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PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
DEVEDOR
EMPREGADO DE INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
MÚTUO COM TAEG REDUZIDA
SUJEIÇÃO AO PERSI
Sumário
1. A circunstância de o cliente bancário, que se encontra em mora no cumprimento de obrigações decorrentes do contrato de mútuo, ser empregado da instituição de crédito mutuante (na data da concessão do crédito), beneficiando, por este facto, de uma TAEG reduzida, não constitui pressuposto bastante para o afastamento da obrigatoriedade da promoção das diligências necessárias à implementação do PERSI. 2. Para os efeitos previstos na al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto Lei n.º 133/2009, de 2 de junho (que estabelece um regime respeitante aos contratos de crédito aos consumidores), cabe ao empregador alegar e provar que possui uma outra distinta atividade comercial ou profissional, sendo estoutra a sua atividade principal.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
A. Relatório A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
AAAA Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A., apresentou requerimento de injunção, ulteriormente distribuído como ação declarativa com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato (Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro), contra BBBB, para pagamento da quantia total de € 5187,17.
Para tanto, alegou que “concedeu ao requerido, um empréstimo no montante de € 5.223,07”. O requerido incumpriu o acordado, tendo a requerida resolvido o contrato de concessão de crédito. Encontra-se m dívida a quantia de € 4.793,85, acrescida de juros e demais encargos.
Citado o Ministério Público em representação do réu revel, ofereceu aquele contestação, excecionando a preterição da prévia inclusão do demandado num PERSI.
Notificada para “comprovar nos autos a integração do réu” num PERSI, a autora alegou não ser esta integração obrigatória, por ter o empréstimo sido concedido a um colaborador seu. Entende a demandante que os “contratos de crédito cujo crédito é concedido pelo empregador aos seus colaboradores, estão fora do âmbito da aplicação do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, conforme disposto no artigo 2.º, n.º 1, alíneas h) e n)”.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo proferiu sentença absolvendo o réu da instância, concluindo nos seguintes termos:
“julga-se verificada a exceção dilatória inominada de preterição do PERSI (Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento) e, em consequência, decide-se absolver da instância o réu BBBB”.
Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
“III – (…) [O] réu era colaborador da autora e, nessa qualidade, tinha junto da mesma, acesso a condições especiais, pelo que o contrato em crise nos autos (…) tratou-se de uma operação excluída pelo âmbito do referido Decreto-Lei 133/2009 de 2 de junho.
IV – E, precisamente por estarmos fora do âmbito do Decreto-Lei 133/2009 de 2 de junho, o titular do contrato de crédito 342607, aqui réu, não foi integrado em PERSI, porque, de acordo com o artigo 2.º do Decreto-Lei 227/2012 de 25 de outubro, aquele regime apenas se aplica aos contratos de crédito aos consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei 133/2009 de 2 de junho. (…)
IX – Ou seja, não basta, para efeitos de obrigatoriedade de aplicação do PERSI, que o contrato tenha sido celebrado com um cliente bancário. É necessário que o contrato tenha sido celebrado com um cliente bancário e que se enquadre em qualquer uma das alíneas do art.º 2.º, n.º 1, do DL n.º 227/2012, de 25 de outubro. (…)”.
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
Não há questões de facto a decidir.
As questões de direito a tratar – em torno da obrigatoriedade de prévia adoção de um PERSI no caso dos autos – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
*
B. Fundamentação B.A. Factos processualmente relevantes
1 – No formulário que constitui o requerimento de injunção, o campo intitulado “Exposição dos factos que fundamentam a pretensão” foi preenchido com os seguintes dizeres, no que para o caso releva:
“A ora requerente, através de Contrato de Crédito com o n.º 342607, celebrado a 27/04/2018, concedeu ao requerido, um empréstimo no montante de € 5 223,07.
De acordo com o estipulado no contrato de crédito, o capital mutuado seria reembolsado mediante o pagamento de 84 prestações, mensais e sucessivas, incluindo capital e juros, no valor de € 70,29, vencendo-se a primeira a 27/05 (cf. Cláusula 6 das “Condições Particulares”).
Acontece que, em detrimento do estipulado no contrato de crédito supra descrito, o Mutuário apenas procedeu ao pagamento de 18 prestações.
Neste seguimento, veio a ora requerente, por carta registada com A/R de 2/10/2020, proceder à resolução do contrato de crédito (retificação do valor a 12/04/2021 por carta regista com A/R).
(…)”.
2 – Na contestação apresentada, o Ministério Público, em representação do réu, arguiu, além do mais que aqui se dá por transcrito:
“2.º (…) [S]e ocorreu mora no cumprimento (…), o réu devia ter sido obrigatoriamente integrado no PERSI (art.º 12.º, e seg., do DL 227/2012, de 25/10)”.
3 – Pelo tribunal a quo, foi proferido despacho com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por transcrito:
“Notifique a autora para, no prazo de 10 (dez) dias, alegar e comprovar nos autos a integração do réu em Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (…), sob pena de o mesmo ser absolvido da instância”.
4 – Em resposta à notificação do despacho referido no ponto 3 – factos assentes –, a autora alegou, além do mais que aqui se dá por transcrito:
“3.º Na qualidade de colaborador, o titular do contrato, ora réu, tinha condições especiais junto do AAAA Crédito, SA, nomeadamente taxas associadas a produtos e serviços. (…)
5.º Ora, contratos de crédito cujo crédito é concedido pelo empregador aos seus colaboradores, estão fora do âmbito da aplicação do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, conforme disposto no artigo 2.º, n.º 1, alíneas h) e n).
6.º Portanto, significa que o contrato em crise nos autos, pelas razões expostas, tratou-se de uma operação excluída pelo âmbito do referido Decreto-Lei 133/2009, de 2 de junho.
7.º E, precisamente por estarmos fora do âmbito do Decreto-Lei 133/2009, de 2 de junho, o titular do contrato de crédito 342607, aqui réu não foi integrado em PERSI”.
5 – Com o requerimento referido no ponto 3 – factos assentes –, a autora juntou dois documentos, intitulados “PROPOSTA / CONTRATO Nº | 741442 | 342607” e “ADITAMENTO AO CONTRATO DE Crédito PCRP / N.º 741442 – CONDIÇÕES ESPECIAIS PARA COLABORADORES DO GRUPO AAAA”, que aqui se dão por transcrito, rezando o primeiro, além do mais:
“Emitido em: 2018/04/26
PROPOSTA / CONTRATO Nº | 741442 | 342607
Entre:
AAAA Crédito – Instituição Financeira de Crédito S.A., (…) adiante designada por AAAA-C, e
1º TITULAR
NOME | BBBB
(…)
PROFISSÃO | BANCÁRIO
TIPO DE CONTRATO | Quadros
(…)
A presente Proposta/Contrato de Crédito Pessoal à distância (adiante designado por Contrato) está sujeito às Condições Particulares (CP) e às Condições Gerais Anexas (CG) abaixo estabelecidas, e destina-se ao financiamento do montante fixado nas CP, desde já acordando as partes que este contrato de crédito se insere no contrato de crédito do tipo “Crédito Pessoal – Sem finalidade específica” ou “Outros Créditos Pessoais”. (…)
CONDIÇÕES PARTICULARES
1. Montante Total e Condições de Utilização
1.1 O AAAA-C disponibilizará ao CLT o montante total de € 5.223,07 (…).
(…)
CONDIÇÕES GERAIS
1. Objeto
1.1 O presente contrato, celebrado entre o Cliente (“CLT”) e o AAAA Crédito (“AAAA-C”), trata-se de um contrato de crédito à distância regido pela lei Portuguesa, nomeadamente pelo disposto nos Decretos-Lei nº 95/2006, de 29 de Maio (“DL 95/2006”) e nº 133/2009, de 2 de Junho (“DL 133/2009”) e pelas Condições Particulares (“CP”) e Condições Gerais (“CG”).
1.2 O presente contrato é celebrado à distância, sendo ao CLT previamente entregue a FIN, prestada toda a informação e esclarecimento necessários, no âmbito do dever de assistência, e disponibilizados tantos exemplares da proposta/contrato de crédito quantos os intervenientes, para que, após preenchimento e assinatura pelo CLT, fique um exemplar na posse de cada interveniente e seja remetido ao AAAA-C o exemplar que se lhe destina, nos termos indicados por esta, pelo que a data de assinatura do contrato/proposta pelo CLT é assumida por ambos como a data de receção da FIN e demais informação legal, e do exemplar do Contrato destinado ao CLT.
2. Definições
a) AAAA-C – AAAA Crédito – Instituição Financeira de Crédito, SA, (…) autorizada e supervisionada pelo Banco de Portugal (…);
b) CLT – o(s) Consumidor(es), como tal definidos no DL 95/2006 e DL 133/2009, Subscritor(es) do(s) contrato(s) identificado(s) nas Condições Particulares; (…)
d) Contrato à Distância – qualquer contrato cuja formação e conclusão sejam efetuadas exclusivamente através de meios de comunicação à distância, que se integrem num sistema de venda ou prestação de serviços organizados, com esse objetivo, pelo prestador; (…)”
6 – O segundo documento referido no ponto 5 – factos assentes – tem, além do mais, o seguinte teor:
“ADITAMENTO AO CONTRATO DE Crédito PCRP/741442 – CONDIÇÕES ESPECIAIS PARA COLABORADORES DO GRUPO AAAA
Entre:
AAAA CRÉDITO – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO S.A., (…) como Primeiro Outorgante;
E,
BBBB, (…) como Segundo Outorgante;
(…)
2.º As Condições Especiais a aplicar ao Contrato acima identificado, nomeadamente os benefícios e taxas associadas a produtos e serviços, encontram-se descritas no Anexo I ao presente Aditamento (…).
3.º O não cumprimento posterior à assinatura deste aditamento de qualquer um cumulativos estabelecidos na Cláusula 1.ª, implica a perda imediata dos benefícios constantes do Anexo I (Preçário Colaboradores Grupo AAAA), sendo aplicado ao Contrato acima identificado, a partir da data da ocorrência do incumprimento, todas as condições constantes do Preçário em vigor aplicável ao universo geral contratual do Primeiro Outorgante.
4.º Os benefícios constantes do Anexo I (Preçário Colaboradores Grupo AAAA) deixarão, também, de ter aplicação em caso de incumprimento do Contrato acima identificado, sendo apicadas, à data da ocorrência do incumprimento, todas as condições constantes do Preçário em vigor aplicável ao universo geral contratual do Primeiro Outorgante, com produção de efeitos no período subsequente de contagem de juros.
5.º Caso o Segundo Outorgante, independentemente do motivo, voltar a reunir os três requisitos constantes da Cláusula l.ª, ser-lhe-ão novamente aplicáveis os benefícios e as taxas constantes no Anexo I (Preçário Colaboradores Grupo AAAA), a partir da data da ocorrência, com efeitos no período subsequente de contagem de juros, o que resultará na repristinação do presente aditamento após informação escrita ao colaborador, informativa desta repristinação.
6.º Em caso de regularização da situação de incumprimento, o Segundo Outorgante passará a beneficiar novamente dos benefícios e taxas constantes do Anexo (Preçário Colaboradores Grupo AAAA), com efeitos no período subsequente de contagem de juros, o que resultará na repristinação do presente aditamento após informação escrita ao colaborador, informativa desta repristinação.
7.º Todas as restantes Condições do Contrato acima identificado permanecem inalteradas”. B.B. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar: 1. Quadro legal relevante 1.1. Âmbito de aplicação do PERSI 1.2. Crédito concedido por um empregador aos seus empregados 1.2.1. Concessão do crédito a título subsidiário 1.2.2. Subsidiariedade ou acessoriedade da concessão de crédito 1.3. Contratos celebrados ao abrigo de disposição legal de interesse geral 2. Caso dos autos 2.1. Pluralidade de atividades económicas desenvolvidas pela autora 2.2. Concessão de crédito ao abrigo de disposição legal de interesse geral 2.3. Conclusão 3. Responsabilidade pelas custas Quadro legal relevante
O caso vertente resolve-se na delimitação do âmbito de aplicação obrigatória do PERSI. O tribunal a quo entendeu que a dívida reclamada deveria ter sido abrangida por um procedimento extrajudicial deste tipo, pelo que, não o tendo sido, está a demandante impedida de instaurar uma ação com vista à sua cobrança. Esta, por seu turno, entende que o caso dos autos se furta à imposição de sujeição da dívida ao PERSI. Vejamos de que lado está a razão. 1.1. Âmbito de aplicação do PERSI
O Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, tem por objeto, designadamente, estabelecer “princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários”. Entre os mecanismos predispostos por este diploma, com vista à regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários, conta-se o “procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento” (PERSI) – art.º 12.º e segs. do Decreto-Lei n.º 227/2012.
A integração do cliente bancário incumpridor no PERSI é obrigatória (art.º 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 227/2012), sendo a omissão desta integração impeditiva da sua demanda judicial, com vista à satisfação coerciva do crédito da mutuante (art.º 18.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 227/2012).
Sobre o âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 227/2012, estabelece o seu art.º 2.º, além do mais, o seguinte:
Artigo 2.º
Âmbito
1 – O disposto no presente decreto-lei aplica-se aos seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários: (…) c) Contratos de crédito aos consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto‑Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, na sua redação atual; (…)
A aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 227/2012 à concessão de crédito a um consumidor está, assim, dependente da aplicabilidade do Decreto‑Lei n.º 133/2009, de 2 de junho ao respetivo contrato de mútuo. Importa, pois, apurar qual é o âmbito de aplicação deste último diploma.
Reza o n.º 1 do art.º 1.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009:
Artigo 1.º
Objeto e âmbito
(…)
2 – O presente decreto-lei aplica-se aos contratos de crédito aos consumidores, sem prejuízo das exclusões previstas nos artigos 2.º e 3.º.
Por seu turno, dispõe a al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do mesmo diploma:
Artigo 2.º
Operações excluídas
1 – O presente decreto-lei não é aplicável aos: (…) h) Contratos de crédito cujo crédito é concedido por um empregador aos seus empregados, a título subsidiário, sem juros ou com TAEG inferior às taxas praticadas no mercado, e que não sejam propostos ao público em geral; (…)
À luz deste enquadramento legal, e no que para a solução do caso dos autos releva, importa analisar os diferentes pressupostos previstos na última norma transcrita.
1.2. Crédito concedido por um empregador aos seus empregados
O caso de exclusão de aplicação do Decreto‑Lei n.º 133/2009 previsto na al. h) do n.º 1 do seu art.º 2.º depende do preenchimento de quatro requisitos. Para que possa beneficiar desta exclusão, terá o mutuante de alegar e provar e verificação de todos eles: i) ser o mutuante empregador do mutuário; ii) ser o crédito concedido a título subsidiário; iii) não ser o mútuo remunerado ou sê-lo com uma TAEG inferior às taxas praticadas no mercado; e iv) não ser o contrato proposto ao público em geral.
Todos estes pressupostos podem suscitar questões em torno do seu preenchimento – por exemplo, na concretização do conceito de “empregador”. No entanto, sobre quase todos eles é possível, instantaneamente, configurar uma hipótese do seu preenchimento – por exemplo, quanto ao primeiro, o trabalho por conta de outrem (trabalho dependente). Assim não ocorre, todavia, quanto ao preenchimento do segundo pressuposto – ser o crédito concedido a título subsidiário. Não é evidente o significado de “a título subsidiário”. 1.2.1. Concessão do crédito a título subsidiário
O enunciado legal que nos ocupa teve por fonte a al. g) do art.º 2.º da Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores – cfr. o n.º 1 do art.º 1.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009. Esta Diretiva foi alterada, sempre sem relevância para o caso dos autos, pelo art.º 1.º da Diretiva 2011/90/UE da Comissão, de 14 de novembro de 2011, pelo art.º 46.º da Diretiva 2014/17/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014 – na qual a expressão “atividade secundária” é também empregue na al. b) do n.º 2 do seu art.º 3.º –, pelo art.º 57.º do Regulamento (UE) 2016/1011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, pelo art.º 1.º (e ponto VIII, n.º 2, do respetivo anexo) do Regulamento (UE) 2019/1243 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, e pelo art.º 27.º da Diretiva (UE) 2021/2167 do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de novembro de 2021.
Reza o referido art.º 2.º da Diretiva 2008/48/CE, no que para o caso releva:
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
1. A presente diretiva é aplicável aos contratos de crédito.
2. A presente diretiva não é aplicável a: (…) g) Contratos de crédito cujo crédito é concedido por um empregador aos seus empregados, no âmbito de uma atividade secundária, sem juros ou com taxas anuais de encargos efetivas globais inferiores às taxas praticadas no mercado, e que não sejam propostos ao público em geral; (…)
Do confronto entre os dois enunciados, ressalta a diferente terminologia empregue. Onde na Diretiva 2008/48/CE consta “no âmbito de uma atividade secundária”, no Decreto‑Lei n.º 133/2009 consta “a título subsidiário”. Dir-se-ia que “secundário” – que não é o principal – e “subsidiário” – que auxilia – podem não ser sinónimos – sobretudo numa área, o direito do trabalho, na qual subsídio pode ter um significado específico. Ainda assim, a ideia de acessoriedade está presente em ambos.
O enunciado adotado na Diretiva 2008/48/CE tem o inegável préstimo de esclarecer que a adjetivação se refere a uma atividade. É a atividade na qual se inscreve a concessão de crédito que deve ser qualificada como “secundária” ou “subsidiária”.
A versão inglesa da Diretiva 2008/48/CE oferece-nos um enunciado semelhante à versão em língua portuguesa – “secondary activity”. Já as versões francesa – “à titre accessoire” – e alemã – “als Nebenleistung” – convocam a ideia de acessoriedade – uma atividade que, sem compromisso da satisfação do seu objeto social nem da sua viabilidade económica, o mutuante pode não desenvolver. A versão espanhola da Diretiva adota uma formulação próxima da que veio a ser adotada na lei nacional portuguesa – “a título subsidiario”. A versão italiana recorta o seu âmbito de aplicação, quanto a este pressuposto, pela negativa: “al di fuori della sua attività principale”.
Afigura-se que Diretiva 2008/48/CE não se refere, simplesmente, ao crédito concedido (totalmente) estranho à atividade (negócio) do mutuante – mas sim que se inscreve no “âmbito de uma atividade secundária” –, acautelando o surgimento de escolhos em torno do respeito pelo “princípio da especialidade do fim” ( art.º 6.º, n.º 1, do Cód. Soc. Comerciais). Estamos, pois, perante casos em que a concessão de crédito é, efetivamente, estranha ao negócio identitário do mutuante, mas que ainda podem ser vistos como representando uma atuação (atividade) conveniente à prossecução do seu fim. A atividade secundária ou subsidiária é, pois, aquela que não constitui o negócio principal do empregador.
Na fixação do sentido a dar à lei nacional, podemos começar por assentar que nenhum empregador exerce, a título principal, a atividade de concessão de mútuo apenas aos seus empregados. É esta uma hipótese absurda de verificação nula. O mesmo é dizer que a atividade desenvolvida a título principal à qual se refere a al. g) do n.º 2 do art.º 2.º da Diretiva 2008/48/CE – e, por arrastamento, a al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009 – é a atividade de concessão de crédito, em geral.
Se a instituição bancária tem por objeto estatutário principal a concessão de crédito, nunca se poderá dizer que um empréstimo feito a um seu funcionário se inscreve numa sua atividade subsidiária, secundária, acessória ou não principal – aparentemente em sentido não coincidente, cfr. Fernando de Gravato de Morais, Crédito aos Consumidores, Coimbra, Almedina, 2009, p. 18. Pelo contrário, insere-se esta concessão de crédito na normal atividade principal da empregadora, ainda que possa oferecer condições especiais ao seu funcionário. A circunstância de o contrato estar sujeito a regras contratuais ou legais específicas – cfr. o art.º 279.º, n.º 2, al. d), do Cód. do Trabalho – não o aparta da típica atividade lucrativa desenvolvida pela mutuante.
O escopo da Diretiva 2008/48/CE – e, por arrastamento, do Decreto‑Lei n.º 133/2009 – resulta com clareza do seu teor e dos seus considerandos preambulares. Por um lado, são estabelecidas regras que promovem a “livre concorrência no mercado interno e operações transfronteiriças”, mais precisamente, a “livre circulação das ofertas de crédito” e a “concorrência entre os mutuantes”. Por outro lado, pretende-se proteger os consumidores “contra as práticas desleais ou enganosas, em especial no que diz respeito à divulgação de informação pelo mutuante”.
Esta ordem de preocupações, respeitante a práticas, à concorrência e à divulgação padronizada de informação, tem pouco a ver com o especialíssimo caso da concessão de crédito do empregador (estranha à sua atividade identitária) ao trabalhador. Um empregador que conceda crédito a um trabalhador, não sendo a concessão de crédito o seu negócio, não atua num mercado interno desta natureza, não procedendo, no âmbito da sua atividade, à divulgação de informação a um conjunto indeterminado de consumidores. Só assim não sucederá, obviamente, se a concessão de crédito for a atividade principal do mutuante.
Nenhuma razão existe para que regras que promovem a “livre concorrência no mercado interno e operações transfronteiriças”, a “livre circulação das ofertas de crédito” e proteção dos consumidores “contra as práticas desleais ou enganosas” não sejam aplicadas a uma instituição de crédito, ainda que o mutuário seja seu trabalhador e, por esta razão, beneficie de uma taxa de juro remuneratório mais favorável. O mesmo é dizer que nada justifica que o trabalhador de uma instituição bancária – que tanto pode desenvolver a atividade de broker como de porteiro, por exemplo – tenha um nível de proteção inferior ao proporcionado ao dos restantes clientes bancários.
Em suma, apenas no caso, repisa-se, de a concessão de crédito se inscrever numa atividade subsidiária, secundária, acessória ou não principal da mutuante não é aplicável Diretiva 2008/48/CE. Isto significa que, dedicando-se a mutuante, a título principal, à concessão de empréstimos, o crédito que concede aos seus trabalhadores não está excluído, com este fundamento, do âmbito de aplicação do Decreto‑Lei n.º 133/2009. 1.2.2. Subsidiariedade ou acessoriedade da concessão de crédito
Não obstante o exposto, afigura-se-nos que, para a boa resolução do caso concreto, não será necessário fixar o sentido a dar a “atividade subsidiária”, “secundária”, “acessória” ou “não principal”. Com efeito, antes de avançarmos para esta análise qualitativa, devemos primeiro verificar se o pressuposto quantitativo, por assim dizer, presente na norma analisada se encontra preenchido.
Do confronto entre os enunciados da al. b) do art.º 3.º (definição de mutuante) e da citada al. g) do n.º 2 do art.º 2.º da Diretiva 2008/48/CE, podemos concluir que a atividade à qual esta última alínea se refere é uma atividade económica, isto é, é uma atividade comercial ou profissional desenvolvida pelo mutuante, para além de uma outra atividade económica (dita principal, primária, fundamental ou subsidiada). Ou seja, o preenchimento da hipótese legal desta última norma exige que o mutuante desenvolva, pelo menos, duas atividades económicas.
Retornando à lei nacional, resulta do exposto que, para que possa beneficiar da exceção prevista na al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009 – que satisfaz o mesmo escopo tutelado na al. g) do n.º 2 do art.º 2.º da Diretiva 2008/48/CE –, terá o mutuante de alegar (art.º 572.º, al. c), do Cód. Proc. Civil) e provar (art.º 342.º, n.º 2, do Cód. Civil) que, desenvolvendo duas ou mais atividades económicas, o crédito concedido não se inscreve na sua atividade principal, mas sim numa sua atividade subsidiária ou secundária. Se o não fizer, nunca poderá tal realidade ser refletida no leque dos factos provados e, consequentemente, nunca poderá ser aplicada a norma enunciada na al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009.
Tem esta factualidade natureza exceptiva – ou, no caso dos autos, contra-exceptiva –, cabendo a sua prova a quem pretende afastar a aplicação do regime previsto no Decreto‑Lei n.º 133/2009. Isto significa que, no que à questão do ónus probatório diz respeito, cabe ao mutuante alegar e provar os pressupostos que preenchem a hipótese da norma enunciada na al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009, por ser a parte que tem interesse em que o tribunal considere como verdadeiros os factos afirmados. Não há aqui que inovar, mas apenas que respeitar a rosenberguiana “teoria das normas” (art.º 342.º do Cód. Civil).
1.3. Contratos celebrados ao abrigo de disposição legal de interesse geral
Na sustentação da sua posição, invoca, ainda, a apelante a al. n) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009. Dispõe esta alínea o seguinte:
Artigo 2.º
Operações excluídas
1 – O presente decreto-lei não é aplicável aos: (…) n) Contratos que digam respeito a empréstimos concedidos a um público restrito, ao abrigo de disposição legal de interesse geral, com taxas de juro inferiores às praticadas no mercado ou sem juros ou noutras condições mais favoráveis para os consumidores do que as praticadas no mercado e com taxas de juro não superiores às praticadas no mercado; (…)
O caso de exclusão previsto na al. n) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009 depende do preenchimento dos seguintes requisitos: i) ser o contrato de empréstimo disponibilizado a público restrito; ii) ter sido o contrato celebrado ao abrigo de disposição legal de interesse geral; e iii) compreender o contrato condições mais favoráveis para os consumidores do que as praticadas no mercado (designadamente, a TAEG).
Essencial é, pois, que o contrato tenha sido celebrado ao abrigo de disposição legal de interesse geral, a qual, desejadamente, deverá ser invocada no clausulado contratual. 2. Caso dos autos
Começamos este capítulo da fundamentação por notar que a apelante nunca alega claramente ser empregadora do mutuário – aliás, nunca juntou aos autos um documento que tenha formalizado a relação contratual preexistente. Afirma, sim, que “o réu era colaborador do AAAA Crédito, S.A., ora autor”. Ora uma relação de “colaboração” não é necessariamente uma relação de “emprego”, podendo questionar-se se qualquer relação de “colaboração” preenche a hipótese legal – cfr. Helena Díez García, «Artículo 3. Contratos excluídos», in Manuel Jesús Marín López (coord.), Comentarios a la Ley de Contratos de Crédito al Consumo, Thomson Reuters, Aranzadi, Cizur Menor, 2014, pp. 190 a 193.
De todo o modo, ainda que a relação preexistente entre as partes seja laboral (trabalho dependente), não assiste razão à apelante.
2.1. Pluralidade de atividades económicas desenvolvidas pela autora
Consta dos documentos juntos que a apelante desenvolve a atividade própria das instituições financeiras de crédito – incluindo, pois, a concessão de crédito –, estando para tanto autorizada e sendo supervisionada pelo Banco de Portugal, o que é logo revelado pela sua firma: AAAA Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A.. Ora, conforme foi acima concluído, no que para a aplicação da norma enunciada na al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009 releva, apenas na hipótese de a concessão de crédito se inscrever numa atividade subsidiária, secundária, acessória ou não principal da mutuante pode o regime previsto neste diploma ser afastado.
O mesmo é dizer que, dedicando-se a apelante à concessão de empréstimos, o contrato de concessão de crédito celebrado com o demandado só se poderá considerar excluído do âmbito de aplicação do Decreto‑Lei n.º 133/2009 se a demandante tiver alegado – e, a seu tempo, viesse a provar – que (i) exerce (pelo menos) uma outra atividade económica (que não a concessão de crédito) e que (ii) é estoutra a sua atividade principal.
Ora, a autora nunca alega que desenvolve mais do que uma atividade económica nem que a concessão do crédito em litígio se inscreveu numa sua atividade não principal. A apelante tem obrigação de conhecer a sua atividade, sendo esta, de resto, facilmente apurável através do portal institucional do Sistema de Informação da Classificação Portuguesa das Atividades Económicas (SICAE) na Internet. Isto significa que a autora não satisfez o seu ónus de alegação.
Diga-se, a propósito, que não existe uma atividade económica, principal ou não, de concessão de crédito os trabalhadores do próprio agente económico. Apenas existem, no que para o caso releva, as “Atividades das instituições financeiras de crédito” (CAE 64921) – veja-se o portal institucional na Internet do Instituto Nacional de Estatística (CAE-Rev.3 e CAE-Rev.4). (Ao nível da União Europeia, apenas se encontrará a classe 64.92 “Outras atividades de crédito” da NACE Revisão 2 – cfr. o anexo ao Regulamento (CE) n.º 1893/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, na redação dada pelo Regulamento Delegado (UE) 2023/137 da Comissão de 10 de outubro de 2022).
Não tendo a autora alegado, como facto essencial que é, que desenvolve duas ou mais atividades económicas – possuindo dois ou mais CAE – e que o contrato dos autos se inscreve numa das suas atividades que não é a principal, nunca poderia proceder a contra-exceção por si oposta. Dito de outro modo, não tendo a autora alegado que não se dedica a título principal à atividade de concessão de crédito – ou, mais genericamente, à “atividade de instituição financeira de crédito” –, não pode ser aplicada a norma enunciada na al. h) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009.
Na ausência de adoção do PERSI, não é a ação admissível com o fundamento agora analisado. 2.2. Concessão de crédito ao abrigo de disposição legal de interesse geral
Também a hipótese de não aplicação deste diploma por ter sido o contrato celebrado ao abrigo de disposição legal de interesse geral – por força do disposto na al. n) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto‑Lei n.º 133/2009 – não tem concretização no caso dos autos. A demandante nunca sinaliza qual é a disposição legal de interesse geral ao abrigo da qual supostamente concedeu um empréstimo ao demandado. No documento escrito que formaliza a celebração do contrato de mútuo inexiste qualquer referência a tal norma especial. Aliás, o empréstimo é formalizado através de uma minuta aparentemente predisposta pela autora cujos dizeres revelam estarmos perante de um clausulado padrão (formado por cláusulas contratuais gerais), apenas sendo alterado pelo aditamento referido no ponto 6 – factos assentes – e, ainda assim, apenas no caso de pontual cumprimento do acordado.
Em suma, o contrato celebrado entre a apelante e o demandado está sujeito ao regime previsto no Decreto‑Lei n.º 133/2009. 2.3. Conclusão
Sumarizando a enunciação da questão objeto da apelação e percorrendo o percurso inverso, concluímos que, considerando os factos essenciais alegados pela autora, o contrato celebrado entre a apelante e o demandado está abrangido pelo disposto no Decreto‑Lei n.º 133/2009 (que estabelece um regime respeitante aos contratos de crédito aos consumidores). Isto significa que o disposto no Decreto-Lei n.º 227/2012 (que cria e regula o PERSI), cujo âmbito de aplicação é parcialmente decalcado do âmbito de aplicação daquele primeiro diploma, é também aplicável ao caso dos autos.
Em conclusão, a demandante deveria ter incluído o demandado num PERSI. Não o tendo feito, encontra-se impedida de intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito (art.º 14.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 227/2012).
A decisão do tribunal a quo não merece censura. 3. Responsabilidade pelas custas
A responsabilidade pelas custas cabe ao apelante (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil), por ter ficado vencido.
C. Dispositivo C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em negar provimento ao recurso. C.B. Das custas
Custas a cargo da apelante. * Notifique.
Lisboa ,7/1/2025
Paulo Ramos de Faria
Diogo Ravara
José Capacete