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COMPRA E VENDA
PAGAMENTO DO PREÇO
RECUSA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
PRESSUPOSTOS
Sumário
I - A exceção do não cumprimento, enquanto meio de autotutela creditória, só pode ser invocada caso se verifique alguma reciprocidade ou correspetividade entre a prestação incumprida e a prestação cujo cumprimento se recusa. II – No caso de o contrato bilateral em causa ser um contrato de compra e venda, o vínculo sinalagmático ocorre essencialmente entre as obrigações principais de transferência da propriedade e de entrega da vendida, por um lado, e o pagamento do preço, por outro. III – Ainda que se admita que a exceção do incumprimento do contrato possa ser invocada perante o incumprimento de deveres secundários, torna-se necessário detetar alguma interdependência ou correspetividade entre a obrigação cujo cumprimento teria sido recusado pelo apelante e a obrigação (secundária) de entrega dos documentos de transporte, ou, no mínimo, que esse dever acessório estivesse funcionalmente preordenado à obtenção dos principais benefícios resultantes do contrato (isto é, que o incumprimento desse dever secundário impedisse, ou ao menos prejudicasse gravemente, o usufruto dos benefícios pretendidos com a celebração do contrato ). IV - No caso, não só não ocorre qualquer nexo de sinalagmático entre as duas obrigações (a da entrega dos documentos de transporte e o pagamento do preço), como o não cumprimento daquele dever acessório nem sequer colocou minimamente em causa o cumprimento das referidas obrigações principais, uma vez que foram cumpridos integralmente, pela vendedora, os deveres de entrega das mercadorias e de transferência a propriedade sobre as mesmas.
Texto Integral
Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - Relatório
1.1. A 1ª R. “E. Ld.ª” interpôs recurso de apelação da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de Cascais a qual julgou a ação procedente condenado a 1ª R., aqui apelante, e ainda a 2ª R. “V. S.A.” a pagar à Autora T. Ld.ª a quantia de € 53.743,70, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
1.2. No recurso em apreciação, a 1ª Ré “E. Ld.ª” apresentou as seguintes conclusões:
I. Veio o Tribunal, do qual se recorre, considerar que a entrega dos documentos relativos ao transporte de mercadorias, assumem apenas um cariz acessório, no contrato de compra e venda, não podendo a Apelante recorrer à excepção do não cumprimento do contrato.
II. A própria Lei Fiscal, nomeadamente o RGIT, dispõe no nº1 do artigo 117º, que as entidades devem obrigatoriamente entregar tais documentos, sempre que solicitados, fazendo estes a prova da transacção comercial, sob pena de aplicação de coima.
III. O nº 2 do artigo 882º do CC, dispõe que a obrigação de entrega da coisa, abrange os documentos relativos a ela.
IV. Tais documentos configuram verdadeiros deveres secundários de prestação, por via do normativo anteriormente citado.
V. A sua não prestação por parte do vendedor, configura incumprimento do contrato de compra e venda, na medida em que a prestação não foi integralmente cumprida.
VI. Permitindo ao Apelante recorrer do instituto da excepção de não cumprimento, nos termos do nº1 do artigo 428º do CC.
VII. Da análise e conjugação do disposto nos artigos 874º, 879º, e nº 2 do artigo 882º, bem como do disposto quer na Convenção CMR, artigos 4º e 5º e ainda no nº 1, do artigo 117º do RGIT, a apresentação e entrega dos documentos relativos ao transporte da mercadoria, objecto do contrato de compra e venda, configura, no entender do Apelante um dever secundário de prestação.
VIII. Que ao não ser prestada, permite ao Apelante usar da excepção do não cumprimento, plasmada no nº1 do artigo 428º, e recusar a sua prestação enquanto o apelado não cumprir com a sua prestação.
IX. Andou mal o douto Tribunal, do qual se recorre, ao considerar tais documentos meramente acessórios do contrato de compra e venda.
X. Atendendo a todo o exposto deveria o Tribunal, recorrido ter julgado procedente a excepção de não cumprimento invocada e em consequência ter absolvido a Ré do pedido.
1.3. Notificado do recurso, a A., aqui apelada, respondeu ao recurso.
II - Fundamentação de Facto
(Factos considerados provados na decisão sob recurso)
1. A Autora dedica-se, ademais, à venda por grosso de bens.
2. A 1ª Ré “E. Ld.ª” foi constituída em (…), com o capital social de € 5.000, parcelado em duas quotas no valor unitário de € 2.500.
3. Em (…) 2022, a 2ª Ré VB S.A.” adquiriu as duas quotas referidas no ponto n.º 2.
4. A Autora, pelo valor de € 83.193,26, vendeu à 1ª Ré “E. Ld.ª” 4950 unidades de espumante (…) Meio Seco 75cl”, 4950 unidades de Espumante (…) Reserva Bruto 75cl” e 5.940 unidades de Espumante (…) Reserva Doce 75 cl", tendo emitido, por conta desse negócio, a factura n.º FT (…) com vencimento a (…) Maio de 2023.
5. A Autora e a 1ª Ré “E. Ld.ª” acordaram que o valor referido no ponto precedente seria pago até (…) Maio de 2023.
6. Por conta do valor mencionado no ponto n.º 4, a Ré “E. Ld.ª” pagou à Autora a quantia de € 30.000 em (…) Junho de 2023.
III - Fundamentação de Direito
Apreciando e decidindo
a) A questão a apreciar neste recurso, face ao teor das referidas conclusões, prende-se em saber se a 1ª R. poderia invocar a exceção do cumprimento do contrato (recusando o pagamento integral do preço) com fundamento na não entrega dos documentos de transporte da mercadoria vendida pela A. (aqui recorrida), à 1ª R. (ora recorrente).
b) Comece por se notar que a recorrente não coloca em causa a celebração do contrato de compra em venda, nem a entrega ou transferência do direito de propriedade das mercadorias objeto do mesmo, nem sequer a falta de pagamento (parcial) do preço o qual constituía a sua obrigação derivada da celebração do mesmo contrato.
Do que a recorrente discorda, é da parte da sentença que julgou improcedente a exceção do incumprimento do contrato por si suscitada, sustentando a mesma exceção na falta da entrega dos documentos relativos ao transporte de mercadorias.
c) Apreciando, constata-se que a decisão recorrida, após integrar a factualidade provada no regime jurídico do contrato de compra e venda, descreve os requisitos que considera necessários reunir para que seja lícito invocar a exceção do não incumprimento do contrato, e citando com propósito doutrina e jurisprudência autorizada, define a mesma exceção como uma “causa legítima de incumprimento, ou, num outro prisma, numa garantia do cumprimento simultâneo do contrato - e, por via disso, do equilíbrio contratual - ou do cumprimento isento de defeitos da prestação. A faculdade concedida pelo preceito permite ao “excepiens” recusar a sua prestação até que seja pontualmente cumprida pela contraparte a sua prestação. Trata-se, pois, de uma causa de suspensão da exigibilidade da prestação que apenas é temporariamente paralisada”.
Acrescenta ainda a decisão recorrida que “os pressupostos da excepção do não cumprimento do contrato são: a existência de um contrato com prestações sinalagmáticas - uma das prestações é determinante da outra, sendo que a excepção a consequência do sinalagma funcional - em que não existam prazos diferentes para o cumprimento por cada uma das partes; - a não realização, por parte de um dos contraentes, da prestação a que está adstrito ou o não oferecimento do cumprimento simultâneo; - a não contrariedade à boa fé.
Após, faz referência ao artigo 1.º do Regime de bens em circulação objecto de transações entre sujeitos passivos de IVA (aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 147/2003, de 11 de Julho) que estabelece que «Todos os bens em circulação, em território nacional, seja qual for a sua natureza ou espécie, que sejam objeto de operações realizadas por sujeitos passivos de imposto sobre o valor acrescentado deverão ser acompanhados de documentos de transporte processados nos termos do presente diploma.». Os documentos de transporte a que a lei se refere são elencados na alínea b) do n.º 1 do mesmo diploma - tratam-se de escritos como a factura, guia de remessa, nota de devolução, guia de transporte ou documentos equivalentes - e devem ser processados pelos remetentes dos bens (n.º 1 do artigo 6.º daquele diploma). Adicionalmente e tendo em vista as hipóteses em que as mercadorias são transportadas para fora do território, a Convenção CMR11 prevê a emissão de declaração de expedição pelo expedidor (artigo 4.º), estipulando que um dos respectivos exemplares (n.º 1 do artigo 5.º) deve acompanhar a mercadoria.
Face a este quadro legal, considera ainda a mesma sentença, que “o dever de emitir documentos de transporte que, nos termos dos mesmos, impenderia sobre a Autora (na dúplice qualidade de vendedora/expedidora dos bens) assume, no contexto do contrato de compra e venda, um cariz meramente acessório, os quais “caracterizam-se por se destinarem a preparar o cumprimento das prestações principais ou a assegurar a sua perfeita execução”, concluindo que no caso o dever da entrega dos documentos “não é sinalagmático relativamente à obrigação de pagar o preço. Com efeito, a reciprocidade ou correspectividade desta obrigação principal a cargo do comprador espelha-se, como deflui da própria noção contida no artigo 874.º do Código Civil, na obrigação de entrega da coisa vendida e na inerente transferência do direito de propriedade sobre ela incidente”. E termina que se deve “concluir que a Ré “E. Ld.ª” não pode opor à Autora a dita excepção para justificar a falta de pagamento do remanescente do preço”.
d) Lida a argumentação deduzida pela decisão recorrida, transcrita na parte que importa para apreciação do recurso, constata-se que a mesma não merece qualquer reparo, uma vez que se revela como adequada, porque conforme à interpretação que a doutrina e jurisprudência pacificamente retiram do art.º 428º do Cód. Civil.
A recorrente insiste que a não entrega dos documentos configura violação de deveres secundários de prestação, mas isso também é admitido pela decisão recorrida: a A., aqui apelada, no momento da entrega das mercadorias objeto do contrato de compra e venda, deveria ter procedido à entrega dos documentos de transporte, dever esse que tem até fonte legal (o citado Decreto-Lei n.º 147/2003, de 11-7).
O que a sentença sob recurso já não admite - e com ela concordamos - é que se possa fazer funcionar a exceção do não cumprimento do contrato, recusando a R, aqui recorrente, o pagamento do preço até que ocorra a entrega desses documentos de transporte.
e) Para além de tudo o que se escreveu na decisão recorrida – à qual no essencial aderimos -, acrescente-se ou esclareça-se adicionalmente o seguinte:
A exceção do não cumprimento confere ao credor de determinada prestação um meio de autotutela creditória ou coerção privada (e por isso situando-se dentro da ressalva ao princípio geral de proibição de autodefesa, previsto no art.º 1º do Cód. Proc. Civil), destinando-se a reforçar ou pressionar o cumprimento de uma obrigação; nas impressivas palavras de Pessoa Jorge, redunda num “direito de não cumprir um dever” (in Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Ed. Almedina, 1972, pp. 213, 214).
No caso, o recorrente vem invocar esta exceção material dilatória, sendo manifesto que, no caso do contrato de compra e venda, a reciprocidade ou correspetividade exigidas para o funcionamento do referido mecanismo legal previsto pelo art.º 428º n.º 1 do Cód. Civil, ocorre essencialmente entre as obrigações de transferência da propriedade e de entrega da coisa vendida por um lado (as quais foram cumpridas pela aqui apelada), e o pagamento do preço, por outro; isto é, o sinalagma verifica-se entre os deveres principais resultantes da celebração do contrato.
Ainda assim, o referido art.º 428º, não afasta a possibilidade de a exceção ser invocada perante o incumprimento de deveres secundários - cfr. Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações 2023, Ed. UCP, p. 191 e ss. Mas para que tal ocorresse, seria necessário detetar alguma interdependência ou correspetividade entre a obrigação cujo cumprimento teria sido recusado pelo apelante (o pagamento do preço), e a obrigação (secundária) de entrega dos documentos de transporte, ou, no mínimo, que esse dever acessório estivesse funcionalmente preordenado à obtenção dos principais benefícios resultantes do contrato (isto é, que o incumprimento desse dever secundário impedisse, ou ao menos prejudicasse, o usufruto dos benefícios pretendidos com a celebração do contrato ).
No caso, não só não ocorre qualquer nexo de sinalagmático entre as duas obrigações referidas (a da entrega dos documentos de transporte e a de pagamento do preço), como o não cumprimento daquele dever acessório não colocou minimamente em causa o cumprimento das referidas obrigações principais, uma vez que a vendedora cumpriu o dever de entrega das mercadorias e transferiu a propriedade sobre as mesmas; o não cumprimento da obrigação acessória da entrega dos documentos de transporte em nada afetou a apelante relativamente à receção e usufruto dos benefícios proporcionados pela celebração do contrato.
Concluindo-se que não assistia à apelante o direito a invocar a referida exceção do não cumprimento, confirma-se a decisão recorrida que determinou a condenação das Rés a cumprir integralmente a obrigação de pagamento do preço resultante da celebração do contrato de compra e venda.
O recurso deve assim improceder.
IV - Dispositivo
Face ao exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 7 de janeiro de 2024
João Bernardo Peral Novais
Edgar Taborda Lopes
Carlos Oliveira