RECURSO DE REVISÃO
FUNDAMENTOS
TRANSAÇÃO
INCAPACIDADE
SIMULAÇÃO
Sumário

1- Nos termos do artigo 342.º n.º 1 do CPC é ao Autor que incumbe alegar e provar os fundamentos da revisão da sentença.
2- Não tendo o Recorrente alegado nem provado que a Autora e a Ré combinaram entre si que a Autora intentaria a acção contra a Ré com vista a prejudicar o Recorrente ou outros herdeiros legitimários, soçobra o fundamento de revisão da sentença a que alude a al.g) do artigo 696.º do CPC.
3- Não resultando da factualidade provada que a Ré, à data da transacção, sofria de demência psíquica que a impossibilitava de entender o teor da transacção celebrada com a Autora, improcede o pedido de revisão da sentença homologatória com fundamento na al.d) da referida norma legal.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
AA, portador do Cartão de Cidadão n.º ..., válido até .../.../2022 e do NIF ..., natural de ..., com domicílio em Rua..., veio, ao abrigo do disposto no artigo 696.º al.g) do CPC, deduzir recurso extraordinário de revisão, por apenso ao processo n.º11415/18.8T8SNT, contra BB e CC, identificadas nos autos principais, pretendendo obter a revogação da sentença proferida nos mesmos, em 24 de Setembro de 2018, através da qual se homologou transacção e declarou extinta a instância. Pediu, a final, que:
a) seja o presente recurso de revisão julgado procedente, por provado; e
b) em consequência, revogada a decisão transitada em julgado por assentar o litígio objecto da causa sobre acto simulado das partes.
Invocou para tanto, em síntese, o seguinte:
- Tem legitimidade para a presente acção e o recurso é tempestivo;
- O Recorrente é filho de CC, Ré nos autos principais e ora Recorrida, na altura casada em regime de comunhão de bens com o seu pai DD (falecido em ...-...-2019);
- Em 26.04.2018, o Recorrente intentou acção de interdição provisória urgente contra sua mãe, a Recorrida CC, que correu termos sob o n.º 1818/18.3T8OER, no Juízo Local Cível de Oeiras do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, da qual resultou a aplicação à acompanhante do regime da representação geral, por sentença proferida em 17/12/19;
- A 30/04/18, foi proferido despacho no referido processo, citando e publicitando a acção;
-O ora Recorrente foi nomeado protutor de sua mãe.
- A acção em que foi proferida a sentença cuja revisão pretende foi intentada pela Autora/Recorrida BB contra CC, em 14/06/2018 e versou sobre um alegado despedimento ilícito, ocorrido no âmbito de uma relação laboral entre Autora e Ré, sem que, para isso, tenha contribuído a Ré e que findou com uma transacção homologada por sentença que julgou extinta a instância;
-Sucede que a Ré encontrava-se numa situação de demência, pelo que deveria ter sido representada nesses autos, por incapacidade para estar em juízo, pelo curador provisório designado judicialmente, o seu marido, o que não sucedeu, ocorrendo, assim, a excepção dilatória de falta de capacidade da Ré, que é de conhecimento oficioso;
-O Recorrente utilizou todos os meios legais para evitar o desfecho a que chegou o processo principal motivo pelo qual intentou acção de interdição em que a Autora foi proposta pelo Recorrente para constituir o conselho de família da Ré, como 1ª vogal, tendo dado conhecimento aos autos principais da existência daquela acção e do estado psíquico da Ré;
- A Ré não esteve presente na audiência de partes, tendo sido apresentada procuração forense com poderes especiais para tal;
-Caso a Ré tivesse estado presente em audiência de partes, teria, certamente, o Tribunal compreendido a incapacidade da Ré (não obstante as comunicações e requerimentos apresentados pelo ora Recorrente);
-Caso a transacção, que foi junta aos autos principais após a audiência de partes, tivesse ocorrido nessa mesma diligência, teria ficado clara a intenção da Autora;
-O Recorrente disso tomou conhecimento, por ter sido informado pela Autora, tendo a partir de então sido da vontade de ambos que o litígio fosse composto em sede de julgamento e não fosse alcançada a transacção;
-O pretendido por ambos era, sim, a Autora regressar ao posto de trabalho;
-Mas tal vontade da Autora não ficou clara, já que a transacção apenas se consolidou por ausência de resposta à notificação da sentença homologatória, não se colocando em causa a sanação da nulidade de falta de poderes mas, tão só, mais uma manifestação da fraude ocorrida;
- O direito reconhecido à Autora, por via da transacção, é inexistente e infundado, como também esta não quis e não teve consciência nem conhecimento da transacção ocorrida nos autos.
-À Ré CC não poderia, nunca, ser, quer por acção, quer por omissão, imputado qualquer despedimento;
-E essa imputação não foi feita em momento algum do processo, pelo que, a Ré CC nunca deveria ter sido parte neste processo;
-Os poderes que, alegadamente, a Ré, nesse estado de demência, atribuiu à Mandatária que outorgou o termo de transacção junto aos autos por representação de CC constituem também manifestação da fraude na qual se fundamenta o presente recurso;
-Constituindo igualmente manifestação dessa fraude, a circunstância de a transacção não ter ocorrido na audiência de partes mas sim por posterior junção de acordo escrito aos autos;
- A petição inicial da referida acção é inepta, pois alega-se um contrato de trabalho no qual a Ré CC seria a empregadora e que a Autora foi despedida pelo marido daquela, nenhuma acção ou omissão sendo imputada à Ré;
- Não ocorreu a citação da Ré e o Tribunal tinha na sua posse todos os elementos para entender da procedência das referidas excepções dilatórias, devendo assim proferir a absolvição da Ré da instância, o que não ocorreu;
- Na audiência de partes, a Ré CC não esteve presente em tal diligência, tendo sido entregue, pela Ex.ma Sr.ª Advogada que se arrogou como Mandatária da Ré, uma procuração com poderes especiais, datada de 29/08/2018, alegadamente emitida a seu favor pela Ré, que a Mm.ª Juíza, após analisar e rubricar, ordenou que fosse junta aos autos.
-A Mm.ª Juiz proferiu despacho ordenando à Ré que apresentasse contestação em 10 dias;
-A 20/09/2018 foi junto aos autos, em requerimento conjunto da Autora e Ré, outorgado pelas respectivas mandatárias, “termo de acordo”;
-Consta de tal acordo o seguinte: a Autora reduziu o pedido para 10.000,00 € (dez mil euros), comprometendo-se a Ré a pagar tal valor em vinte e quatro prestações, mensais e sucessivas, no montante, cada uma de 416,66 € (quatrocentos e dezasseis euros e sessenta e seis cêntimos);
-No despacho recorrido, proferido em 24/09/2018, o Mm. Juiz, sob a condição resolutiva prevista no nº 3 do artigo 291º do CPC homologou, por sentença, o acordo alcançado entre as partes e, em consequência, declarou extinta a instância, por transacção.
69. A sentença foi notificada à Autora, nos termos do nº 3 do artigo 291º do CPC, que nada disse;
-Autora e Ré foram manipuladas por interesses de terceiros que não cabe aqui e agora apurar, mas que resultaram decerto em dano moral para ambas dada a relação não só laboral exemplar e afectiva resultante de uma relação de confiança que decorreu por mais de 20 anos;
-A Autora havia prometido à mãe da Ré que jamais abandonaria a sua filha, sendo o seu garante, nos domínios material e emocional, enquanto cuidadora;
-O estado de saúde mental e afectivo da Ré agravou com tais acontecimentos decorrentes do presente processo e à Autora, seis meses após tais acontecimentos, foi diagnosticada uma depressão encontrando-se medicamente assistida e acompanhada em psicologia clínica;
-É incontornável a verificação e evidência do grosseiro erro judiciário que resultou em danos irreversíveis para Autora e Ré verificado tanto pela não actuação do Ministério Público, que detendo o poder não só não acompanhou a Autora no sentido de a auxiliar na resolução do emergente litígio como de tal se demitiu encaminhando-a para uma acção judicial;
-Igualmente foi o Tribunal incapaz de reconhecer um erro e, no uso do seu poder, igualmente não praticou acto ou decisão judicial que obstasse a que a acção prosseguisse, não só porque não existiu despedimento lícito, mas também porque a Ré era parte ilegítima e incapaz.
-A sentença, por não ter sido dado uso aos poderes conferidos pelo art. 612º do CPC, constituiu, sem fundamento e assente em fraude, a Autora no direito de ser ressarcida pela Ré no valor de 10.000,00 € (dez mil euros); e
-O Recorrente desconhece se tal valor já foi liquidado e tem sofrido danos morais;
Em 19.04.2021 foi proferido despacho que admitiu o recurso de revisão e determinou a citação das recorridas conforme dispõe o artigo 699.º do CPC.
As Recorridas contestaram invocando, em síntese:
- A Recorrida CC, representada por sua filha EE:
- O Recorrente vem, com mais uma “teoria da conspiração”, desta feita alegando uma “simulação processual” completamente descabida, apresentar recurso de uma decisão que ele próprio impulsionou e sempre conheceu muito bem, pois foi o Recorrente que acompanhou a Autora BB à ACT para que esta apresentasse queixa contra a sua mãe e Ré CC;
-O Recorrente é um indivíduo sem escrúpulos que, desde meados de 2017, data em que os pais, derivado a condutas menos dignas do Recorrente, o expulsaram da sua casa para que pudessem ter alguma paz, desenvolveu uma campanha obsessiva e sem tréguas de perseguição à família e às pessoas que lhe estejam ligadas, nomeadamente mãe, pai (já falecido), irmã, ex-cunhado, advogados que sejam mandatados por estes;
-O Recorrente, desde o ano de 2017, dado que pretendia gerir o património dos pais, tem apresentado queixas infundadas, nomeadamente junto da ACT, queixas-crime contra o pai, a irmã e o ex-cunhado, um processo de maior acompanhado da sua mãe, bem sabendo que esta sempre teve o apoio do marido, pessoa diferenciada e da irmã, o que tem afectado a dinâmica familiar, pois o Recorrente tem difamado os seus familiares com acusações que não correspondem à verdade;
-A Recorrida CC, mãe do Recorrente, foi citada para a acção principal em 02 de Julho de 2018, ou seja, quando não se encontrava interditada;
-BB era trabalhadora na casa dos pais do Recorrente, sendo tanto um como outro a sua entidade patronal;
-No processo que o Recorrente quer colocar em crise, não houve qualquer acto que possa ser objeto de reparo porquanto:
a) CC, ora Recorrida, não se encontrava ainda interdita à data da celebração da transacção e encontrava-se legalmente representada na audiência de partes;
b) A sentença de interdição apenas transitou em julgado a 17 de Janeiro de 2020;
c) Mesmo na presente data, CC, apesar de necessitar de acompanhamento e de cuidados continua a manter lucidez e vontade;
d) O Recorrente teve conhecimento da acção e foi o mentor da mesma, constando também como testemunha desde que foi apresentada queixa na ACT (que ele acompanhou);
e) O Recorrente mantem grande ligação e contacto com a Recorrida e Ré na acção, BB, fazendo-se acompanhar pela mesma por todo o lado, tendo indicado a mesma como vogal no Conselho de Família e arrolando-a como testemunha nos mil e um processos que tem instaurado, pelo que o Recorrente acompanhou passo a passo o processo;
-O acordo celebrado veio ao encontro dos interesses de CC, tendo havido cedências de ambas as partes, não tendo o Recorrente sido prejudicado fosse no que fosse, porque ambos os progenitores estavam vivos e eram donos e senhores das suas decisões e património; e
-O Recorrente falta descarada e vilmente à verdade e faz do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um fim ilegal e que sabe não ser legítimo, pelo que deverá ser condenado em indemnização e multa.
A Recorrida BB:
-Não existe nenhum erro grosseiro, ou omissão que ponha em causa a validade e legitimidade do processo, pelo que, não assiste razão ao Recorrente, quanto aos alegados motivos e fundamentos;
-O Recorrente é filho da Ré CC, no processo principal, foi o mesmo que, em Fevereiro de 2018, fez uma participação à ACT, sobre os factos que deram causa ao processo principal;
-No processo principal, foi efectuada transacção que foi homologada, em Setembro de 2018, nos termos convencionados entre as partes;
-Foi convencionado o pagamento duma quantia, em prestações;
-A ora Recorrida recebeu as quantias nos termos acordados;
-O presente recurso de revisão só surge, algum tempo após o pagamento da última prestação à aqui Recorrida, em Outubro de 2020;
- As partes eram legítimas e estavam devidamente representadas à data da transacção; e
-A Ré CC só foi sujeita a processo judicial de Interdição/Maior Acompanhado em momento muito posterior à sentença homologatória da transacção.
Comunicado aos autos o falecimento da Recorrida CC, o Recorrente deduziu incidente de habilitação, tendo sido proferida sentença que julgou habilitada como sucessora da falecida a sua filha EE, e determinou que esta prosseguisse nos autos em lugar daquela.
Face ao falecimento da Recorrida CC, foi proferido despacho que determinou a notificação do Recorrente para se pronunciar sobre se mantinha interesse no prosseguimento da acção, ao que respondeu afirmativamente. Mais juntou aos autos certidão das peças processuais do processo de interdição que intentou contra sua mãe.
Foi proferido despacho saneador sentença que julgou totalmente improcedente, por não provado, o recurso e, em consequência, negou provimento ao mesmo, bem como absolveu o Recorrente do pedido de condenação como litigante de má-fé.
Inconformado com o despacho, o Recorrente recorreu e formulou as seguintes conclusões:
“1-Na fundamentação que antecede, a qual se dá ora por integralmente reproduzida, foram identificadas uma série de nulidades processuais ocorridas nos autos principais.
2-A Ré encontrava-se numa situação de demência e incapaz de entender o alcance de acto de citação ou de transação.
3-A Ré deveria ter sido legalmente representada nos presentes autos, por falta de capacidade para estar em juízo.
4- O Recorrente utilizou todos os meios legais para evitar o desfecho a que chegou o processo, deu conhecimento aos autos da existência de acção de interdição e do estado psíquico da Ré,
5-A Ré não esteve presente na audiência de partes, tendo sido apresentada procuração forense com alegados poderes especiais para tal, que a Ré não tinha capacidade para outorgar em consciência.
6-Caso a Ré tivesse estado presente em audiência de partes, teria, certamente, este Tribunal compreendido a incapacidade da Ré (não obstante as comunicações e requerimentos apresentados pelo ora Recorrente
7-O Recorrente entende que, não só o direito reconhecido à Autora, por via da transacção, é inexistente e infundado, como também a Ré não quis e não teve consciência nem conhecimento da transacção ocorrida nos autos, por falta de capacidade de a entender sequer.
8- À Ré CC não poderia, nunca, sequer, por acção, quer por omissão, ser imputado qualquer despedimento.
9- O Recorrente entende que a procuração onde a Ré conferiu alegadamente poderes à Mandatária que outorgou o termo de transacção junto aos autos está também ferida de nulidade, que inquina o acordo.
10- De acordo com o disposto no art.º 696º al. d) do CPC, a decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando se verifique, nulidade ou anulabilidade da confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundou.
11-Ao negar provimento ao recurso de revisão instaurado pelo Recorrente, a douta Decisão recorrida violou aquele disposito da Lei.
12º- Independentemente da qualificação juridica dos factos feita pelo Recorrente no seu requerimento de recurso, o Tribunal, pode fazer livremente o enquadramento jurídico dos factos invocados e que serviram de fundamento do recurso, podendo o Merº juiz a quo ter reconhecido a nulidade da transação feita nos autos principais.
13-A douta Decisão recorrida deverá ser assim revogada e substituída por outra que julgue provado e procedente o recurso de Revisão com todas as legais consequências, nomeadamente a revogação da sentença homologatória da transação nula, assim, se fazendo a tão acostumada justiça!”
A Recorrida/habilitada EE contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
“I. No processo que o Apelante quer colocar em crise não houve qualquer ato que possa ser objeto de reparo;
II. A CC, não se encontrava ainda “interditada” à data da celebração da transação e encontrava-se legalmente representada na audiência de partes;
III. A sentença de interdição apenas transitou em julgado em 17 de janeiro de 2020;
IV. O Apelante teve conhecimento da ação de que interpõe recurso de revista e, pior, foi o mentor da mesma, constando também como testemunha;
V. É necessário que se encontrem reunidos um conjunto de pressupostos e de requisitos previstos no artigo 696.º do CPC, o que no caso concreto não se verificam;
VI. O recurso extraordinário de revisão visa a alteração de uma decisão já transitada, pelo que só é admissível em situações limite de tal modo graves que a subsistência da decisão em causa seja suscetível de abalar clamorosamente o princípio da desejada justiça material, o que não se verifica no caso sub judice;
VII. Inexiste qualquer nulidade processual e muito menos qualquer simulação processual;
VIII. O Apelante mantem grande ligação e contacto com a Recorrida e Ré na ação BB, fazendo-se acompanhar pela mesma para todo o lado, tendo indicado a mesma como vogal no Conselho de Família quando requereu a interdição da mãe, arrolando-a como testemunha nos mil e um processos que tem instaurado, pelo que o Recorrente acompanhou passo a passo o processo e apenas interpôs o recurso após a BB ter recebido a ultima tranche relativa ao acordo celebrado
IX. O acordo celebrado veio ao encontro dos interesses da CC, tendo havido cedências de ambas as partes, não tendo o Apelante sido prejudicado fosse no que fosse, porque ambos os progenitores estavam vivos e eram donos e senhores das suas decisões e património.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito, que V. Exas, como sempre, doutamente suprirão, deve ser julgado improcedente o presente recurso e mantida a douta sentença recorrida, com o que se fará a já costumada
JUSTIÇA”
Foi proferido despacho que admitiu o recurso.
Recebido os autos neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
O Recorrente respondeu reafirmando o alegado nas suas alegações de recurso.
Colhidos que foram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º n.º 2 do CPC).
Assim, no presente recurso, há que apreciar as seguintes questões:
- Se a transacção celebrada nos autos principais assentou em acto simulado.
- Se a transacção celebrada está ferida de nulidade por falta de capacidade da Ré e consequente falta de poderes da Mandatária que a representou nos autos principais.
Fundamentação de facto
Com base na prova documental junta aos autos e por referência ao processo principal, o saneador sentença considerou provados os seguintes factos:
a) No dia 26.04.2018 foi intentada pelo aqui Requerente AA acção de interdição provisória e urgente contra sua mãe, que veio a ser Ré na ação de processo comum deste Juízo (cfr. certidão de fls. 191 e ss).
b) Proferido o despacho de citação na acção de interdição, em 30.04.2018, a interditanda foi pessoalmente citada em 10.05.2018 (cfr. certidão de citação a fls. 204 verso).
c) Em 06.06.2018, a interditanda, através de advogado que constituiu, apresentou contestação (cfr. certidão, a fls. 222 e ss).
d) Em 14.06.2018, a aqui Recorrida BB intentou contra CC ação de condenação emergente de contrato de trabalho, com processo comum – cfr. autos principais a que estes se encontram apensados.
e) Proferido despacho de citação, a Ré foi citada por carta registada com aviso de recepção, tendo o aviso de recepção sido assinado no dia 02.07.2018 pelo cônjuge daquela, DD – cfr. aviso de receção que consta dos autos principais.
f) No dia 12.09.2018 realizou-se a audiência de partes – cfr. ata que consta dos autos principais.
g) A Ré não compareceu à audiência de partes e foi representada pela Exmª Srª Drª FF, que apresentou procuração subscrita pela Ré, com poderes especiais para a representar na diligência e ainda para confessar, desistir ou transigir – cfr. procuração que consta dos autos principais.
h) No dia 20.09.2018, as partes apresentaram nos autos um acordo, subscrito pelas ilustres mandatárias de ambas – cfr. requerimento junto aos autos principais.
i) Em 24.09.2018, sob a condição resolutiva prevista no nº 3 do artigo 291º do CPC – porquanto a ilustre patrona oficiosa da Autora não dispunha de poderes especiais para transigir – foi proferida sentença homologatória do acordo – cfr. sentença que consta dos autos principais.
j) A sentença homologatória do acordo transitou em julgado.
l) Por sentença proferida no dia 17.12.2019 foi nomeada acompanhante de CC a sua filha EE – cfr. certidão, a fls. 235 verso a 236 verso.
m) Para compor o Conselho de Família, o aqui Recorrente foi nomeado protutor e o marido da beneficiária foi nomeado vogal.
n) Na sentença proferida foram dados como provados, além de outros, os seguintes factos:
“(…)
3 – A beneficiária sofre de demência não especificada, em fase inicial.
4 – A situação clínica da beneficiária é irreversível – encontrando-se dependente da ajuda de terceiros para proceder às actividades da vida diária, e incapacitada para angariar meios de subsistência.”
o) Mais ficou consignado na sentença que:
“Resulta dos factos provados que a requerida não se consegue bastar a si mesma (…) – não oferecendo também dúvidas que necessita de assistência permanente de terceira pessoa (facto reconhecido pela própria); necessita, assim, da assistência de um acompanhante, que a ajude a gerir o património e a medicação”.
*
Ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 e 663.º n.º 2 do CPC, por resultarem dos autos principais e para uma melhor compreensão, adita-se aos factos provados os seguintes:
1-Na acção principal, a Autora, invocando ter celebrado com a Ré, em 1 de Maio de 1998, um contrato de serviço doméstico e ter sido despedida pelo marido da Ré, despedimento que qualificou de ilícito, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de 16.000€ a título de indemnização.
2- Na petição inicial, a Autora indicou como testemunhas, além de outras, o ora Recorrente.
3- Na sequência do referido na al.e) dos factos provados foi cumprido o artigo 233.º do CPC (advertência em virtude de a citação não ter sido feita na sua própria pessoa).
4- A procuração identificada na al.g) foi outorgada em 29 de Agosto de 2018.
5- O requerimento de 20.09.2018 foi subscrito, do lado da Autora, pela sua patrona oficiosa, Sra. Dra. GG, e do lado da Ré, pela Sra. Dra. FF que, na audiência de partes, tinha apresentado procuração forense com poderes especiais.
6- O acordo a que chegaram as partes tem o seguinte teor:
“BB e CC, A. e R. no processo identificado em epígrafe, vêm acordar sobre o objeto do mesmo nos seguintes termos:
1.A A. reduz o pedido no valor de Eur.16.000,00 (dezasseis mil euros) para Eur. 10.000,00 (dez mil euros), o que a R. desde já aceita;
2.O valor em dívida será pago pela R.em vinte e quatro prestações mensais e sucessivas de Eur.416,66 (quatrocentos e dezasseis euros e sessenta e seis cêntimos) cada uma;
3.O valor referido na cláusula anterior será liquidado por transferência bancária para a conta bancária da A., no Banco... com o IBAN…
4. As custas serão pagas por ambas as partes na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário, prescindindo das de parte e procuradoria na parte disponível.
(…).”
- A sentença homologatória da sentença de 24.09.2018 tem o seguinte teor:
“Sob a condição resolutiva prevista no nº 3 do artigo 291º do CPC – porquanto a ilustre patrona oficiosa da Autora não dispõe de poderes especiais para transigir – homologo, por sentença, o acordo alcançado entre as partes e que antecede e, em consequência, declaro extinta a instância, por transação.
*
Fixo à ação o valor de € 16.000,00 (cfr. artigo 297º, nº 1, do CPC).
*
Custas conforme acordado, se o Ministério Público não se opuser, considerando que a
Autora beneficia de apoio judiciário.
*
Abra vista (cfr. nº 2 do artigo 537º, do CPC).
*
Registe e notifique, cumprindo o nº 3 do artigo 291º do CPC relativamente à Autora.
A audiência de discussão e julgamento agendada para o dia 15 de janeiro de 2019 fica sem efeito.”
7- O Citius certificou a elaboração da notificação da sentença às partes com data de 25.09.2018-
8- Por requerimento junto aos autos em 02.10.2018 a Autora ratificou o acordo.
9- Em 11.09.2018 foi junto aos autos principais requerimento do ora Recorrente com o seguinte teor:
“AA, portador do cartão de cidadão ... válido até ...-...-2022, NIF ..., nascido a ... em ..., testemunha nos presentes autos e filho da, provisoriamente interdita ré, atento á diligência agendada para amanhã dia 12-09-2018, pelas 09:30 horas, vem aos presentes autos informar o seguinte:
- A ré foi citada nos presentes autos, nessa qualidade, a fim de comparecer em diligência nesse Tribunal na data acima referida.
- Ora a ré foi igualmente citada para contestar uma acção de interdição provisória e urgente, movida pelo ora requerente, ainda a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Núcleo de Oeiras – Juízo Local Cível – J4, COM O Nº 1818/18.3 T8OER, na qual pretende este a tutoria de sua mãe.
- No âmbito daquele processo, foi proferido despacho em 30-04-2018 pelo seu Juiz titular, e até que haja decisão final processo, está nomeado como tutor provisório, o seu marido, e pai do ora requerente, o Senhor DD.
- É nesse âmbito que o ora requerente, vem aos autos informar que a ré não é completamente responsável pelos seus actos e pelos factos descritos, sendo que a mesma tem extremo afecto e amor pela autora, que foi sua cuidadora durante 20 anos.
- Informa igualmente que a sua mãe sofreu fortes pressões no sentido do despedimento ilícito da autora, tendo sido constantemente manietada e manipulada pelo seu marido e pela filha de ambos (tendo esta última com o apoio do marido da ré, chegado mesmo a vias de facto, a insultar e a agredir brutal e violentamente a autora, factos presenciados pelo ora requerente e ocorridos no passado dia 21-03-2017, situação que a ré assistiu indefesa).
- Esta situação originou mesmo um processo de inquérito que correu termos no DIAP de ..., contra a filha da ré e que foi arquivado por desistência da autora a pedido da ré.
- Toda esta situação que remonta a Março de 2017, altura do internamento da ré por doença súbita, decorreu durante quase ano e meio, até á data em que se efectivou o despedimento da autora em Fevereiro de 2018, situação que o ora requerente, não pôde controlar e que agora denuncia.
- Certo é que a ré, desde então, piorou consideravelmente do seu estado psíquico, emocional e afectivo.
Assim:
É neste sentido, e Aderindo à Acção Declarativa de Condenação em processo comum movida pela Autora, que vem dizer o seguinte:
I
Dá aqui por reproduzido todo o articulado da petição inicial oferecido nestes autos pela Autora, como bem estipula e consagra o art.º 312º do CPC;
II
Ficando assim toda a matéria alegada por aquela, igualmente alegada por este;
III
Fazendo este sua, a toda prova testemunhal e documental que foi apresentada pela Autora;
IV
Assim, declara aqui o Interveniente Principal que faz seu, o articulado da petição inicial oferecido pela Autora;
V
Termos em que se conclui como na Petição Inicial da Autora,
Requerendo todavia:
Que seja citado e constituído réu, por tudo e para todos os efeitos do que venha a ser proferido judicialmente, o Sr. DD, marido da ré, actualmente, nomeado seu curador provisório, e não ré, sua mãe que requer seja a mesma isenta de todo o peticionado.”
10- Sobre o requerimento que antecede não recaiu despacho.
11-Com data de 15.10.2018 foi junto aos autos requerimento do Recorrente com o seguinte teor:
“AA, signatário do requerimento em anexo, enviado aos autos em referência no passado dia 11/09/2018, vem muito respeitosamente requerer a V. Ex.ª se digne informá-lo:
1 - Do douto despacho proferido sobre o seu requerimento;
2 - Do prosseguimento dos autos, face á diligência ocorrida no passado dia 12-09-2018, nesse Tribunal.
Mais informa que da mesma teve conhecimento, através dos autos com o nr. 1818/18.3T8OER, processo em que é o requerente e requerida a sua mãe (ré nos presentes autos) e que o mesmo se encontra a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste Núcleo de Oeiras – Juízo Local Cível – J4.
O signatário vem ainda reiterar o solicitado quanto a notificações e outras comunicações ou seja que as mesmas sejam feitas no seu endereço de correio electrónico: email....”
12- Sobre o requerimento mencionado no ponto anterior recaiu despacho de 22.10.2018 a determinar que se informasse o requerente de que o processo foi declarado extinto, uma vez que as partes tinham chegado a acordo.
13- No processo de interdição/inabilitação instaurado pelo Recorrente contra sua mãe CC, em 30.04.2018 foi proferido despacho de citação e de publicidade da acção, constando do mesmo:
“Caso se verifique impossibilidade de a requerida receber a citação (CPC 894º/1), desde já se nomeia, como curador provisório, seu marido, DD.”
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Fundamentação de direito
Comecemos por apreciar se a transacção celebrada nos autos principais assentou em acto simulado.
Sobre a questão pronunciou-se o Tribunal a quo nos seguintes termos:
“O presente recurso foi interposto com fundamento no disposto na alínea g) do artigo 696º do Código de Processo Civil.
Dispõe a citada norma que a decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando o litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612º, por se não ter apercebido da fraude.
Começamos desde já por referir que dos autos não consta qualquer facto que indicie um ato simulado entre as partes do processo principal, nem foi percetível para a signatária qual fosse a simulação orquestrada entre a Autora e Ré que determinou que celebrassem o acordo que veio a ser judicialmente homologado.
O que resulta dos autos é que a ação principal de que este recurso é um apenso foi intentada em 14.06.2018, estando já a correr ação de interdição contra a Ré, intentada pelo aqui Recorrente, em 26.04.2018.
Sucede que nessa ação de interdição a Ré foi pessoalmente citada e não lhe foi nomeado qualquer curador provisório.
Aliás, a mãe do Recorrente constituiu mandatária para apresentar contestação à ação de interdição, o que sucedeu em 06.06.2018.
Quando esta ação deu entrada e ocorreu a citação da Ré – citação em 02.07.2018 – não existia qualquer fundamento para considerar a Ré incapaz de, por si, estar em juízo.
Aliás, a Ré outorgou procuração com poderes especiais a advogado, não podendo o tribunal sem mais colocar em causa as faculdades mentais da mandante na realização daquele ato.
A sentença que decretou o regime de acompanhamento da Ré – proferida em 17.12.2019 – considerou que a Ré se encontrava numa situação clínica de demência não especificada, na fase inicial, irreversível, dependente da ajuda de terceiros para proceder às atividades da vida diária, e incapacitada para angariar meios de subsistência, a necessitar da assistência de um acompanhante, que a ajudasse a gerir o património e a medicação.
Com a factualidade apurada não pode o Tribunal concluir pela verificação da alegada simulação das partes ou de qualquer outra nulidade suscetível de colocar em causa a sentença homologatória do acordo.
Por esse motivo, outra decisão não resta senão a de julgar improcedente o recurso interposto.
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No que concerne à alegada conduta processual do Recorrente em sede de litigância de má-fé, conforme suscitado pela Recorrida CC, a má-fé processual, prevista no artigo 542º do Código de Processo Civil, pressupõe uma conduta com dolo ou com negligência grave.
Não obstante a improcedência do recurso, não há elementos nos autos para afirmar com segurança que o Recorrente adotou uma conduta processualmente censurável por ter alegado factos cuja falta de fundamento não podia ignorar, faltando conscientemente à verdade e fazendo um uso reprovável do processo.
O Autor trouxe à colação factos de natureza pessoal, referentes à sua relação com os pais e com a Autora do processo principal, a que as Recorridas responderam e sobre os quais o Tribunal nada disse porque irrelevantes para a decisão da causa.
No que à causa respeita e com os factos alegados, considerando que o Tribunal não está vinculado ao enquadramento jurídico alegado nos articulados, poderia configurar-se uma situação de nulidade ou anulabilidade da transação em que se fundou a sentença homologatória (cfr. alínea d) do artigo 696º do CPC) e, nesta perspetiva, entende-se que o Requerente não agiu com má-fé, pelo que não haverá condenação nesta sede.”
Discordando da sentença invoca o Recorrente, em suma, que a Ré dos autos principais (sua mãe) encontrava-se numa situação de demência e incapaz de entender o alcance de acto de citação ou de transacção, que deveria ter sido representada pelo curador provisório, seu marido, o que não sucedeu, que ocorreu excepção dilatória de falta de capacidade judiciária da Ré, que a petição inicial é inepta por referir ter existido um contrato de trabalho entre a Autora e a Ré e um despedimento por parte do marido da Ré, excepções que são de conhecimento oficioso, sendo que, o Tribunal tinha na sua posse todos os elementos que o habilitavam a conhecer dessas excepções, pelo que devia ter absolvido a Ré da instância.
Vejamos.
Por apenso ao processo n.º11415/18.8T8SNT, veio o Recorrente deduzir recurso extraordinário de revisão.
Dispõe o artigo 696.º do CPC, aplicável ao caso por força do artigo 1.º n.º 2 al.a) do CPT, sob a epígrafe Fundamentos do recurso:
A decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando:
a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;
b) Se verifique a falsidade de documento ou ato judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objeto de discussão no processo em que foi proferida;
c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;
d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transação em que a decisão se fundou
;e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:
i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;
ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;
iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;
f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;
g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.
h) Seja suscetível de originar a responsabilidade civil do Estado por danos emergentes do exercício da função jurisdicional, verificando-se o disposto no artigo seguinte.”
Sobre o recurso de revisão escreve Alberto dos Reis no “ Código de Processo Civil anotado”, Volume VI, Reimpressão, Coimbra Editora, LIM., pags.336 e 336:
“ Bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza. Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar o benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora.
Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio.
Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença.
(…).”
O Recorrente fundamentou a sua pretensão na al.g) do artigo 696.º do CPC, ou seja, invocando ter o litígio assentado sobre acto simulado das partes e o tribunal não ter feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.
Estatui o artigo 240.ºdo Código Civil, sob a epígrafe Simulação:
“1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo.”
Sobre o fundamento de revisão previsto na alínea g) do artigo 696.º do CPC, escreve-se no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.09.2016, proferido no Processo n.º1871/10.8TBVCD-C.P1, consultável em www.dgsi.pt : “I- Criado pelo Código do Processo Civil de 1939, o recurso extraordinário de revisão, hoje previsto no art. 696º, visa a alteração de uma decisão já transitada em julgado apenas em situações limite, taxativamente previstas na lei.
II - Designadamente uma decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão quando “se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.”
III - Os documentos atendíveis como fundamento da revisão da decisão transitada em julgado nos termos estabelecidos na al. c) do art. 696º terão de preencher, cumulativamente, os requisitos da novidade e da suficiência; este último exige que esses documentos, o seu teor, infirmem, de “per si”, os fundamentos da decisão a rever.
IV - Nos casos em que as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral, a simulação assume a dimensão de uma fraude processual.
V - A alínea g) do art. 696.º permite a revisão de uma sentença transitada em julgado quando se alegue estarmos perante um litígio assente sobre acto simulado das partes.
VI - Sintomaticamente a lei coloca o acento tónico no litígio e não no comportamento das partes. Deste modo, para apurar da verificação liminar deste requisito, importa apurar se foi alegado que o litígio vertido nos articulados – petição, contestação – teria sido assente exclusivamente numa fraude, ou simulação, processual.
VII - Deste modo, ainda que uma das partes desconheça essa eventual simulação mas tenha subscrito uma contestação, conjuntamente com o então marido, a qual corporize esse acto simulado, teremos de concluir que o litígio foi falsamente erigido, estando, assim, “assente sobre acto simulado das partes”.
VIII - O recurso de revisão assente na verificação da alínea g) do art. 696.º do CPC apenas “pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença”.
IX - Fazem parte deste conceito de “terceiro” os herdeiros legitimários, conforme entendimento já consagrado pela doutrina no Código do Processo Civil de 1939 para o então denominado recurso extraordinário de oposição de terceiro de teor mais restrito que o regime actual.”
Citando Lebre de Freitas (C. Proc. Civil Anotado, Vol. II, 2ª Ed. p. 695 e 696), refere o mencionado aresto: “Tem lugar a simulação processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiros, mas não entre si. Tem lugar a fraude processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral”.
(…).
De todo modo, citando o mesmo Lebre de Freitas, “a simulação do litígio, comum a ambas as figuras, passa quase sempre, mediante prévio acordo das partes, entre si conluiadas, pela alegação pelo A., não contraditada ou ficticiamente contraditada pelo R., duma versão fáctica não correspondente à realidade”.
Revertendo ao caso, importa salientar que, atento o disposto no artigo 342.º do Código Civil era sobre o Recorrente que recaía o ónus de alegar e provar o acto simulado.
Analisados os autos não vislumbramos alegada, nem provada, a existência de qualquer conluio entre a Autora e a Ré do processo principal ou de qualquer acordo prévio entre as mesmas partes com o fito de criarem a aparência de um litígio, cujo propósito também não foi alegado e, muito menos, resulta provado.
E recorde-se que, com a simulação, visam os simuladores prejudicar terceiros. O Recorrente também não alegou que a Autora e a Ré, combinadas entre si, acordaram em que a Autora intentaria a acção contra a Ré com vista a prejudicar o Recorrente ou outros herdeiros legitimários, nomeadamente a irmã do Recorrente.
Acresce que as invocadas nulidades processuais, a existirem, só por si, não constituem fundamento de revisão da sentença. E o certo é que não se descortina que tenha sido alegada qualquer relação entre as ditas nulidades processuais e o alegado acto simulado.
Com efeito, o Recorrente desenha um quadro de nulidades processuais e conclui que o Tribunal que proferiu a sentença homologatória da transacção já estava habilitado a conhecer das ditas excepções e, crê-se, a julgá-las procedentes, com a consequente absolvição da Ré da instância. Salvo o devido, respeito não vemos como, pois a Ré foi citada para a audiência de partes e constituiu mandatária a quem conferiu poderes especiais.
Por outro lado, a circunstância de o Recorrente, no dia 11.09.2018 (dia anterior ao agendado para a audiência de partes), ter juntado aos autos principais o requerimento a que alude o facto aditado sob ponto 9, em nada contribui para que se conclua pela existência de acto simulado entre os outorgantes do acordo. Aliás, no mencionado requerimento, o Recorrente refere que a Autora e a Ré são amigas e que a segunda terá sido influenciada por terceiros para propor a acção, pelo que, nesse quadro de amizade, o acordo a que chegaram só pode significar que entre a Autora e a Ré foi possível o consenso, quiçá, em nome dessa alegada amizade.
E repare-se que, nesse requerimento, o ora Recorrente vem aderir ao articulado da Autora, o que só pode significar que entendeu que lhe assistia razão.
Por fim, regista-se que o Recorrente entra em contradição quando refere que a Ré estava incapaz de entender os actos, devido a demência psíquica, e, depois, imputa-lhe um acto simulado!
Consequentemente, sobre este fundamento, impõe-se acompanhar o saneador sentença no sentido de que, dos autos, não se extrai qualquer facto indiciador de acto simulado entre as partes do processo principal.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
Apreciemos, agora, se a transacção celebrada está ferida de nulidade por falta de capacidade da Ré e consequente falta de poderes da Mandatária que a representou nos autos principais.
O saneador sentença considerou que, face à factualidade provada, não podia o Tribunal concluir pela verificação da alegada simulação ou de qualquer outra nulidade susceptível de colocar em causa a sentença homologatória do acordo.
E, a propósito do pedido de litigância de má fé, refere o despacho saneador sentença: “No que à causa respeita e com os factos alegados, considerando que o Tribunal não está vinculado ao enquadramento jurídico alegado nos articulados, poderia configurar-se uma situação de nulidade ou anulabilidade da transação em que se fundou a sentença homologatória (cfr. alínea d) do artigo 696º do CPC) e, nesta perspetiva, entende-se que o Requerente não agiu com má-fé, pelo que não haverá condenação nesta sede.”
Nessa sequência, vem o Recorrente, no recurso, invocar, como fundamento da revisão da sentença, o disposto na alínea d) do artigo 696.º do CPC, ou seja, verificar-se, no caso, nulidade ou anulabilidade da transacção em que a decisão se fundou.
Como é sabido, os recursos visam a reapreciação das decisões do tribunal recorrido com vista a confirmá-las ou revogá-las.
Com efeito, como escrevem José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, no “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 3.º, Coimbra Editora, pag. 5, “ Os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por estes último.
É, por isso, constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas, (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do Tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la. Os tribunais de recurso podem, porém, conhecer de questões novas que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso, por exemplo, das questões de inconstitucionalidade de normas suscitadas nas alegações de recurso ou da caducidade de conhecimento oficioso (…).”
E como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2020, proferido no processo n.º 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt “I - Os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido.
II - As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida.
(…).”
Sucede, porém, que, no caso, não obstante o fundamento do recurso invocado na petição inicial respeitar à al.g) do artigo 696.º do CPC, a verdade é que o saneador sentença excluiu, expressamente, a existência de qualquer outra nulidade, acrescentando que o alegado nos articulados podia enquadrar-se numa situação de nulidade ou anulabilidade da transacção, fundamento previsto na alínea d) do artigo 696.º do CPC.
E com razão! Na verdade, analisada a petição inicial conclui-se que os factos nela alegados também se enquadram no fundamento a que alude a al.d) do artigo 696.º do CPC, posto que o Recorrente invocou que a Ré dos autos principais não tinha capacidade para compreender o acto de citação e o teor da transacção, devido a demência psíquica, o que também a impossibilitava de outorgar procuração válida à mandatária que a representou na audiência de partes e subscreveu o acordo que pôs fim à acção.
Ora, estatui o n.º 3 do artigo 5.º do CPC, que “ O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.
Acresce que das contestações e das contra-alegações apresentadas pelas Recorridas resulta, com clareza, que estas também apreenderam este fundamento contra o qual se insurgiram, pelo que, a sua notificação para se pronunciarem, novamente, sobre o mesmo redundaria na prática de acto inútil proibido pelo artigo 130.º do CPC.
Consequentemente, entendemos nada obstar a que se aprecie se, no caso, está verificado o fundamento da al.d) do artigo 696.º do CPC.
A alínea d) do artigo 696.º do CPC corresponde, no essencial, à anterior al.d) do artigo 771.º.
Em anotação a esta norma escreve-se no Código de Processo Civil acima citado, pag.198: “ Agora de acordo com a nova redacção da al.d), o recorrente pode, no próprio recurso extraordinário de revisão, invocar directamente a invalidade da confissão, desistência ou transacção (art.301-1) em que a sentença revidenda se fundara, tendo, na fase rescindente, de provar os factos que consubstanciam tal invalidade (art.775/2). Essa invalidade pode resultar de a confissão, desistência ou transacção ser feita por intermédio de mandatário forense sem poderes especiais para o efeito (art.37-2) ou de representante de pessoa colectiva, sociedade, incapaz ou ausente fora dos limites das suas atribuições ou sem autorização especial (art.297), situações que estavam previstas na anterior alínea e), com autonomia por não terem de ser verificadas na acção prévia, mas agora estão sujeitas ao mesmo regime unificado.”
Ainda a propósito deste fundamento escreve António Santos Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2023, Almedina, pag.406: “7. Quanto ao fundamento da al.d) (invalidade da confissão, desistência ou transacção), deve ligar-se directamente ao disposto no art.291º que abre ao interessado duas possibilidades de uso alternativo: instauração de acção para declaração da invalidade ou interposição do recurso de revisão.”
Quanto a este fundamento invoca o Recorrente, no essencial, que a Ré dos autos principais encontrava-se numa situação de demência e incapaz de entender o alcance de acto de citação ou de transacção e deveria ter sido legalmente representada nos presentes autos, por falta de capacidade para estar em juízo, o que deu a conhecer aos autos principais, que a Ré não tinha capacidade para outorgar em consciência, que a Ré não quis e não teve consciência nem conhecimento da transacção ocorrida nos autos, por falta de capacidade de a entender e que a procuração conferida à mandatária está ferida de nulidade.
Apreciando.
Estabelece o artigo 894.º do CPC, na redacção vigente à data da instauração do processo de interdição:
“1 - Se a citação não puder efetuar-se, em virtude de o requerido se encontrar impossibilitado de a receber, ou se ele, apesar de regularmente citado, não tiver constituído mandatário no prazo de contestação, o juiz designa, como curador provisório, a pessoa a quem provavelmente competirá a tutela ou a curatela, que não seja o requerente, a qual é citada para contestar em representação do requerido; não o fazendo, aplica-se o disposto no artigo 21.º.
2 - Se for constituído mandatário judicial pelo requerido ou pelo respetivo curador provisório, o Ministério Público, quando não seja o requerente, apenas tem intervenção acessória no processo.”
Conforme decorre dos autos, a Ré CC foi citada pessoalmente para a acção de interdição, o que significa que o Sr. Funcionário Judicial que efectuou a citação não presenciou uma situação de impossibilidade por parte da interditanda de receber e compreender esse acto.
A citada constituiu mandatário e contestou a acção de interdição que lhe moveu o ora Recorrente. Por isso, não havia que nomear curador provisório à interditanda, conforme decorre da citada disposição legal e é sublinhado no despacho de 30.04.2018 proferido na acção de interdição (cfr. facto aditado sob 13).
A sentença proferida no processo de interdição está datada de 17.12.2019, ou seja, decorrido que estava mais de um ano sobre a data da transacção efectuada no processo principal.
E na sentença considerou-se assente que a interditanda padecia de demência não especificada em fase inicial, o que leva à conclusão de que, à data da transacção e da sentença que a homologou em 24.09.2018, não haveria essa demência.
Por fim, dos autos não resulta factualidade que permita afirmar que a Ré não quis, não teve conhecimento (a Ré foi notificada da sentença homologatória do acordo, donde, teve conhecimento da transacção), nem tinha capacidade para entender o teor do acordo e, muito menos, que não tinha capacidade para outorgar a procuração à sua mandatária como outorgou.
Consequentemente, também não procede a invocada nulidade da transacção com fundamento na al.d) do artigo 696.º do CPC.
Improcede, pois, o recurso em toda a sua extensão, devendo o saneador sentença ser confirmado.
Considerando o disposto no artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas do recurso são da responsabilidade do Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente e confirmar o despacho saneador sentença.
Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Notifique e registe.

Lisboa, 19.12.2024
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Leopoldo Soares
Alexandra Lage