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CONTRATO DE COMPRA E VENDA
SIMULAÇÃO
PROCURAÇÃO
ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário
I – Não se justifica a alteração da matéria de facto provada se, atentos os princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação, as provas produzidas não impuserem decisão diversa. II – Os elementos integradores do conceito de simulação, mencionados no art.º 240.º do Código Civil, são: - a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; - o acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório); - o intuito de enganar terceiros. III – O abuso de representação ocorre quando o representante tenha poderes, mas ultrapasse o âmbito resultante da relação subjacente à outorga da procuração, actuando em oposição a essa relação, ou violando deveres de lealdade para com representado. IV – Para que a parte seja condenada como litigante de má fé é mister que não haja quaisquer dúvidas em qualificar a sua conduta processual como dolosa ou gravemente negligente.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO:
AA e mulher, BB, intentaram a presente acção declarativa, com processo comum, contra CC e mulher, DD, formulando o seguinte pedido:
«
».
Alegam que, encontrando-se registado a favor do A. marido o direito de propriedade sobre determinada fracção autónoma, o mesmo outorgou uma procuração a favor dos RR., para que estes vendessem aquela fracção. Munidos dessa procuração, os RR., em representação do A., declararam vender a si próprios tal fracção, bem como declararam que o preço havia sido pago por depósito em conta do A.. Porém, tal pagamento não ocorreu, pelo que o contrato de compra e venda é nulo, por simulação, já que o que os RR. quiseram realizar foi uma doação. Caso assim não se entenda, o contrato deve ser declarado resolvido, por falta de pagamento do preço. Ainda subsidiariamente, pretendem que ocorreu abuso de representação, porque AA. e RR. estavam desavindos e os RR. sabiam que os AA. não autorizavam o negócio e nem sequer tinham conhecimento do mesmo, além de que os RR. venderam a fracção a si próprios por um preço inferior em 25% em relação ao valor de mercado, descurando os interesses do A. em benefício de si mesmos. Concluem que, em consequência, deve ser declarada a ineficácia do contrato de compra e venda em relação aos AA.. Finalmente, caso assim não se entenda, pretendem que os RR. sejam condenados a pagar aos AA. o valor de mercado do imóvel, correspondente a € 200.000,00.
Os RR. contestaram, impugnando os factos invocados pelos AA. e alegando que existiu efectiva compra e venda, com pagamento antecipado do preço. Isto porque, pretendendo os RR. comprar a fracção, mas não tendo acesso a crédito bancário nas condições que pretendiam, o A. marido, então solteiro, dispôs-se a adquirir formalmente tal fracção, sendo o preço pago mediante contrato de mútuo que celebrou com instituição de crédito, mas sendo os RR. os verdadeiros compradores, que pagaram efectivamente todas as prestações relativas àquele contrato de mútuo. Concluem que a acção deverá improceder e, em reconvenção, pedem que:
«Subsidiariamente, e para o caso de assim se não vir a entender deve
a) Reconhecer-se os RR. como donos e legítimo proprietários da fração autónoma descrita no art.º 2 da p.i. por usucapião nos termos do disposto no art.º 1287.º e segs. do Código Civil e ainda subsidiariamente para o caso de assim se não vir a entender serem os AA. condenados subsidiariamente a
b) Pagar aos RR. a quantia de 174.055,85 € a título do pagamento do preço e demais encargos da fração desde a sua aquisição até à presente data acrescida de juros de mora desde os últimos cinco anos e até efetivo e integral pagamento, os quais se liquidam na presente data em 35.305,25 €.
Independentemente de todo o mais serem os AA. condenados a pagar aos RR.
c) Quantia não inferior a 5.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
d) Quantia não inferior a 10.000,00 € como litigantes de má fé».
Os AA. replicaram, alegando que o A. marido suportou o pagamento das prestações do mútuo para aquisição da fracção, entregando os respectivos valores ao R. marido. Pugnaram pela improcedência dos pedidos reconvencionais, porque nada devem, porque não se verificam os pressupostos da usucapião e porque não litigam de má fé.
Por despacho de 14/5/2024, foi admitida a reconvenção, «salvo quanto ao pedido de condenação dos AA. no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais».
Realizada a audiência prévia, foi saneado o processo, tendo sido indicado o objecto do litígio [«Cumpre apreciar e decidir se deve ser declarada nula, por simulação, a escritura pública outorgada pelos Réus a 13/11/2023. Caso assim não se entenda, cumpre apreciar se deve ser resolvido o contrato de compra e venda, por falta de pagamento do preço ou se a escritura é ineficaz por ter sido celebrada com abuso dos poderes de representação. Caso se conclua pela validade do contrato, cumpre ainda apreciar se os Réus devem pagar, aos Autores, a quantia correspondente ao valor de mercado do imóvel, de 200.000,00€. Caso se conclua pela nulidade, resolução ou ineficácia do contrato, cumpre apreciar se os Réus devem ser reconhecidos como donos e legítimos proprietários da fração, por usucapião ou, não sendo este pedido procedente, se os Autores devem pagar alguma quantia aos Réus a título de pagamento de preço da fração e demais encargos»] e enunciados os temas da prova [«1. Pagamento, pelos Réus, do preço declarado na escritura de compra e venda outorgada a 10/11/1999; 2. Pagamento, pelos Réus, de tal escritura e impostos; 3. Pagamento, pelos Réus das despesas referentes à fração; 4. Intenção do Autor marido aquando da outorga da procuração; 5. Uso, fruição e da faixa da fração por parte dos Réus: …à vista de toda a gente, …ininterruptamente, … sem oposição de ninguém, … e agindo como se fossem seus legítimos proprietários. 6. Valor de mercado da fração»]. Foram, ainda, fixados os factos que se considerou encontrarem-se admitidos por acordo, confissão ou provados por documento:
«1. Os Autores são casados entre si e o Autor marido é filho dos Réus.
2. Encontra-se registado a favor do Autor marido o direito de propriedade relativo à fração autónoma designada pela letra J, correspondente ao quarto andar direito, tipologia T1, sito na Rua ..., destinado a habitação, freguesia de ..., concelho de Ponta Delgada, descrito no registo predial sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial tributário de 112.269,15€.
3. Em 10 de julho de 2023, o Autor marido outorgou a favor dos pais, ora Réus, uma procuração para venda da referida fração autónoma.
4. Munidos da referida procuração, os Réus, em 13/11/2023, celebraram escritura pública de compra e venda, na qual declararam que, pelo preço de 150.000,00€, o seu representado vende aos próprios outorgantes a fração referida em 2.
5. A 18/11/2023, os Autores elaboraram um instrumento de revogação da procuração referida em 3».
Procedeu-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, julgo a ação improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo os Réus dos pedidos contra si formulados.
Mais se condenam os Autores como litigantes de má-fé, no pagamento de uma multa que se fixa em 12 (doze) unidades de conta, absolvendo-os do demais peticionado».
Não se conformando com esta decisão, dela apelaram os AA., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«
».
Os RR. contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela parte contrária.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões [de facto e de direito] formuladas pelos recorrentes nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3.º n.ºs 3 e 5.º n.º 3 do Código de Processo Civil). Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 – 7.ª ed., págs. 134 a 142; Ac. STJ de 7/7/2016, proc. 156/12, disponível em http://www.dgsi.pt].
Nessa conformidade, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a impugnação da decisão de facto;
- o mérito da decisão recorrida, quanto à absolvição dos RR. dos pedidos de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, por simulação, de resolução do contrato de compra e venda, por falta de pagamento do preço, e declaração da ineficácia do contrato de compra e venda em relação aos AA. [relativamente aos restantes pedidos formulados na petição inicial, que improcederam, os AA., apesar de, a final, pedirem a sua procedência, não formularam conclusões de recurso a seu propósito, pelo que a decisão proferida em 1.ª instância, nessa parte, transitou em julgado - art.º 635.º n.º4 e 5 do Código de Processo Civil];
- o mérito da decisão recorrida, quanto à condenação dos AA. como litigantes de má fé.
FUNDAMENTAÇÃO A decisão sob recurso considerou provados os seguintes factos:
«1. Os Autores são casados entre si e o Autor marido é filho dos Réus.
2. Encontra-se registado a favor do Autor marido o direito de propriedade relativo à fração autónoma designada pela letra J, correspondente ao quarto andar direito, tipologia T1, sito na Rua ..., destinado a habitação, freguesia de ..., concelho de Ponta Delgada, descrito no registo predial sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial tributário de 112 269,15€.
3. Em 10 de julho de 2023, o Autor marido outorgou a favor dos pais, ora Réus, uma procuração para venda da referida fração autónoma.
4. Munidos da referida procuração, os Réus, em 13/11/2023, celebraram escritura pública de compra e venda, na qual declararam que, pelo preço de 150 000,00€, o seu representado vende aos próprios outorgantes a fração referida em 2.
5. A 18/11/2023, os Autores elaboraram um instrumento de revogação da procuração referida em 3.
6. Os Réus não pagaram o preço que declararam na escritura referida em 4.
7. O valor de mercado da fração autónoma é de 207.000,00€ (duzentos e sete mil euros).
*
8. Como não tinham o dinheiro para a aquisição do imóvel, os Réus recorreram a financiamento bancário.
9. Para o efeito negociaram as respetivas condições do empréstimo no Banco Comercial dos Açores (atualmente Banco Santander Totta, S.A.).
10. Como a idade não permitia o empréstimo por mais de 20 anos, acordaram com o Autor marido, então solteiro e que ao tempo com eles vivia, que a compra da fração e o respetivo empréstimo bancário fosse efetuado formalmente no seu nome, mas de direito propriedade dos Réus.
11. Pelo prazo de 30 anos e com a prestação mais baixa.
12. Sem quaisquer custos ou encargos para o Autor.
13. O pagamento da escritura, impostos, prestações ao BCA, seguros, condomínio, manutenção e demais encargos seriam, como foram, da responsabilidade exclusiva dos Réus.
14. Os Réus constituíram-se, individual e solidariamente, fiadores e principais pagadores com a renúncia expressa ao benefício da prévia excussão ou de qualquer benefício ou direito que pudesse limitar ou restringir as suas obrigações.
15. Comprometendo-se o Autor a outorgar a respetiva escritura pública de venda a favor dos pais após o pagamento do empréstimo bancário.
16. O que aconteceu em 17/11/2023 com o pagamento pelos Réus da quantia remanescente do empréstimo no montante de 27 536,32€ (vinte e sete mil quinhentos e trinta e seis euros e trinta e dois cêntimos).
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17. Foram sempre os Réus que tiveram a chave do imóvel.
18. Foram os Réus que o mobiliaram.
19. E que exclusivamente nele habitaram com os filhos sempre que vinham de férias à ilha de S. Miguel.
20. A fração foi adquirida em 10 de novembro de 1999 a EE e mulher FF pelo preço de 18.000.000$00 (89.783,62 €)
21. O empréstimo foi efetuado pelo prazo de 30 anos, em 360 prestações mensais de capital e juros, à taxa inicial de 5,25% ao ano atualizada de seis em seis meses, contados dia a dia e cobrados postecipadamente ao mês.
22. Os Réus pagaram 287 das 360 prestações do empréstimo.
23. A 17 de novembro de 2023 pagaram o capital em dívida correspondente às 73 prestações em falta, no valor de 27.435,46 € e 100,86€ em juros.
24. Os Réus pagaram quota ao condomínio no valor total de 13 394,54 €.
25. Os Réus pagaram o imposto Municipal de Sisa devida pela transmissão no valor de 1.006,95 € (201.875$00).
26. Os Réus pagaram o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis no valor de 573,40 €.
27. Os Réus pagaram o imposto de selo sobre a venda no valor de 1.200,00 €.
28. Os Réus pagaram a escritura e registo no valor de 644,30 €.
29. Os Réus pagaram o certificado de infestação por térmitas no valor de 87,00 €.
30. Os Réus pagaram o certificado energético no valor de 200,00 €.
31. Os Réus pagaram certidão da licença de utilização do prédio no valor de 10,10 €.
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32. Os Autores sabem que a fração dos autos é exclusivamente dos Réus e que esta só formalmente foi adquirida por estes no seu nome para com isso poderem beneficiar de um empréstimo por mais anos e com prestações mais baixas.
33. Os Autores sabem que ao longo de todo o tempo e desde a sua aquisição em 10 de novembro de 1999 nada pagaram referente a esta fração».
Por outro lado, a decisão recorrida considerou como não provados os seguintes factos:
«a) Após 10 de julho de 2023, Autores e Réus desentenderam-se e deixaram de ter qualquer contacto». Da impugnação da matéria de facto:
Nos termos do art.º 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Como refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., págs. 333 e ss.), «sem embargo da correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art.º 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência». A modificação deverá, ainda, ocorrer sempre que «o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova» ou «quando for apresentado pelo recorrente documento superveniente que imponha decisão diversa».
Conforme resulta dos arts. 341.º do Código Civil e 607.º n.º5 do Código de Processo Civil, tendo as provas por função «a demonstração da realidade dos factos», «o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», embora a livre apreciação não abranja «os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
Assim, desde que para a prova não exista norma legal que exija formalidade especial ou prova documental, e desde que não se trate de matéria provada plenamente, seja por documento, confissão ou acordo das partes, as provas produzidas estão sujeitas ao princípio da livre apreciação pelo tribunal.
Claro que livre apreciação não equivale a arbitrariedade, e é por isso que o n.º4, do mesmo art.º 607.º, exige que o juiz analise criticamente a prova e indique todos os elementos que foram decisivos, assim objectivando [e tornando sindicável] a sua convicção.
Nesse sentido, para que um facto se considere provado, tem-se vindo a exigir que a prova produzida preencha o chamado standard da prova (nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa ser aceite como verdadeira) que vigora em processo civil, que é o da probabilidade prevalecente1. Ou seja, consideradas as regras do ónus da prova (art.º 342.º do Código Civil), é necessário que, a partir das provas produzidas, a versão constante destes pontos da sentença mereça uma confirmação lógica maior do que a versão contrária. Se assim não for, tais factos têm de considerar-se não provados (cfr. art.º 414.º do Código de Processo Civil).
Acresce que, como se refere no Ac. RP de 21/6/2021 (proc. 2479/18, disponível em https://www.dgsi.pt), «mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância».
Particularmente no caso da prova testemunhal e por declarações de parte (e desde que não estejamos perante factos de prova vinculada), é de salientar que, havendo vários depoimentos / declarações contraditórios entre si, as regras da sua apreciação não são matemáticas, ou seja, um facto não é considerado provado ou não provado consoante exista um maior ou menor número de pessoas a afirmá-lo ou a contrariá-lo. Ainda que apenas uma pessoa afirme um facto, enquanto todas as outras o negam, e ainda que várias pessoas afirmem um facto, enquanto apenas uma o nega, esse facto pode ser considerado provado / não provado, conforme a apreciação que seja feita dos depoimentos / declarações, com base na sua credibilidade, coerência, isenção, razão de ciência, distanciamento, conjugação com outros meios de prova (v.g., documental) e conjugação com as regras da experiência. Aliás, ainda que todas as pessoas ouvidas afirmem determinado facto, o mesmo pode ser considerado não provado - basta que os depoimentos / declarações não sejam credíveis (porque, por exemplo, as pessoas têm interesse na decisão da causa e não se mostraram objectivas na sua narração, o seu conhecimento não é directo, os depoimentos / declarações foram contraditórios ou foram de tal forma coincidentes que se afiguram «ensaiados», não é possível que aquelas pessoas, nas circunstâncias concretas, tivessem conhecimento daqueles factos…). E não se pode olvidar que o tribunal de primeira instância se encontra em posição privilegiada para levar a cabo tal tarefa de apreciação, ponderação e discernimento, uma vez que contacta directa e presencialmente (ou, mesmo que à distância, com imagem) com as pessoas ouvidas e, portanto, pode aperceber-se dos aspectos relevantes da linguagem não verbal – expressões faciais, postura, gestos, hesitações. Significa isto que, salvo casos de flagrante erro de avaliação por parte do tribunal de primeira instância (v.g., uma testemunha em que o tribunal se baseou claramente está a efabular, o seu depoimento é contrariado por prova documental ou pericial fiável, os factos que narrou não podiam – de acordo com as regras da experiência ou outras – ter acontecido daquela forma, aquilo que disse não foi o que o tribunal entendeu…), não há que alterar a matéria de facto fixada na sentença. Dito de outra forma, em caso que não seja de prova legal, deve confiar-se na avaliação efectuada em primeira instância, a não ser que a prova produzida implique, necessariamente, decisão diversa.
Note-se, também, que «quando a apreciação da impugnação deduzida contra a decisão de facto da 1.ª instância seja, de todo, irrelevante para a solução jurídica do pleito, ainda que a tal impugnação satisfaça os requisitos formais prescritos no art.º 640.º n.º1 do Código de Processo Civil, não se justifica que a Relação tome conhecimento dela, à luz do disposto no art.º 608.º n.º2 do Código de Processo Civil» (cfr. Ac. STJ de 23/1/2020, proc. 4172/16, disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt)2. Caso contrário, estaríamos a praticar um acto inútil, proibido à luz do art.º 130.º, do mesmo diploma.
Finalmente, para que o tribunal de recurso aprecie a impugnação da matéria de facto, é ainda necessário que o recorrente, na sua alegação e na formulação das conclusões, respeite determinados requisitos.
Com efeito, nos termos do art.º 640.º do Código de Processo Civil:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».
Assim, naquilo que para aqui releva, são os seguintes os ónus do recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto3:
a) Indicar na motivação e, em síntese, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa;
c) Indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) Deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos4.
Em consonância, o recurso deverá ser rejeitado se houver5:
1. Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto [arts. 635.º n.º 4 e 641.º n.º 2 b) do Código de Processo Civil];
2. Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados [art.º 640.º n.º 1 a)];
3. Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
4. Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
5. Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
Balizadas que estão as regras que nos orientarão, passemos à apreciação da pretensão dos recorrentes, que é a seguinte:
A – Os factos provados constantes dos pontos 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 33 sejam considerados não provados;
B – A alínea a) dos factos não provados seja considerada provada, com a seguinte redacção: «Entre o dia 10 de Julho, que foi o dia da assinatura da procuração, e o dia 13 de Novembro de 2023, o A. marido e os pais desentenderam-se e o A. disse que não pretendia que os RR. utilizassem a procuração, porque dizia que o imóvel dos autos lhe pertencia»;
C – Do ponto 5 dos factos provados passe a constar que quem elaborou o instrumento de revogação foi apenas o A. marido e não a A. mulher.
Vejamos.
Relativamente aos factos provados constantes dos pontos 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15 e 16, o tribunal a quo discorreu da seguinte forma:
«O Tribunal atendeu aos depoimentos de GG, HH e II, os quais nos explicaram, de forma espontânea e clara, que os seus pais resolveram comprar um apartamento em S. Miguel, mas, devido à sua idade, não poderiam suportar uma prestação bancária tão elevada, motivo pelo qual pediram ao filho AA, que com eles vivia, para comprar a casa em nome deles, sendo que, desde a data da compra até à liquidação do empréstimo os pais sempre pagaram tudo e que assunto sempre foi um assunto pacífico entre a família, sabendo todos filhos que o imóvel é, na realidade, dos pais (a quem pediam a chave quando se deslocavam a esta ilha), sendo certo que o que foi declarado por estas testemunhas encontra suporte documental nos extratos bancários e comprovativos de transferência bancária (é certo que os irmãos nem sempre viam o pai a efetuar os pagamentos, mas tal era um assunto conversado com regularidade em casa e GG disse-nos que o pai lhe pedia para entrar no website do banco e tirar os extratos que, aliás, se encontram juntos aos autos).
É certo que o Autor negou esta versão, mas, ao contrário dos seus irmãos, prestou um depoimento absolutamente incongruente e contraditório que não mereceu qualquer credibilidade por parte do Tribunal. Se é certo que prestar declarações em Tribunal pode acarretar algum nervosismo, nada justifica a forma ostensiva como aquele mentiu na sala de audiências. Repare-se que o Autor veio com o discurso ensaiado de “eu comprei aquela casa”, mas, quando interrogado por este Tribunal, ou repetia novamente aquela frase ou entrava numa espiral de contradições. Disse-nos que ainda vivia com os pais quando resolveu comprar uma casa em S. Miguel por gostar muito da ilha, utilizando poupanças, sendo que todos os meses entregava dinheiro ao pai para liquidar o empréstimo (logo aqui foi contrariado pelo seu irmão II, com quem vivia, e nos disse que o irmão nem dinheiro tinha para comprar uma televisão). Aliás, não deixa de ser estranho que tenha o sonho de comprar uma casa em S. Miguel e, ao longo de 20 anos, apenas ter cá vindo duas ou três vezes, mas mais: interrogado sobre condições do empréstimo, prestações mensais, valores de seguros, impostos, condomínio, o Autor nada sabia. Ora, quem compra uma casa sabe, ao menos, o valor da prestação mensal, tanto mais que nos disse que foi ao banco negociar o empréstimo sozinho (o que foi contrariado pela sua irmã HH que veio com os seus pais e com o seu irmão AA a esta ilha em 1999 para comprarem o imóvel). Mais disse o Autor que foi o próprio a celebrar a escritura sem a presença dos seus pais, mas, confrontando com a escritura pública, onde apenas assinaram os seus pais e não aquele, foi notório o seu desespero para manter a versão que trazia ensaiada, tendo posteriormente admitido que mentira. Repare-se que o Autor chegou a dizer que em 1999 pagava os impostos pela internet, o que bem sabemos que não acontecia na altura, conforme bem explicou JJ, o qual ia buscar, a pedido do Réu CC, a guia para pagamento à caixa do correio e depois ia liquidar ao serviço de finanças de Ponta Delgada, procedimento esse que manteve durante quase 20 anos. A este respeito, não podemos ainda deixar de destacar as mensagens trocadas com a irmã GG onde aquela escreve que ele nada pagou pelo apartamento, ao que o Autor respondeu: “assim como nenhum de vocês pagou um centavo por aquele apartamento”. A conclusão a que o Tribunal chegou não foi abalada por KK, que disse que o apartamento era do seu tio AA, mas apenas começou o relacionamento com aquele após se casar com a sua tia (em 2003, quatro anos após a compra do apartamento) nem por LL, o qual nos disse que, durante alguns anos da sua infância, ia todos os meses com o seu padrasto (aqui Autor) a casa dos pais entregar dinheiro, embora não saiba o motivo de tal. De acrescentar que estas duas testemunhas, por algum motivo que ultrapassa a este Tribunal, resolveram trazer dois factos donde se aferiu a sua animosidade para com os Réus: KK veio dizer que descobriu que o seu tio era violado por um tio, com o consentimento do pai e LL resolveu dizer que o pai do seu padrasto nunca gostou de si nem da sua irmã (repare-se que nenhuma outra testemunha, e nem sequer os Autores, referiram tais factos)».
Já os recorrentes pretendem que os factos em causa devem ser dados como não provados, face às suas próprias declarações de parte, que transcrevem. Porém, omitem qualquer apreciação crítica, mediante a qual pudéssemos concluir que essas declarações de parte afastam a credibilidade da prova testemunhal e documental indicada pelo tribunal de 1.ª instância.
Ora, como se refere no Ac. deste TRL de 6/2/20246, quando, na alínea b) do art.º 640.º n.º1 do Código de Processo Civil, «se exige que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, tem sido entendimento (…) da jurisprudência (…) que:
- “A lei impõe ao recorrente que indique (concretamente) os depoimentos em que se funda, não sendo suficiente indicar um conjunto de testemunhas que depuseram a determinado facto (mesmo que venham devidamente identificadas pelos nomes e outras referências), para depois se concluir, sem mais, que ouvidos os seus depoimentos se deveria decidir diferentemente. Importa alegar o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decidido e o que consta do depoimento ou parte dele. É exactamente esse o sentido da expressão legal «quais os concretos meios probatórios de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida» (…). Repare-se na letra da lei: «Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida»!” - Acórdão do STJ de 15/09/2011, relator Álvaro Rodrigues, acessível em www.dgsi.pt.
- “Insurgindo-se contra uma decisão fundada em determinados meios de prova que ficaram concretizados na motivação, era suposto que se aprimorasse na enunciação dos reais motivos da sua discordância traduzidos na análise crítica (e séria) da prova produzidae não na genérica discordância quanto ao facto de o tribunal de 1ª instância ter dado mais relevo a umas testemunhas do que a outras. Ónus esse que deveria passar pela análise conjugada dos diversos meios de prova, relevando os que foram oralmente produzidos e os de outra natureza constantes dos autos.” - Acórdão do STJ de 09/02/2012, relator Abrantes Geraldes, acessível em www.dgsi.pt.
Resulta do entendimento jurisprudencial (…) a que se vem aludindo que o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida não é observado quando o apelante: (i) se insurge genericamente quanto à convicção formada pelo tribunal a quo; (ii) se limita a sinalizar que existe um meio de prova, v.g., testemunha, que diverge dos factos tidos como provados pelo tribunal a quo, pretendendo arrimar – sem mais – nesse meio de prova uma decisão de facto diversa da expressa pelo tribunal a quo. De igual modo, este ónus não se basta com a mera enunciação da existência de meios de prova em sentido oposto/diverso da versão dos factos tida como provada pelo tribunal a quo. Cabe ao apelante actuar numa dupla vertente: (i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo, (ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos. Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente. Em suma, não observa o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida o apelante que se abstém de desconstruir a apreciação crítica da prova feita pelo tribunal a quo, limitando-se a assinalar que existem meios de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo tribunal a quo; ou o apelante que sustenta apenas que o tribunal a quo faz uma incorreta valoração da prova produzida – Acórdão deste Tribunal e Secção de 12/09/2017, Relator Luís Filipe Pires de Sousa, acessível em www.dgsi.pt.
(…)
Como se refere no Acórdão do TRP de 06/03/2017, relator Miguel Morais, acessível em www.dgsi.pt: “(…) tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas, nos termos do art.º 607º, nº 4), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando, designadamente, reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos ou indicar, de forma acrítica, um determinado documento. / Deste modo, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados. / Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do art.º 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante.”. Também no Acórdão do TRL de 24/05/2016, relatora Maria Amélia Ribeiro, acessível em www.dgsi.pt, se faz notar que: “É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum”».
No mesmo sentido, e de forma totalmente transponível para os presentes autos, escreveu-se no Ac. RL de 25/6/20247: «transcrever, de forma genérica, trechos dos depoimentos prestados por referência a um conjunto de factos, sem os ponderar com a argumentação da sentença recorrida, por forma a que se possa chegar a uma outra solução, não se assume como uma análise crítica da prova.
No caso vertente, embora procedendo à transcrição de excertos dos depoimentos prestados e que entendem serem determinantes para dar como provados os factos não provados, os apelantes não efectuam essa análise.
Face a essa ausência, encontra-se o tribunal de recurso impedido de aferir a sua pretensão, nomeadamente face à existência de outros elementos de prova constantes dos autos e à valoração efectuada pelo tribunal recorrido de todo o conjunto probatório.
Isto é, a transcrição parcial dos depoimentos das testemunhas inquiridas, com indicação das passagens da gravação, desacompanhada de uma análise crítica e referindo-se apenas que resulta desses depoimentos que os factos provados devem considerar-se não provados e vice-versa, não cumpre o ónus constante do art.º 640º, nº 1, al. b) do CPC. No sentido do que se vem de expor, veja-se o Ac. TRG de 15-03-2016, proc. 726/11.0TTVCT.G1, relator Alda Martins.
Veja-se também o Ac. STJ de 03-12-2015, proc. 1348/12.7TTBRG.G1.S1, relator Melo Lima onde se lê: “… a recorrente ao dizer que determinado facto não devia ser dado como provado pelo confronto da prova testemunhal com a documental, fazendo uma transcrição da primeira, não está a fazer uma análise crítica da prova, nem sequer a fornecer os elementos necessários para permitir que o Tribunal a faça, deixando nas mãos do Tribunal uma atividade “recoletora” de todos os documentos e dos depoimentos identificados, não sendo assim possível ao Tribunal de recurso refazer o percurso/raciocínio lógico-jurídico que o próprio recorrente fez para concluir de forma diferente daquilo que a instância inferior decidiu.
Uma correta impugnação, que cumpra o ónus previsto no art.º 640.º do Código de Processo Civil, passaria por identificar que determinado facto provado foi incorretamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica do/s elemento/s de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado ou não provado”.
É precisamente este o caso dos autos, o que leva a concluir que os apelantes não obedeceram ao citado ónus de concretização e especificação».
No caso dos autos, como se disse, os apelantes limitam-se a indicar as suas próprias declarações (ou seja, a sua própria versão!), sem analisarem em que medida é que as mesmas são susceptíveis de infirmar a análise da prova efectuada em 1.ª instância (que incluiu prova testemunhal directa em sentido contrário ao daquelas declarações) e, portanto, de impor decisão de facto diversa. Não cumpriram, pois, o ónus que lhes incumbia e, em consequência, impõe-se a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, na parte referente aos pontos 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15 e 16 da sentença.
Relativamente aos pontos 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31, o tribunal recorrido fundou a sua convicção do seguinte modo: «atenta a vasta prova documental junta pelos Réus, apenas poderíamos considerar os factos 20º a 31º como provados (pese embora o Réu tenha dito que pagou, não juntou qualquer documento comprovativo e não poderia, pois, conforme já resultou claro, não efetuou um único pagamento)». Ao referir «conforme já resultou claro», o tribunal reporta-se, necessariamente, à análise, já supra transcrita, dos depoimentos testemunhais e das declarações de parte.
Por seu turno, os AA. pretendem que tais factos não podem considerar-se provados, porque alguns dos documentos juntos estão em nome do A. marido e também por causa do teor das suas próprias declarações de parte, que transcrevem.
Embora de modo ténue, os recorrentes ensaiam aqui alguma análise crítica: entendem que os documentos não podem ser considerados relevantes no sentido de provarem que foram os RR. a efectuar os pagamentos, porque a certidão emitida pela AT e os recibos do condomínio foram passados em nome do A. marido.
Porém, não podemos dar-lhes razão. É evidente que os documentos emitidos pela AT e os recibos do condomínio se encontram em nome do A. marido, já que é em nome dele que se encontra registada a fracção autónoma a que os impostos / despesas em causa se reportam. No entanto, o que está em causa é saber se podemos considerar provado que foram os RR. que efectuaram o respectivo pagamento desses impostos / despesas, bem como das restantes prestações e despesas a que se referem os pontos 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31 da matéria de facto. Ora, nessa vertente, há, desde logo, que notar que dos documentos n.º 9 a 83 da contestação resulta que as prestações do contrato de mútuo e as quotizações de condomínio foram pagas a partir de conta titulada pelo A. marido. Por outro lado, dos documentos n.º 113 a 115 da contestação consta que foi o A. marido o sujeito passivo do IMT, do IS e do valor da escritura. Finalmente, do documento n.º 118 da contestação (não impugnado), da troca de mensagens entre o A. e a sua irmã resulta que o mesmo admite implicitamente que nada pagou pelo apartamento: à afirmação da irmã «você não pagou um centavo», o A. marido não nega que não pagou, respondendo que também nenhum dos seus irmãos «pagou um centavo por aquele apartamento». Portanto, esta prova documental, conjugada com a prova testemunhal mencionada supra e (bem) analisada pelo tribunal de 1.ª instância permite corroborar os factos em causa, não sendo as declarações de parte dos AA., de forma nenhuma, idóneas a infirmar tal conclusão (ainda para mais, conforme refere o tribunal a quo, atentas as manifestas fragilidades e contradições dessas declarações).
Devem, assim, estes pontos 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31 manter-se nos factos provados, nessa medida improcedendo as conclusões de recurso.
Em relação aos pontos 32 e 33 [«32. Os Autores sabem que a fração dos autos é exclusivamente dos Réus e que esta só formalmente foi adquirida por estes no seu nome para com isso poderem beneficiar de um empréstimo por mais anos e com prestações mais baixas; 33. Os Autores sabem que ao longo de todo o tempo e desde a sua aquisição em 10 de novembro de 1999 nada pagaram referente a esta fração»], pretendem os recorrentes que estamos perante matéria conclusiva ou de direito e que, «meramente à cautela, vai impugnada a decisão da matéria de facto quanto a estes dois pontos, com fundamento nos depoimentos das testemunhas GG, HH e II, e também com fundamento nas declarações de parte dos AA.».
Quanto a estes pontos, o tribunal de 1.ª instância considerou que os mesmos «resultam, não só dos depoimentos dos seus três irmãos, como da suas próprias declarações donde resultou, de forma clara, que se encontrava a mentir (aliás, aquele chegou a admitir, após o Tribunal ter feito uma pausa para aquele se recompor, que estava parcialmente a mentir)».
Ora, um dos fundamentos da acção – invocado na petição inicial e impugnado na contestação – consiste no facto de o A. marido ser proprietário da fracção autónoma.
O direito de propriedade constitui um conceito de direito e não matéria de facto. Como refere o Prof. Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª ed., págs. 206-207) «é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior» e «é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei». Ou seja, há matéria de direito «sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal» e «há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factos cuja existência ou não existência não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica». «Reduzido o problema à sua simplicidade, a fórmula é esta: a) é questão de facto determinar o que aconteceu; b) é questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja, a lei substantiva, ou seja a lei de processo».
No caso dos autos, para se determinar se os RR. são, ou não, exclusivos proprietários de um imóvel, é necessário recorrer a normas jurídicas onde se funde esse seu invocado direito de propriedade, pelo que não estamos perante uma questão de facto. É que, embora a “propriedade” seja um termo de uso corrente na linguagem comum, tal termo não pode ser admitido enquanto matéria de facto se o direito de propriedade for (como é no caso dos autos) o cerne da questão a decidir – a inclusão de tal expressão no conceito de matéria de facto, como se refere no Ac. do STJ de 14/11/2006 (proc. 06A2992, disponível em http://www.dgsi.pt), arrumaria definitivamente a questão de direito cuja sede própria de conhecimento, no entanto, não é a decisão da matéria de facto, mas a decisão de direito.
Nessa conformidade, por não se tratar de facto e, portanto, não poder constar da matéria provada na sentença (art.º 607.º n.º4, a contrario, do Código de Processo Civil), tem de ser eliminada, considerando-se não escrita no ponto n.º32 da decisão recorrida, a menção ao direito de propriedade dos RR.. Quanto ao mais constante dos pontos 32 e 33, tratando-se de uma ocorrência da vida real - conhecimento, pelos AA., quer de que a fracção só foi formalmente adquirida pelo A. marido8 para que os RR. beneficiassem de um empréstimo em melhores condições, quer de que os AA. nada pagaram relativamente à fracção -, não implicando qualquer aplicação de regras jurídicas, não pode considerar-se que se trate de matéria de direito.
Relativamente à impugnação que os recorrentes fazem no sentido de aqueles factos não serem corroborados pela prova produzida, temos que não foi respeitado o ónus, conforme já supra explanado, de análise crítica da prova [art.º 640.º n.º1 b) do Código de Processo Civil], já que os mesmos se limitam a invocar as suas declarações de parte e os depoimentos das testemunhas, de forma global, sem indicarem os concretos segmentos e sem discorrerem sobre as razões de onde retiram que se impõe decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Nessa medida, rejeita-se a impugnação dos pontos 32 e 33 da sentença, devendo apenas rectificar-se o ponto 32, na forma que referimos, passando o mesmo a ter a seguinte redacção:
«32. Os Autores sabem que a fracção dos autos só formalmente foi adquirida no nome do A. marido para com isso os RR. poderem beneficiar de um empréstimo por mais anos e com prestações mais baixas».
Relativamente ao ponto 5 dos factos provados, é incompreensível a posição que os AA. agora vêm tomar, não só em contradição com aquilo que eles próprios alegam no art.º 12.º da petição inicial (onde referem expressamente que «os AA. elaboraram um instrumento de revogação da procuração»), como em oposição com o documento autêntico que constitui o documento n.º7 da petição inicial, onde são declarantes AA e BB, tendo os mesmos, perante notária, em 18/11/2023, dito que, «pelo presente instrumento de revogação, revogam e tornam nula, a partir desta data a procuração outorgada em dez de Julho de dois mil e vinte e três (…) que nomeou como procuradores CC e DD». Nada existe, assim, a alterar naquele ponto 5, que se encontra em conformidade com documento autêntico.
Finalmente, quanto à alínea a) dos factos não provados [«após 10 de julho de 2023, Autores e Réus desentenderam-se e deixaram de ter qualquer contacto»], foi a seguinte a fundamentação apresentada pelo tribunal recorrido:
«Relativamente ao facto não provado não foi produzida prova que permitisse concluir pela veracidade do mesmo. Desde logo, o Autor disse-nos que apenas cortou relações com os pais e com os seus irmãos depois de descobrir que aqueles haviam ficado com o apartamento em seu nome. De igual forma, a sua esposa, a Autora BB disse-nos que vieram em janeiro deste ano a S. Miguel, tendo-se deparado com as fechaduras do apartamento mudado: “chateámo-nos aqui” (palavras da Autora). Não duvidamos que o ambiente familiar já se mostrasse tenso, tal como demonstram as mensagens trocadas entre o Autor AA e a sua irmã GG, e que aquele confirmou, bem como o instrumento de revogação de 18/11/2023, mas o Autor não logrou provar, conforme era seu ónus, que, à data da celebração da escritura, já estava desavindo com os seus pais. É certo que, não tendo feito qualquer prova, tentou que tal resultasse das inquirições aos seus três irmãos, mas não alcançou tal desiderato: GG disse-nos que as discussões começaram quando o seu pai resolveu liquidar o empréstimo mas pensa que o AA, depois de ter passado a procuração ao pai, se arrependeu (não sabemos quando, mas terá sido pelo menos a 18/11/2023, data do instrumento de revogação); HH também nos disse que o desentendimento terá sido depois de ter sido passada a procuração, embora não saiba dizer quando e II disse que o irmão começou, há mais ou menos um ano atrás, a dizer que o apartamento era dele (o que poderá justificar a data do instrumento de revogação – 18/11/20189). Pelo exposto, e não tendo os Autores feito prova que se desentenderam com os Réus após 10 de julho de 2023, apenas poderíamos considerar tal facto como não provado (quanto muito poderíamos dizer que se desentenderam após 18/11/2023, mas isso os Autores não alegaram por bem saberem que a escritura é de data anterior)».
Já os recorrentes entendem que do depoimento dos irmãos do A., ouvidos como testemunhas, resulta que o desentendimento ocorreu em data anterior à da celebração da escritura e que se deveria dar como provado que «entre o dia 10 de Julho e o dia 13 de Novembro de 2023, o A. marido e os pais desentenderam-se e o A. disse que não pretendia que os RR. utilizassem a procuração, porque dizia que o imóvel dos autos lhe pertencia».
Ora, o facto de ter existido um desentendimento é irrelevante, por ser vago - a partir dele, nada se pode concluir, já que a pura e simples palavra «desentendimento» tanto pode significar uma mera divergência de opiniões, como um corte de relações. Trata-se, portanto, de matéria inócua do ponto de vista da decisão. Relevante seria, sim, apurar-se que (como pretendem os AA.), entre o dia 10 de Julho e o dia 13 de Novembro de 2023 o A. marido disse aos RR. que não pretendia que os mesmos utilizassem a procuração, porque dizia que o imóvel dos autos lhe pertencia.
Ocorre que não vemos como, a partir dos depoimentos invocados pelos recorrentes, poderíamos chegar a essa conclusão, porquanto nenhuma das testemunhas falou em datas concretas. Apenas a testemunha II referiu que, mais ou menos há um ano, o A. começou a dizer que o apartamento era dele - o que permite concluir (tendo o depoimento sido prestado em 30/9/2024) que tal facto poderia ter ocorrido há mais de um ano, mas também poderia ter ocorrido há menos. Aliás, a testemunha também disse que isso se passou quando o R. foi ao banco pedir para liquidar o empréstimo (o que só ocorreu em 17/11/2023). Por outro lado, das mensagens trocadas entre o A. e a sua irmã em 19/9/2023 (documento 118 da contestação) resulta que, nessa data, teria existido uma discussão, mas não que o A. tenha dito que o pai não poderia ou não deveria fazer uso da procuração. De resto, a testemunha HH afirmou mesmo que, na altura em que foi celebrada a escritura, o A. não dissera que não queria que a procuração fosse usada.
Assim, encontra-se correctamente efectuada a análise da 1.ª instância, não impondo as provas produzidas decisão diversa, designadamente, no sentido de se considerar suficientemente corroborado que, «entre o dia 10 de Julho e o dia 13 de Novembro de 2023, o A. marido e os pais desentenderam-se e o A. disse que não pretendia que os RR. utilizassem a procuração, porque dizia que o imóvel dos autos lhe pertencia».
Por tudo o exposto, permanece intocada a decisão de facto, com excepção do ponto 32 (como já referimos) e do seguinte facto que, por relevar para a decisão e se encontrar assente (provado por documento), oficiosamente acrescentamos, nos termos do art.º 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, com o n.º 3.1:
«3.1 Mediante a procuração referida em 3, o A. marido declarou conferir aos RR. poderes “para vender o apartamento localizado na Rua ..., Ponta Delgada, ... a Aires de Sousa, e a sua esposa DD”, conforme documento n.º 4 da petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido». Do mérito da decisão recorrida (quanto aos pedidos formulados na acção, relativos à nulidade, resolução e ineficácia do contrato):
Relativamente ao mérito da decisão de direito, que absolveu os RR. dos pedidos supra indicados, temos que a acção se reporta, antes de mais, às consequências que os AA. pretendem fazer extrair da alegada nulidade, por simulação, de determinado contrato de compra e venda que o A. marido, na qualidade de vendedor, celebrou com os RR. (na qualidade de compradores) em 13/11/2023.
Nos termos do art.º 240.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil, «se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado» e é nulo.
Como refere Carlos Alberto da Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 1988, págs. 471 e ss.), os elementos integradores do conceito de simulação, mencionados naquele art.º 240.º, são:
- a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
- o acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório);
- o intuito de enganar terceiros.
A simulação pode ser inocente (se houver o mero intuito de enganar terceiros, sem os prejudicar), ou fraudulenta (se houver o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei) e pode ser absoluta ou relativa.
No caso de ser absoluta, as partes fingem celebrar um negócio jurídico, mas, na realidade, não querem nenhum negócio. No caso de ser relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico, mas, na realidade, querem um outro de tipo ou conteúdo diverso – por trás do negócio simulado ou aparente ou fictício há um negócio dissimulado ou real ou oculto (cfr. art.º 241.º do Código Civil). Neste último caso, sendo embora nulo o negócio simulado, aplica-se ao negócio dissimulado «o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimilação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado», a não ser que, sendo o negócio dissimulado de natureza formal, não tenha sido observada a forma exigida por lei.
Deste modo, e tendo também em consideração o disposto no art.º 342.º n.º 1 do Código Civil, os AA. teriam de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito, ou seja:
1 - A celebração do contrato;
2 – A divergência intencional entre a vontade de A. marido e RR. e aquilo que ali declararam;
3 – O acordo entre os intervenientes no negócio relativamente a essa divergência;
4 – O intuito desses intervenientes de, com aquela divergência, enganarem terceiros.
Compulsada a matéria provada, logo se vê que se provou a celebração do contrato de compra e venda, mas não se provou e, aliás, nem sequer vinha alegadonos articulados, a existência de qualquer intuito de os intervenientes no negócio, com a celebração do contrato de compra e venda de 13/11/2023, enganarem terceiros.
Assim, não tendo os AA. logrado provar os factos constitutivos do seu direito, tem de improceder, tal como consta da decisão recorrida, o pedido de declaração de nulidade, por simulação, da venda realizada mediante escritura pública celebrada em 13/10/2023.
No presente recurso, pretendem os recorrentes que, a não proceder aquele pedido, deveria ser declarado anulado o mesmo contrato, por erro na declaração.
Ocorre que se trata de questão que, não tendo sido apreciada em 1.ª instância (já que não foi suscitada pelas partes) e não sendo de conhecimento oficioso (cfr. art.º 287.º n.º1 do Código Civil) não pode ser aqui conhecida10.
Relativamente ao pedido de resolução do contrato de compra e venda com fundamento na falta de pagamento do preço, prevêem os arts. 974.º, 897.º e 886.º do Código Civil que:
«Art.º 874.º
Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.
Art.º 879.º
A compra e venda tem como efeitos essenciais:
a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) A obrigação de entregar a coisa;
c) A obrigação de pagar o preço.
Art.º 886.º
Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço».
No caso dos autos, não há dúvidas de que, entre o A. marido e os RR. foi celebrado um contrato de compra e venda: o A. marido (por intermédio de procuradores) declarou vender e os RR. declararam comprar, mediante um preço, uma fracção autónoma. Sendo certo que o direito de propriedade sobre tal fracção se encontra registado a favor do A. marido (pelo que se presume que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define - cfr. art.º 7.º do Código do Registo Predial), aquele direito, por força da celebração do contrato de compra e venda transmitiu-se aos RR.. Por outro lado, os RR. sempre tiveram a chave do imóvel (cfr. facto provado n.º 17). Portanto, tendo-se transmitido o direito de propriedade e encontrando-se a fracção entregue aos RR., a falta de pagamento do preço não constitui fundamento de resolução do contrato, tal como resulta do mencionado art.º 886.º e, aliás, é referido na sentença recorrida.
Assim, tem de improceder o pedido de declaração de resolução do contrato de compra e venda com fundamento na falta de pagamento do preço.
Pretendem, por outro lado, os AA. que o contrato de compra e venda é ineficaz, por o mesmo ter sido celebrado com abuso dos poderes de representação.
De acordo com o art.º 258.º do Código Civil, «o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último».
No entanto, prevê o art.º 269.º, com referência ao art.º 268.º, do mesmo diploma, que, no caso de o representante ter abusado dos seus poderes, e desde que a outra parte conhecesse ou devesse conhecer o abuso, o negócio é ineficaz em relação ao representado, se não for por ele ratificado.
«O abuso de representação ocorre quando o representante tenha poderes, mas ultrapasse o âmbito resultante da relação subjacente. O [art.º] 269.º determina, nessa eventualidade, a aplicação do regime da representação sem poderes, “... se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso” (…). O abuso representação vem a ser o exercício dos inerentes poderes em oposição à relação subjacente: com o que dela resulte, de modo directo ou por violação dos deveres de lealdade que ela postula. O terceiro não pode ser confrontado com tal relação, sem expressão directa nos próprios poderes: salvo se a conhecesse ou devesse conhecer. Perante tal interpretação, o [art.º] 269.º joga, de modo harmonioso, com o conjunto das regras relativas à procuração. [A] jurisprudência tem feito aplicação desde preceito, por exemplo, nos casos de venda por um preço inferior ao do valor de mercado (…), do exercício dos poderes de representação em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representante ou sem o seu conhecimento (…). Efectivamente, aí, não só se mostra defraudada a função em que o representante havia sido investido como também se gera uma situação objectiva que o terceiro adquirente conhecia ou devia conhecer11».
Como se refere no Ac. STJ de 13/2/200312, são «três os elementos da facti species deste art.º 269º: 1 - uma actividade abusiva do representante; 2 - conhecimento ou dever de conhecer o abuso, por parte do terceiro; 3 - verificados os pressupostos anteriores, a cominação da ineficácia do negócio representativo, para o representado, nos mesmos termos do art.º 268º. (…) O abuso de representação não ocorre apenas nas situações em que o representante excede, formalmente, os poderes que lhe foram conferidos. É que, ainda na representação, está presente a necessidade de salvaguarda dos interesses do representado (mesmo quando a procuração é emitida no interesse comum de representante e representado ou, mais raramente, no interesse único do representante voluntário), no âmbito do fim para que foi passada a procuração (que se descortina atendendo ao negócio que determinou a respectiva emissão, se o houve) ou das indicações do representado. Assim, o abuso dos poderes de representação pelo representante - caso em que o negócio por ele celebrado é ineficaz em relação ao representado (art.ºs 268º e 269º) - existe também quando ele, "actuando embora dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado". "Há abuso, por exemplo, se o representado encarregou o procurador de lhe comprar uma casa para sua residência, e este, munido da procuração que lhe confere, genericamente, poderes para comprar, compra um prédio que não serve para aquele fim". Não obstante, "neste caso, só é aplicável o regime da ineficácia previsto no artigo anterior (268º) se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso. Em qualquer outro caso, o negócio considera-se validamente celebrado em nome do representado, sem prejuízo, claro, da responsabilidade que pode incidir sobre o procurador". Como que ocorre, "nas situações de abuso da representação um abuso de direito: um abuso do direito formalmente existente para representar outrem. A esta situação a lei reage como se os poderes formais não existissem. Segundo o disposto no art.º 269º são aplicáveis, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso, as regras do art.º 268º sobre a representação sem poderes". Certo que nos casos em que a procuração é subscrita também no interesse do representante (ou só no interesse dele) haverá que atender, sobretudo, ao teor do negócio que desencadeou a emissão da procuração e concedeu poderes representativos, porquanto o representante, em situações dessas, perde, praticamente, o poder de instruir o representante ou de lhe dar indicações. Na verdade, "o interesse do mandatário ou de terceiro no mandato só é relevante para efeitos da sua consideração como mandato in rem propriam ou de interesse comum, quando tenha sido valorado pelas partes em termos de o mandante ter acedido a que o contrato seja também um instrumento de tutela jurídica da posição do outro interessado". Mas é claro que "apesar do dominus não poder instruir o procurador, tal não significa que o procurador possa exercer os poderes de representação arbitrariamente e sem limite ou critério. O interesse do procurador não é um interesse subjectivo, que pode mudar conforme a sua vontade. O procurador não pode exercer os poderes que resultam da procuração de acordo com o seu livre arbítrio, tem que se conformar com o interesse que resulta da relação subjacente, não o podendo violar. Caso o procurador viole o interesse relevante, age em abuso de representação. Isso implica a aplicação do regime jurídico do art.º 269º do C.Civil, podendo ainda dar causa a responsabilidade civil"».
Aplicando estes ensinamentos ao caso dos autos, temos que, conforme resulta dos factos provados, os RR., ao venderem, em representação do A. marido, a si mesmos, o imóvel, agiram dentro dos poderes formais que lhe foram concedidos pela procuração. Com efeito, através dessa procuração, o A. marido conferiu-lhes, expressamente, poderes para venderem o imóvel aos próprios RR..
Por outro lado, não vemos que da matéria provada resulte que os RR. tenham actuado fora do âmbito da relação subjacente, ou em oposição a essa relação, ou sequer em violação de quaisquer deveres de lealdade. Pelo contrário, a outorga da procuração inseriu-se no âmbito do acordo previamente celebrado entre o A. marido e os RR., segundo o qual aquele apenas formalmente adquiriria (mediante contrato de compra e venda e de mútuo) a fracção autónoma, já que os verdadeiros compradores e mutuários seriam os próprios RR., os quais pagariam (e, efectivamente, pagaram) todas as prestações atinentes ao contrato de mútuo, pelo que, a final, foram os RR. quem suportou o preço da aquisição, pelo A. marido, do imóvel. Mediante o mesmo acordo, o A. marido havia-se ainda comprometido a, findo o pagamento do empréstimo bancário, outorgar escritura pública de venda a favor dos pais. A procuração passada pelo A. marido em 10/7/2023 visou, precisamente, possibilitar a concretização daquele acordo, com a transferência do direito de propriedade para os RR.. Portanto, a outorga da procuração visou essencialmente garantir os interesses dos RR. e não os do A., que sempre soube, atento o acordo que celebrou com os RR., que o imóvel viria a sair da sua esfera jurídica, não existindo qualquer contrapartida para tanto (a não ser a de que os RR. pagassem a totalidade das prestações do contrato de mútuo). É verdade que o remanescente do empréstimo apenas foi pago em 17/11/2023, quando o contrato de compra e venda foi celebrado por escritura pública de 13/11/2023 (portanto, quatro dias antes). No entanto, a diferença temporal de quatro dias é de tal modo reduzida que não pode considerar-se relevante e, aliás, em nada buliu com os interesses do A. marido (que eram os de não vir a ser responsabilizado pelo pagamento de um empréstimo destinado à aquisição de um imóvel do qual não usufruiria).
Temos, assim, de concluir que, face à relação jurídica subjacente, o A. tinha perfeita consciência de que a procuração - que não estabeleceu limites mínimos de preço para o imóvel - salvaguardava essencialmente os interesses dos RR., não se encontrando estes sujeitos, designadamente, à obrigação de fazerem constar do contrato de compra e venda um preço equivalente ao valor de mercado da fracção, porquanto - atento o acordo celebrado - já haviam sido os RR. a suportar o preço da aquisição da mesma fracção pelo A..
Além disso, também não se provou que os RR. tenham agido contra qualquer indicação ou instrução expressa do A., nem que tenham agido sem o conhecimento deste.
Tudo visto, não se encontra configurada a existência de qualquer abuso de poderes de representação, pelo que tem de improceder o pedido de declaração de ineficácia do contrato de compra e venda.
A este propósito, o tribunal recorrido, além de considerar que não existiu abuso de poderes de representação por parte dos RR., referiu, como argumento adicional, que, ainda que se considerasse preenchida a hipótese do art.º 269.º do Código Civil, sempre o pedido teria de improceder, por verificação de abuso de direito do A., nos termos do art.º 334.º do Código Civil.
Os recorrentes vêm invocar que a decisão é nula, nesta parte, por violação do princípio do contraditório ínsito no art.º 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, já que constituiu uma decisão-surpresa: trata-se de uma solução jurídica não considerada pelas partes, não lhes tendo sido dada oportunidade prévia de sobre ela se pronunciarem.
Ocorre que o conhecimento da invocada violação é totalmente inútil - mesmo que se considere que foi violado o princípio do contraditório, a nulidade só poderia ser declarada se influísse na decisão da causa (cfr. art.º 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil). Ora, como já vimos, o pedido de declaração da ineficácia da escritura pública de compra e venda deve improceder por falta de preenchimento dos pressupostos do art.º 269.º do Código Civil, pelo que a declaração da existência de abuso de direito por parte do A. é irrelevante, já que a decisão sempre seria a de improcedência do pedido.
Improcedem, pois, as conclusões de recurso relativas aos pedidos de declaração de nulidade, de resolução e de ineficácia do contrato de compra e venda celebrado mediante escritura pública de 13/11/2023. Do mérito da decisão recorrida (quanto à condenação dos AA. como litigantes de má fé):
De acordo com o art.º 542.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
Como se refere no Ac. TCAN de 30/4/200913, «Alberto dos Reis costumava caracterizar as lides, com referência à conduta do litigante, como lides cautelosas, lides simplesmente imprudentes, lides temerárias e lides dolosas – Código de Processo Civil Anotado, volume II, págs. 254 e ss. Ora, apenas esta última parece caber no conceito legal de litigância de má fé, embora a atitude dolosa [dolo directo, necessário, ou eventual] deva ser estendida até ao ponto de abranger a negligência grave, que convive paredes-meias, como é sabido, com o dolo eventual. Assim, para que se condene a parte como litigante de má fé não basta uma lide ousada ou uma conduta meramente culposa, sendo necessário, face ao manifesto gravame jurídico-social associado a tal condenação, que não haja quaisquer dúvidas em qualificar a conduta como dolosa ou gravemente negligente».
Portanto, para que se considere que a parte agiu como litigante de má fé, não basta o preenchimento objectivo de uma das alíneas do n.º2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil, sendo necessário que a(s) respectiva(s) conduta(s) lhe seja(m) subjectivamente imputável(is) a título de dolo ou de negligência grosseira.
«A presença do elemento subjectivo será então considerada não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade. Só quando o comportamento descrito nas diversas alíneas tenha sido praticado com dolo ou negligência grave, se poderá considerar que o sujeito processual praticou um ilícito típico. Se tal elemento subjectivo se ausentar, a conduta não poderá sequer ser considerada ilícita e o sujeito não poderá ser considerado como litigante de má-fé.
Para que o facto ilícito gere responsabilidade, é necessário que o autor tenha agido com culpa. Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta merecer a reprovação ou censura do direito. (...) E a conduta é reprovável, quando se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor, e pode revestir duas formas distintas: o dolo e a negligência ou a mera culpa.
O dolo, para efeitos de responsabilidade civil corresponde à intenção do agente de praticar o facto.
Relativamente ao dolo civil, não é essencial a intenção de causar um dano a outrem (animus nocendi), bastando a consciência do prejuízo, do carácter danoso do facto (o dolo genérico).
Ora, também ao nível processual se não afigura necessária a intenção de prejudicar a contraparte, bastando-se o dolo processual com a consciência da falta de fundamento da sua pretensão ou do carácter dilatório dos actos processuais que pratica.
A mera culpa ou negligência consiste na omissão da diligência exigível do agente.
No âmbito da mera culpa cabem os casos em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação (negligência consciente), e casos em que o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou ineptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verifica, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse a diligência devida (negligência inconsciente).
Deste modo, também ao nível da responsabilidade processual, o grau de diligência exigível ao litigante deverá partir da diligência do bom pai de família, ou seja, da diligência que um homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado previamente à propositura de uma acção judicial. Deverá, porém, atender-se ainda às particularidades do caso concreto, designadamente às qualidades e qualificações do agente e às circunstâncias em que se encontrava, desde logo porque a diligência exigida a um profissional qualificado na sua actividade, não poderá ser a mesma que se exige a um cidadão não qualificado na matéria .
O parâmetro de aferição do dever de diligência consubstancia-se assim: “a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento. Só um sujeito extraordinariamente desleixado age como agiu a parte”.
Definido o padrão por que se deverá medir o grau de diligência exigível ao litigante, cumpre referir que o seu grau de culpabilidade será tanto maior quanto mais intenso o dever de ter agido de outro modo, podendo, em consequência, a negligência com que actua ser considerada simples ou grave.
Assim, teremos negligência simples sempre que o sujeito processual omita a diligência do bonus pater familias. Por seu turno, actuará com negligência grave aquele que não obedeça às mais elementares regras de prudência, omitindo o mínimo de diligência que lhe teria permitido aperceber-se da falta de fundamento da sua pretensão ou da reprovabilidade do uso que faz do processo e dos meios processuais.
A negligência grave é entendida como uma “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um”.
Ligada ao elemento subjectivo, o legislador deixou ainda clara a desnecessidade quanto à prova da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objectivos ilegítimos (atuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade acerca do eventual desconhecimento da falta de fundamento da actuação processual ou dos meios negativos que é passível de provocar na tarefa de realização da justiça.
Sendo as partes normalmente representadas por técnico forense, pareceu desnecessário exigir o dolo quanto à natureza infundada da acção ou da pretensão, bastando que seja censurável o seu eventual desconhecimento, o que se compreende perfeitamente tendo em conta as habilitações exigidas para o exercício do mandato judicial»14.
A decisão sobre se existe, ou não, litigância de má fé tem de basear-se nos factos provados e no seu confronto com a conduta processual da parte.
O tribunal a quo discorreu, a propósito da litigância de má fé, da seguinte forma:
«(…) No caso em apreço, verifica-se que os Autores não só deduziram pretensão cujo falta de fundamento conheciam (sabiam que o apartamento era exclusivamente dos Réus e que nunca nada pagaram), tendo alterado a verdade dos factos e o Autor, inclusive, mentido em audiência, como chegou a admitir.
Justifica-se, pois, em relação aos Autores, o juízo de reprovação em que a condenação como litigante de má-fé se traduz, já que quis, deliberadamente, omitir tal facto, querendo que o Tribunal acreditasse, ao ler a sua petição inicial, que os Réus, em manifesto abuso de representação, venderam o apartamento a si próprios.
(…)
Na condenação em multa não se pode perder de vista a expressão económica da causa em que tal má-fé foi cometida. Ademais, convém ponderar, para a sua justa fixação, as condições económicas daquela que será sancionado com multa; condições económicas a extrair e deduzir dos elementos dos autos e que, à míngua de elementos concludentes, deve respeitar o princípio da proibição do excesso, sem necessidade de recorrer a uma específica averiguação sobre a situação de má-fé.
Nos termos do artigo 27º, nº3 do Regulamento das Custas Processuais, tal multa deverá ser fixada numa quantia entre 2 e 100 UC, sendo que a unidade de conta se encontra fixada em 102,00€ (artigo 5º nº2 do Regulamento das Custas Processuais e Decreto-Lei nº 323/2009, de 24 de dezembro).
Assim, tudo visto e ponderado, e tendo ainda em consideração que o comportamento dos Autores obrigou à realização de uma audiência de julgamento, usando de proporcionalidade e razoabilidade, condenam-se os mesmos numa multa que se fixa em 12 UC».
Ora, desde logo, constata-se que, na petição inicial, os AA. alegaram que os RR. venderam o imóvel a si próprios, abusando dos poderes de representação que lhes foram concedidos, mas omitiram a existência do acordo - essencial para a decisão - a que aludem os pontos 8 a 13, 15 a 17 e 20 a 23 dos factos provados. Portanto, omitiram que o A. marido se tinha obrigado a transmitir o direito de propriedade sobre o imóvel aos RR. e que foram estes quem, mediante o pagamento integral das prestações do contrato de mútuo, pagaram o preço da aquisição do imóvel pelo A.. Aliás, os AA. atreveram-se mesmo a alegar que pagaram aquelas prestações, quando se provou que as mesmas foram suportadas pelos RR.. Trata-se de factos pessoais, que os AA. tinham, forçosamente, de conhecer, o que significa que alteraram conscientemente a verdade dos factos, agindo, necessariamente, com dolo ou, pelo menos, com negligência grosseira. Conhecendo - como os AA. tinham de conhecer - os factos que se vieram a provar, um homem medianamente prudente e cuidadoso não teria intentado a presente acção, por ser evidente a sua falta de fundamento.
Terão, assim, os AA. de ser condenados como litigantes de má fé.
De acordo com o art.º 27.º n.ºs 3 e 4 do Regulamento das Custas Processuais:
«3 - Nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.
4 - O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste».
Como se refere no Ac. RC de 16/3/202115, «a multa por litigância de má fé, como qualquer outra sanção, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correcção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo», sabendo-se «que a multa a aplicar só terá verdadeiro efeito sancionatório e punitivo se adequada à gravidade da actuação do litigante prevaricador e às suas possibilidades patrimoniais».
No caso dos autos, nada se apurou relativamente à situação económica dos AA., mas é certo que não beneficiam de apoio judiciário, pelo que certamente não estarão em situação económica difícil. Por outro lado, através da acção, pretendiam obter uma vantagem de € 200.000,00, correspondente ao valor de mercado do imóvel. Acresce que a sua conduta assumiu especial gravidade no desenrolar do processo, já que incidiu sobre factos essenciais à decisão e obrigou à produção de prova, procurando os AA. convencer o tribunal de factos que bem sabiam serem falsos.
Assim, recorrendo a critérios de proporcionalidade concretizados nos princípios da adequação, necessidade e justa medida16, afigura-se equilibrada a multa de 12 UC fixada em 1.ª instância.
Nada há, assim, a alterar na decisão recorrida relativamente à litigância de má fé, pelo que, também nessa vertente, improcede a apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes – arts. 527.º do Código de Processo Civil e 6.º n.º 2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 07-01-2025
Alexandra de Castro Rocha
Edgar Taborda Lopes
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes
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1. A este respeito pode ver-se, com grande desenvolvimento, o Ac. RL de 17/10/2017, proc. 585/13, disponível em http://www.dgsi.pt, onde se refere, além do mais, que a verdade apurada no processo não é absoluta, antes se baseando em «duas regras fundamentais:
(i)-Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii)-Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”.
“Este critério da probabilidade lógica prevalecente (…) não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis. (…) O que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis. Todavia, pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como “verdadeira”. Pelo que para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica».
2. A este respeito pode ver-se, ainda, o Ac. RC de 27/5/2014 (proc. 1024/12, disponível em http://www.dgsi.pt): «Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o (s) facto (s) concreto (s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente».
3. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 197 -198; a este propósito pode ver-se ainda, com interesse, o Ac. STJ de 19/2/2015, proc. 299/05, disponível em http://www.dgsi.pt.
4. Cfr. A.U.J. do Supremo Tribunal de Justiça nº12/2023.
5. António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 200-201.
6. Proc. 3504/19.8T8FNC.L2, Rel. Cristina Silva Maximiano, ao que sabemos inédito; sublinhados nossos.
7. Proc. 88/21.0T8AGH.L1, Rel. Ana Rodrigues da Silva, ao que sabemos inédito.
8. E não por ambos os AA., conforme resulta de documento autêntico - escritura pública que constitui o documento n.º 1 da contestação -, impondo-se a pertinente rectificação, em conformidade.
9. Claramente, ocorre lapso manifesto, pretendendo o tribunal recorrido dizer 18/11/2023.
10. Cfr. o que já a propósito explanámos supra e, ainda, o Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 7/4/2005, proc. 05B175, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bf439396e452a7e08025700700598d39?OpenDocument↩︎
11. Cfr. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I - Parte Geral, Almedina, 2023, pág. 788.
12. Proc. 03B2201, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/7BB8FC1AD300F68880256DF00040C379
13. Proc. 01657/08, disponível em http://www.dgsi.pt.
14. Cfr. Ac. RL de 16/12/2021, proc.12367/19, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/740bbf649b93cf1e802587c00052110a?OpenDocument .
15. Proc. 2504/20, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/1e34462400a3af4d802586cf0035e3f1?OpenDocument
16. Cfr. Salvador da Costa, As Custas Processuais, 6.ª ed., Almedina, 2017, págs. 226 e ss.