MIGRAÇÃO DE PROVA ENTRE PROCESSOS PENAIS
VALORAÇÃO DE ANTERIOR DEPOIMENTO DO CO-ARGUIDO
Sumário


I – É admissível a valoração como prova num processo penal de um meio de prova, incluindo de jaez declarativo ou testemunhal, produzido no âmbito de outro processo penal, desde que a junção se opere em suporte documental devidamente certificado pela entidade competente (certidão judicial do auto ou ata).
II – Nesse caso, as regras processuais legais aplicáveis de molde a conferir ou não validade probatória a esse meio de prova e respetivo alcance serão as concernentes ao meio de prova documentado – v.g., declarações de sujeito processual ou depoimento de testemunha – e não as que regem a prova por documento.
III – O depoimento prestado como testemunha noutro processo penal por quem é arguido nos presentes autos, não pode aqui ser valorado como se de um mero documento se tratasse, porquanto o que verdadeiramente se está a apreciar é um testemunho, cuja prestação e valoração sempre teria de se sujeitar aos normativos legais da prova testemunhal, nomeadamente ao disposto nos arts. 355º e 356º do Código de Processo Penal.
IV – In casu, está vedada a valoração da prova em questão visto que o depoente nesse outro processo, em que assumia a qualidade de testemunha, é arguido nos presentes autos e, como tal, para além de estar legalmente impedido de depor como testemunha, goza do direito de se remeter ao silêncio, não prestando declarações sobre os factos (cf. arts. 61º, nº1, al. d) e 343º, nº1, do CPP), acrescendo que a audiência de julgamento até decorreu na sua ausência, nos termos e para efeitos do estatuído no art. 334º, nº2 do CPP.
V – Conceder valor probatório nos presentes autos ao depoimento prestado pelo ora coarguido como testemunha naqueloutro processo equivaleria a uma violação ostensiva dos princípios da imediação e oralidade, do contraditório e do direito ao silencio do arguido.
VI – Ainda que se pretendesse (incorretamente) considerar aquele “depoimento” como declarações prestadas por (co)arguido, igualmente as mesmas não podiam ser legalmente valoradas. Primeiramente, porque não pode valer como meio de prova as declarações de um coarguido em prejuízo de outro coarguido quando, a instâncias deste, o primeiro se recusar a responder, no exercício do direito ao silêncio, sendo que o pretenso declarante nem sequer esteve presente na audiência de julgamento. Ademais, não foi produzida outra prova que corroborasse as “declarações” do aqui coarguido quanto à imputada atuação da coarguida.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:
           
I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 205/22...., do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Juízo de Competência Genérica de Vila Pouca de Aguiar, por sentença proferida e depositada em 28.02.2024 (referências ...93 e ...91, respetivamente), foi decidido:

“Pelo exposto, o Tribunal julga a acusação totalmente procedente, por provada, e consequentemente, decide:
- Condenar a arguida AA pela prática, como instigadora e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo a quantia global de € 1.120,00 (mil cento e vinte euros);
- Condenar o arguido BB pela prática, como autor imediato e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art.º 360.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros);
- Condenar os arguidos no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 2 UC’s e nas demais custas do processo, nos termos do disposto nos art.ºs 513.º, n.º 1 e 2 e 514.º do Código de Processo Penal e art.º 8.º, n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.”
 
I.2 Não se conformando com a sobredita decisão, dela veio a arguida CC interpor o presente recurso, cuja motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório [referência ...22] – transcrição:

“1 - O recurso abrange a questão da condenação da arguida AA, incidindo sobre a matéria de facto e de direito.
2 -  Com o devido respeito, tendo em conta a matéria de facto carreada para os autos, e tendo em atenção as regras da experiência comum, haverá, salvo o devido respeito, insuficiência notória para a decisão da matéria de facto e de direito dada por provada, contradição de fundamentação e erro notório na apreciação da prova.
3 - O Tribunal recorrido deu como provada, no que ao presente recurso interessa, a matéria dos pontos 5 e 10 a 15, que ora não se transcreve, por questões de economia processual, mas que, desde já, a ora recorrente impugna, pois, a prova produzida não é suficiente para sustentar a referida matéria fáctica.

4 - Além do mais, como resulta inequívoco dos depoimentos prestados em sede de julgamento, não pode ser imputada à arguida qualquer prática dos factos de que vem acusada, pois nenhuma testemunha confirmou os factos descritos na acusação pública, pois nunca os presenciaram.

5 - Para fundamentar a sua decisão, o Tribunal baseou-se, particularmente, nas declarações do arguido, prestadas em sede de julgamento no âmbito do processo 217/20...., visto que o arguido BB foi, no presente processo, julgado na ausência, que, diga-se, não permitiram qualquer tipo de defesa por parte da arguida.
 
6 - Não pode o Tribunal a quo não dar por provado e não considerar relevante para a boa decisão da causa o facto de, desde que o arguido BB deixou a residência da ora arguida, em início de julho de 2021, que as relações entre ambos esmoreceram, sendo patente o conflito familiar existente entre aquele e a sua enteada, ora arguida.
7 - Da simples pesquisa à base de dados do Tribunal, constata-se que ambos os arguidos são e foram intervenientes em vários outros processos judiciais, que correram e correm termos neste Juízo, sendo manifestamente evidente o clima de conflituosidade existente entre eles e demais familiares, sendo que as declarações do arguido produzidas em 07/03/2022 já foram prestadas em clima de muita animosidade.
8 - Todos os processos judiciais findos e pendentes são manifestação do extremado e indissolúvel conflito que envolve os arguidos e os restantes elementos desta família, pelo que a factualidade em crise não pode ser apreciada e devidamente avaliada sem que se tenha em conta esta mesma realidade, a qual é suscetível de, na ausência de qualquer outra prova direta dos factos imputados, condicionar a credibilidade da posição assumida por cada um destes sujeitos processuais, nomeadamente, da alteração de postura e da imputação feita pelo arguido BB.
 9 - Como se pode verificar dos depoimentos prestados pelas demais testemunhas, as mesmas não têm conhecimento de facto sobre a factualidade dada por provada, mais concretamente a alegada instigação da arguida para que o arguido prestasse falsas declarações, que ora se impugna, nomeadamente os pontos 5 e 10 a 15 da sentença, que teriam de ter sido dados por não provados.
 10 - Nunca as testemunhas afirmaram qualquer tipo de circunstancialismo que fizesse o Tribunal a quo dar por provada a matéria de facto do ponto 5 da sentença, mais concretamente, que a arguida AA “aproveitando-se da relação de dependência que mantinha com o arguido BB (…) pediu-lhe para ser testemunha no âmbito do processo”, conclusão que se impugna, pois, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, nada nos autos faz crer qualquer relação de dependência ou atuação de instigação.
11 - Por outro lado, apenas o arguido BB refere, em sede do depoimento prestado em audiência de julgamento, no âmbito doutro processo nº 217/20...., que não permitiu contraditório ou defesa, e já depois de sair de casa da arguida, local onde mantinha toda a sua autonomia de vida, que foi instigado pela arguida a mentir contra a irmã daquela.
12 - Certo é que nessa altura, em 07/03/2022, o arguido BB estava “de costas voltadas” para com a arguida AA, com quem mantinha uma relação bastante conflituosa e pautada por diversas discussões, tendo, inclusive, apresentado queixa-crime contra esta, em 24/12/2021, pouco tempo antes de prestar declarações em sede de julgamento, por furto (cf. Processo Comum Singular nº 142/21....).
 13 - Neste processo nº 142/21...., foi pela própria Digníssima Procuradora da República deduzido um despacho de arquivamento, no qual aquela denota e assume a animosidade e a conflitualidade existente entre ambas as partes, o qual aqui se junta e dá por reproduzido (doc. 1), sendo relevante para a descoberta da verdade material e justa decisão da causa, ao abrigo do artigo 340º do CPP.
14 - Como refere a Digníssima Procuradora da República, no âmbito daquele processo 142/21...., que aqui se transcreve, com a devida vénia, “na ausência de outros elementos e perante duas versões divergentes, importava aquilatar se existiam nos autos elementos objectivos de prova que permitissem suportar, de modo convincente, ou a versão do assistente, ou a versão da arguida.”
 15 - O depoimento do arguido BB, prestado em 07/03/2022, não foi credível, não se aceitando que o mesmo tenha sido valorizado, uma vez que o mesmo não assumiu a conflitualidade que detinha perante a arguida, que o mesmo foi, igualmente, genérico, pouco concretizado e vago.
 16 - Não se pode olvidar e deixar de relevar que o arguido BB estava de mal com a arguida AA, aquando do depoimento prestado, e que, potencialmente, queria agir contra ela e a prejudicar, bem sabendo que a mesma, com o seu “desmentido”, seria altamente prejudicada, lesada e afetada, como era seu intuito. 
 17 - O depoimento das testemunhas foi inócuo para prova da factualidade dada por provada nos pontos 5 e 10 a 15 da sentença, pois como refere o Tribunal a quo na sentença a prova de tais factos “resultou da ponderação iter processual dos autos com o nº 217/20....”, sendo que tal prova nunca mereceu contraditório por parte da arguida AA, visto que foi prestado em sede de outro processo.
18 - Notoriamente, o Tribunal a quo tentou justificar a teoria apresentada pelo Ministério Público na acusação pública, acolhendo-a sem mais, não tendo sido produzida qualquer prova naquele sentido ou fundamentando-se de forma sustentada e estribada.
19 - Perante esta falta de provas concretas, já que os depoimentos prestados são predominantemente superficiais, escassos, insuficientes, pleonásticos e prolixos, era impossível o Tribunal a quo ter a certeza de que a arguida AA instigou o arguido BB a mentir, atenta a relação de dependência entre ambos, que não se provou, quando muito poderia ter ficado a dúvida, o que nem se concede, mas na dúvida deveria a arguida AA ter sido absolvida.
 20 - Não se compreende como o Tribunal a quo deu por provado que a arguida praticou o crime de falsidade de testemunho, de que foi condenada, quando nenhuma das testemunhas refere quaisquer atos praticados pela arguida, suscetíveis de se enquadrarem no crime em causa, existindo, apenas, as declarações do arguido, que já se demonstrou estar altamente desavindo com aquela, e que tudo faria para a prejudicar, com um claro erro notório na apreciação da prova.
 21 - Assim, a prova produzida nos autos não é suficiente para sustentar a matéria fáctica dada por provada, devido às falhas na prova produzida, que é eminentemente lata e desprovida de consistência objetiva, que sustente a acusação pública, pelo que os factos dos pontos 5 e 10 a 15 da sentença deveriam ter sido dados por não provados.
 22 - Fica claro que existe uma insuficiência de matéria probatória e uma incorreta ponderação da prova produzida, pelo que era impossível ao Tribunal a quo ter a certeza de que a arguida praticou o crime de falsidade de testemunho, como instigadora, quanto muito poderia ter ficado a dúvida, mas na dúvida deveria esta ter sido absolvida, em respeito pelo princípio in dubio pro reo.               
 23 - Salvo o devido respeito, a prova produzida e a devida aplicação do princípio in dubio pro reo devia ter conduzido à absolvição da arguida, ora recorrente, havendo, assim, fundamentos para o presente recurso, nos termos do artigo 410º, nº 2, do CPP, nomeadamente a alínea c), relativa a erro notório na apreciação de prova.
 24 - Deste modo, os pontos 5 e 10 a 15 dos factos provados da sentença teriam necessariamente de ter sido considerados não provados, caindo por terra a teoria vertida na acusação pública.
 25 - Houve, pois, errada aplicação da lei substantiva e processual e violação das normas legais aplicáveis, nomeadamente os artigos 18º, 20º e 32º da CRP e os artigos 14º, 26º, 128º, 132º, 360º do Código Penal.

Nestes termos, e nos melhores de direito, deve ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que absolva a arguida AA, assim se fazendo, como sempre, sã JUSTIÇA.”
     
Na primeira instância, o Digno Magistrado do Ministério Público, notificado do despacho de admissão do recurso formulado pela arguida CC, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua resposta defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida [referência ...33].

Formulou as seguintes conclusões:

“I - A prova produzida, apreciada, ponderada e valorada pelo Tribunal a quo segundo os cânones legais, empresta a todo o processo decisório de formação da convicção do julgador, foros de justeza, correcção e comportabilidade juridicamente atendíveis.
II - A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vício que inquine a sua validade quer formal quer substancial.
III - A recorrente não cumpriu o ónus de especificação que a lei processual lhe impunha quanto à impugnação da matéria de facto, pelo que, por esta via recursória, a alteração da matéria de facto está votada ao fracasso.
IV - De acordo com as leis da arte de julgar, não seria sustentável que no espírito do Tribunal a quo se tivesse instalado uma dúvida séria, honesta e com força suficiente para se tornar um obstáculo intelectual à aceitação da versão dos factos prejudiciais imputados à recorrente pelas razões apontadas na própria sentença recorrida face aos elementos probatórios que demonstram a ocorrência dos factos dados como provados.”

I.3 Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto deduziu parecer, nos termos do art. 416º, nº1, do CPP, em que conclui [referência ...43]:
«[…] a matéria de facto dada como provada e especificamente contestada pela arguida deverá manter-se intangível já que não se verifica um qualquer erro de julgamento que importe reparar, não tendo a recorrente apresentado quaisquer provas que imponham decisão diversa da fixada, como preceitua o art.º 412, n.º3, al. b) do CPPenal, até porque não há qualquer razão para aplicação em seu favor do princípio in dubio pro reo pois que o apelo que a ele faz decorre da sua apreciação da prova descobrindo nela dúvidas que o julgador não teve, agindo, assim, em confronto com o disposto no art.º 127 do CPPenal, não se verificando um qualquer dos vícios previstos no art.º 410, n.º2 do CPPenal, por o texto da decisão os não evidenciarem. Deve ser confirmada integralmente a decisão recorrida.»
 
Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi deduzida resposta ao sobredito parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

*
II – Âmbito objetivo do recurso (questões a decidir):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)[1].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dirimir reportam-se a:

A) Existência ou não de erro notório na apreciação da prova [art. 410º, nº2, al. c), do CPP].
B) Erro de julgamento quanto à factualidade dada como provada nos pontos 5 e 10 a 15.
C) Violação do princípio in dubio pro reo.

III – Apreciação:       

III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelo ajuizado recurso, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e, bem assim, a sua fundamentação para tal decisão da matéria de facto.

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, na parte que ora releva (transcrição):

Da acusação pública:
1. A arguida AA é irmã de DD e ambas são enteadas do arguido BB.
2. A arguida AA mantém com a sua irmã DD uma relação conflituosa, sendo ambas intervenientes em vários processos judicias, com queixas-crime de parte a parte.
3. Desde data não concretamente apurada até, pelo menos, ../../2021, o arguido BB residiu com a arguida AA numa habitação sita na Estrada Nacional n.º ...06, na Rua ..., em Ribeira ..., e era esta quem lhe prestava os cuidados que aquele, fruto da sua condição de saúde e idade já avançada, ia carecendo.
4. Correu termos nos Serviços do Ministério Público deste Juízo de Competência Genérica o processo n.º 217/20...., o qual teve origem com a queixa apresentada em ../../2020, pela arguida AA, na qualidade de representante legal da sua filha EE, à data com 13 anos de idade, contra a sua irmã DD por esta ter dito, em várias ocasiões e a pessoas distintas, que a menor se andava a prostituir em Ribeira ....
5. Em data não concretamente apurada, mas situada entre ../../2020 e ../../2021, aproveitando-se da relação de dependência que mantinha com o arguido BB, a arguida AA pediu-lhe para ser testemunha no âmbito do processo n.º 217/20.... e depor a seu favor, solicitação a que o arguido BB aderiu.
6. Foi então que, no dia ../../2021, nas instalações dos Serviços do Ministério Público deste Juízo de Competência Genérica, no âmbito de tal processo, o arguido BB foi ouvido e, na qualidade de testemunha, perante funcionária judicial, depois de advertido de que deveria responder com verdade às perguntas que lhe fossem dirigidas, declarou que ouviu DD apodar a filha de AA, EE, de puta. Mais declarou que quando esteve a viver em sua casa, até há dois anos atrás, DD disse-lhe várias vezes que a menor já sabia fazer sexo e que se prostituía, assim como também ouviu várias pessoas a comentar que DD dizia que a menor era puta e se prostituía. Mais disse que no dia 02 de abril de 2021, pelas 17h30m, quando estava a lanchar na companhia de AA e da menor EE, a sua enteada DD passou de carro, acompanhada pelo seu marido e na direcção de AA disse “ó minha puta do caralho, puseste-me em tribunal, mas agora hei dê-te matar”, gesticulando com os braços.
7. DD veio a ser acusada pela prática dos crimes de ameaça agravada, injúria e difamação, previstos e punidos respetivamente pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, alínea a), 181.º, n.º 1 e 180.º, n.º 1, todos do Código Penal.
8. No dia 07 de março de 2022, pelas 14h00m, nas instalações deste Juízo de Competência Genérica, decorreu a audiência de discussão e julgamento do processo suprarreferido, no qual o arguido BB prestou novamente declarações como testemunha.
9. O arguido BB foi advertido pela Meritíssima Juíza que presidia à audiência de que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe eram colocadas e foi advertido das consequências penais em que incorreria se faltasse a esse dever de falar com verdade, tendo prestado juramento.
10. No início do seu depoimento, o arguido BB declarou pretender retratar-se das declarações que prestou na fase de inquérito, tendo declarado que as mesmas não correspondem à verdade, tendo a tal sido instigado pela arguida AA, em casa de quem, à data dos factos residia e de quem se encontrava a cargo, porque doente. Mais declarou que, ao contrário do que tinha afirmado anteriormente, no dia 02 de abril de 2021, não viu nem ouviu DD dirigir qualquer expressão à arguida AA.
11. O arguido BB sabia que as declarações que prestou no inquérito não correspondiam à verdade e mentiu com o propósito de favorecer a arguida AA e reforçar as suspeitas que recaíam sobre DD.
12. Prestou um depoimento não verdadeiro, no âmbito de um Inquérito Criminal, perante funcionária judicial, devidamente advertido de que deveria responder com verdade às perguntas que lhe fossem dirigidas, estando ciente de que as suas palavras valiam como meio de prova.
13. Ao adotar a conduta acima descrita, de determinar o arguido BB a prestar declarações que sabia não corresponderem à verdade, a arguida AA agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o objetivo de que BB prestasse um depoimento falso, como efetivamente veio a suceder, resultado este que constituía, precisamente, o seu objetivo, bem sabendo que desse modo o fazia incorrer em ilícito criminal, o que apenas sucedeu por o ter acicatado a depor a seu favor.
14. Ao adotar a conduta acima descrita, acicatando tal pedido, prestando em fase de inquérito declarações que sabia não corresponderem à verdade, ciente que não podia faltar à verdade ao Tribunal, o arguido BB agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de deturpar o apuramento da verdade e da realização da justiça, bem sabendo que prejudicava o interesse do Estado na boa administração da justiça e que a sua retratação, por ter sido produzida já após a dedução de um despacho acusatório, não poderia considerar-se tempestiva.
15. Atuaram bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.”

Fundamentou a predita decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos (transcrição):

«O Tribunal formou a sua convicção, para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada, na análise crítica e conjugada da totalidade da prova produzida em audiência de julgamento, valorada à luz das regras de experiência comum e juízos de normalidade, de acordo com o disposto no art.º 127.º do Código de Processo Penal.
A convicção positiva do Tribunal a propósito da generalidade dos factos pelos quais os arguidos vêm acusados, assentou, em larga medida, na análise do teor da certidão de fls. 2 a 19 verso, extraída do processo n.º 217/20.... que correu termos neste Juízo de Competência Genérica, donde consta cópia certificada da sentença proferida nos mencionados autos (fls. 2 a 11), bem como da ata de audiência de julgamento onde o arguido BB foi ouvido na qualidade de testemunha (fls. 12 a 17) e dos autos de declarações prestadas pela arguida AA em sede de inquérito (fls. 18 e 19). O Tribunal tomou ainda em consideração o auto de denúncia de fls. 78-79, a acusação pública e particular de fls. 80 a 89, o depoimento prestado pelo arguido naqueles autos de fls. 21 verso a 22 do apenso A e a gravação do depoimento prestado pelo arguido em sede de audiência de julgamento, tudo por reporte aos autos com o n.º 217/20..... Mais se valorou a prova testemunhal produzida em sede da audiência de julgamento, concretamente das testemunhas FF, DD, GG, HH e II nos termos que infra se explanarão (já que a arguida se remeteu ao silêncio quanto aos factos que lhe são imputados pela acusação).
Em concreto, a factualidade descrita em 1. e 2. fora atestada, no essencial, pelas diversas testemunhas inquiridas – com exceção da testemunha FF que pouco ou nada sabia neste conspecto –, resultando ainda à saciedade dos preditos elementos documentais tal circunstancialismo.
Para prova do facto mencionado em 3. concatenou-se, uma vez mais, a antedita prova testemunhal – designadamente, as declarações das testemunhas apresentadas em juízo pelo arguido, por terem demonstrado razão de ciência nesta matéria – e documental, realçando-aqui o auto de inquirição de fls. 21 verso e 22 do Apenso A, datado de 20.05.2021, do qual se extrai que na mencionada data o arguido BB residia com a arguida AA.
Por seu turno, a factologia plasmada em 4. a 10. resultou da ponderação do iter processual dos autos com o n.º 217/20.... cujos elementos essenciais constam dos presentes autos nos termos supramencionados, os quais comprovam, de entre o mais, a sua origem (denúncia apresentada pela ora arguida na qualidade de legal representante da filha, menor de idade), a dedução de acusação contra DD e as declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito e audiência de julgamento e respetivas advertências legais realizadas nesse âmbito.
Neste particular, cumpre realçar o facto de o Tribunal ter ficado plenamente convencido de que, efetivamente, as declarações prestadas pelo arguido em sede de inquérito nos identificados autos n.º 217/20.... tiveram na sua génese a atuação da arguida AA, que aproveitou a sua relação de “cuidadora” do visado para o convencer a depor em seu favor, faltando à verdade.
Ora, não se olvidam as relações de conflito existentes entre os vários intervenientes processuais – arguidos e testemunhas –, que exigiram especiais cautelas na apreciação da sua credibilidade, o que se fez. No entanto, e à semelhança do que sucedeu na sentença proferida em 04.04.2022, não podemos deixar de atribuir credibilidade às declarações prestadas naquela sede pelo ora arguido BB – ali na qualidade de testemunha – por não ser minimamente plausível que admitisse ter prestado falsas declarações em sede de inquérito apenas para prejudicar a arguida, sujeitando-se (como sucedeu) a ser julgado criminalmente por tais factos. Com efeito, é muito mais verosímil à luz dos ditames da experiência comum e da normalidade dos acontecimentos a versão por si aventada naquela audiência de julgamento, que por isso se deu como assente. Acresce que tal relação de dependência foi corroborada pelas testemunhas inquiridas. 
Relativamente ao elemento subjetivo, entendeu o tribunal que coligados, concatenados e analisados os factos objetivos provados supramencionados e convocando, ademais, as regras da experiência comum e os critérios de normalidade é forçoso concluir pela prova dos factos descritos em 11. a 15.
Senão vejamos. 
Como é consabido, dificilmente a comprovação da vontade interna do agente resulta de prova direta, o que apenas ocorrerá quando haja confissão do arguido.
Consequentemente, quando tal confissão não suceda, há-de a mesma ser extraída lançando mão da prova indireta, lida a partir do comportamento exterior do agente plasmado nos factos objetivos provados, por forma a perceber-se, em face dos mesmos, o modo como o agente se determinou.
No caso concreto dos autos, revisitada a factualidade provada tradutora do comportamento exterior dos arguidos, não pode deixar de se concluir que: o arguido BB quis faltar à verdade em sede de inquérito, mentindo com o propósito de favorecer a arguida, bem sabendo que as suas declarações valiam como meio de prova e que desse modo praticava um ilícito criminal; e que a arguida AA sabia que ao convencer o arguido BB a faltar à verdade em sede de inquérito, estava a determiná-lo a incorrer em ilícito criminal, querendo fazê-lo de forma livre, deliberada e consciente, o que conseguiu.
[…]»

III.2 – Análise e decisão das concretas questões suscitadas pelo recurso:

III.2.1Erro notório na apreciação da prova [art. 410º, nº2, alínea c), do CPP]:

A arguida/recorrente CC invoca que enferma de erro notório a apreciação da prova produzida nos autos operada pelo Tribunal a quo que conduziu a que fossem dados como provados, quanto a ela, os factos constantes dos pontos 5 e 10 a 15.
Isto porque, sustenta, as testemunhas inquiridas não tinham conhecimento sobre o alegado facto de ter sido a ora recorrente a solicitar ao coarguido BB que prestasse falsas declarações no âmbito do processo nº 217/20...., em que este era testemunha e aquela assistente. Assim, o Tribunal, nesse aspecto, baseou-se apenas no depoimento que foi prestado na audiência de julgamento daquele outro processo, o qual não é credível, atendendo à conflituosidade e animosidade existente já naquela data entre os ora coarguidos e por ser genérico e vago, acrescendo que a recorrente não teve oportunidade ali de exercer o contraditório.
Vejamos.

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte aqui pertinente]:

“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
[…]
c) Erro notório na apreciação da prova.”

Tal vício há de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, isto é, sem apelo a outros elementos externos à decisão, designadamente prova gravada ou documentada.
O erro notório na apreciação da prova «é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência»[2].
Como é jurisprudência pacífica[3], só há erro notório na apreciação da prova quando for de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão (não sendo admissível a sua demonstração através de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo).
Este vício da decisão verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado ou não provado um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, Processo nº 72/11.2GDSRT.G1, disponível in www.dgsi.pt, «Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.»

Assim percecionado, entendemos que no caso sub judice, atendo-nos, como se impõe ao texto da decisão recorrida, não se verifica o invocado vício, pois não se deteta na sentença recorrida, ao nível da apreciação da prova, qualquer erro notório ou manifesto.
Lida a motivação da sentença recorrida no que tange à decisão sobre a matéria de facto constante dos factos provados nos pontos 5 e 10 a 15, designadamente no que tange à imputada atuação da arguida AA a título de instigação do comportamento adotado pelo coarguido BB consubstanciador da prestação de falsas declarações como testemunha ajuramentada, com o fito de beneficiar o interesse processual daquela no Processo nº 217/20...., em que era assistente, não decorre para qualquer cidadão medianamente formado que a convicção do Tribunal, face ao teor da prova ali convocada e valorada à luz das regras da experiência e da lógica, devia ter sido necessariamente formada em sentido contrário ao adotado, isto é, de que a coarguida não interveio na formação da vontade do declarante.   
A narrativa plasmada na fundamentação não noticia um notório e irremediável lapso na avaliação da prova testemunhal e documental invocada, desse modo acarretando um juízo probatório manifestamente incongruente, infundado ou arbitrário.
O juízo pugnado pelo Tribunal a quo não afronta de modo evidente as regras do normal suceder e a mais elementar lógica nem é impreterivelmente contrariado pelo sentido da prova produzida.  
Logo, que não se verifica o alegado vício do erro notório na apreciação da prova.

III.2.2 – Impugnação ampla da matéria de facto. Erro de julgamento quanto aos factos provados constantes dos pontos 5 e 10 a 15:

Por via do recurso interposto, a arguida recorrente CC impugna a decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para efeitos do disposto no art. 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, alegando terem sido incorretamente julgados os pontos 5 e 10 a 15 dos factos provados, na parte em que se imputa à recorrente uma atuação suscetível de consubstanciar instigação à conduta criminalmente punível cometida pelo arguido BB, como autor material de um crime de falsidade de testemunho, porquanto não foi produzida prova suficiente desse facto, pelo menos sem existência de dúvida séria que a devia ter beneficiado. Assim, no seu entendimento, os mencionados factos deviam nessa parte ter sido considerados como não provados.

Preceitua o art. 412º do CPP, na parte que ora releva:

“1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
[…]
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
[…]
6 – No caso previsto no nº4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”  

Como tem entendido, sem discrepância, o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.
Nessa tarefa de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso intrometem-se necessariamente fatores como a ausência de imediação e da oralidade – sendo que, como é sobejamente sabido, a imediação e a oralidade constituem princípios estruturantes do direito processual penal português. 
Em conformidade, a ausência de imediação e oralidade - dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações - determina que o tribunal de segunda instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º][4].
Com efeito, quando está em causa a questão da apreciação da prova cumpre dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Como loquazmente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, acessível em www.dgsi.pt:
«São os Juízes de 1.ª instância quem de forma direta e «imediata» podem observar as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas.
A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do Código de Processo Penal).»
Ou seja, é comumente aceite que a (re)apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não implica a realização de um “segundo julgamento”, agora baseado na prova gravada, em que o tribunal ad quem aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse. Como se refere, de modo impressivo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015, processo 441/10.5TABJA.E2, acessível em www.dgsi.pt, «O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância. Os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.»

Relevantes ainda as seguintes palavras de Paulo Saragoça da Matta[5]:
«Ao Tribunal de recurso não cabe repetir a produção de prova havida, nem a prova anteriormente produzida na instância recorrida perde seja o que for de vivacidade. Pelo contrário, o Tribunal de recurso limitar-se-á a aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância.»  
Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso “obrigatório” decidir de forma distinta.
Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1, acessível em www.dgsi.pt.

Retornando ao caso concreto.
Conforme adiantado pela recorrente, para prova da factualidade cujo julgamento é por ela contestado o Tribunal a quo estribou-se essencialmente no teor dos depoimentos prestados na qualidade de testemunha, sob juramento legal, pelo ora coarguido BB no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 217/20...., em sede de inquérito e em audiência de julgamento – encontra-se junta a fls. 21 verso a 22 do Apenso A certidão do primeiro depoimento ali prestado pelo arguido, encontrando-se igualmente disponível nos autos a gravação do depoimento por ele prestado no decurso da audiência de julgamento –, em que ele asseverou que foi a sua enteada, AA, pessoa que, na altura, cuidava de si e em cuja habitação residia, que lhe pediu para ser testemunha no âmbito do mencionado processo e depor a seu favor, solicitação a que o arguido acedeu e, nessa conformidade, quando inquirido em inquérito, no dia 20/05/2021, depôs nos termos vertidos no ponto 6 dos factos provados, declarações que não correspondiam à verdade, conforme retratação por si operada em sede de audiência de julgamento.
Sucede que a valoração realizada pelo Tribunal recorrido, nos termos em que decorreu nos autos, não é legalmente admissível.
Consideramos admissível a valoração como prova num processo penal de um meio de prova produzido no âmbito de outro processo penal, incluindo de jaez declarativo ou testemunhal, desde que a junção se opere em suporte documental devidamente certificado pela entidade competente (certidão judicial do auto ou ata).
Nesse caso, todavia, as regras processuais legais aplicáveis de molde a conferir ou não validade probatória a esse meio de prova e respetivo alcance serão as atinentes ao efetivo meio de prova documentado – v.g., declarações de sujeito processual ou depoimento de testemunha – e não as que regem a prova por documento.
Como bem observa Tiago Caiado Milheiro, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal - Tomo II”, obra coletiva (António Gama e outros), 2019, Almedina, pág. 508, «O auto reflete o meio de prova em causa e o que se valora é justamente o meio de prova documentado e não o próprio documento em si. (…) O que não se pode é utilizar o documento para “tornear” regras de valoração de prova, como sucederia caso se valorasse enquanto prova documental certidão contendo um depoimento prestado em outro processo penal [as. RP, 2.12.2015 (Ernesto Nascimento)] (…) O meio de prova será sempre o que se documenta. Por exemplo, as declarações de arguido, assistente, partes civis, testemunhas, mantêm sempre essa natureza, mesmo que estejam documentados, pelo que apenas poderão ser valorados à luz do seu regime próprio, destarte para efeitos de leitura ou exame em audiência de julgamento, impondo-se a verificação do circunstancialismo vertido nos arts. 355º, 356º e 357º; se assim for, já nenhum óbice se vislumbra à valoração do depoimento de uma testemunha cujas declarações foram prestadas num outro processo, constando a certidão dos autos [assim, ac. RP, 12.10.2016 (José Carreto)]. Posição diversa, admitindo que a valoração é do documento em si e não do meio de prova documentado consubstanciará uma fraude à lei.» - negrito nosso            

Idêntico entendimento foi doutamente veiculado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.07.2013, Processo nº 1568/08.9TAVIS.C2, relatora Maria José Nogueira, disponível em www.dgsi.pt:

«I - Sob pena de subversão da disciplina dos artigos 355.º, 356.º e 357.º, todos do CPP, é insusceptível de valoração, como «documental», a prova traduzida em declarações e depoimentos [provas documentais declarativas] proferidos no decurso da audiência de discussão e julgamento no âmbito de um outro processo [em que o arguido não coincide] - cuja certidão [onde, também, se inclui a transcrição daqueles] integra os autos que agora decorrem.
II - Juízo contrário conduziria a uma insustentável violação, designadamente:
- do princípio da imediação, no sentido de que toda a prova deve, em princípio [cf. as excepções previstas v.g. artigos 356.º e 357.º do CPP], ser produzida na presença do arguido numa audiência pública com vista a uma argumentação contraditória;
- do princípio do contraditório, na dimensão de direito à confrontação das fontes de prova, de efectiva inquirição cruzada [contra-inquirição];
- do direito do arguido ao silêncio; da prorrogativa contra a auto-incriminação; e
- do direito de recusa [válida] de depor como testemunha.
III - Na impossibilidade de valorar a prova resultante da certidão, na parte em que vêm materializadas as declarações e testemunhos produzidos no domínio do “outro processo” [na dimensão de prova do evento narrado na asserção], a consequência, em face da relevância decisiva que assumiram na formação da convicção do tribunal para dar por provados os factos conducentes à responsabilidade jurídico-penal do arguido/recorrente, é a de se considerarem os mesmos como não provados, o que conduz a decisão de absolvição.»   
Assim sendo, o depoimento prestado por BB como testemunha naqueloutro processo penal (217/20....) não pode ser valorado no presente processo, de acordo com as regras da experiência e livre convicção do tribunal (cf. art. 127º do CPP), como se de um mero documento se tratasse, porquanto o que verdadeiramente se está a apreciar é um testemunho, cuja prestação e valoração terá de se sujeitar aos normativos legais da prova testemunhal, designadamente ao disposto nos arts. 355º e 356º do CPP.
Prima facie, aquelas declarações poderiam ser atendidas caso tivessem sido lidas em audiência de julgamento, ao abrigo do preceituado no art. 356º, nºs 2, al. b), 3, 5 e 9, do CPP, permitindo-se o cotejo do depoente com as mesmas e o efetivo exercício do contraditório pelos sujeitos processuais.     
Contudo, no caso vertente, é evidente a impossibilidade de valoração do meio de prova em questão, visto que o depoente nesse outro processo, em que assumia a qualidade de testemunha, é arguido nos presentes autos e, como tal, para além de estar legalmente impedido de depor como testemunha, goza do direito de se remeter ao silêncio, não prestando declarações sobre os factos (cf. arts. 61º, nº1, al. d) e 343º, nº1, do CPP), tanto mais que a audiência de julgamento até decorreu na sua ausência, nos termos e para efeitos do estatuído no art. 334º, nº2 do CPP.
Dessarte, irremediavelmente prejudicados estavam a imediação e oralidade, o contraditório e o direito ao silencio do arguido, o que constitui óbice decisivo à consideração do depoimento prestado por BB naquele distinto processo penal.

Note-se que ainda que hipoteticamente (e erradamente) se pretendesse considerar aquele “depoimento” como declarações prestadas por coarguido, igualmente as mesmas não podiam ser legalmente valoradas. 
Desde logo, porque não pode valer como meio de prova as declarações de um coarguido em prejuízo de outro coarguido quando, a instâncias deste, o primeiro se recusar a responder, no exercício do direito ao silêncio.
Relembre-se que no caso dos autos o arguido BB nem sequer esteve presente na audiência de julgamento, assim se frustrando a imprescindível possibilidade de exercício do direito ao contraditório por banda da arguida AA, afetada pelas declarações incriminatórias do coarguido, conferindo-se a possibilidade de (por intermédio do seu defensor) sugerir as perguntas a colocar pelo Tribunal, necessárias para aquilatar da credibilidade das suas declarações e confrontá-lo, se necessário, sobre outros meios de prova que tenham sido produzidos nos autos.
Ademais, não se vislumbra nos autos outra prova que corroborasse, nesse conspecto, as declarações do aqui coarguido, nem tal confirmação decorre automática e impreterivelmente das regras da experiência comum, do normal suceder, até porque à data em que prestou as falsas declarações o próprio arguido BB (ali testemunha como tal arrolada pela assistente AA) se encontrava desavindo com a arguida nesse processo.

Cumpre, pois, desconsiderar para efeitos de prova nos presentes autos os depoimentos que BB prestou no Processo nº 217/20.....
Afastada essa prova, urge concluir que nenhuma outra prova foi produzida nos autos suscetível de comprovar a alegação acusatória de que foi a coarguida CC quem solicitou ao arguido BB e o instruiu para prestar declarações conscientemente inverídicas acerca do objeto processual daquele outro processo, ao que este anuiu por força da relação de dependência que mantinha com aquela sua enteada. 
Por conseguinte, perante o sobredito erro de julgamento, decorrente de fundamentos não inteiramente coincidentes com os alegados no recurso, procederá a impugnação da decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto e, consequentemente, nos termos do art. 431º, alínea b), do CPP, impõe-se modificar tal decisão.
Em consonância com o predito, determinam-se as seguintes alterações:
- Os factos narrados nos pontos 5 e 13 dos factos provados passam a não provados;
- Extrai-se da factualidade dada como provada no ponto 14, a asserção “aceitando tal pedido” (e não “acicatando”, como por mero lapso de escrita ali consta), que se considera não provada;
- O facto descrito no ponto 15 dos factos provados é agora considerado como não provado no que tange à arguida/recorrente CC.     
*
IV - Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pela arguida CC e, em consequência:

IV.1 – Nos termos do art. 431º, alínea b), do Código de Processo Penal, modificar a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, nos seguintes termos:

- Os factos narrados nos pontos 5 e 13 dos factos provados passam a não provados;
- Extrai-se da factualidade dada como provada no ponto 14, a asserção “aceitando tal pedido” (e não “acicatando”, como por mero lapso de escrita ali consta), que se considera não provada;
- O facto descrito no ponto 15 dos factos provados é agora considerado como não provado no que tange à arguida/recorrente CC.    
 
IV.2Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a arguida CC pela prática, como instigadora, na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº1, do Código Penal, absolvendo-a dessa prática.

Sem tributação (arts. 513º, nº1 e 514º, ambos do CPP, a contrario).
*
Notifique (art. 425º, nº6, do CPP).
*
Guimarães, 18 de dezembro de 2024,

Paulo Correia Serafim (Relator)    
[assinatura eletrónica]
Bráulio Martins (1º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Luísa Oliveira Alvoeiro (2ª Adjunta)
[assinatura eletrónica]


Declaração de voto:
Concordo com a absolvição da recorrente.
Todavia, não obstante o muito respeito que me merecem os Ilustres Desembargadores cuja posição fez vencimento, divirjo da fundamentação e do alcance da decisão.
Tanto quanto me parece, a fundamentação assenta numa conceção subjetivista do falso testemunho, sendo certo que sempre entendi ser mais defensável a conceção objetivista.
No caso vertente, é certo que a prova da prestação dos dois depoimentos diferentes é documental. Mas o meio de prova de que num deles houve uma mentira dolosa, e que esta foi instigada pela aqui arguida, é o depoimento (ali) testemunhal do (aqui) arguido, não me parecendo que para provar os factos a ele respeitantes bastem os documentos que atestam a diferença de depoimento, nem sequer a opinião do juiz que apreciou e decidiu - por isso, o artigo 40.º, n.º 3, do CPP prevê o impedimento de tal juiz no julgamento do crime. Se bastasse isso, então este impedimento não teria qualquer efeito útil, pois a decisão já viria implícita na certidão.
Também me parece que aquele meio de prova (o depoimento da ali testemunha e aqui arguido) é escasso para dar como provada a instigação da arguida, e poderia ser suficiente (como uma espécie confissão extra processual) para dar como provada a falsidade em relação ao arguido.
Já não concordo, todavia, que estas provas tenham que ser lidas porque são oferecidas com a acusação, tal como uma perícia, uma apreensão, uma escuta, e o arguido já sabe o que delas consta, não podendo sofrer as mesmas qualquer mutação no julgamento, não ficando as suas garantias de defesa diminuídas, nem se preenchendo a "imediação" com a leitura ou reprodução em audiência. Já a prova testemunhal e por declarações apenas está indicada na acusação como "a produzir", sendo desconhecido o que delas vai resultar no julgamento, pelo que, pretendendo-se que o tribunal aprecie algo que não consta (ou é diferente) das provas oferecidas com a acusação ou produzidas na audiência, não há outro remédio, se não proceder à sua leitura, para que todos delas se apercebam.
Mas a terem de ser lidas ou reproduzidas tais provas, tal como a jurisprudência tem exigido, então tinham que ser lidas para os dois, não bastando a prova documental em relação ao arguido, desconsiderando-se a prova testemunhal em relação à ora recorrente, por ausência de leitura em audiência. Por isso devia, em meu entender, ter lugar a aplicação do disposto no artigo 402.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, absolvendo-se, também o coarguido.
Assim sendo, ou as provas valeriam para os dois, sem leitura, mas sendo claramente insuficientes para condenar arguida e, eventualmente, suficientes para condenar o arguido, ou teriam de ser lidas para os dois, e a decisão poderia ser a que se acabou de aventar ou outra, mas, como não o foram, implicariam a absolvição de ambos, nos termos do citado artigo 402.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.

[Desembargador Bráulio Martins]


(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade.
[2] Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças, in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 29.
[3] Entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2011, processo 308/08.7ECLSB.S1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 09703/2018, processo 628/16.7T8LMG.C1, de 03/06/2015, processo 12/14.7GBSTR.C1, de 14/01/2015, processo 72/11.2GDSTR.C1, e de 17/12/2014, processo 872/09.3PAMGR.C1; e do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, a título exemplificativo, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, e de 08/10/2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9; e do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, processo 441/10.5TABJA.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[5]  “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, pp. 253-254.