AÇÃO DE ANULAÇÃO DO TESTAMENTO
CADUCIDADE
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário


I – A ação de anulação do testamento caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa de anulabilidade (art. 2308º, n.º 2 do CC).
II - Esse prazo de caducidade encontra-se sujeito à regra do n.º 2 do art. 287º do CC, da qual resulta que a anulabilidade pode ser arguida a todo o tempo, enquanto o negócio testamentário não estiver cumprido, isto é, enquanto o contemplado não exigir a sucessão.
III - O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material, retrotraindo-se os efeitos da aceitação ao momento da abertura da sucessão (art. 2050º, do CC),
III – Pela aceitação da herança adquiriram os beneficiários da deixa testamentária o que lhes foi deixado, independentemente da sua posse efetiva, pelo que as disposições testamentárias encontram-se cumpridas, não havendo lugar à aplicação do normativo constante do art. 287.º, nº2 do CC.
II - A ousadia de apresentação de uma determinada construção jurídica, julgada errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação. Mas já atua em violação destes deveres aquele que alega factos essenciais que sabe não serem verdadeiros.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

AA, veio intentar a presente ação para anulação de testamento contra BB, e esposa, CC, DD, EE, FF.
Alega, em síntese, que AA, seu falecido pai, outorgou testamento quando estava incapacitado de entender o sentido da sua declaração. Mais alega que os 1º e 2º réus, conhecedores da situação de fragilidade do testador, aproveitaram e incentivaram o afastamento do pai do autor, conseguindo que o mesmo os beneficiasse quase em exclusivo no testamento e sem qualquer justificação.

Assim, invocando o regime da anulabilidade do testamento, por incapacidade acidental e negócio usurário, pede:

A) Seja emitida sentença que declare anulado o testamento público lavrado em 07.11.2016 no Cartório Notarial de Braga da Notária GG, através do qual o testador, AA deixou em comum com os 1º e 2º RR. na proporção de um terço para cada um dos 1º e 2º RR. e a restante terça parte para os dois netos, 3ª e 4º RR, na proporção de um sexto, para cada um, a sua quota disponível;
Caso assim não se entenda,
B) Seja proferida sentença que declare anulado o testamento público lavrado em 07.11.2016, em que é testador AA, junto do Cartório Notarial de Braga da Notária GG através do qual deixou em comum com os 1º e 2º RR. na proporção de um terço para cada um dos 1º e 2º RR. e a restante terça parte para os dois netos, 3ª e 4º RR, na proporção de um sexto, para cada um, a sua quota disponível, por ser um negócio usurário.

Os réus EE e FF contestaram arguindo a caducidade da ação por ter decorrido mais de dois anos desde o conhecimento do testamento, mais alegando que o falecido estava capaz de testar à data e realizou o testamento de forma livre. Mais pedem que o autor seja condenado como litigante de má fé.
Por sua vez, os réus BB e CC contestaram invocando também a caducidade da ação (o autor conhece a existência do testamento e respetivo conteúdo - designadamente, as deixas testamentárias e os beneficiados pelas mesmas -, o mais tardar, desde ../../2020), e ainda que o falecido estava capaz de testar à data e realizou o mesmo de forma livre.
O réu DD contestou alegando que o falecido estava capaz de testar à data e realizou o testamento de forma livre.

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O autor, apesar de notificado para o efeito, não impugnou os documentos juntos com as contestações, nem exerceu contraditório.
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Foi proferido saneador sentença que julgou procedente a exceção perentória de caducidade e, consequentemente, absolveu os réus dos pedidos.
Mais condenou o autor como litigante de má fé no pagamento de uma multa no valor de 8 UC e no pagamento aos réus EE e FF de uma indemnização no montante de €1.500,00, a pagar diretamente à Ilustre mandatária destes réus.
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Inconformado com a sentença veio o autor interpor recurso, terminando com as seguintes conclusões:

I. AA, veio intentar ação declarativa na forma de processo comum contra BB, e esposa, CC; DD; EE; FF, tendo deduzido os seguintes pedidos:
A) Ser emitida sentença que declare anulado o testamento público lavrado em 07.11.2016 no Cartório Notarial de Braga da Notária GG, através do qual o testador, AA deixou em comum com os 1º e 2º RR. na proporção de um terço para cada um dos 1º e 2º RR. e a restante terça parte para os dois netos, 3ª e 4º RR, na proporção de um sexto, para cada um, a sua quota disponível;
Caso assim não se entenda,
B) Seja proferida sentença que declare anulado o testamento público lavrado em 07.11.2016, em que é testador AA, junto do Car-tório Notarial de ... da Notária GG através do qual deixou em comum com os 1º e 2º RR. na proporção de um terço para cada um dos 1º e 2º RR. e a restante terça parte para os dois netos, 3ª e 4º RR, na proporção de um sexto, para cada um, a sua quota disponível, por ser um negócio usurário.
II. Citados, os RR. EE e FF contestaram alegando, em síntese, a caducidade da ação pois ali alegaram que desde 27 de novembro de 2020 o Autor tinha conhecimento da existência do testamento outorgado pelo seu pai, sucedendo que só deu entrada da ação visando a anulação do referido testamento, a 8 de outubro de 2023, muito tempo depois do término do prazo de caducidade de dois anos. Mais pediram que o autor seja condenado como litigante de má fé, os RR. BB e CC contestaram alegando, em síntese, a caducidade da presente ação, conquanto alegaram, o autor conhecia a existência do testamento e respetivo conteúdo, o mais tardar, desde ../../2020 e o RR. HH DOS SANTOS contestou alegando, em síntese, que o falecido estava capaz de testar à data e realizou o mesmo de forma livre.
III. Foram, assim, declarados FACTOS PROVADOS, os seguintes, constantes da Sentença REFª ...38:
AA nasceu em ../../1938 e faleceu no dia ../../2020, com 82 anos de idade, no estado de viúvo de II, natural da freguesia ..., no concelho ..., onde teve a sua última residência habitual na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ....
AA, a 7 de Novembro de 2016, realizou um testamento público junto do Cartório Notarial da Notária GG, em ..., na Praça ..., ..., cujo teor aqui se dá por reproduzido.
O autor teve conhecimento do teor do testamento em Novembro de 2020.
A presente ação foi intentada a 8-10-2023.
IV. O Tribunal recorrido, veio então através da dita Sentença – Refª REFª ...38, determinar a caducidade da ação: “Como se viu, no presente caso, o autor invoca duas causas de anulabilidade: a incapacidade acidental (cfr. art. 2199.º, do CC) e o negócio usurário (cfr. art. 282.º, do CC, louvando-se o autor, quanto a este regime, na doutrina que admite a usura nesta sede). No entanto, relativamente à anulabilidade de testamentos, vigora o art. 2308.º, n.º 2, do CC, o qual estabelece que, sendo anulável o testamento ou a disposição, a ação caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade. (…). E está demonstrado que o autor teve conhecimento do teor do testamento em Novembro de 2020. Deste modo, o autor tinha até ao mês de Novembro de 2022 para intentar a presente ação. Porém, só o fez em Outubro de 2023, razão pela qual a ação caducou.”
V. O Recorrente, não aceita nem pode aceitar a determinação judicial de caducidade da ação, pois, desde logo, em sede de caducidade de ação, há que ponderar o que preceitua o nº 2 do art. 287º do CC.
VI. Na verdade, nos termos conjugados entre os art. 2308º, nº 2 e art. 287º, nº2 do C.C., enquanto que o negócio jurídico não estiver cumprido, pode a anulabilidade do testamento ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de ação, como por via de exceção,
VII. Consequentemente e revisitando os autos, verifica-se que, não estando os beneficiários da deixa testamentária na posse dos bens, os verdadeiros sucessores não necessitam de fazer declarar a invalidade e não podem ser surpreendidos por qualquer decurso de prazo.
VIII. Pois, mostrando-se provado que os bens que constituem o acervo hereditário ainda não estão partilhados – como não estão – já que dependem do desfecho da ação de inventário nº 2593/21...., Juízo Local Cível de Braga - Juiz ..., que corre aí termos,
IX. Conclui-se que o negócio testamentário em causa ainda não se encontra cumprido, pelo que, necessariamente o direito que o Recorrente pretende fazer valer nesta ação interposta, não se mostra caduco,
X. Deste modo, se conclui, tout court, que mal andou o Tribunal recorrido, o que se diz com todo o respeito e que é muito, ao aplicar, sem mais, o disposto no art. 2308º, nº 2, com afastamento do citado art. 287º, nº 2 do CC.
XI. Nestes termos, violou a Sentença proferida o disposto no nº 2 do art. 287º do CC, pelo que deverá este Venerando Tribunal revogar a mesma, e substituir por outra que declare não verificada a caducidade da ação interposta pelo Autor, e ordene, consequentemente o prosseguimento dos autos.
XII. Ainda sem prescindir, vem o Recorrente, por mera cautela de patrocínio, contrapor a decisão de condenação do Recorrente em litigante de má fé (assente na motivação elencada à Sentença), porquanto, estando o mesmo convencido de que inexiste qualquer prazo a correr contra o exercício do direito que pretende fazer valer na ação interposta, já que é sua convicção que, não tendo ainda sido cumprido o negócio testamentário, o seu direito de ação não encontra nenhum óbice relativamente ao esgotamento de qualquer prazo de caducidade.
XIII. Neste sentido, não se discorre que o mesmo deva ser condenado em litigância de má fé, pois em momento algum alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa, pois, como ante dito, a sua convicção respalda-se na inexistência de prazo para a interposição da dita ação, por um lado porque os bens a que os beneficiários teriam direito ainda não estão na sua posse, e, por outro lado, porque corre termos o processo de inventário nº 2593/21...., Juízo Local Cível de Braga -Juiz ...,
XIV. O que em definitivo, prova que, qualquer um dos factos temporais revelados pelo Autor da ação em nada interessam para a boa decisão da causa, pois, a exceção perentória da caducidade nem sequer se verifica, por força do disposto no art. 287º, nº 2 do CC.
XV. Neste sentido, deve este Venerando Tribunal remir a sentença proferida dela eliminando a condenação em multa no valor de 8 UC, e a indemnização fixada a favor dos RR, no montante de 1500,00€, pois, estando o Tribunal recorrido compelido a julgar improcedente a exceção perentória de caducidade e, consequentemente, a condenar os réus dos pedidos, não se pode manter no ordenamento jurídico a condenação do Recorrente em litigante de má fé.
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando os Recorridos pela manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).
No caso vertente, são duas as questões a decidir:
- caducidade da ação de anulação do testamento;
- litigância de má-fé do autor.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.2.1. Factos Provados
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
AA nasceu em ../../1938 e faleceu no dia ../../2020, com 82 anos de idade, no estado de viúvo de II, natural da freguesia ..., no concelho ..., onde teve a sua última residência habitual na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ....
AA, a 7 de Novembro de 2016, realizou um testamento público junto do Cartório Notarial da Notária GG, em ..., na Praça ..., ..., cujo teor aqui se dá por reproduzido.
O autor teve conhecimento do teor do testamento em Novembro de 2020.
A presente ação foi intentada a 8-10-2023.
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3.2. O Direito
3.2.1. Da caducidade
Na decisão recorrida julgou-se verificada a exceção de caducidade, considerando ser aplicável à anulabilidade de testamentos o art. 2308.º, n.º 2, do Código Civil (doravante CC), que estabelece que a ação caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade.
De tal entendimento discorda o recorrente que advoga que o testamento ainda não está cumprido e enquanto o negócio jurídico não estiver cumprido, pode a anulabilidade do testamento ser arguida, sem dependência de prazo (art. 287º, nº2, do CC).
Vejamos de que lado está a razão.
O testamento em geral assim como cada uma das cláusulas testamentárias em especial, como atos jurídicos que são, estão sujeitos a sofrer de vícios, quer de forma quer de vontade, que podem gerar a sua invalidade.
A consequência varia consoante a gravidade da falta cometida: o vicio grave inquina o ato de nulidade, sendo que a menor gravidade apenas determina a possibilidade da sua anulação.

No capítulo sobre a nulidade a anulabilidade do testamento, a nossa lei civil prescreve no artigo 2308.º, sob a epígrafe «caducidade da ação» que:
1. A ação de nulidade do testamento ou de disposição testamentária caduca ao fim de dez anos, a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da nulidade.
2. Sendo anulável o testamento ou a disposição, a ação caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade.

Decorre deste normativo que não obstante a lei recorrer às figuras gerais da nulidade e da anulabilidade, estabelece prazos de caducidade que se afastam do regime comum.
A nulidade testamentária tem um prazo limitado de invocação e é mais restrita do que na nulidade geral o tipo de pessoas que a pode invocar. Na verdade, ao invés do previsto no art. 286º CC, esta nulidade não é invocável a todo o tempo, antes caduca ao fim de 10 anos, contados da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa de nulidade.
A ação de anulação, por sua vez, caduca ao fim de 2 anos, sendo no regime geral de um ano, que é contado do conhecimento pelo interessado do testamento e da causa da anulabilidade.
Em matéria de anulabilidade testamentária, o seu regime mantém-se fiel ao regime geral, quer quanto à legitimidade para a sua arguição (art. 287º, n.º 1), ou à sanação por confirmação (art. 288º, n.º 1). Tal anulabilidade caracteriza-se, assim, especificamente, apenas por o prazo de arguição da caducidade ser de dois anos (art. 2308º, n.º 2) e por, face à sua menor gravidade, a confirmação ter um âmbito mais vasto. A razão é simples, o nosso legislador procurou um aproveitamento o mais amplo possível do testamento, uma vez que, este, sendo impugnado após a morte do de cuius, não pode ser repetido - Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, 4ª Edição Reimpressão, pag. 236.
Por outro lado, estende-se à anulabilidade testamentária o regime geral do n.º 2, do art. 287.º CC e assim enquanto o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo -  neste sentido o acórdão da Relação de Guimarães de 28/06/2018, proferido no processo nº 2010/12.6TBGMR-E.G1 e disponível em www.dgsi.pt.
Compreende-se que assim seja, pois que, como afirma Oliveira Ascensão, a caducidade das ações de invalidação só têm sentido se as disposições testamentárias estiverem cumpridas - Direito das Sucessões, pag. 335.
O autor pede a anulação do testamento invocando duas causas de anulabilidade: a incapacidade acidental (art. 2199.º, do CC) e o negócio usurário (art. 282.º, do CC).
Como vimos, sendo anulável o testamento ou a disposição testamentária, a ação caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa de anulabilidade (art. 2308º, n.º 2 do CC).
Esse prazo de caducidade encontra-se sujeito à regra do n.º 2 do art. 287º do CC, da qual resulta que a anulabilidade pode ser arguida a todo o tempo, enquanto o negócio testamentário não estiver cumprido, isto é, enquanto o contemplado não exigir a sucessão.
No caso, resulta da própria alegação do autor que há vários anos, e mais notoriamente desde 2014, 2015 e 2026 que AA, pai do autor, se encontrava incapaz de entender o significado dos atos que estava a realizar, que estava incapaz de compreender o sentido e alcance das suas declarações.
Resulta demonstrado, também, que o autor teve conhecimento do teor do testamento em Novembro de 2020.
Deste modo, o autor tinha até ao mês de Novembro de 2022 para intentar a presente ação, o que não fez.
Contrapõe o autor que enquanto o negócio não estiver cumprido pode a anulabilidade do testamento ser invocada sem dependência de prazo, concretizando que o negócio não está cumprido porque os beneficiários do testamento não estão na posse dos bens.
Não lhe assiste razão.
O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (n.º 1 do art. 2050º), retrotraindo-se os efeitos da aceitação ao momento da abertura da sucessão (n.º 2 do art. 2050º).
Vem a propósito convocar a passagem de Pires de Lima e Antunes Varela, citada pelos recorridos, onde se afirma que [a] terceira face da solução poliédrica estabelecida em torno da aceitação é a que se refere à aquisição e transmissão da posse sobre os bens da herança. Sendo a posse uma relação de facto, consubstanciada na actuação de alguém sobre a coisa, como se seu proprietário ou titular de outro direito real ele fosse, dir-se-ia que a posse dos sucessíveis chamados sobre os bens componentes da herança só se iniciaria quando cada um deles, independentemente do acto da aceitação, iniciasse sobre cada um dos bens o exercício dos actos reveladores do aparente direito.  E, todavia, não é assim que as coisas se passam. Por outro lado, prescreve-se expressamente que o acto voluntário (global e indiscriminado) da aceitação envolve aquisição, não só do domínio (lato sensu), mas também da posse dos bens da herança, independentemente da sua apreensão material. Por outro lado, tal como em relação ao domínio, também relativamente à posse (dos bens) da herança, não obstante a sua específica natureza, se estabelece a norma de que os efeitos da aceitação se retrotraem ao momento da abertura da sucessão. Quer isto dizer que, respeitando embora a regra de ouro da liberdade individual na transmissão da herança, a livre aceitação desta funciona, por virtude da lei, como uma varinha mágica ou de condão que, no preciso instante da morte do seu titular – tal o horror ao vazio dos bens sem dono – transfere o domínio e a própria posse dos bens hereditários para a titularidade do sucessível chamado, que vier a aceitar o chamamento. - Código Civil Anotado, Vol. VI, pag. 80.
A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita (art. 2056º), sendo expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir e é tácita quando aquele pratica algum facto de que necessariamente se deduz a sua intenção de a aceitar, ou de tal natureza, que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro – Cf. Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais”, 4ª ed., Coimbra Editora, vol. I, pags. 15 a 19.
Como o próprio recorrente alega está em curso o inventário para partilha dos bens do seu falecido pai, em que os réus (como filhos e netos) figuram como herdeiros, exercendo um dos réus as funções de cabeça de casal e, por todos, aí tendo sido praticados atos de que claramente resulta a aceitação da herança.
Pela aceitação adquiriram os beneficiários da deixa testamentária o que lhes foi deixado, independentemente da sua posse efetiva.
Conformemente, afastado está o entendimento de que as disposições testamentárias não se encontram cumpridas, não havendo lugar à aplicação do normativo constante do art. 287.º, nº2 do CC.
Por consequência, mostra-se extinto, por caducidade, o direito do apelante em obter a declaração da anulação do testamento.

3.2.2. Da litigância de má-fé.
A sentença recorrida condenou o autor como litigante de má-fé por ter considerado que ao alegar que só tomou conhecimento do testamento em 20 de Abril de 2022, quando ficou demonstrado, por documentos em que interveio e que lhe foram dirigidos, que teve conhecimento do teor do testamento em Novembro de 2020, alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa. E fê-lo de forma dolosa.
Contra este entendimento insurge-se o autor, afirmando estar convencido de que inexiste qualquer prazo a correr contra o exercício do direito que pretende fazer valer na ação interposta, já que é sua convicção que, não tendo ainda sido cumprido o negócio testamentário, o seu direito de ação não encontra nenhum óbice relativamente ao esgotamento de qualquer prazo de caducidade.
Apreciemos.
O art. 8.º do CPC estabelece que as partes devem agir de boa-fé.
A lei atribui aos sujeitos processuais o direito de solicitar ao Tribunal uma determinada pretensão, todavia esta deve ser apoiada em factos e razões de direito de cuja razão esteja razoavelmente convencido, sob pena de haver lugar à sua responsabilização (princípio da auto-responsabilidade das partes).
É nestes princípios que assenta o instituto da litigância de má-fé, consagrado nos artigos 542.º e seguintes do Código Processo Civil o qual visa sancionar uma conduta processual das partes censurável, por desconforme ao princípio da boa-fé pelo qual as mesmas devem reger a sua conduta.
Corresponde o instituto da litigância de má-fé a uma responsabilidade agravada, que assenta na negligência grave ou dolo do litigante.
Se a parte atuou de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é lícita e é condenada apenas no pagamento das custas do processo, como risco inerente à sua atuação.
Se a parte procedeu de má-fé, na medida em que sabia ou devia saber que não tinha razão, ou não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume-se como ilícita, configurando um ilícito processual a que corresponde uma sanção, que pode ser penal e/ou civil (multa e indemnização à parte contrária), e cujo pagamento acresce ao pagamento das custas processuais.

Nos termos do disposto no art. 542.º, n.º 1 do CPC, tendo uma ou ambas as partes litigado de má-fé, será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária. E nos termos do n.º 2 diz-se litigante de má-fé quem com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;   
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Enquanto as alíneas a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má fé material ou substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má fé processual ou instrumental - neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º., 3ª edição, pag. 457.
Resulta desta disposição legal que não só as condutas dolosas, como também as gravemente negligentes, são sancionáveis.
O legislador deixou ainda clara a desnecessidade, quanto à prova, da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objetivos ilegítimos (atuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade - Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II vol., 3ª edição, pag. 341.
No entanto, não deve confundir-se litigância de má-fé com:
· a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento;
· a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar;
· discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos;
· a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr convencer; ou
- a ousadia de apresentação de determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada.
Constitui hoje entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do art. 542º do CPC. Haverá sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, recomendando-se na formulação do juízo sobre essa má fé uma certa prudência e razoabilidade - Abrantes Geraldes, ob. cit, pag. 341.
Conformemente, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave.
Exige-se, pois, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem fiscalizar a moralidade de determinada conduta praticada no exercício de um direito processual, se houver manifesto abuso, traduzindo-se esse exercício em termos clamorosamente ofensivos da boa fé e da cooperação. Revela um desajustamento evidente e insuportável a estes princípios a invocação de argumentos cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar, mas de tal modo que estes sejam repelidos pelo sistema jurídico globalmente apreciado à luz das regras da boa fé.
Daí que a conclusão no sentido da litigância de má fé não pode ser extraída mecanicamente da verificação de comportamento processual recondutível à tipicidade das várias alíneas da norma legal. A delimitação dessa responsabilização impõe uma apreciação casuística.
No caso, o autor intentou uma ação de anulação de testamento, invocando duas causas de anulabilidade: a incapacidade acidental e o negócio usurário.
 À anulabilidade de testamentos é aplicável a norma do art. 2308.º, n.º 2, do CC, que estabelece que, sendo anulável o testamento ou a disposição, a ação caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade.
Estando em causa uma ação de anulação, apresenta-se de meridiana clareza que surja como questão central, porque seu facto impeditivo, o decurso do prazo, isto é, a caducidade.
E é assim que todos os réus vieram arguir a exceção perentória da caducidade da ação.
Não podia o autor ignorar, em face da causa de pedir que invoca, a importância do momento do conhecimento do testamento. E isso era essencial, independentemente das várias soluções plausíveis da questão de direito.
Diz-se na decisão, o que o recorrente não contesta, que «o autor alegou o seguinte: O teor do testamento de 07.11.2016, o A. apenas veio a tomar conhecimento 20.04.2022, decorridos 18 meses após a morte do pai ocorrida em 07.10.2022. Porém, ficou demonstrado que o autor teve conhecimento do teor do testamento em Novembro de 2020. E isto ficou demonstrado com base em correios electrónicos dirigidos pelo autor ao réu BB. Mais, essa factualidade ficou também demonstrada através do teor de um ofício dirigido pelo IRN ao próprio autor, ofício recebido em Novembro de 2020 no qual tomou conhecimento da existência do testamento
Impõe-se, concluir, que o autor alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa. E fê-lo de forma culposa, com elevada censurabilidade, atenta a natureza pessoalíssima do facto de que era conhecedor. 
Para lá de o fundamento invocado não ter sido juridicamente atendível (ainda não estar cumprido o negócio jurídico), ponto é que alegou factos não verdadeiros, tendo feito dos meios processuais um uso manifestamente reprovável.
É certo que a ousadia de apresentação de uma determinada construção jurídica, julgada errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação.
Mas já autoriza a conclusão de uma intervenção no processo em violação daqueles deveres a alegação de factos essenciais que se sabe não serem verdadeiros.
Em causa estão factos pessoais nos quais interveio e dos quais não podia deixar de ter consciência, e procurou através da sua alegação obstar à declaração de caducidade da ação que estava a intentar.
Agiu, assim, o autor de má fé.
Impõe-se, nestes termos, a confirmação do decidido.
Consequentemente, terá de improceder a apelação.
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Sumário:
I – A ação de anulação do testamento caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa de anulabilidade (art. 2308º, n.º 2 do CC).
II - Esse prazo de caducidade encontra-se sujeito à regra do n.º 2 do art. 287º do CC, da qual resulta que a anulabilidade pode ser arguida a todo o tempo, enquanto o negócio testamentário não estiver cumprido, isto é, enquanto o contemplado não exigir a sucessão.
III - O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material, retrotraindo-se os efeitos da aceitação ao momento da abertura da sucessão (art. 2050º, do CC),
III – Pela aceitação da herança adquiriram os beneficiários da deixa testamentária o que lhes foi deixado, independentemente da sua posse efetiva, pelo que as disposições testamentárias encontram-se cumpridas, não havendo lugar à aplicação do normativo constante do art. 287.º, nº2 do CC.
II - A ousadia de apresentação de uma determinada construção jurídica, julgada errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação. Mas já atua em violação destes deveres aquele que alega factos essenciais que sabe não serem verdadeiros.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 28 de Novembro de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. José Manuel Flores