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ACIDENTE IN ITINERE
PERCURSO HABITUAL
NECESSIDADES ATENDÍVEIS
Sumário
1-Resultou provado que no percurso do seu local de trabalho para a sua residência a trabalhadora utilizava dois autocarros. Durante o referido percurso, a sinistrada aproveitou para fazer uma caminhada, entrou numa loja para comprar uma toalha de mãos, esteve a falar ao telemóvel durante 20 minutos e fez compras para o jantar num supermercado, tendo retomado, de seguida, o caminho no autocarro onde veio a ocorrer o acidente em apreço. 2-A caminhada constitui apenas um meio alternativo de locomoção e as demais interrupções e desvios dever-se-ão considerar destinados a satisfazer necessidades atendíveis, pelo que, em conformidade com o disposto no art. 9º, nºs1, a), 2 e 3 da lei nº 98/2009, de 04/09, o acidente deverá ser qualificado como um acidente de trabalho in itinere.
Texto Integral
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa
I-Relatório
AA instaurou a presente acção, sob a forma de processo especial, ao abrigo do disposto no art. 119º, nº1 do CPT, contra “Companhia de Seguros Allianz Portugal S.A.”, alegando que sofreu uma queda no autocarro quando regressava do seu local de trabalho e se dirigia para casa.
Concluiu, pedindo que se declare como acidente de trabalho o por si sofrido em 24-06-2021 e se condene a ré no pagamento à Sinistrada de € 2808,23 como compensação pelas despesas médicas e hospitalares em que incorreu, da indemnização legal por incapacidade temporária absoluta e da pensão anual e vitalícia pela incapacidade permanente parcial.
Peticionou ainda a condenação da R. no pagamento à A. de juros à taxa legal em vigor.
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A R. contestou, alegando que não ocorreu qualquer acidente de trabalho, porque o evento ocorreu em trajeto que incluiu desvio não abrangido no conceito de necessidade atendível.
Concluiu pela sua absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador.
Foram consignados os factos assentes e os factos controvertidos.
Em 02.01.2024 a A. actualizou o valor peticionado a título de despesas e peticionou a condenação da R. no pagamento de €5408,23 a título de consultas, internamentos, exames e fármacos.
Foi organizado processo apenso para fixação de incapacidade.
Em 13.03.2024 foi proferido o seguinte despacho nos autos apensos para fixação de incapacidade:
«Determinada a realização de exame por junta médica para fixação do grau de incapacidade, foi realizado o exame por junta médica e os peritos foram unânimes nas suas respostas.
As mesmas encontram-se conformes aos elementos dos autos e ao capítulo VIII, 1. 5, b), e ao n.º 5, al. a), das instruções gerais das instruções gerais da tabela nacional de incapacidades da tabela nacional de incapacidades, aprovada em anexo ao DL n.º 352/2007, de 23-10,].
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Pelo exposto, fixa-se à autora:
- a ITA de 26-06-2021 a 25-11-2022;
- a IPP de 33%, desde 26-11-2022.»
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Procedeu-se a julgamento.
Pelo Tribunal a quo foi proferida sentença.
Foram considerados provados na 1ª instância os seguintes factos :
a. «1. A ... de ... de 2021 a autora exercia as funções de educadora de infância ao serviço da ZZ no ..., em ...;
2. Residia na Avenida...
3. Recorria habitualmente a autocarros da Carris nos trajetos de ida de casa para o local de trabalho e regresso do local de trabalho para casa;
4. Utilizava os autocarros n.ºs ... e ..., trocando de autocarros na zona do ...;
5. Os autocarros ... e ... demoravam cerca 60 minutos a efetuar a ligação entre o local de trabalho e a residência da autora;
6. No dia referido em 1., a autora cumpriu o horário de trabalho das 08h00 às 16h00;
7. Terminado o seu horário de trabalho, saiu do estabelecimento da empregadora e foi, como habitualmente, a pé, para a paragem do autocarro;
8. A autora apanhou o autocarro n.º ..., na paragemAvenida...;
9. A autora saiu do autocarro n.º ... na paragem Largo..., em ...;
a. 10. A autora aproveitou para fazer uma caminhada;
11. Depois de sair na Paragem do Largo..., a autora desceu a pé a rua, até à Praça de ..., onde fez compras para o jantar no supermercado Supermercado YY de ...;
12. A autora pára para compras de última hora no supermercado e no percurso de regresso a casa;
13. Por vezes no supermercado Supermercado YY, em ...;
14. Do Largo... para a Praça de ... implica passar pela Av. da Igreja, conhecida por lojas, cafés e restaurantes;
15. Na sequência de duas cirurgias aos meniscos, em 2011 e 2018, a autora ficou com limitações de mobilidade;
16. E com indicação para realizar marcha diariamente;
17. No percurso para o supermercado Supermercado YY sito na Praça de ..., e antes deste, a autora parou na loja WW para comprar uma toalha de mãos;
18. … E ficou cerca de 20 minutos a falar ao telemóvel, antes de prosseguir para o Supermercado YY;
19. Já com as compras, dirigiu-se à paragem de autocarro na Praça de ... (Escola ...) e apanhou novamente o autocarro n.º ... até ao ...;
20. A autora seguia num autocarro Carris ... do qual, pelas 18.40h, se atravessou à frente um veículo;
21. Em consequência do referido em 11., a autora embateu com a barriga;
22. Foi assolada por dores;
23. A autora foi levada de ambulância para o Hospital XX;
24. Ficou internada;
25. Foi intervencionada ao rim esquerdo devido a hematoma;
26. Teve alta hospitalar a ... de ... de 2021;
27. A autora regressou a casa;
28. Verificando a existência de febres altas, em ........2021, a Autora deslocou-se ao Centro Clinico SS;
29. Foi internada no Hospital SS;
30. No dia seguinte, foi transferida para o Hospital XX;
a. 31. No dia........2021, voltou a ser internada no Hospital TT;
32. No dia........2021, a Autora foi alvo de uma primeira cirurgia ao rim esquerdo, em que foi submetida a drenagem de hematoma perienal por incisão de flanco, com tentativa de preservação do órgão e resolução do foco infecioso?
33. Este procedimento não foi suficiente para debelar a infeção?
34. Um mês depois, a ........2021, a Autora foi sujeita a nova cirurgia, de nefrectomia, em que lhe foi retirado o rim esquerdo;
35. Durante os internamentos, a Autora teve diversas complicações, nomeadamente pneumonias;
36. E a perda do dente 12;
37. Em ........2021 teve alta hospitalar do Hospital TT para o exterior, com indicação de repouso com a ajuda de terceiros;
38. Tinha indicação para permanecer em repouso no seu domicílio;
39. A Autora regressou a casa e ficou deprimida;
40. Durante o período de internamento, teve uma consulta de psiquiatria e foi acompanhada pela equipa de psicologia do Hospital TT;
41. Após a alta hospitalar (...), atento o seu quadro depressivo, fez tratamento com antidepressivos (Escitalopram);
42. No dia ........2022 a Autora foi a uma consulta de nefrologia, a título particular, com o Prof. Dr. BB;
43. A autora foi sendo acompanhada pela médica de família, Dra. CC que lhe prescreveu tratamento com antidepressivos (...);
44. Para além do quadro depressivo, a autora continuava com dores;
a. 45. No dia ........2022, a Autora foi a uma consulta de nefrologia com o Prof. Dr. BB;
46. A autora teve consultas com o Dr. DD, do Hospital VV, nos dias ........2022 e ........2022;
a. 47. A autora realizou sessões de fisioterapia;
48.- Como sentia cada vez mais incómodo e dor, teve consulta com o Dr. DD, no Hospital VV em ........2022, que a reencaminhou para consulta da dor;
a. 49. Em ........2022, a Autora teve consulta com a Dra. EE que procedeu a uma infiltração para bloqueio do nervo e prescreveu medicação para a dor;
50. Caso sentisse melhoras, a Autora deveria realizar nova infiltração;
51. A infiltração não teve sucesso;
52. A Autora passou, por indicação da médica de família, a fazer psicoterapia semanal, desde dezembro de 2022;
53. … Com uma cicatriz no abdómen com cerca de 59 cm;
54. … Dor crónica;
55. E continua a fazer psicoterapia semanal e medicação diária;
56. Em sequência do referido em 19. a 46., incorreu em € 6 528,66 com despesas, consultas, internamentos, exames e fármacos;
57. A 24 de junho de 2021 a ZZ tinha a sua responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de trabalho transferida para a ré, mediante seguro titulado pela apólice AT ..., e pela retribuição referida em 52.;
58. A autora ficou afetada com incapacidade temporária permanente de ...-...-2021 a ...-...-2022, data da alta;
59. … E incapacidade permanente parcial de 30% desde ...-...-2022;
60. A ré pagou à autora a quanta de € 2000,10 pelos períodos de ITA;
61. A autora auferia a retribuição anual de € 40 362,18 (€ 2800 x 14 + €109,94 x 11).»
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O Tribunal a quo julgou a acção improcedente e absolveu a R. dos pedidos.
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A A. recorreu desta sentença e formulou as seguintes conclusões:
Em Geral,
1.ª AA, Sinistrada e Autora nos presentes Autos, sofreu, no
passado dia ........2021, um acidente, quando se encontrava no autocarro, no percurso de regresso a casa do trabalho, depois de ter parado para fazer compras para o jantar no Supermercado YY.
2.ª Como consequência deste acidente, a Sinistrada ficou incapacitada para a
sua atividade laboral durante largos períodos, foi sujeita a diversos tratamentos, para a realização dos quais incorreu em avultadas despesas, acabou por ficar com uma incapacidade permanente parcial para o trabalho, sem um rim, sem um dente, com uma depressão, uma cicatriz de 59 centímetros no abdómen, eventração e dor crónica.
3.ª A Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., para a qual a empregadora da Sinistrada tinha transferida a sua responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de trabalho, não reconheceu este acidente como de trabalho.
4.ª Por esse motivo, a Sinistrada viu-se constrangida a desencadear a fase contenciosa da presente ação emergente de acidente de trabalho, com vista a obter a condenação da Seguradora nesse reconhecimento e no pagamento das indemnizações legalmente devidas e de todas as despesas em que incorreu e continuará a incorrer, com tratamentos e fármacos, por causa do acidente sofrido.
5.ª A Sinistrada não é, contudo, claramente, uma mulher de sorte e, depois do calvário pelo qual passou após o acidente, viu-se confrontada com uma Sentença do Tribunal a quo que, contra o sentido da jurisprudência maioritária e da própria letra da lei, julgou improcedente a ação, por considerar, em suma, que o acidente não ocorreu durante o tempo habitualmente gasto pela Sinistrada no percurso de regresso do trabalho para casa e que a interrupção verificada no percurso não o foi para a satisfação de necessidades atendíveis.
6.ª É com esta decisão que a Sinistrada, ora Recorrente, não se conforma dela interpondo o presente Recurso de Apelação. É convicção da Sinistrada que a Sentença recorrida não valorou adequadamente a prova produzida nos Autos e que consubstancia uma errada interpretação e aplicação do Direito aos factos.
Quanto ao recurso da matéria de facto,
7.ª Em face da prova produzida nestes Autos, alguns dos factos dados como
provados pelo Tribunal a quo não o poderiam ter sido; ao passo que vários factos controvertidos alegados pela Autora e não dados como provados pelo Tribunal a quo deveriam tê-lo sido, impondo-se a modificação da decisão recorrida quanto a eles, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Código de Processo do Trabalho.
8.ª Cumpre notar que a Sinistrada juntou à Petição Inicial 116 documentos,
não impugnados pela Seguradora, que devem ser valorados.
9.ª Para além destes documentos juntos com a Petição Inicial, na sessão da audiência de julgamento de 13.05.2024, a Sinistrada juntou os comprovativos de despesas com as consultas de psiquiatria, psicologia e fármacos em que incorreu após a apresentação da Petição Inicial.
10.ª Foram, na fase conciliatória do processo, produzidos diversos relatórios de perícias médicas, importantes para a adequada compreensão do historial clínico da Sinistrada, nomeadamente o Relatório do INML da Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito do Trabalho, de 28.11.2022; o Relatório do INML da Perícia Médico-Legal de Psiquiatra, de 15.02.2023; e o Relatório do INML da Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito do Trabalho, de 19.04.2023.
11.ª Quanto às consequências do acidente para a Sinistrada, nomeadamente em termos de incapacidade para o trabalho, terá de atender-se ao Auto de Exame por Junta Médica, de 08.11.2023, produzido no Apenso A de fixação de incapacidade para o trabalho.
12.ª Quanto ao historial clínico da Sinistrada, o Tribunal a quo solicitou aos
peritos médicos que realizaram a Junta Médica a verificação de que o alegado pela Sinistrada encontrava reflexo nos documentos juntos, o que estes vieram a confirmar, mediante esclarecimentos de 26.03.2024, juntos ao referido Apenso A, também importante elemento a considerar.
13.ª A Sinistrada prestou declarações de parte, que, sendo este um daqueles casos em que o sinistrado é a sua principal testemunha não poderão deixar de ser consideradas, sobretudo considerando que nenhuma prova foi produzida no sentido de abalar a credibilidade da Sinistrada ou contradizer aquilo que afirmou em julgamento.
14.ª Para além da própria Sinistrada, foram ouvidas em julgamento FF, colega de trabalho da Sinistrada, que atestou que esta ia de autocarro consigo para casa e parava muitas vezes para fazer compras no supermercado; GG, namorado da filha da Sinistrada, que acorreu ao local do acidente imediatamente após este ocorrer e esclareceu aquilo que, in loco, apurou quanto à dinâmica do acidente e quanto às compras que a Sinistrada tinha efetuado; HH, filha da Sinistrada, que vivia, juntamente com dois irmãos, com a mãe, na data do acidente, que se deslocou, com o namorado, ao local, imediatamente após o acidente e acompanhou a mãe em todo o processo de tratamento que se seguiu, que descreveu a prática habitual da mãe de ir ao supermercado no percurso do trabalho para casa, a dinâmica do acidente, o tipo de compras que a mãe tinha efetuado e seu o historial clínico e as correspondentes despesas e sequelas; e, finalmente, II, marido (embora separado de facto da Sinistrada),
que conhece os hábitos da Sinistrada e acompanhou tudo o sucedido, quer diretamente, quer através dos seus filhos e depôs com grande credibilidade (sendo curiosa a sua perspetiva marcadamente crítica das características da Sinistrada) sobre as dificuldades de mobilidade da Sinistrada e as indicações que tem de fazer caminhada; os seus hábitos na saída do trabalho e tempo que demora para esse efeito; o facto de a Sinistrada fazer frequentemente compras no percurso para casa; o percurso efetuado pela Sinistrada no regresso a casa e o tempo necessário efetivamente para a realização desse percurso (que conhece por ter, ele próprio, realizado); a dinâmica do acidente, que corresponde ao que lhe foi transmitido pela Sinistrada e coincide com o que a filha e o namorado desta apuraram no local; e o historial clínico da Sinistrada, a quem acompanhou diretamente, no mesmo sentido do relatado pela filha de ambos. Todas estas testemunhas prestaram depoimento com grande espontaneidade e na estrita medida do seu conhecimento direto dos factos. Nenhuma prova foi produzida que abalasse a sua credibilidade ou que contrariasse aquilo que afirmaram em julgamento. Devem, por isso, merecer todo o acolhimento deste insigne Tribunal, na reapreciação que realize da prova gravada e da matéria de facto dada como provada e não provada.
15.ª Para além destas testemunhas, foi apenas ouvida uma outra testemunha,
indicada pela Recorrida, JJ, perito da Seguradora, que prestou depoimento sobre o percurso habitualmente utilizado pela Sinistrada no caminho para casa e respetivos tempos, mas do qual resultou que nada apurou quanto ao tempo efetivamente despendido pela Sinistrada, habitualmente, no seu percurso para casa e quanto ao que esta fez no dia do acidente.
16.ª Assim valorada a prova produzida em julgamento impor-se-á a revisão de alguns pontos da matéria de facto, por indevidamente dados como provados ou como não provados.
17.ª No ponto 59. dos Factos Provados faz-se constar que a Autora ficou afetada de “incapacidade permanente parcial de 30% desde 26-11-2022”.
18.ª No Auto de Exame por Junta Médica, constante do Apenso A ao presente processo, os peritos médicos reconheceram à Autora uma incapacidade permanente parcial de 33%.
19.ª Por Despacho de 13.03.2024, proferido no mesmo Apenso A, o Tribunal a quo fixou à Autora uma incapacidade permanente parcial de 33%, desde 26.11.2022.
20.ª Notificado às Partes, nenhuma reclamou do referido Despacho.
21.ª Este Tribunal deve corrigir este aparente lapso de escrita da Sentença,
passando do ponto 59. da matéria de facto provada a constar: “E incapacidade permanente parcial de 33% desde 26-11-2022”.
22.ª Do ponto 5. dos Factos Provados consta que “Os autocarros ... e ... demoravam cerca de 60 minutos a efetuar a ligação entre o local de trabalho e a residência da autora.”, com base no depoimento do perito da Seguradora, JJ.
23.ª JJ esclareceu que os referidos 60 minutos, eram desde a saída do autocarro na paragem Avenida..., a paragem mais próxima do estabelecimento onde prestava atividade a Sinistrada (e não propriamente desde o local de trabalho da Sinistrada) e considerando apenas os horários afixados pela Carris e não os tempos efetivamente despendidos nesse percurso, maioritariamente ou em média.
24.ª A Sinistrada não saía imediatamente do estabelecimento após o fim do seu horário de trabalho, pelo que não apanhava o primeiro autocarro disponível após essa hora.
25.ª É facto público e notório o problema dos atrasos e das irregularidades dos serviços dos autocarros da Carris em ....
26.ª A Sinistrada tinha, no ..., de trocar do autocarro n.º ... para o n.º ..., o que implica atravessar a rua (como explicou o próprio perito da Seguradora), porque as paragens não são coincidentes, e apanhar outro autocarro, fazer o percurso de autocarro até à paragem de casa e ainda andar a pé da paragem até casa.
27.ª Se só o percurso de autocarro desde a primeira paragem até à segunda demorava 45 minutos, considerando as características de mobilidade da Sinistrada e as regras da experiência comum, não é credível que o resto do percurso se fizesse, habitualmente, em 15 minutos.
28.ª Sobre o tempo efetivamente necessário para a realização do percurso que a Sinistrada efetua, do trabalho para casa, utilizando os autocarros nºs ... e ..., como fez no dia do acidente, prestou também depoimento II, que, conhecendo as características pessoais da Sinistrada e tendo ele próprio realizado o percurso em causa, esclareceu que demora entre 1h30 e 2h00.
29.ª Assim, não pode dar-se como provado que os autocarros ... e ... demoravam cerca de 60 minutos a efetuar a ligação entre o local de trabalho e a residência da Autora, porquanto, nenhuma prova foi produzida nesse sentido, podendo apenas considerar-se provado que: (i) De acordo com os horários afixados pela Carris, o somatório dos tempos teóricos dos autocarros ... e ..., da paragem mais próxima do local de trabalho da Autora, até à paragem mais próxima de sua casa, é de 60 minutos; e que (ii) Na deslocação do local de trabalho à residência, sem interrupções, a Autora demorava cerca de 1h30 a 2h00, considerando um tempo de deslocação a pé desde o estabelecimento até à paragem, o tempo real do autocarro ... até à paragem do ..., a deslocação a pé até à paragem do ... do ..., do outro lado da rua, o tempo do percurso do autocarro ... até à paragem mais próxima da residência da
Autora e o percurso a pé desde essa paragem até à sua residência.
30.ª Nos “Factos Controvertidos” do Despacho Saneador, de acordo com o
alegado pela Autora na Petição Inicial, constava (cfr. quesitos 1. e 2.) que “A autora pára habitualmente no supermercado, no percurso para casa./Em ..., para fazer compras de última hora.”. Na Sentença ficou a constar, de entre os “Factos Provados” (cfr. pontos 12. e 13.): “A autora pára para compras de última hora no supermercado e no percurso para casa;” / “Por vezes no supermercado Supermercado YY, em ....”. Caiu a referência expressa à habitualidade dessa paragem.
31.ª A Sinistrada, em declarações de parte, explicou ao Tribunal é que pára, habitualmente, no percurso para casa, para fazer compras para o jantar. O supermercado a que vai depende do percurso, mas vai habitualmente ao Pingo Doce de ....
32.ª Neste mesmo sentido, a colega da Sinistrada que consigo partilha o transporte para casa, KK, disse em julgamento que esta saía muitas vezes do autocarro, no percurso para casa, para fazer compras e que fazia essas compras, umas vezes em ... e outras vezes no Pingo Doce de ....
33.ª Isto mesmo confirmou HH, salientando que a mãe parava habitualmente no supermercado porque, uma vez que se deslocava a pé e de autocarro, não fazia muitas compras de uma vez e vivia sozinha com os seus três filhos.
34.ª Por sua vez, II disse que a Sinistrada parava sistematicamente no supermercado.
35.ª Nenhuma prova foi produzida em sentido diverso.
36.ª Pelo exposto, esteve mal o Tribunal a quo ao não dar como provado que a Sinistrada pára habitualmente para compras de última hora no supermercado, no percurso de regresso para casa, o que este insigne Tribunal, atenta a prova produzida, deverá corrigir, passando do ponto 12. dos Factos Provados a constar que: “A Autora pára habitualmente para compras de última hora no supermercado, no percurso de regresso a casa.”.
37.ª Quanto aos factos ocorridos no dia do acidente e respetivos tempos, o Tribunal a quo não considerou provado que a Autora tenha apanhado o primeiro autocarro, n.º ..., na paragem Avenida..., próxima do seu local de trabalho, pelas 16h35, e que tenha saído desse autocarro, no Largo..., em ..., após variadas paragens, pelas 17h10.
38.ª Do mesmo modo que não considerou provado que, depois de, já com as
compras, se ter dirigido à paragem de autocarro na Praça de ... (Escola ...) e apanhado novamente o autocarro n.º ... até ao ..., saiu no ..., na paragem ... –Avenida... (...) e deslocou-se até à paragem do ... – Av.do Brasil (...).
39.ª Sobre esta matéria, o Tribunal começou por tomar as declarações de parte da Sinistrada, que confirmou os referidos factos.
40.ª Concluídas as declarações de parte da Sinistrada, a sua mandatária requereu ao Tribunal que fossem solicitados esclarecimentos, nomeadamente, quanto ao motivo pelo qual, terminando o horário de trabalho da Sinistrada pelas 16h00, apenas às 16h35 apanhou o primeiro autocarro. Lamentavelmente, o Tribunal a quo indeferiu o requerido.
41.ª Em qualquer caso, esta explicação acabou por ser dada por II, que explicou detalhadamente os factos ocorridos no dia do acidente e respetivos tempos, ponderando conjugadamente, o que lhe fora dito pela Sinistrada, o que conhece sobre as suas características pessoas e o que conhece sobre o percurso realizado e o tempo necessário para a sua realização, confirmando aqueles factos.
42.ª Esta versão dos factos não foi desmentida pelo perito da Seguradora que ao longo do seu depoimento, quando se pronunciou sobre o tempo que estimou como razoável para a Sinistrada efetuar a parte de autocarro do percurso para casa, salientou várias vezes que, em qualquer caso, tudo dependeria do autocarro que conseguisse apanhar; quando perguntado especificamente se apurou se a Sinistrada, depois de concluído o seu horário de trabalho, podia sair imediatamente do estabelecimento, ou tinha ainda de realizar algumas diligências, esclareceu que não sabe por não ter questionado a empregadora; quando questionado sobre o autocarro seguinte, respondeu que a Sinistrada poderia ter apanhado, se não conseguisse apanhar o dar 16h15, o das 16h30; mais tendo clarificado que, atentos os horários afixados pela Carris, o percurso de autocarro até à primeira paragem demora, cerca de 40/45 minutos, o que nos aponta para as 17h15 (sendo que no dia do acidente a Sinistrada saiu uma paragem antes para ir ao Supermercado YY); e, quando descreveu o percurso que a Sinistrada tinha de seguir para ir para casa, a respeito da mudança entre os autocarros n.º ... e n.º ..., salientou que a paragem não é no mesmo local, mas do outro lado da rua e, portanto, a Sinistrada tinha de se deslocar de uma a outra.
43.ª Assim, considerando o que foi alegado pela Sinistrada, confirmado em audiência por II e não desmentido por JJ (perito da Seguradora) sobre os tempos em que os factos ocorridos no dia do acidente se verificaram, as regras da experiência comum sobre o que significa o cumprimento de horários por um Educador de Infância e a impossibilidade de abandono imediato do local de trabalho, quando findo o horário (é necessário despedir-se das crianças, tirar a bata, colocar a roupa, recolher demais pertences pessoais e, então, sair das instalações),
este Tribunal deve rever os pontos 8. e 9. dos factos provados, deles passando a constar: “Por volta das 16h30, a autora apanhou o autocarro n.º ..., na paragem Avenida....”; “Após variadas paragens, cerca das 17h10, a autora saiu do autocarro n.º ... na paragem Largo..., em ....”.
44.ª Acresce que, considerando, conjugadamente, o afirmado pela Sinistrada
em declarações de parte, o descrito por II e por JJ nos seus depoimentos, o ponto 14. dos Factos Controvertidos deve ser dado como provado e aditado ao elenco dos Factos Provados o seguinte: “A Autora saiu no ..., na paragem ... – Avenida... (...), atravessou a rua e deslocou-se a pé até à paragem do ... – Avenida... (...).”
45.ª A Sinistrada alegou que, devido a uma cirurgia anterior aos meniscos, ficou com limitações de mobilidade andando devagar.
46.ª O Tribunal a quo, apesar de dar como provadas limitações de mobilidade da Sinistrada, não fez constar do elenco dos Factos provados que esta andasse lentamente.
47.ª Sobre esta matéria, foram produzidas diversas provas que depõem em sentido diverso, impondo-se a revisão dos pontos da matéria de facto a este respeito dados como provados pelo Tribunal a quo.
48.ª Assim e desde logo, em declarações de parte, a Sinistrada confirmou que tem limitações de mobilidade e anda devagar.
49.ª O que foi confirmado, com explicações adicionais sobre as dificuldades da Sinistrada, por II, que também a propósito da descrição do percurso realizado pela Sinistrada no percurso para casa salientou as especiais demoras pelo facto de esta andar mais devagar.
50.ª Nenhuma prova foi produzida em sentido diverso.
51.ª Assim, em face das declarações de parte da Autora, confirmadas por II, este insigne Tribunal deverá considerar como provados os quesitos 6. e 9. dos Factos Controvertidos, passando a constar dos Factos Provados que “A Autora movimenta-se muito lentamente.” e “A Autora aproveita normalmente para fazer uma caminhada no percurso para casa.”.
52.ª Foi dado como Assente, no Despacho Saneador, que “A autora seguia num autocarro da Carris n.º ... do qual, pelas 18.40h, se atravessou à frente um veículo.” (j) e “Em consequência, a Autora embateu com a barriga” (J).
Foi considerado controvertido que “Porque o autocarro que seguia travou bruscamente, a autora caiu.” (cfr. quesito 15.). Produzida a prova, o Tribunal a quo não deu como provados estes factos (cfr. pontos 20. e 21. dos Factos Provados).
53.ª Sucede que, de toda a prova produzida em julgamento resultou claro ter o autocarro em que seguia a Sinistrada travado bruscamente e esta caído e, nessa queda, embatido com a barriga.
54.ª Com efeito, a Sinistrada, em declarações de parte, disse precisamente ter sido isso que se passou.
55.ª Mas também GG e HH, confirmaram ter sido isso que apuraram junto dos presentes, quando, imediatamente após o acidente, acorreram ao local.
56.ª E II assegurou ter-lhe sido o relatado pela Sinistrada e pela sua filha.
57.ª Assim, em face da prova produzida em julgamento, este insigne Tribunal deverá rever o ponto 21. dos Factos Provados, dele passando a constar:
“Em consequência do referido em 11., porque o autocarro onde seguia travou bruscamente, a autora caiu e embateu com a barriga.”.
58.ª No ponto 27. Dos Factos Controvertidos identificados no Despacho Saneador referia-se: “Como consequência do facto de ter sido sujeita a cirurgias altamente invasivas, com sérias complicações, perdido um rim, um dente e ter enfrentado tudo isto praticamente sozinha, uma vez que, por força das medidas restritivas em vigor durante a pandemia, só pôde receber uma visita semanal (de 1 hora), a Autora ficou profundamente deprimida.”.
59.ª A este respeito, deu-se singelamente como provado na Sentença (vide
ponto 39. dos Factos Provados) “A Autora regressou a casa e ficou deprimida.”.
60.ª Sucede que, a Sinistrada não ficou deprimida quando chegou a casa, mas anteriormente, durante o internamento, por força das circunstâncias alegadas. Aliás, por isso, como considerou provado o Tribunal a quo (!)
“Durante o período de internamento, teve uma consulta de psiquiatria e foi acompanhada pela equipa de psicologia do Hospital XX.”.
61.ª O contexto que levou à depressão da Sinistrada foi por esta referido em
julgamento e confirmado pela sua filha, HH, que acompanhou de perto o seu internamento, assim como por II, que a apoiou também em todo o processo, apesar de estarem separados de facto.
62.ª Estas causas que conduziram a Sinistrada a uma depressão, foram confirmadas também pelos peritos médicos, através dos esclarecimentos prestados a 26.03.2024 e juntos no Apenso A deste processo.
63.ª Idêntica conclusão tinha sido alcançada pela Perícia Médico Legal de natureza Psiquiátrica, em cujo Relatório, de 15.02.2023, junto na fase conciliatória dos presentes Autos,
64.ª Assim, por nesse sentido ter resultado toda a prova produzida, deve o ponto 39. dos Factos Provados, onde se diz que “A Autora regressou a casa e ficou deprimida.”, sem qualquer sustentação na prova produzida, ser substituído pela matéria que constava do quesito 27. “Como consequência do facto de ter sido sujeita a cirurgias altamente invasivas, com sérias complicações, perdido um rim, um dente e ter enfrentado tudo isto praticamente sozinha, uma vez que, por força das medidas restritivas em vigor durante a pandemia, só pôde receber uma visita semanal (de 1 hora),
a Autora ficou profundamente deprimida.”.
65.ª No que ao historial clínico da Sinistrada subsequente ao acidente concerne, praticamente todos os Factos Controvertidos, alegados pela Sinistrada, foram considerados como provados pelo Tribunal a quo (confrontem-se os quesitos 17. a 54. com os pontos 28. a 55. dos Factos Provados na Sentença).
66.ª O Tribunal a quo, apenas não considerou provado: (i) Que, na consulta do dia 20.06.2022, com o Dr. BB, este remeteu a Autora para uma consulta de cirurgia, por considerar que a situação era suscetível de intervenção cirúrgica (cfr. quesito 34. dos Factos Controvertidos e pontos 42. e 45. dos Factos Provados); (ii) Que o Dr. DD identificou um problema de enfraquecimento da parede abdominal e recomendou fisioterapia, por não concordar com uma nova intervenção cirúrgica (cfr.quesito 40. dos Factos Controvertidos); (iii) Que as sessões de fisioterapia
realizadas pela Autora foram 23 (cfr. quesito 41. dos Factos Controvertidos e ponto 47. dos Factos Provados); (iv) Que, como a infiltração realizada não teve sucesso, acabaram por concluir que a Autora tinha uma dor crónica (cfr. quesito 48. dos Factos Controvertidos e ponto 51. dos Factos Provados); e (v) Que a Autora ficou sem um rim (cfr. quesito 50. dos Factos Controvertidos) – embora este ponto fique implícito em face do ponto 34. dos Factos Provados.
67.ª Atenta a prova produzida sobre o historial clínico da Sinistrada, designadamente as suas declarações de parte, o depoimento de HH e II e os documentos juntos aos Autos, é sua convicção que estes factos deveriam ter sido considerados provados.
68.ª Em particular, foi junta como documento n.º 20, com a Petição Inicial,
Declaração Médica relativa à consulta de 20.06.2022 de Nefrologia, que a Sinistrada fez, a título particular, com o Prof. Dr. BB e que reencaminhou a Sinistrada para Cirurgia.
69.ª Foram juntas à Petição Inicial as faturas correspondentes às consultas de Cirurgia Geral, com o Dr. DD, de Fisiatria, de Ortopedia e de Medicina Física e de Reabilitação, no Hospital VV, assim como das sessões de fisioterapia, que se computam num total de 24, como documentos nºs 31, 34 e 36 a 62.
70.ª A realização de sessões de fisioterapia neste contexto, por indicação médica, antes de ser reencaminhada para a consulta da dor, foi reconhecida pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, nas perícias realizadas na fase conciliatória deste processo.
71.ª Assim, analisada conjugadamente toda a prova produzida, este insigne Tribunal deverá rever a decisão recorrida e dar como provado: (i) Na consulta do dia 20.06.2022, com o Dr. BB remeteu a Autora para uma consulta de cirurgia, por considerar que a situação era suscetível de intervenção cirúrgica; (ii) O Dr. DD identificou um problema de enfraquecimento da parede abdominal e recomendou fisioterapia, por não concordar com uma nova intervenção cirúrgica; (iii) A
Autora realizou 24 sessões de fisioterapia, que tinha indicação para realizar; (iv) Como a infiltração realizada não teve sucesso, acabaram por concluir que a Autora tinha uma dor crónica; e (v) A Autora ficou sem um rim.
Quanto ao recurso da matéria de Direito,
72.ª De acordo com Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (“RRATDP”), é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou norte.
73.ª Acrescenta, no entanto, o mesmo RRATDP, que se considera também acidente de trabalho o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nele se compreendendo o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de Trabalho. Sendo que não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou caso fortuito.
74.ª Não restam dúvidas que a Sinistrada sofreu um acidente que lhe causou
lesão corporal e redução da capacidade de trabalho ou de ganho.
75.ª Também é claro que este acidente se verificou no trajeto da Sinistrada de regresso a casa, após o seu dia de trabalho.
76.ª Cumpre saber se este acidente se verificou no trajeto normalmente utilizado e no tempo habitualmente gasto ou, não o tendo sido, se a interrupção verificada no trajeto deve considerar-se justificada tendo em vista a satisfação de necessidades atendíveis.
77.ª No dia 24.06.2021, quando sofreu um acidente, a Sinistrava estava a seguir o trajeto normalmente por si utilizado no regresso a casa. A Sinistrada deslocou-se a pé do estabelecimento onde prestava atividade até à paragem de autocarro mais próxima, aí apanhou o autocarro n.º ..., que utilizava habitualmente, saiu no Largo... e fez uma parte do trajeto a pé até ao Supermercado YY, onde foi fazer compras para o jantar, como faz habitualmente, voltou a apanhar o autocarro n.º ..., mudou, como habitualmente, de autocarro, no ..., onde apanhou o n.º ... e veio neste autocarro a sofrer um acidente.
78.ª Importando notar que não apenas o trajeto realizado pela Sinistrada correspondia ao normalmente utilizado no percurso para casa, como a ida ao supermercado, nomeadamente àquele a que foi no dia do acidente, fazia também parte do percurso habitual da Sinistrada.
79.ª Ficou, assim, indiscutivelmente demonstrado que o acidente ocorreu no
trajeto normalmente utilizado pela Sinistrada no percurso de regresso do trabalho para casa.
80.ª Estranha a Sentença o intervalo temporal entre o fim do horário de trabalho da Sinistrada e a hora estimada a que ocorreu o acidente.
81.ª Com o devido respeito, analisados conjugadamente os depoimentos prestados em audiência, em particular os de II e JJ (supra transcritos), atento o percurso feito pela trabalhadora e as suas características de idade e mobilidade, e a experiência do que representa o cumprimento de horários de trabalho e da utilização de autocarros da Carris, que são factos públicos e notórios, esta aparente estranheza não tem qualquer fundamento.
82.ª Como resultou da prova produzida em julgamento, terminando o seu horário no dia do acidente pelas 16h00, a Sinistrada não iniciou (nem podia) o seu trajeto para casa, a essa hora. Sendo a Sinistrada Educadora de Infância, antes de sair precisa necessariamente de ir trocar a bata pela sua roupa normal e despedir-se (tarefas em que, como explicou criticamente II, a Sinistrada tem por hábito demorar-se) e só depois pode seguir para a paragem do autocarro, para a qual tem de andar ainda alguns minutos. Considerando a idade e as dificuldades de mobilidade da Sinistrada, que, apesar de tudo, o Tribunal a quo acabou por dar como provados, não é credível que a Sinistrada conseguisse estar na paragem a tempo de apanhar o autocarro das 16h15, passando o seguinte, como explicou JJ, às 16h30, hora a que a Sinistrada declara ter apanhado o primeiro autocarro, n.º ... na paragem Avenida... e, ponderado o que vem de se expor se afigura como mais credível (esperando-se que este insigne Tribunal dê este ponto como provado).
83.ª Este autocarro, segundo explicou JJ em audiência, demora cerca de 45 minutos a chegar à paragem do .... Tendo, no dia do acidente, a Sinistrada saído numa um pouco antes, aproveitando para fazer uma caminhada em parte do percurso, até ao Supermercado YY, é também credível que só por volta das 17h10 tenha chegado ao Largo... em ..., como declarou a Sinistrada, confirmou II (que fez ele próprio o percurso) e não foi contrariado por JJ.
84.ª A Sinistrada desceu então no Largo..., como a própria confirmou em declarações de parte, porque é o que costuma fazer quando apanha o autocarro ... e vai às compras ao Pingo Doce de ....
Aproveita para fazer uma caminhada, de acordo com a recomendação médica que tem, como nos confirmou II e o Tribunal a quo deu como provado. Fá-lo na Largo... por ser mais agradável para si e a caminho do supermercado, não se concebendo como se possa pretender impor a um trabalhador onde este deve ou não fazer as suas caminhadas diárias, como parece pretender o Tribunal a quo. Tanto mais que, no caso concreto, trabalhando a Sinistrada em ... e com as reconhecidas limitações de mobilidade, se compreende que opte por não caminhar ali num terreno mais acidentado (como explicou II) e (acrescentamos nós) no meio do bairro… Sendo certo que, é evidente que os trabalhadores podem escolher livremente o meio de transporte de regresso a casa, compreendendo-se que possam optar por fazer parte do percurso, em princípio aquela que lhe seja mais agradável, a pé.
85.ª Mas, portanto, a Sinistrada desceu no Largo... e foi em direção ao Supermercado YY pela Largo..., como o Tribunal a quo deu como provado.
86.ª Como passou na WW, ocorreu-lhe ir lá ver de uma toalha de mãos
que acabou por não comprar. O que explicou a Autora em declarações de parte e o Tribunal a quo deu como provado.
87.ª Entretanto, como é Facto Provado, ligou-lhe a irmã e ficaram ainda cerca de 20 minutos ao telefone, antes da Sinistrada seguir para o Supermercado YY.
88.ª Foi então ao Supermercado YY e, depois, já com as compras, dirigiu-se à paragem em frente, na Praça de ..., onde voltou a apanhar o autocarro n.º ... em direção ao ..., como foi dado como provado.
89.ª Saiu no ..., na paragem ... – avenida do Brasil
(...) e deslocou-se a pé até à paragem do ... – Avenida... (...), do outro lado da rua, para apanhar o autocarro n.º ... para casa, como explicaram a Sinistrada, II e JJ (o que, crê-se apenas por lapso não foi dado como provado pelo Tribunal a quo, mas se espera este Tribunal venha a reconhecer).
90.ª Uma paragem depois, a Sinistrada sofreu o acidente em causa nestes Autos.
91.ª Assim, atento o percurso realizado pela Sinistrada (sendo que do Largo... ao Supermercado YY distam cerca de 700 metros), a sua idade, as limitações de mobilidade de que padecia, tudo conjugado com as publicamente conhecidas demoras nos autocarros da Carris, bem se compreende o intervalo de tempo que mediou entre o fim do horário de trabalho (não inteiramente coincidente com a saída desta do estabelecimento) e o momento em que se admite que o acidente tenha ocorrido.
92.ª Isto mesmo desmistificou II, que realizou ele mesmo o
percurso em causa e referiu que sem a caminhada e as compras em ..., a Sinistrada, atentas as suas características, demora entre 1h30 e 2h00 a chegar a casa; com a saída no Largo... e a caminhada a Sinistrada demora entre 2h00 a 2h30.
93.ª Somos assim forçados a concluir que, na verdade, o tempo gasto pela Sinistrada no percurso para casa no dia do acidente, não estava muito distante o habitualmente gasto.
94.ª Em qualquer caso, o certo é que, tendo o trajeto sofrido uma interrupção, não é tanto o tempo total que demorou o regresso a casa que nos deve ocupar, mas a finalidade da interrupção!
95.ª Apesar de o Tribunal a quo na fundamentação da Sentença, referir ter dúvidas quanto ao motivo da interrupção, nomeadamente que a intenção da Autora fora ir ao Supermercado YY, o certo é que, analisada a matéria de Facto Provada é isso mesmo que resulta.
96.ª Ficou claro na Audiência e espelhado na Sentença que a Sinistrada saiu no Largo... para ir ao Supermercado YY, no caminho para o Supermercado YY, porque passou em frente à WW, entrou para ver de uma toalha de mãos que acabou por não comprar, seguindo o seu caminho para o Supermercado YY, onde, depois de terminar uma chamada telefónica com a sua irmã, entrou para fazer compras para o jantar.
97.ª Ora, não há necessidade mais indiscutivelmente atendível do que ir ao supermercado, e não é menos atendível atender uma chamada telefónica da irmã, como nos parece irrefutável e se tem unanimemente pronunciado a nossa jurisprudência em casos análogos.
98.ª Com efeito, ainda que a Lei não consagre uma definição, por necessidades atendíveis do trabalhador tem-se entendido que sejam aquelas ligadas à vida pessoal e familiar, admissíveis de acordo com um critério de adequação social e razoabilidade, sendo que não precisam de ser urgentes nem inadiáveis e não são limitadas a um tipo específico, ou seja, não sendo as mesmas meramente materiais ou de subsistência básica.
99.ª A doutrina e a jurisprudência têm vindo a admitir a existência de necessidades atendíveis dos trabalhadores nas mais diversas situações.
100.ª Assim, o presente acidente, verificado quando a Sinistrada se deslocava no percurso do trabalho para casa, após uma interrupção para ir ao supermercado, uma necessidade perfeitamente atendível, não pode deixar de ser qualificado como acidente de trabalho, com todas as consequências legalmente previstas no Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, que constituem, aliás, direitos indisponíveis e inderrogáveis da Sinistrada.
101.ª De acordo com o disposto no artigo 23.º do RRATDP, o direito à reparação por acidentes de trabalho compreende prestações em espécie e em dinheiro.
102.ª No âmbito das prestações em dinheiro se compreendem, de acordo com o n.º 1 do artigo 47.º, compreendem-se a indemnização por incapacidade temporária para o trabalho e a indemnização em capital e pensão por incapacidade permanente para o trabalho.
103.ª Calculando-se as pensões nos termos previstos no artigo 48.º do seguinte modo: (a) por incapacidade temporária absoluta, uma indemnização diária igual a 70% da retribuição nos primeiros 12 meses e de 75% no período subsequente; e (b) por incapacidade permanente parcial, uma pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho.
104.ª Tendo a Sinistrada, até à data da realização da audiência de julgamento nos presentes Autos, como consequência do acidente de trabalho, suportado diversas despesas médicas, hospitalares e farmacêuticas, necessárias para o restabelecimento da sua saúde e da sua capacidade de trabalho, no valor total de € 6.528,66 (seis mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e seis cêntimos) – cfr. ponto 56. dos Factos Provados –tem, antes de mais, direito ao ressarcimento deste montante.
105.ª Continuando a Sinistrada a fazer psicoterapia e medicação diária (cfr. ponto 55. dos Factos Provados) tem também direito a que lhe sejam proporcionadas estas consultas e fármacos.
106.ª Por outro lado, a Sinistrada auferia, à data do acidente, a retribuição mensal de € 2.800,56, paga 14 meses, acrescida de subsídio de alimentação no valor mensal de € 104,94, pago 11 meses, o que perfaz uma remuneração anual de € 40.362,18 – cfr. ponto 61. dos Factos Provados.
107.ª Considerando que a Autora teve um período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho de 519 dias, entre 26-06-2021 e 25-11-2022 –cfr. ponto 58. dos Factos Provados – assiste à Autora o direito a uma indemnização diária igual a 70% da retribuição nos primeiros 12 meses e 75% no período subsequente, o que perfaz o valor total de € 40.942,73 (quarenta mil novecentos e quarenta e dois euros e setenta e três cêntimos).
108.ª Por fim, considerando que, como consequência do acidente, a Sinistrada ficou com uma incapacidade permanente parcial de 33% - conforme resultado do Auto de Exame por Junta Médica realizado no Apenso A –assiste à Sinistrada o direito a uma pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho, o que perfaz o valor total de € 10.595,07 (dez mil quinhentos e noventa e cinco euros e sete cêntimos).
109.ª De acordo com o disposto no artigo 7.º do RRATDP, é responsável pela reparação e demais encargos decorrentes de acidente de trabalho a empregadora, relativamente ao trabalhador ao seu serviço.
110.ª A empregadora da Sinistrada tinha a responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de trabalho integralmente transferida para a Seguradora – cfr. ponto 57. Dos Factos Provados.
111.ª Pelo exposto, deve a Seguradora ser condenada no pagamento à Sinistrada, aqui Recorrente, de todas as quantias devidas pelo acidente de trabalho sofrido, com todas as consequências expostas, acrescidas de juros de mora à taxa legal.
Termos em que deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente, e, em consequência, deve ser revogada a decisão recorrida, alterando-se a decisão sobre a Matéria de Facto e de Direito e condenando-se a Ré/Recorrida em todos os pedidos contra si deduzidos.
*
A recorrida contra-alegou e formulou as seguintes conclusões :
A. No âmbito do presente processo, no que a produção de prova diz respeito, foi integralmente respeitado o princípio da imediação;
B. Quando a decisão do julgador se estriba na credibilidade de uma fonte probatória assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a pode censurar se ficar demonstrado que o iter da convicção trilhado pelo tribunal de 1ª instância ofende as regras da experiência comum, da lógica e dos conhecimentos científicos;
C. A MMª Juiza do Tribunal “a quo” quando fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto, fê-lo de forma absolutamente consentânea com as exigências que tal tarefa obriga, não nos deixando margem para qualquer dúvida sobre a razão pela qual foi feita a seleção e qualificação fáctica;
D. A Apelada para responder às Alegações da Apelante ateve-se única e exclusivamente nas conclusões apresentadas, por entender que é hodiernamente pacifico que são estas que delimitam o objecto do recurso, sendo esta interpretação aquela que melhor espelha a intenção do legislador nos art. 637º, nº2 e 639º do CPC;
E. Compulsado o teor das conclusões apresentadas, verificamos que a existir
qualquer impugnação da matéria de facto, a mesma é efectuada de forma tecnicamente incorrecta, não respeitando minimamente o disposto no art. 640º do CPC;
F. Não há qualquer motivo para que a seleção fáctica operada na sentença proferida pelo Tribunal “a quo” mereça reparo e alteração sendo que, com excepção do pretendido pela Apelante sobre o “tempo habitual” do trajecto, todas as outras pretendidas alterações, são absolutamente inócuas para o desfecho do presente litígio;
G. O acidente que a Apelante sofreu ocorreu, pelo menos, duas horas e quarenta minutos após cumprido o seu horário de trabalho;
H. Resultou provado que o trajecto trabalho/residência sofreu uma interrupção e que o acidente de viação ocorreu bastante mais tarde do que aquela que seria a hora normal para o trajecto ser concluído.
I. Tivesse a Apelante apanhado o autocarro nº ... e de seguida, sem interrupções, o autocarro ... e o seu trajecto demoraria cerca de 60 minutos;
J. Para que se entenda que o acidente ocorrido no trajecto habitual seja enquadrado no âmbito do conceito de acidente de trabalho, por via da sua extensão, é necessário que o mesmo ocorra, no caso da viagem de volta, perto da hora de saída, ou compreendido dentro do tempo normal que tal trajecto demoraria a ser percorrido;
K. Um acidente para que possa ser enquadrado como acidente de trabalho in
itinere – nos termos e para os efeitos do disposto no art. 9º, nº2 da LAT –precisa, num primeiro momento de ser enquadrável no espaço temporal normal que o trajecto em causa demora a ser percorrido;
L. O acidente não ocorreu no tempo habitual e normalmente gasto no trajecto em causa;
M. Não pode ser qualquer interrupção ao trajecto habitual a permitir que nos
mantenhamos dentro do conceito de acidente de trabalho;
N. Segundo a tese da Apelante, o trajecto habitual foi interrompido para a aquisição de bens para o jantar;
O. Esta interrupção para a satisfação de necessidades, eventualmente, atendíveis, foi ela própria alvo de uma interrupção, o que não permite de forma alguma,
sustentar a tese de que estamos perante um acidente de trabalho in itinere;
P. É a Apelante que nos informa que, no passeio que decidiu dar, após sair do autocarro nº ..., no Largo... - paragem que não faz ligação ao autocarro nº ... - enquanto caminhava em direcção ao Supermercado YY da Praça de ..., ao passar pela Av. da Igreja, decidiu parar e entrar na WW para adquirir uma toalha de mãos;
Q. Não há qualquer possibilidade de compaginar esta tentativa de aquisição de uma toalha de mãos a uma necessidade atendível, tanto mais que não há sequer uma razão ponderosa alegada para esse efeito;
R. Utilizando o critério da adequação social, não se pode, de forma razoável, entender que a interrupção de uma interrupção, para entrar numa loja e adquirir uma toalha de mãos, sem qualquer justificação, possa ser considerada com uma necessidade atendível com conexão com a relação laboral;
S. Não fosse este o entendimento e nada impediria que, a coberto de uma necessidade de aquisição de bens para o jantar, a Apelante entrasse em todas as lojas com que se deparasse na Av. da Igreja e ainda assim estivesse garantida pela tutela infortunístico laboral;
T. O acidente relatado pela Apelante nos presentes autos, não só ocorreu fora do tempo que o trajecto habitual demoraria a ser percorrido como, tal espaço temporal normal, foi interrompido para a eventual satisfação de um capricho.
U. O que está em causa nos presentes autos é o enquadramento do acidente de viação sofrido pela Apelante na figura de acidente de trabalho, designadamente no âmbito de extensão da mesma ínsito nos nºs 2 e 3 do art. 9º da LAT e como se demonstrou e bem andou o Tribunal “a quo”, não é possível tal enquadramento por não estarem preenchidos os requisitos necessários.
V. A sentença posta em crise pela Apelante não merece qualquer censura seja a nível fáctico seja a nível jurídico, tendo sido feita uma exímia apreciação da prova produzida e com o mesmo rigor, uma subsunção dos factos ao direito.
Terminou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
*
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
*
II- Importa solucionar as seguintes questões:
- Se deve ser alterada a decisão referente à matéria de facto;
- Se ocorreu um acidente trabalho;
- Se a A. tem direito às quantias peticionadas.
*
III- Apreciação
Vejamos, em primeiro lugar, se deve ser alterada a decisão referente à matéria de facto.
Os ónus de impugnação da decisão referente à matéria de facto estão estabelecidos no art. 640º do CPC.
Da análise das alegações de recurso resulta que foram minimamente cumpridos os ónus consignados neste preceito legal.
Quanto ao ponto 59 dos factos provados, ocorre manifesto lapso. Foi fixada IPP de 33% ( e não 30%).
No ponto 58 dos factos provados ocorre também manifesto lapso nas expressões “ temporária permanente” em vez de “temporária absoluta”.
Atenta a decisão proferida nos autos apensos para fixação de incapacidade, os pontos nºs 58 e 59 dos factos provados passarão a ter a seguinte redacção:
n. -58. A autora ficou afetada com incapacidade temporária absoluta de 26-06-2021 a 25-11-2022, data da alta;
-59. … E incapacidade permanente parcial de 33% desde 26-11-2022.
*
Do ponto 5 dos factos provados consta :
5. Os autocarros ... e ... demoravam cerca 60 minutos a efetuar a ligação entre o local de trabalho e a residência da autora.
A A. pretende que seja considerado provado :
-De acordo com os horários afixados pela Carris, o somatório dos tempos teóricos dos autocarros ... e ..., da paragem mais próxima do local de trabalho da Autora, até à paragem mais próxima de sua casa, é de 60 minutos;
-Na deslocação do local de trabalho à residência, sem interrupções, a Autora demorava cerca de 1h30 a 2h00, considerando um tempo de deslocação a pé desde o estabelecimento até à paragem, o tempo real do autocarro ... até à paragem do ..., a deslocação a pé até à paragem do ... do ..., do outro lado da rua, o tempo do percurso do autocarro ... até à paragem mais próxima da residência da Autora e o percurso a pé desde essa paragem até à sua residência.
Vejamos.
Das declarações da testemunha JJ ( que exerceu funções no âmbito da peritagem efectuada pela entidade seguradora) não resultam com a necessária certeza os factos provados sob 5. A referida testemunha consultou os horários da Carris e estabeleceu um contacto telefónico com a A.. Referiu ainda que “nas melhores condições possíveis” o tempo gasto pela A. seria de 60 minutos.
Por outro lado, as declarações de parte são insuficientes, só por si, para dar como assentes os factos que a A./recorrente pretende que sejam considerados provados. O depoimento da testemunha II ( casado com a A. e separado de facto da mesma) também não permite, com o necessário rigor, dar como assente a factualidade que a A./recorrente pretende que seja considerada provada.
Perante o cômputo da prova acima indicada e as incertezas quanto ao tempo gasto pela A. no percurso habitual do local de trabalho para a sua residência , decidimos eliminar o ponto 5 dos factos provados.
Sob 12 e 13 foi dado como provado :
«12. A autora pára para compras de última hora no supermercado e no percurso de regresso a casa;
13. Por vezes no supermercado Supermercado YY, em ...».
A A./recorrente pretende que seja considerado provado : « A Autora pára habitualmente para compras de última hora no supermercado, no percurso de regresso a casa».
Das declarações de parte da ora recorrente resulta que no regresso da casa para habitualmente num supermercado, onde se inclui o supermercado Supermercado YY.
A testemunha FF ( colega da A.) referiu que a A. umas vezes para em ... ( no Supermercado YY) outras vezes em ....
Perante a prova produzida, o Tribunal apenas pode dar como assente que no regresso a casa, a A. para, por vezes, no supermercado Supermercado YY em ....
cc. Serão, por isso, mantidos os pontos 12 e 13 dos factos provados.
0. *
Defende a A./recorrente que Tribunal deve rever os pontos 8. e 9. dos factos provados, deles passando a constar: “Por volta das 16h30, a autora apanhou o autocarro n.º ..., na paragem Avenida....”; “Após variadas paragens, cerca das 17h10, a autora saiu do autocarro n.º ... na paragem Largo..., em ....”.
1. Mais defende que deverá ser considerado provado o seguinte: “A Autora saiu no ..., na paragem ... – Avenida... (...), atravessou a rua e deslocou-se a pé até à paragem do ... – Avenida... (...).”
Quanto aos momentos em que a A./recorrente apanhou o autocarro ... e saiu do referido autocarro, as testemunhas inquiridas não denotaram conhecimento directo desta matéria e as declarações de parte são, só por si, insuficientes para formar a convicção do Tribunal.
Mantemos, por isso, a redacção dos pontos 8 e 9 dos factos provados.
Verificamos, no entanto, que ocorre uma lacuna entre os pontos 19 e 20, pelo que deverá ser aditado ao ponto 19 dos factos provados o seguinte : A Autora saiu no ..., na paragem ... – Avenida... (...), atravessou a rua e deslocou-se a pé até à paragem do ... – Avenida... (...).
v. O ponto 19 terá a seguinte redacção :
1. 19. Já com as compras, dirigiu-se à paragem de autocarro na Praça de ... (Escola ...) e apanhou novamente o autocarro n.º ... até ao .... A Autora saiu no ..., na paragem ... – Avenida... (...), atravessou a rua e deslocou-se a pé até à paragem do ... – Avenida... (...).
2. *
Defende a A./recorrente que devem ser considerados provados os seguintes factos:
- A Autora movimenta-se muito lentamente;
-A Autora aproveita normalmente para fazer uma caminhada no percurso para casa.
*
Verificamos que sob 10, 15 e 16 resultou provado :
w. 10. A autora aproveitou para fazer uma caminhada;
15. Na sequência de duas cirurgias aos meniscos, em 2011 e 2018, a autora ficou com limitações de mobilidade;
16. E com indicação para realizar marcha diariamente.
As declarações de parte são insuficientes para dar como assentes os factos que R./ recorrente pretende aditar.
Do cômputo da prova produzida apenas resultam, com a necessária certeza, os factos provados sob 10, 15 e 16.
*
Pretende a A./ recorrente que o facto 21 passe a ter a seguinte redacção : “Em consequência do referido em 11., porque o autocarro onde seguia travou bruscamente, a autora caiu e embateu com a barriga.”.
Assiste razão à recorrente. A dinâmica do acidente não se mostra integralmente descrita. Atentas as declarações da A., deverá o ponto 21 dos factos provados passar a ter a seguinte redacção : Em consequência do referido em 20., porque o autocarro onde seguia travou bruscamente, a autora caiu e embateu com a barriga.
*
Defende a recorrente que o ponto 39 dos factos provados deverá ter a seguinte redação : “Como consequência do facto de ter sido sujeita a cirurgias altamente invasivas, com sérias complicações, perdido um rim, um dente e ter enfrentado tudo isto praticamente sozinha, uma vez que, por força das medidas restritivas em vigor durante a pandemia, só pôde receber uma visita semanal (de 1 hora), a Autora ficou profundamente deprimida”.
Atentas as declarações da A. e os depoimentos das testemunhas HH ( filha da A.) e II, entendemos que o ponto nº 39 deverá ter a redacção defendida pela recorrente.
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Defende ainda a recorrente que devem ser considerados provados os seguintes factos :
- Na consulta do dia 20.06.2022, com o Dr. BB remeteu a Autora para uma consulta de cirurgia, por considerar que a situação era suscetível de intervenção cirúrgica;
-O Dr. DD identificou um problema de enfraquecimento da parede abdominal e recomendou fisioterapia, por não concordar com uma nova intervenção cirúrgica;
- A Autora realizou 24 sessões de fisioterapia, que tinha indicação para realizar;
-Como a infiltração realizada não teve sucesso, acabaram por concluir que a Autora tinha uma dor crónica;
- A Autora ficou sem um rim.
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Vejamos.
A perda do rim já resulta do ponto 34 dos factos provados.
Quanto à dor crónica, a matéria relevante já consta do ponto 54 dos factos provados.
Quanto aos demais aspectos que a recorrente pretende aditar importa considerar as suas declarações e o teor dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 37 a 59 ( referentes às sessões de Medicina Física e de Reabilitação), pelo que será aditado o número de vinte e três de consultas de fisioterapia.
Quanto aos juízos médicos, consideramos a prova indicada insuficiente para formar a convicção do Tribunal.
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Quanto ao ponto 61 ocorre lapso na indicação das premissas do valor indicado. Onde está “€2800” dever-se-á ler “€2800,56”. Onde está “€109,94” dever-se-á ler : “€104,94”.
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Os factos provados são os seguintes :
j. 1. A 24 de junho de 2021 a autora exercia as funções de educadora de infância ao serviço da ZZ no ..., em ...;
2. Residia na Avenida..., em ...;
3. Recorria habitualmente a autocarros da Carris nos trajetos de ida de casa para o local de trabalho e regresso do local de trabalho para casa;
4. Utilizava os autocarros n.ºs ... e ..., trocando de autocarros na zona do ...;
5. ( Eliminado)
6. No dia referido em 1., a autora cumpriu o horário de trabalho das 08h00 às 16h00;
7. Terminado o seu horário de trabalho, saiu do estabelecimento da empregadora e foi, como habitualmente, a pé, para a paragem do autocarro;
8. A autora apanhou o autocarro n.º ..., na paragem Avenida...;
9. A autora saiu do autocarro n.º ... na paragem Largo..., em ...;
z. 10. A autora aproveitou para fazer uma caminhada;
11. Depois de sair na Paragem do Largo..., a autora desceu a pé a rua, até à Praça de ..., onde fez compras para o jantar no supermercado Pingo Doce de ...;
12. A autora pára para compras de última hora no supermercado e no percurso de regresso a casa;
13. Por vezes no supermercado Supermercado YY, em ...;
14. Do Largo... para a Praça de ... implica passar pela Largo..., conhecida por lojas, cafés e restaurantes;
15. Na sequência de duas cirurgias aos meniscos, em 2011 e 2018, a autora ficou com limitações de mobilidade;
16. E com indicação para realizar marcha diariamente;
17. No percurso para o supermercado Supermercado YY sito na Praça de ..., e antes deste, a autora parou na loja WW para comprar uma toalha de mãos;
18. … E ficou cerca de 20 minutos a falar ao telemóvel, antes de prosseguir para o Supermercado YY;
3. 19. Já com as compras, dirigiu-se à paragem de autocarro na Praça de ... (Escola ...) e apanhou novamente o autocarro n.º ... até ao .... A Autora saiu no ..., na paragem ... – Avenida... (...), atravessou a rua e deslocou-se a pé até à paragem do ... – Avenida... (...).
20. A autora seguia num autocarro Carris ... do qual, pelas 18.40h, se atravessou à frente um veículo;
21. Em consequência do referido em 20., porque o autocarro onde seguia travou bruscamente, a autora caiu e embateu com a barriga.
jj. 22. Foi assolada por dores;
23. A autora foi levada de ambulância para o Hospital XX;
24. Ficou internada;
25. Foi intervencionada ao rim esquerdo devido a hematoma;
26. Teve alta hospitalar a 20 de julho de 2021;
27. A autora regressou a casa;
28. Verificando a existência de febres altas, em 05.08.2021, a Autora deslocou-se ao Centro Clinico SS;
29. Foi internada no Hospital SS;
30. No dia seguinte, foi transferida para o Hospital XX;
o. 31. No dia 6.08.2021, voltou a ser internada no Hospital TT;
32. No dia 10.08.2021, a Autora foi alvo de uma primeira cirurgia ao rim esquerdo, em que foi submetida a drenagem de hematoma perineal por incisão de flanco, com tentativa de preservação do órgão e resolução do foco infecioso.
33. Este procedimento não foi suficiente para debelar a infeção.
34. Um mês depois, a 13.09.2021, a Autora foi sujeita a nova cirurgia, de nefrectomia, em que lhe foi retirado o rim esquerdo;
35. Durante os internamentos, a Autora teve diversas complicações, nomeadamente pneumonias;
36. E a perda do dente 12;
37. Em 27.09.2021 teve alta hospitalar do Hospital TT para o exterior, com indicação de repouso com a ajuda de terceiros;
38. Tinha indicação para permanecer em repouso no seu domicílio;
39. Como consequência do facto de ter sido sujeita a cirurgias altamente invasivas, com sérias complicações, perdido um rim, um dente e ter enfrentado tudo isto praticamente sozinha, uma vez que, por força das medidas restritivas em vigor durante a pandemia, só pôde receber uma visita semanal (de 1 hora), a Autora ficou profundamente deprimida.
w. 40- Durante o período de internamento, teve uma consulta de psiquiatria e foi acompanhada pela equipa de psicologia do Hospital TT;
41. Após a alta hospitalar (27 de setembro 2021), atento o seu quadro depressivo, fez tratamento com antidepressivos (Escitalopram);
42. No dia 20.06.2022, a Autora foi a uma consulta de nefrologia, a título particular, com o Prof. Dr. BB;
43. A autora foi sendo acompanhada pela médica de família, Dra. CC que lhe prescreveu tratamento com antidepressivos (Escitalopram);
44. Para além do quadro depressivo, a autora continuava com dores;
b. 45. No dia 20.06.2022, a Autora foi a uma consulta de nefrologia com o Prof. Dr. BB;
46. A autora teve consultas com o Dr. DD, do Hospital VV, nos dias 02.08.2022 e 23.08.2022;
b. 47. A autora realizou 23 sessões de fisioterapia;
48.- Como sentia cada vez mais incómodo e dor, teve consulta com o Dr. DD, no Hospital VV em 24.10.2022, que a reencaminhou para consulta da dor;
dd. 49. Em 04.11.2022, a Autora teve consulta com a Dra. EE que procedeu a uma infiltração para bloqueio do nervo e prescreveu medicação para a dor;
50. Caso sentisse melhoras, a Autora deveria realizar nova infiltração;
51. A infiltração não teve sucesso;
52. A Autora passou, por indicação da médica de família, a fazer psicoterapia semanal, desde dezembro de 2022;
53. … Com uma cicatriz no abdómen com cerca de 59 cm;
54. … Dor crónica;
55. E continua a fazer psicoterapia semanal e medicação diária;
56. Em sequência do referido em 19. a 46., incorreu em € 6 528,66 com despesas, consultas, internamentos, exames e fármacos;
57. A 24 de junho de 2021 a ZZ tinha a sua responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de trabalho transferida para a ré, mediante seguro titulado pela apólice AT ..., e pela retribuição referida em 52.;
58. A autora ficou afetada com incapacidade temporária absoluta de 26-06-2021 a 25-11-2022, data da alta;
59. … E incapacidade permanente parcial de 33% desde 26-11-2022;
60. A ré pagou à autora a quanta de € 2000,10 pelos períodos de ITA;
61. A autora auferia a retribuição anual de € 40 362,18 (€ 2800,56 x 14 + €104,94 x 11).
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Vejamos, agora, se ocorreu um acidente de trabalho.
Atenta a data do acidente, aos presentes autos é aplicável a lei nº 98/2009, de 04/09.
O art. 8º do referido Diploma Legal consagra o conceito de acidente de trabalho nos seguintes termos :
«1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.»
O art. 9º da mesma lei opera a extensão do conceito nos seguintes termos:
«1 - Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 - No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.»
Relevam para o caso em apreço o disposto na alínea a) do nº1 do referido art. 9º conjugado com os nºs 2 e 3 do mesmo preceito legal.
Dos factos provados resulta que o acidente ocorreu no autocarro que a recorrente utilizava no regresso do local de trabalho para casa ( factos 1 a 4, 20 e 21).
Vejamos, agora, as interrupções e desvios verificados.
Refere a sentença recorrida :
«A autora saiu pelas 16 horas e sofreu o embate pelas 18 horas e 40 minutos, ainda no trajeto. E isto não por motivo fortuito, mas porque durante esse período, decidiu fazer uma caminhada, na qual esteve ao telefone durante cerca de 20 minutos, percorreu uma rua de comércio, entrou numa loja “WW” para comprar uma toalha de mãos e em que, finalmente, vem a fazer compras, em supermercado, retornando à paragem em que interrompeu o trajeto do autocarro que habitualmente tomava no percurso de e para o trabalho. Tempos que não se podem integrar no conceito de habitualmente gasto ou associados a um critério de atendibilidade da necessidade, que justificassem a adequação da interrupção.»
Sobre o conceito “necessidades atendíveis do trabalhador” a que alude o citado art. 9º, nº 3 da lei nº 98/2009 refere o Conselheiro Júlio Gomes in “ O Acidente de Trabalho O acidente in itinere e a sua descaracterização ”, Coimbra Editora, pág. 188 e 189 : « Quanto às necessidades atendíveis, parece-nos claro que serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa Lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível».
Refere ainda o mesmo autor, a fls. 184 e 185 ( op. cit.) : « Note-se, em primeiro lugar, que a norma não esclarece se tendo o trajecto normal sofrido interrupções ou desvios “injustificados”, tal acarreta- como parece ser o entendimento dominante entre nós- que, a partir do momento do desvio ou da interrupção, qualquer acidente já não poderá ser considerado acidente de trabalho, ou se, terminada a interrupção ou terminado o desvio “injustificado”, e retomando o trabalhador o trajecto normal, um acidente neste percurso voltaria a ser considerado acidente de trabalho».
No caso subjudice importa considerar :
- A trabalhadora saiu na paragem Largo... aproveitou para fazer uma caminhada ( ponto 9 e 10) e tinha indicação para realizar marcha diariamente ( ponto 16);
- Parou numa loja “WW” para comprar uma toalha de mãos;
- E ficou 20 minutos a falar ao telemóvel;
- Fez compras para o jantar no Supermercado YY em ....
Depois retomou o percurso para casa nos autocarros nºs ... e ....
No que se refere à caminhada ( para a qual tinha indicação) não ocorre propriamente um desvio. Estamos apenas perante um meio alternativo de locomoção e estava justificado no caso concreto.
Quanto à paragem na loja “WW” para comprar uma toalha de mãos, a situação apresenta similitudes com a apreciada no âmbito do processo nº 4899/16.0T8LRS.L1 ( Acórdão da Relação de Lisboa de 05.12.2018 relatado pelo Desembargador Sérgio Almeida e no qual a ora relatora interveio na qualidade de 1ª Adjunta- www.dgsi.pt ). No Acórdão proferido nos referidos autos foi sumariado :
«I-Corresponde à satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador o desvio e a interrupção destinados à aquisição de uma camisola de um clube de futebol para oferecer ao afilhado, quando tal ocorre no âmbito da viagem de regresso a casa e por um curto período de tempo.
II-O infortúnio sofrido pelo trabalhador nessas circunstâncias, ao regressar ao veículo automóvel, mantém a conexão com a sua situação laboral e constitui, por isso, um acidente in itinere.»
Refere o citado Acórdão : « Não há dúvida de que o desvio e a interrupção são, neste caso, razoáveis, surgindo no decurso da viagem de regresso e em termos que não fogem ao qualquer trabalhador com bom senso poderia fazer. A R. põe a questão ainda relativamente ao fim da interrupção e desvio, a saber, comprar uma camisola de um clube de futebol para oferecer, desiderato que na sua óptica não corresponde à satisfação de uma necessidade pessoal e socialmente atendível. Do exposto já flui que não tem de se tratar da satisfação de necessidades básicas. Tomar café não é, cremos, salvo o caso de alguém nele viciado (o que, de todo o modo, não nos impressionaria, dado que o Direito não visa proteger vícios), satisfazer uma necessidade básica. O que importa é que também a necessidade seja compreensível, na perspetiva de alguém com bom senso, enfim, inteligível quer para um empregador quer para um trabalhador (e já agora, e salvo o devido respeito, para uma seguradora) razoáveis. Ora, adquirir uma camisola para oferecer a um afilhado é insuscetível de censura, ainda que não corresponda à satisfação de uma necessidade básica: não é um capricho ou uma conduta disparatada mas sim algo que qualquer pessoa com bom senso poderia fazer. De onde se conclui que o desvio e a interrupção em causa mantêm conexão, numa óptica de razoabilidade, com a situação laboral do autor, enquadrando-se, pois, na satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.»
As razões indicadas no citado Acórdão aplicam-se à situação presente. Estamos perante uma curta interrupção e um desvio que devem ser aferidos de acordo com critérios de razoabilidade, pelo que dever-se-á considerar que o desvio e a interrupção tiveram como finalidade satisfazer uma necessidade atendível.
A paragem para falar 20 minutos ao telemóvel constitui uma interrupção que deve ser justificada.
Também no caso concreto a situação oferece semelhanças com a descrita no Acórdão desta Relação de 29 de março de 2023 ( relatado pelo Desembargador Sérgio Almeida e no qual a ora relatora interveio na qualidade de 1ª Adjunta)- www.dgsi.pt.
Conforme refere o citado Acórdão : « Esta cessação de movimento do trabalhador não levou a que o seu fim último deixasse de ser o regresso a casa, e portanto manteve conexão com a sua situação laboral.»
Por último, vejamos a paragem da no supermercado “Supermercado YY”, onde a A. fez compras para o jantar.
Estamos perante uma interrupção e um desvio que tiveram como finalidade satisfazer um necessidade pessoal.
Também aqui estamos perante uma necessidade atendível.
Com efeito, conforme acima referido, não é obrigatório para integrar tal conceito que a necessidade seja urgente ou de satisfação imprescindível.
A situação em apreço é semelhante à descrita no Acórdão da Relação de Évora de 26.04.2018 ( relatado pelo Desembargador Moisés Silva)- www.dgsi.pt.
Concluímos, assim que não obstante não terem ocorrido apenas um desvio e uma interrupção, as situações acima indicadas tiveram como finalidade satisfazer necessidades atendíveis, pelo que estamos perante um acidente de trabalho in itinere.
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O acidente de trabalho deverá ser ressarcido em conformidade com o disposto nos arts. 23º, 47º, nº1, a), c), 48º, nº3, c), d) da Lei nº 98/2009, de 04/09.
Durante o período de incapacidade temporária absoluta, a recorrente tem direito a indemnização diária igual a 70% da retribuição nos primeiros doze meses e de 75% no período subsequente.
Assim : €40362 , 18: 365 =€110,58
€110, 58x 0,7 x 365 =€28 253,19
€110, 58x0, 75x 153= €12 689,05
€28 253,19+€12 689,05=€40 942,24.
A A./recorrente tem direito a uma indemnização por incapacidade temporária absoluta no montante de €40 942,24.
Tem ainda direito a uma pensão anual e vitalícia no montante de €9323,66 ( €40362,18 x70%x 33%).
A entidade seguradora deverá ainda ressarcir a recorrente pelas despesas indicadas nos pontos 56 e 55 dos factos provados.
São devido juros de mora, à taxa legal, a contar da data do vencimento de cada prestação e desde a data da citação quanto às despesas peticionadas.
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IV-Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação e em consequência:
a) Condenar a R. a pagar à A. uma pensão anual e vitalícia no montante de €9323,66 ( nove mil trezentos e vinte e três euros e sessenta e seis cêntimos), desde 26.11.2022;
b) Condenar a R. a pagar à A. uma indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho no montante total de € 40 942,24 ( quarenta mil novecentos e quarenta e dois euros e vinte e quatro cêntimos);
c) Condenar a R. a pagar à A. a quantia de €6 528,66 ( seis mil quinhentos e vinte e oito euros e sessenta e seis cêntimos) pelos despesas referidas no ponto 56 dos factos provados;
d) Condenar a R. a ressarcir a A. pelas despesas futuras decorrentes da realização de psicoterapia semanal e medicação diária.
Sobre as quantias referidas em a) e b) são devidos juros de mora, à taxa legal, a contar da data do vencimento de cada prestação até integral pagamento.
Sobre a quantia referida sob c) são devidos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação quanto ao montante de €2808,23 ( dois mil oitocentos e oito euros e vinte e três cêntimos), desde a data da notificação da entidade seguradora do pedido de actualização de 02.01.2024 das quantias devidas a título de despesas quanto ao montante de €2600 ( dois mil e seiscentos euros) e desde a data do trânsito em julgado do presente Acórdão quanto ao restante montante fixado sob c).
Custas da acção e do recurso pela R..
Registe e notifique.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2024
Francisca Mendes
Alda Martins
Paula Santos