I-O procedimento de injunção previsto no artº 1 do D.L. 269/98 de 1 de Setembro e o processo especial previsto no artº 1 a 6 do regime em anexo a este diploma, destinam-se a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00.
II-Só podem ser peticionados no âmbito deste procedimento as obrigações pecuniárias directamente emergentes do contrato, mas já não obrigações derivadas da responsabilidade civil, nomeadamente os danos decorrentes do incumprimento do contrato.
III-O segmento normativo “outras quantias devidas” constante do artº 10, nº2 al. e) do regime em anexo ao D.L. nº 269/98 de 1 de Setembro, aplica-se apenas aos procedimentos destinados a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transacções comerciais, nas quais se prevê uma indemnização pelos custos suportados pela cobrança da dívida (artº 7 do D.L. nº 62/2013 de 10 de Maio), não sendo aplicável aos contratos celebrados com consumidores (artº 2, nº2 al. a)).
IV -O uso, de forma indevida, do procedimento de injunção, configura uma excepção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Proc. Nº 143012/23.4YIPRT.C1- Apelação
Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Cível das Caldas da Rainha.
Recorrente: A... S.A.
Recorrido: AA
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos: Luís Miguel Caldas
Hugo Meireles
RELATÓRIO
Não conformada com esta decisão, impetrou a requerente recurso da mesma relativamente à matéria de direito, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1. Foi indeferido, liminarmente, o requerimento injuntivo pelo Tribunal a quo, por ter considerado que “não poderia a Autora lançar mão de tal procedimento para obter a cobrança dos valores alegadamente despendidos com a cobrança da dívida, ocorrendo, inequivocamente, excepção dilatória inominada de uso indevido do processo, por força do pedido formulado a esse título” relativamente à importância de € 115,60 (a título de indemnização pelos encargos com a cobrança da dívida”).
2. Salvo, porém, o devido respeito, tal decisão carece de oportunidade e fundamento, uma vez que,
3. A injunção é um meio adequado para peticionar ao devedor o pagamento dos referidos custos administrativos relacionados com diligências de cobrança da dívida.
4. Outra conclusão seria manifestamente contrário ao “espírito” legislativo associado à criação do DL 269/98, de 01 de Setembro, conforme decorre, indubitavelmente da leitura do preâmbulo deste diploma legal.
De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão proferida nos presentes autos
- violou o artigo 1º do diploma preambular anexo ao DL 269/98, de 01 de Setembro.
- violou o art.º 590º do CPC
Nestes termos e nos demais de direito, que doutamente se suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida.”
QUESTÕES A DECIDIR
Nestes termos, a única questão a decidir que delimita o objecto deste recurso, consiste em apurar:
a) se no âmbito de um procedimento de injunção, intentado ao abrigo do disposto no artº 1 do D. L. nº 269/98 de 1 de Setembro, podem ser peticionadas os custos administrativos relacionados com diligências de cobrança da dívida.
1. Com data de 15/12/2023, a A... S.A. intentou procedimento de injunção contra AA, para cobrança da quantia de €815,84, constando da descrição o seguinte:
“A Req.te (Rte), celebrou com o Req.do (Rdo) um contrato de prestação de bens e serviços telecomunicações a que foi atribuido o n.º ...22.... No âmbito do contrato, a Rte obrigou-se a prestar os bens e serviços solicitados pelo Rdo, e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas, a devolver com a cessação do contrato os equipamentos da Rte e a manter o contrato pelo período acordado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento de cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato. Das faturas emitidas, permanece(m) em dívida a(s) seguinte(s): €283,95 de 10/01/2023, €113,57 de 09/02/2023, €91,69 de 09/03/2023, €13,8 de 11/04/2023, €74,99 de 12/06/2023, vencidas, respectivamente, em 04/02/2023,04/03/2023,04/04/2023,04/05/2023 e 04/07/2023. Enviada(s) ao Rdo logo após a data de emissão e apesar das diligências da Rte, não foi(ram) a(s) mesma(s) paga(s), constituindo-se o Rdo em mora e devedor de juros legais desde o seu vencimento. Mais, é o Rdo devedor à Rte de €115,6, a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida. Termos em que requer a condenação do Rdo a pagar a quantia peticionada e juros vincendos.
O valor em dívida poderá ser pago, nos próximos 15 dias, realizando uma transferência bancária para o IBAN ...57.”
2-Frustrada a citação da requerida, foram os autos remetidos à distribuição em 12/01/2024, como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, ao abrigo do disposto no D.L. nº 269/96 de 1 de Setembro.
Já a decisão recorrida considerou que a possibilidade, conferida pelo artº 7 do D.L. 62/2013 e 10 nº2 al e) do regime em anexo ao D.L. nº 269/98 de 1 de Setembro, de serem incluídos no âmbito do procedimento de injunção as quantias devidas pela cobrança da dívida, “apenas se encontra prevista para os casos em que esteja em causa uma transacção comercial, na acepção do seu artigo 3.º, alínea b), encontrando-se expressamente excluídos do âmbito de aplicação daquele regime os contratos celebrados com consumidores, cf. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do mesmo diploma.
Tal exclusão é expressa e clara, não sendo afastada pelo facto de o artigo 10.º, n.º 2, alínea e) do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro prever que o requerente deve “formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas”, porquanto tal norma respeita aos requisitos gerais do requerimento, aplicável aos casos de contratos celebrados com consumidor ou quaisquer outros, sendo que apenas nestes últimos será eventualmente admissível peticionar as quantias sub judice.”
Decidindo
-se no âmbito de um procedimento de injunção, intentado ao abrigo do disposto no artº 1 do D. L. nº 269/98 de 1 de Setembro, podem ser peticionadas os custos administrativos relacionados com diligências de cobrança da dívida.
Para responder a esta questão, há que determinar a génese e objectivos prosseguidos com o procedimento de injunção.
Procurou o legislador com a adopção deste regime especialíssimo simplificar e agilizar a cobrança de dívidas, objecto de uma litigância de massas, a que dificilmente o sistema vigente até então no regime processual civil, nas suas diferentes formas, ordinária, sumária ou sumaríssima, poderia dar resposta cabal, célere e eficaz.
Assim, ao instituir um sistema especial tendente à cobrança de dívidas, refere o legislador, no preâmbulo ao D.L. 269/98 de 1 de Setembro, as causas e a solução apontada referindo que “A instauração de acções de baixa densidade que tem crescentemente ocupado os tribunais, erigidos em órgãos para reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores, está a causar efeitos perversos, que é inadiável contrariar.
Na verdade, colocados, na prática, ao serviço de empresas que negoceiam com milhares de consumidores, os tribunais correm o risco de se converter, sobretudo nos grandes meios urbanos, em órgãos que são meras extensões dessas empresas, com o que se postergam decisões, em tempo útil, que interessam aos cidadãos, fonte legitimadora do seu poder soberano. Acresce, como já alguém observou, que, a par de um aumento explosivo da litigiosidade, esta se torna repetitiva, rotineira, indutora da 'funcionalização' dos magistrados, que gastam o seu tempo e as suas aptidões técnicas na prolação mecânica de despachos e de sentenças. É impossível uma melhoria do sistema sem se atacarem a montante as causas que o asfixiam, de que se destaca a concessão indiscriminada de crédito, sem averiguação da solvabilidade daqueles a quem é concedido. Não podendo limitar-se o direito de acção, importa que se encarem vias de desjudicialização consensual de certo tipo de litígios, máxime do que acima se apontou (…)” adoptando um novo procedimento simplificado “no intuito de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, 'de forma célere e simplificada', de um título executivo (…)” nos casos nele previstos, ou seja quando em causa a cobrança de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor inferior a € 15.000,00 ou emergentes de transacções comerciais, ainda que de valor superior, actualmente ao abrigo do disposto no D.L. nº 62/2013 de 10 de Maio.
É efectivamente esta a função primacial do procedimento de injunção - a obtenção de um título executivo, em casos em que esteja em causa a simples cobrança de uma dívida pecuniária emergente de um contrato. E, porque se trata este de um procedimento especial, não pode a sua aplicação ser extensível a outras obrigações que não as expressamente nele contidas.
Assim se fez consignar no artº 7 do regime em anexo ao D.L. nº269/98, de 1 de Setembro: que “considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto – Lei nº32/2003, de 17 de Fevereiro.”
Por sua vez, o D.L. nº62/2013 de 10 de Maio que veio revogar o D.L. nº 32/2003 de 17 de Fevereiro, procedeu à transposição da Directiva nº 2011/7/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 2011, abrangendo as transacções comerciais nele previstas e com vista a estabelecer medidas especiais de luta contra os atrasos no pagamento destas transacções comerciais.
Neste âmbito, veio definir-se, no artº 3, o conceito de transacção comercial, como “uma transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra uma remuneração.”
Ao delimitar a aplicação do seu preceito, definindo no artº 3 as situações em que é aplicável, estatuiu igualmente um conjunto expresso de exclusões ao seu âmbito de aplicação, constantes estas do artº 2 deste diploma legal, nelas se incluindo os contratos celebrados com consumidores (nº2 al a)).
Quer isto dizer que, enquanto o procedimento especial contido no D.L. nº 62/2013, se aplica exclusivamente às transacções comerciais, independentemente do valor, o procedimento de injunção previsto no regime em anexo ao D.L. nº 269/98 de 1 de Setembro (artºs 7 a 20) e a acção de processo especial prevista nos artºs 1 a 6, aplicam-se às obrigações emergentes de contrato, de valor inferior a € 15.000,00.
Esta delimitação não é irrelevante tendo em conta que enquanto que para as transacções comerciais contidas no âmbito do D.L. nº 62/2013 se prevê expressamente, no artº 7, o direito de serem cobrados custos de cobrança da dívida[1], tal possibilidade não se mostra prevista para os contratos celebrados com consumidores e que caiam no âmbito do procedimento previsto no artº 1 do D.L. nº 269/98 de 1 de Setembro.
É certo que no artº 10, nº2 e), do regime em anexo a este diploma, o legislador veio consignar que no requerimento inicial deve o requerente “formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas”, mas desta formulação não se pode retirar que nestas “outras quantias devidas” se incluem, em contratos celebrados com consumidores, os custos de cobrança de dívida, cuja possibilidade de cobrança se mostra permitida apenas para as transacções comerciais.
Em primeiro lugar, porque não constituem obrigação directamente emergente do contrato (e assim incluídos na previsão do artº 1), mas antes custos suportados por via do incumprimento do contrato[2]. Também não são equiparados aos juros de mora, indemnização legal fixada pela mora para o pagamento de obrigações de natureza pecuniária e expressamente incluída no âmbito deste procedimento, pelo artº 10 nº2 al. e).
A respeito do significado de obrigação pecuniária emergente do contrato, diz-nos Paulo Teixeira Duarte[3], que são “apenas aquelas que se baseiam em relações contratuais cujo objeto da prestação seja diretamente a referência numérica a uma determinada quantidade monetária”, concluindo que, “Daqui resulta que só pode ser objeto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias diretamente emergentes do contrato, mas já não pode ser peticionado naquela forma processual obrigações com outra fonte, nomeadamente, derivada de responsabilidade civil. O pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objeto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro”.
Quando esteja em causa uma “obrigação secundária derivada do incumprimento do contrato e não se vise o seu cumprimento, estar-se-á a extravasar o âmbito desse procedimento”[4].
Nestes termos e conforme refere Salvador da Costa[5], este instituto “não tem a virtualidade de servir para obter indemnização no âmbito da responsabilidade civil contratual ou extracontratual ou com base no enriquecimento sem causa”, que é afinal o que se visa com a cobrança quer das clausulas penais (hipótese que a jurisprudência dominante afasta do âmbito dos procedimentos de injunção e objecto de decisão no Acórdão desta Relação de 14/03/2023[6]) quer dos custos administrativos suportados pela requerente.
Por outro lado, os custos em que a parte incorreu com a cobrança da obrigação devida, não podem ser considerados incluídos no âmbito da previsão do artº 10, nº1 e) do D.L. nº 269/98 de 1 de Setembro, pois que não existe norma expressa que o preveja. O disposto no artº 7 do D.L. nº 62/2013 não se aplica aos contratos celebrados com consumidores e o legislador, caso tivesse considerado que tais quantias se incluíam já no âmbito do referido artº 1 do D.L. nº 269/98 de 1 de Setembro, não as teria incluído expressamente no âmbito da previsão normativa do artº 7 do D.L. nº 62/2013. Já se tivesse querido incluir a cobrança destas quantias no âmbito dos procedimentos de injunção emergentes de contrato de valor inferior a € 15.000,00, ainda que celebrados com consumidores, tê-lo-ia previsto expressamente, à semelhança do que fez consignar para as injunções decorrentes de transacções comerciais.
Concluímos assim que o segmento normativo “outras quantias devidas” constante do artº 10, nº2 al. e) do regime em anexo ao D.L. nº 269/98 de 1 de Setembro, se refere apenas às transacções comerciais, nas quais se prevê uma indemnização pelos custos suportados pela cobrança da dívida[7], não sendo aplicável ao procedimento de injunção destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, de valor não superior a € 15.000,00, celebrado com consumidores.
Assim sendo, conforme já referido no citado Acórdão desta Relação de 14/03/2023, o “uso inadequado do procedimento inquina e torna inaproveitável, in totum, a acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato em que o procedimento, por virtude da oposição, se convolou, a conclusão pela verificação da excepção dilatória inominada da inadmissibilidade do procedimento - ou por erro na forma de processo, conforme o enquadramento que se julgue preferível - é exacta, e a absolvição do requerido da instância é correcta.”
Improcede assim a apelação.
[1] Com a seguinte redacção:
“Quando se vençam juros de mora em transações comerciais, nos termos dos artigos 4.º e 5.º, o credor tem direito a receber do devedor um montante mínimo de 40,00 EUR (quarenta euros), sem necessidade de interpelação, a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida, sem prejuízo de poder provar que suportou custos razoáveis que excedam aquele montante, nomeadamente com o recurso aos serviços de advogado, solicitador ou agente de execução, e exigir indemnização superior correspondente.”
[2] Ac. do TRP de 12/07/2023, proferido no proc. nº 3889/21.6T8VLG-A.P1, de que foi relatora Isabel Ferreira. No mesmo sentido vide Ac. do TRP de 26/09/2022, proferido no proc. nº 756/22.0T8VLG-A.P1, de que foi relatora Maria José Simões, o Ac. do TRP de 04/07/2024, proferido no proc. nº 3368/23.7T8VLG-A.P1, de que foi relatora Ana Vieira e, por último os Acs. do TRL de 27/06/2019, proferido no proc. nº 96025/17.0YIPRT.L1-2, de que foi relator Arlindo Crua e de 10/10/2024, proferido no proc. nº 4709/23.2T8SNT.L1-6, de que foi relator Eduardo Petersen Silva, disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] DUARTE, Paulo Teixeira, “Os Pressupostos Objetivos e Subjetivos do Procedimento de Injunção”, Revista Themis, VII, nº 13, 2006, págs. 184/185.
[4] Ibidem, pág. 184.
[5] COSTA, Salvador da, A Injunção e as Conexas Ação e Execução, Almedina, 7ª ed., 2020, pág. 13.
[6] Proferido no proc. nº 14529/22.6YIPRT.C1, de que foi relator Henrique Antunes e pela ora Relatora, como 2ª adjunta), disponível in www.dgsi.pt.
[7] Ibidem, pág. 76.