª Adjunta Desª. Ana Paula Amorim
2º Adjunto Des. Carlos Pereira Gil
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I. RELATÓRIO
Na presente ação declarativa sob a forma comum que AA intentou contra BB e outros, veio aquele e a identificada ré formalizar transação, homologada por decisão já transitada em julgado, tendo o demandante desistido dos pedidos que formulou contra os demais réus.
Os réus apresentaram notas discriminativas e justificativas de custas de parte.
O autor veio reclamar dessas notas sustentando, entre o mais, que as mesmas são intempestivas, posto que apenas poderiam ser apresentadas decorridos que fossem 10 dias após o trânsito do acórdão prolatado por este Tribunal da Relação em 12 de julho de 2023 (no qual se decidiu que a totalidade das custas processuais da ação “seriam suportadas em partes iguais pelo Autor e pela 1.ª Ré relativamente aos restantes 2.º a 29.º Réus”), não podendo as mesmas serem apresentadas antes desse momento, como foi o caso.
Requereu ainda a dispensa do depósito do valor das notas.
Sobre essa reclamação recaiu despacho com o seguinte teor:
«Indefere-se a reclamação quanto à intempestividade da apresentação das Notas de Custas de Parte, porquanto nada impede que as partes exerçam tal direito antes do trânsito da sentença.
Relativamente à dispensa do valor das notas, de acordo com disposto no artº 26º-A, do RCP a reclamação da nota importa o depósito da totalidade do valor da nota.
Pese não configurar ao tribunal estar-se perante uma situação de abuso de direito e que as mesmas padeçam de grande erro, considerando, no entanto, o facto do número de notas em causa e valor total das mesmas, concede-se à parte a dispensa de pagamento de 50% de cada uma das notas.
Assim sendo, notifica-se a parte para efetuar o depósito em correspondência com atrás referido.
Após será apreciada a reclamação do valor das notas apresentadas».
Inconformado com o aludido despacho, veio o autor interpor recurso do mesmo, o qual foi admitido “a subir de imediato, nos próprios autos, por economia processual e nenhum óbice haver neste momento, atento o efeito suspensivo, arts. 644º, nº 2, g), 647º, nº 3, f), do CPC”.
Remetido o recurso a este Tribunal, foram as partes notificadas para, em consonância com o que se dispõe no art. 655º do Código de Processo Civil, se pronunciarem sobre a questão da inadmissibilidade do recurso, por, numa primeira análise, se afigurar que o despacho recorrido não admite apelação autónoma, em virtude de não se enquadrar em qualquer uma das situações tipicamente previstas no art. 644º do mesmo Corpo de Leis. Em resposta o apelante limita-se a concluir que o recurso por si interposto é tempestivo.
Pelo relator foi então proferido despacho que considerou que o ato decisório recorrido não é passível de apelação autónoma.
Inconformado com essa decisão singular, veio agora o recorrente apresentar a presente reclamação para a conferência, requerendo que seja proferido acórdão sobre a matéria da decisão.
A questão solvenda traduz-se em saber se, in casu, o despacho proferido em 1ª instância admite, ou não, apelação autónoma.
A materialidade a atender para efeito da presente reclamação é a que dimana do antecedente relatório.
O despacho alvo da presente reclamação tem o seguinte teor:
«Como deflui dos arts. 652º, n.º 1 als. a) e b), 653º, 654º e 655º, n.º 1, todos do Cód. Processo Civil[1], o despacho proferido em 1ª instância quanto à tempestividade, admissibilidade, espécie, modo de subida e efeitos do recurso não vincula o tribunal superior, sempre estando ao alcance deste último julgar intempestivo ou inadmissível o recurso em apreço, assim como alterar a sua espécie, modo de subida e efeito.
Cabe, assim, nesta oportunidade determinar se o despacho recorrido será passível de apelação autónoma, sendo que, ao invés do que parece ser entendimento do apelante (manifestado na resposta que apresentou na sequência da notificação de que foi alvo para os efeitos do disposto no art. 655º), no caso a questão que se coloca não se prende com a (in)tempestividade na apresentação do recurso, mas antes em apurar se esse ato decisório pode ser impugnado autonomamente ou, tão-somente, de forma diferida.
Como se referiu, o tribunal a quo admitiu o presente recurso como apelação autónoma à luz do disposto na al. g) do nº 2 do art. 644º, no qual se postula que “[c]abe recurso de apelação de decisão proferida depois da decisão final”.
Não se nos afigura, contudo, que o transcrito inciso tenha aplicação na situação em apreço (como, aliás, o próprio apelante reconhece na aludida resposta – cfr. seu ponto 8[2]) que, no desenho legal, visa disciplinar todos os recursos proferidos depois da decisão final que não tenham integração no seu nº 1, ou numa das outras alíneas do nº 2.
Ora, com a apresentação da reclamação das notas de custas de parte iniciou-se um incidente que, face à sua tramitação própria relativamente ao processado que conduz à decisão final da ação (cfr. art. 26º-A do Regulamento das Custas Processuais[3]), constitui um “incidente processado autonomamente” para os efeitos da al. a) do nº 1 do citado art. 644º[4]. Significa isto que qualquer despacho proferido nesse incidente antes da sua apreciação final apenas pode ser alvo de impugnação recursória nos termos previstos no nº 3 desse mesmo normativo, já que, na sua economia, apenas caberá apelação autónoma da decisão “que ponha termo ao incidente”.
Consequentemente, não estando o ato decisório sob censura nessas condições - posto que não pôs termo ao incidente da reclamação da conta de custas de parte - segue-se pois que o mesmo somente é passível de recurso no condicionalismo estabelecido no nº 3 do art. 644º.
Pelos fundamentos acima expostos, decide-se não conhecer do objeto do recurso, porquanto o despacho recorrido não admite apelação autónoma».
Confrontado com o transcrito despacho, o reclamante sustenta a sua reclamação em dois fundamentos: primeiramente porque, ao invés do que se decidiu no despacho do relator, o despacho de 1ª instância “será passível de apelação autónoma ao abrigo do disposto no art. 644º, al. g) do nº 2, ou, subsidiariamente, na al. i), ou na al. h) desse mesmo normativo”; depois porque, ainda que assim se não entenda, “o mesmo se revela inconstitucional por excessivamente formal, restringindo, de forma desproporcional, o direito de ver o seu recurso apreciado quanto ao mérito, consubstanciando, assim, uma violação do direito de tutela jurisdicional efetiva”.
Começando pelo primeiro dos aludidos fundamentos, na decisão do relator já se deixou evidenciada a motivação pela qual se considera que não tem aplicação o preceituado no art. 644º, nº 2 al. g) (normativo ao abrigo do qual o recurso foi admitido pelo julgador de 1ª instância), sendo que, como aí igualmente se refere, no caso não tem aplicação qualquer das demais alíneas desse nº 2, seja, a alínea i), seja a alínea j).
Com efeito, na situação em apreço não pode ser convocada a alínea i) do nº 2, posto que não se antolha (nem o reclamante o demonstra) que a admissibilidade de recurso autónomo relativamente ao ato decisório sob censura decorra de qualquer norma dispersa pelo Código de Processo Civil ou de outro diploma avulso, designadamente do Regulamento das Custas Processuais.
Idêntica conclusão se impõe relativamente à aplicabilidade da al. h) do nº 2 do citado art. 644º.
A respeito da interpretação do conceito indeterminado vertido nesse preceito legal, a doutrina e a jurisprudência pátrias[5] vêm considerando que as decisões “cuja impugnação com o recurso da decisão final é absolutamente inútil” são apenas as decisões cuja retenção poderia ter um efeito material irreversível sobre o conteúdo do decidido, e não aquelas que acarretem apenas mera inutilização de atos processuais, ou, dito de outro modo, só a absoluta inutilidade justifica a imediata recorribilidade de uma decisão interlocutória e não situações em que o provimento do recurso pode trazer prejuízos do ponto de vista da economia processual, ou seja, a eventual retenção (do recurso) deverá ter um resultado irreversível quanto ao recurso (de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil), não bastando uma mera inutilização de atos processuais (eventual anulação do processado), ainda que contrária ao princípio da economia processual.
Portanto, em consonância com tal entendimento, a inutilidade absoluta exigida pela lei só se verifica quando o despacho recorrido produza um resultado irreversível, de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil, mas não quando a procedência do recurso possa conduzir à eventual anulação do processado posterior à sua interposição. O que se pretende evitar é, deste modo, a inutilidade do recurso, e não dos atos processuais entretanto praticados, eventualidade que o legislador previu e com a qual se conformou.
Em suma: a referida alínea h) apenas contempla as situações restritas em que o recurso, ou é imediatamente conhecido ou deixa de revestir, em absoluto e definitivamente, qualquer utilidade prática aquando o seu ulterior conhecimento.
Ora, não é essa a situação que ocorre na situação sub judicio, porquanto, ainda que venha a ser revogado o despacho recorrido, a decisão assim favorável ao apelante produz na íntegra os seus efeitos, dando embora origem à anulação do processado subsequente - consequência legal que, conforme se referiu, o legislador não enjeitou -, sendo que o acolhimento da sua pretensão recursória implicará que tenha de ser reembolsado do montante cujo pagamento foi aí determinado, não se registando, pois, qualquer situação de “absoluta inutilidade” do recurso.
Por conseguinte, tal como se afirmou no despacho prolatado pelo relator, o despacho de 1ª instância apenas pode ser objeto de impugnação (deferida) nos termos do nº 3 do art. 644º.
O apelante esgrime ainda o argumento de que a negação da possibilidade de apreciação imediata do recurso afronta os princípios do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva contidos no art. 20º da Constituição da República.
Também neste ponto não se nos afigura assistir-lhe razão.
De facto, ao contrário do que sustenta, a interpretação sufragada não lhe retira o direito de ver analisada a sua pretensão recursiva, a qual, como se referiu, será alvo de apreciação no momento processual definido no citado nº 3 do art. 644º, onde se enuncia uma regra processual como tantas outras que disciplinam a marcha dos recursos e isso, sem mais, não o torna materialmente inconstitucional.
Neste conspecto, a jurisprudência do Tribunal Constitucional[6] vem recorrentemente sublinhando que, fora do domínio do processo criminal, o legislador ordinário goza de ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos.
É certo que esta asserção não significa que nessa conformação não existam limites materiais, posto que a temática dos recursos não se situa em campo totalmente neutro e indiferente aos valores constitucionalmente tutelados.
Isso mesmo tem sido enfatizado pela aludida casuística, ao considerar que estará vedado, na expressão do acórdão nº 287/90, à lei ordinária a «redução intolerável ou arbitrária do direito ao recurso», desenvolvida à luz do princípio do Estado de Direito democrático.
No entanto, embora a garantia da via judiciária não possa deixar de compreender, em termos genéricos e tendenciais, a proteção contra atos jurisdicionais, incorporando o direito de ação o próprio direito de defesa contra decisões judiciais, a efetivar mediante a instância de recurso, certo é que o direito ao recurso não pode configurar-se como um direito absoluto ou ilimitado: o que existe é, como se assinala no referido aresto, «um genérico direito de recurso dos atos jurisdicionais, cujo preciso conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude».
Consequentemente, nesta matéria, o direito de recurso é restringível pelo legislador ordinário, ao qual apenas estará vedada a abolição completa ou a afetação substancial (entendida como redução intolerável ou arbitrária) desse direito.
Respeitados estes limites (materiais) o legislador ordinário poderá ampliar ou restringir os recursos civis, mormente através da alteração dos respetivos pressupostos de admissibilidade[7], sendo de registar que a propósito da restrição quanto à subida imediata dos recursos o Tribunal Constitucional já tomou posição quanto a essa questão[8], afirmando que esse regime não ofende o princípio constitucional da igualdade ou do acesso ao direito (mormente na sua vertente de tutela jurisdicional efetiva), expressando “uma opção legislativa, baseada na tutela da celeridade processual, que não se pode configurar como injustificada, irrazoável ou arbitrária”.
Em face das razões assim expendidas, não se vislumbra, assim, razão válida para divergir do sentido decisório adrede acolhido na decisão singular.
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em não atender a reclamação, mantendo-se o despacho proferido pelo relator que não admitiu o recurso de apelação autónoma interposto pelo reclamante.
Custas a cargo do reclamante, fixando em duas UCs a respetiva taxa de justiça.
Porto, 13/1/2025
Miguel Baldaia de Morais
Ana Paula Amorim
Carlos Gil
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Onde, depois de admitir que o presente “incidente de reclamação de conta de custas deve ser entendido, face à sua tramitação própria relativamente ao processado que conduz à decisão final da ação, como um incidente processado autonomamente” (ponto nº 3), refere que no caso “não há que chamar à colação o disposto no nº 2, al. g) do art. 644º”.
[3] Aditado pela Lei nº 27/2019, de 28.03.
[4] Neste sentido se pronunciaram, inter alia, o acórdão da Relação de Coimbra de 12.12.2017 (processo nº 1638/08.3TBACB-C.C1) e o acórdão da Relação de Lisboa de 15.09.2020 (processo nº 249/19.2T8FNC.L1-7), acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., por todos, na doutrina, LEBRE DE FREITAS e RIBEIRO MENDES, Código Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 81, LUÍS ESPÍRITO SANTO, Recursos Civis, pág. 212 e ABRANTES GERALDES, Recursos, págs. 182 e seguinte e Recursos no Novo Código de Processo Civil, págs. 165 e seguinte; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Coimbra de 1.12.2010 (processo n.º 102/08.5TBCND-A.C1) e de 21.05.2019 (processo nº 133/13.ETBMMV.1.C1) e acórdãos da Relação de Lisboa de 5.03.2010 (processo nº 265853/08.6YIPRT-A.L1), de 5.02.2019 (processo nº 70173/17.5YIPRT.L1-7) e de 16.10.2009 (processo nº 224298/08.4YIPRT-B.L1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Cfr., inter alia, acórdãos nºs 358/86, 148/87, 287/90, 266/93 e 266/15, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
[7] Neste sentido se pronunciam expressamente RIBEIRO MENDES (in Recursos em Processo Civil, 1992, pág. 101 e seguinte) e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 164).
[8] Cfr., entre outros, o acórdão de 16.03.1993, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.