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CRÉDITO EXEQUENDO
BEM COMUM
COMUNHÃO GERAL DE BENS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CASO JULGADO
Sumário
I – Não há inutilidade superveniente da lide quando peticiona que se declare que um crédito em execução tem a natureza de bem comum do casal, se esse crédito foi entretanto extinto pelo pagamento; II – É bem comum do casal crédito que surgiu na constância do casamento celebrado no regime de comunhão geral de bens, mas somente reconhecido em ação intentada apenas por um dos membros do casal subsequentemente à separação judicial de pessoas e bens.
Texto Integral
Relator: Luís Miguel Martins
Primeiro Adjunto: José Manuel Flores
Segunda Adjunta: Conceição Sampaio
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
I. Relatório (feito com base no relatório da sentença apelada)
AA, residente na Rua ..., ... Guimarães, instaurou contra a HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE BB, representada pela cabeça de casal, CC, residente na Rua ..., ..., ..., CC, residente na Rua ..., ... ..., DD, residente na Rua ..., ... ..., EE, residente na Rua ..., ... ..., FF, residente na Rua ..., ..., da freguesia ..., ... ..., GG, residente na Rua ..., ... Guimarães e HH, residente na Rua ..., ... Guimarães ação declarativa, pedindo que o Tribunal declare que a quantia exequenda - objeto da execução que corre termos no Juízo (1) de Execução de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º de proc. 1946/14.... -, é bem comum das heranças de BB e II, condenando-se os réus reconhecê-lo, entregando-se à autora, na qualidade de cabeça de casal no inventário para separação de bens dos seus pais (BB e II) que corre termos sob o nº ...5 no Cartório Notarial, a quantia exequenda que for depositada nesses autos de execução.
Alega, em primeira linha, a sua legitimidade ativa para a presente ação, quer como única e universal herdeira da sua mãe, II, falecida em ../../1995, quer como cabeça-de-casal no inventário instaurado para separação dos bens dos pais, II e BB, falecido em ../../2013.
Em segunda linha, alega, para fundamentar a sua pretensão, que a quantia exequenda emerge de sentença judicial, de 4 de outubro de 1991, transitada em julgado, que a condenou e ao marido, ao pagamento ao pai, BB, da quantia de 12.000.000$00 (doze milhões de escudos), proveniente da anulação de negócios, por simulação, celebrados em 28 de outubro de 1983, 13 de fevereiro de 1984, 3 de fevereiro de 1986 e 16 de abril de 1987.
Defende que esta quantia integra o património comum dos pais, casados, sob o regime da comunhão geral de bens, desde ../../1953, e separados judicialmente de pessoas e bens, no âmbito da competente ação, instaurada em 1 de fevereiro de 1988, com decisão de 5 de julho de 1990.
Conclui que, por isso, que se trata de crédito comum que deve ser relacionado no inventário instaurado para separação de meações do casal formado pelos pais que corre no Cartório Notarial.
Alega, que, todavia, os herdeiros de BB (à exceção da autora, por deserdação, por testamento de 1997), não reconhecem a natureza comum desse crédito, pretendendo a entrega da totalidade da quantia exequenda, no âmbito dos autos de execução supra identificada.
Para fundamentar a natureza comum da sobredita quantia/crédito, sustenta, concretamente, o seguinte:
- a 1 de fevereiro de 1988, a sua mãe, II, requereu a separação judicial de bens em ação que correu sob o n.º de proc. ...96, do ... Juízo – ... Secção do Tribunal Judicial de Braga, e que veio a ser julgada procedente por acórdão do STJ de 5 de julho de 1990;
- decretada a separação judicial de pessoas e bens, correu, por apenso, inventário em que exerceu funções de cabeça-de-casal o pai, BB;
- na primeira relação de bens apresentada, o cabeça-de-casal indicou, sob a verba 13, o crédito do casal sobre a aqui autora, JJ e marido, KK, no montante de 12.000000$00 (doze milhões de escudos), que voltou a indicar como dívida ativa, sob a verba 1, na nova relação de bens de 28 de abril de 1998;
- com o óbito dos dois interessados, o sobredito inventário foi extinto, por inutilidade superveniente da lide;
- ante a extinção daquela instância, instaurou, em 3 de fevereiro de 2015, inventário para partilha e separação de meações, sob o n.º de proc. ...5, que, atualmente, corre apenas para separação judicial de bens, e no qual lhe incumbe o cabeçalato;
- na relação de bens que apresentou não indicou o crédito em questão, por entender que já estava satisfeito, o que levou à reclamação dos réus, ali habilitados, que defendem a sua inclusão na relação de bens; questão que foi remetida para os meios comuns;
- entretanto, reconheceu dever o dito montante, aditando-o à relação de bens, o que levou os interessados a aceitar aquele montante mas não a sua natureza comum ao casal, LL e II;
- o crédito é, no entanto, comum, não só porque assim foi reconhecido pelo falecido e pelos interessados, mas, essencialmente, porque provém de negócios celebrados, respetivamente em 28 de outubro de 1983, 13 de fevereiro de 1984, 3 de evereiro de 1986 e 16 de abril de 1987, período em que o pai era casado com a sua mãe, no regime da comunhão geral de bens;
- apenas em 1 de fevereiro de 1988 a mãe instaurou ação de separação judicial de pessoas e bens;
- não obstante, a cabeça-de-casal da herança de BB está a impulsionar o processo de execução, insistindo com o AE para prosseguir na venda, apesar da execução se encontrar sustada, com o propósito dos exequentes disporem da quantia exequenda na sua integralidade, não levando em conta o direito da aqui autora por ser a única herdeira de sua mãe e, nessa medida, simultaneamente, devedora e credora, de metade ideal;
- ao receberem a quantia exequenda, os exequentes podem dissipá-la, tornando impossível a sua restituição ao património comum do dissolvido casal, património esse que está a ser objeto de processo de inventário para a separação de meações, conforme supra se referiu;
- os réus apenas têm direito a uma quota ideal da quantia exequenda, cuja administração pertence à autora como cabeça-de-casal nos autos de inventário para separação de meações.
Face a todo o exposto, a autora sustenta que é mister apurar e declarar a natureza da quantia exequenda como bem comum às duas heranças dos seus pais, conforme se peticiona.
Citados que foram os réus, apenas a Herança, MM, DD e EE apresentaram contestação, por via de exceção e por via de impugnação.
Em primeira linha, suscitam a existência de erro na forma do processo, a incompetência material do Tribunal e a litispendência, apresentando, essencialmente, a linha de raciocínio seguinte.
Na perspetiva dos réus/contestantes, as questões referentes aos bens relacionados, ou não, nos processos de inventário são discutidas no âmbito do incidente da instância do inventário, no qual as partes apresentam as suas alegações e as provas tidas por pertinentes, sendo essa a sede própria para os interessados tomarem expressa posição sobre todas e quaisquer deficiências que se registem na peça processual destinada a balizar e definir as concretas situações jurídicas ativas e passivas que compõe o acervo hereditário a partilhar.
Assim sendo, a instância competente para dirimir o litígio que a autora veio trazer a estes autos é o processo de inventário que corre termos no Cartório Notarial, no qual esta questão concreta continua, inclusive, a ser discutida, como se alcança e depreende do alegado pela autora.
Nessa medida, verifica-se existir erro na forma de processo utilizado pela autora, a incompetência material deste Tribunal (até porque as questões relacionadas com os processos de inventário, quando remetidas para os meios comuns, são da competência do Tribunal de Família e Menores) e ainda a litispendência, o que pede seja reconhecido e determinado, com a consequente absolvição da instância.
Impugnando, os réus contestantes rejeitam a inclusão do crédito exequendo no inventário para separação de meações, desde logo, porque não foi relacionado pela autora, o que mereceu reclamação por parte dos demais interessados, tendo o Sr. notário proferido douto despacho através do qual enviou as partes para os meios comuns.
Todavia, os ali reclamantes, aqui réus, não instauraram ação com esse objeto.
Como tal, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 36.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, abstendo-se o notário de decidir as reclamações e remetendo os interessados para os meios judiciais comuns, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou. Dito de outro modo, tendo o Sr. notário remetido os interessados para os meios judiciais comuns, a quantia exequenda não está incluída no inventário.
Sem prescindir, dispõe o artigo 82.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário que “em tudo o que não esteja especialmente regulado na presente lei, é aplicável o Código de Processo Civil e respetiva legislação complementar”.
O Código de Processo Civil consigna que “o autor pode, em qualquer altura, desistir de todo o pedido ou de parte dele (art. 283.º do Código de Processo Civil). A desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer.
Ora, além de não terem instaurado ação com vista à discussão da natureza do crédito, os aqui réus ainda desistiram do pedido formulado na reclamação que apresentaram à relação de bens oferecida pela ali cabeça de casal quanto à não relacionação do crédito a que a aqui autora se refere nos presentes autos. Como tal, não se verifica o requisito que a autora invoca para fazer o seu direito.
Sem prescindir, acrescentam que a autora, na qualidade invocada de cabeça de casal da herança, não dispõe da titularidade do bem no processo de inventário para partilha e separação de meações. Na verdade, a autora não é titular de qualquer direito relativo à coisa, até porque a mesma não é exequente nos autos de execução que correm termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão, sendo antes executada.
Concluem que, face ao exposto, a autora não tem legitimidade ativa para intentar a presente ação.
Sem prescindir, sustentam que a presente ação não tem qualquer efeito útil.
Concretizando, sustentam que, em consequência do falecimento do exequente originário, por sentença datada de ../../2021, e sem que tivesse havido oposição da ali executada, e aqui autora, foram os aqui réus, reconhecidos como únicos e universais herdeiros do exequente primitivo, por sentença de habilitação, transitada em julgado. Dito de outro modo, os aqui réus são legítimos exequentes naqueles autos de execução judicial, assistindo-lhes, totalmente, o direito de fazerem prosseguir a instância, de forma regular e, bem assim, de receberem a quantia exequenda.
Tanto assim é que naqueles autos de execução foi já rejeitada a pretensão que a aqui autora veio reclamar, repetidamente, com a instauração da presente ação, não se concebendo que este Tribunal tenha poderes de interferir com a estabilidade da instância naqueles autos de execução, determinando quem tem legitimidade para receber a quantia exequenda.
Além disso, a pretensão da autora é absolutamente infundada, pois que o reconhecimento da qualidade de bem comum desse montante não fica prejudicada pelo facto dos aqui réus virem a receber a quantia exequenda, havendo sempre lugar a prestação de contas caso venha a ser reconhecida a qualidade de bem comum daquela quantia.
A ré rejeita, ainda, qualquer perigo de dissipação daquela quantia com o prejuízo irreparável da autora; já que, o pagamento estaria sempre assegurado por força dos bens da herança, superiores a um milhão de euros, além de que a autora está em poder de créditos da herança de montante superior ao crédito exequendo.
Rejeitam, também, a natureza de bem comum do crédito exequendo, sustentando que apenas pertence à herança de BB. Isto porque, a mãe da autora requereu a separação judicial de pessoas e bens em 1 de fevereiro de 1988, em consequência do facto de não fazer vida em comum com BB, pelo menos, desde 1980. Desde então, todos os negócios realizados pelo falecido BB eram negócios próprios seus e sem que houvesse o contributo do património conjugal.
Daí que quando aquele BB instaurou a ação declarativa da qual originou o crédito em causa – em 28/11/1988 – há muito que o mesmo se encontrava separado de pessoas e bens. Esta ação foi, inclusive, instaurada pelo autor, na qualidade de separado, depois da mãe da autora ter requerido a separação judicial de pessoas e bens, que foi decretada em 12/12/1988.
Ora, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, os efeitos desta separação retroagiram à data da propositura da ação.
Também o exequente instaurou a respetiva ação, por si só, sem que a executada tenha reagido, estabilizando-se a instância executiva.
Concluem que, por isso, o crédito exequendo é um bem próprio do exequente, devendo a ação ser julgada improcedente.
A autora respondeu à matéria de exceção, frisando, conforme já alegado, que a questão da natureza (comum) do crédito – que os réus sustentam ser da competência do notário – foi, por despacho de 23/10/2018, remetida para os meios comuns; o que os réus não ignoram porque são interessados nos autos de inventário, que se encontra suspenso até haver decisão quanto às duas questões que foram enviadas para os meios comuns.
Confirma ser verdade que os réus não instauraram ação para fazer valer o direito de que reclamaram, frisando, novamente, que, como interessada e cabeça de casal, reconheceu o crédito reclamado, requerendo que fosse relacionado no inventário, o que mereceu resposta por parte dos interessados MM, DD e EE que alegaram que o “o valor a relacionar terá de ser o correspondente ao valor atual em dívida, o qual contempla, para além da quantia exequenda o valor dos juros de mora…”, suscitando, novamente, a questão de saber se o crédito é um bem comum do casal ou se é um bem próprio do interessado BB. A outra R./interessada FF alegou que “a requerente é efetivamente devedora de BB nos montantes que vierem a resultar daqueles autos executivos, da quantia exequenda, juros e custas”, sustentando a natureza própria do bem, por pertencer, exclusivamente, a BB.
A ser assim, considerando que o crédito não tem natureza comum ao casal formado por BB e II, a autora não seria herdeira de tal montante.
Assim, por cautela e estratégia, os réus/interessados/reclamantes, com vista a receber a quantia exequenda e apossarem-se dela, decidiram, em 21/12/2022 desistir da reclamação no inventário.
Todavia, mantendo-se a questão de saber se se trata de bem comum; questão essa que foi remetida para os meios comuns, este Tribunal é o competente para a sua apreciação e a forma de processo escolhida a adequada.
O facto de não ser exequente naqueles autos de execução que correm termos no Juízo de Execução de Famalicão não tira à autora o direito à coisa, por ser herdeira de metade daquela quantia exequenda em virtude de ser a única herdeira de sua mãe, falecida, II. Quantia essa, que deve estar relacionada nos autos de inventário, quer porque a cabeça de casal, voluntariamente, a reconheceu, quer porque ainda não recaiu despacho sobre a desistência do pedido quer ainda porque, os referidos réus/interessados, GG e HH, reclamaram tempestivamente da sua inclusão.
Conclui que, por isso, tem total legitimidade para instaurar a presente ação pois é cabeça de casal nesse inventário, sendo indiferente que o seu pai, e dos réus, tenha instaurado a ação enquanto separado, mas casado com II, de quem é única herdeira.
Conclui, a final, como na petição inicial.
Findos os articulados, suscitou-se a questão da competência material do Tribunal, que foi decidida no sentido da atribuição ao Juízo de Família e Menores da competência para o conhecimento da questão dos autos.
Designou-se data para a realização de audiência prévia.
No seu âmbito, frustrada a conciliação das partes, que mantiveram as posições assumidas nos seus articulados, ofereceu-se a discussão, de facto e de direito, quanto à matéria de exceção dilatória e quanto ao mérito da causa.
Nesta parte, pedida a palavra, pelos réus, para atualização do estado da causa, declararam que a quantia exequenda foi, entretanto, liquidada, o que conduziu à extinção da execução, defendendo que, com isso, inexiste objeto na presente ação que deve ser extinta, por inutilidade superveniente da lide.
No mais, reiteraram a exceção de incompetência do Tribunal, na medida em que a questão suscitada nos autos está sob decisão no Cartório Notarial, não tendo os interessados sido remetidos para os meios comuns.
Finalmente, ex novo, sustentam uma atuação em abuso do direito por parte da autora que, no âmbito da ação judicial de condenação, defendeu a inexistência da dívida que agora sustenta integrar o património comum dos pais.
Em resposta, a autora defendeu que a última exceção (abuso de direito) não foi suscitada nos articulados, conforme, processualmente, se impunha.
Mais referiu que, os pedidos formulados mantêm a sua validade, ainda que a quantia exequenda esteja paga.
Por último, defendeu que no Cartório Notarial se remeteu para os meios comuns a questão da natureza (comum) da dívida/crédito discutido nos presentes autos.
Realizada a audiência prévia, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“VIII. Dispositivo
Nos sobreditos termos, julga-se a presente acção procedente, por provada, e, em consequência, declara-se que a quantia exequenda - objecto da execução que corre termos no Juízo (1) de Execução de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º de proc. 1946/14.... -, é bem que integrou o património comum de BB e II, condenando-se os réus a reconhecê-lo e a entrega-la à autora, na qualidade de cabeça de casal no inventário para separação de bens dos seus pais (BB e II) que corre termos sob o nº ...5 no Cartório Notarial.
Custas pelos réus/contestantes.
Notifique. ”.
*
Irresignada com a sentença, dela recorreram apenas os réus contestantes MM, DD e EE, que formularam a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“PRIMEIRA: Vem o presente recurso interposto da sentença proferida, em que, no essencial, foi decidido, por um lado, que a quantia exequenda é bem comum do casal e, por outro lado, que, não obstante inexistir já quantia exequenda, por extinção da instância executiva pelo pagamento da quantia exequenda, persiste o objeto da ação, por estar em causa saber-se da natureza (própria ou comum) do crédito em causa enquanto integrado no inventário instaurado na sequência da separação judicial de pessoas e bens de BB e de II.
SEGUNDA: Em todo o seu articulado inicial, quer seja analisado globalmente, quer seja analisado individualmente, a autora coloca como causa de pedir e sobre a qual formula o respetivo pedido a quantia exequenda objeto da execução que corre termos no juízo (1) de Execução de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º de proc. 1946/14.....
TERCEIRA: Dúvidas não restam, pois, que o objeto da presente ação consiste na quantia exequenda depositada naqueles autos de execução.
QUARTA: Daí que mal andou o tribunal em considerar que a extinção da instância executiva pelo pagamento da quantia exequenda em nada afeta a utilidade desta demanda; quer por se manterem os seus sujeitos, quer por se manter o seu objeto: o de saber a natureza (própria ou comum) do crédito em causa enquanto bem integrado no inventário instaurado na sequência da separação judicial de pessoas e bens de BB e de II.
QUINTA: Pois que o crédito em causa é, objetivamente, a quantia exequenda objeto daqueles autos executivos, que deixou de existir, por força do seu pagamento aos exequentes habilitados.
SEXTA: Ao desaparecer o objeto do processo ocorre uma das situações a que alude o artigo 277º, al. e) do CPC, que determina a inutilidade superveniente da lide, que é uma das causas de extinção da instância, que se impunha tivesse sido determinado pelo Tribunal de 1ª Instância.
SÉTIMA: Sem prescindir e quanto à questão referente à natureza do crédito – e não já à da quantia exequenda, porque esta deixou de existir – dir-se-á que mal andou o Tribunal ao considerar pela natureza comum desse crédito.
OITAVA: Do que resulta dos autos haverá de concluir, necessariamente, que o crédito só se originou e passou a existir única e exclusivamente por iniciativa e ação do autor e com a oposição do seu cônjuge.
NONA: Não fosse por esta ação e iniciativa do autor e o crédito jamais teria sido reconhecido.
DÉCIMA: Como vem sendo decidido pela nossa Jurisprudência superior: Sintetizando todo o regime numa frase: “o princípio é o de que bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos eles, não o sendo os que resultam do esforço apenas de um desses cônjuges.”
DÉCIMA PRIMEIRA: No caso dos presentes autos, resulta evidente que o crédito foi adquirido exclusivamente pelo pai da autora, por via de direito próprio, daquele cônjuge, contra a vontade e o interesse da mãe da autora, em momento posterior ao matrimónio, porquanto se verifica que a mãe da autora instaurou contra o pai da autora a ação de separação de pessoas e bens em 01/02/1988, sendo a própria autora quem alegou que os seus pais se encontravam separados efetivamente desde momento anterior a 14/11/1987 – cfr. sentença de prestação de contas no proc. 317/14.... – e se sabe que a ação da qual veio a resultar o crédito do pai da autora foi por este intentada contra a autora e seu marido em 29/11/1988.
DÉCIMA SEGUNDA: De onde se haverá de concluir que este crédito não resulta do esforço conjunto do casal – bem pelo contrário – e, portanto, deve escapar à massa comum, para pertencer apenas ao cônjuge que o fez entrar para o casamento”
DÉCIMA TERCEIRA: Logo, haverá de se concluir tratar-se de um bem próprio do pai da autora e dos aqui réus.
DÉCIMA QUARTA: Para além deste argumento, acresce um outro e que está relacionado com o caso julgado material que decorre daquela ação condenatória, onde foi igualmente parte a aqui autora e o exequente originário.
DÉCIMA QUINTA: Nessa ação declarativa, como se alcança da mesma e bem assim do requerimento executivo, a sentença proferida, transitada em julgado, condenou, além do mais, os réus a pagar ao Autor a quantia de doze milhões de escudos.
DÉCIMA SEXTA: Neste contexto, a factualidade dada como provada e bem assim a decisão proferida de condenar os réus a pagarem ao autor a quantia de doze milhões de euros, faz caso julgado material quanto à circunstância da declaração de reconhecimento daquele crédito exclusivamente a favor do ali autor, no caso a favor do pai da autora e dos réus.
DÉCIMA SÉTIMA: Ou seja, no processo declarativo, a procedência da pretensão do ali autor – desacompanhado da sua mulher - derivou, com força de caso julgado, de lhe ser reconhecida a natureza própria daquele crédito, com base nos arts. 1721º e 1722º nº. 1, al. c) a contrario e 1724º al. b) todos do Código Civil. Esta apreciação (definitiva), que considerou tal crédito como bem comum, impede-nos, agora, de o decidir em sentido diferente.
DÉCIMA OITAVA: E, como tal, também por este argumento, deverá ser considerado que o crédito a que a autora se refere que terá que intentar mais uma ação para que lhe seja reconhecido é um bem próprio dos pais dela e dos réus.
DÉCIMA NONA: Por outro lado ainda, como se alcança da sentença recorrida, a Mma. Juiz do Tribunal a quo concluiu pela natureza comum do crédito por considerar, erradamente, que o BB adquiriu o direito (crédito) em Abril de 1987, quando ainda era casado, no regime da comunhão geral com II.
VIGÉSIMA: Acontece que nessa altura a ali ré não reconhecia a obrigação que só mais tarde e por força da decisão judicial é que a mesma foi condenada.
VIGÉSIMA PRIMEIRA: Nessa altura a mãe da ré e cônjuge do BB considerava não existir qualquer obrigação por parte da sua filha, quer quanto à titularidade das outras duas frações, quer quanto à obrigação de entregar a si ou ao seu cônjuge a quantia de 12.000.000$00.
VIGÉSIMA SEGUNDA: De igual modo se o pai da autora não intentasse aquela ação declarativa não era o mesmo titular de qualquer crédito relativamente à autora. Tanto mais que a fração vendida estava em nome e era da titularidade da aqui autora, que tinha, como teve, plenos poderes de a alienar e de receber o preço correspondente, como recebeu.
VIGÉSIMA TERCEIRA: Significa isto que o direito de crédito, no caso presente, só emergiu, só passou a existir por decisão judicial transitada em julgado.
VIGÉSIMA QUARTA: Decisão judicial essa que transitou em julgado apenas em 29/06/1993, altura em que, garantidamente, os pais da autora já se encontravam separados de pessoas e bens.
VIGÉSIMA QUINTA: Também com base neste argumento, impunha-se que o Tribunal de 1ª Instância tivesse considerado que o crédito é um bem próprio do pai da autora e dos réus.
Termos em que, por violação dos artigos 277º, al. e), 619º, n.º 1, 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º do cpc, e dos artigos 1721º, 1722º e 1724º do Código Civil, deverá ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que absolva os réus da instância por inutilidade superveniente da lide ou, não sendo o caso, que julgue a presente ação improcedente e reconheça que o crédito é bem próprio do pai da autora e dos réus.
Assim fazendo, V/ Exas, Juízes Desembargadores, a costumada justiça.”.
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Contra-alegou a autora, pugnando pela improcedência do recurso interposto.
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O recurso foi admitido, como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em apreciar:
1. Da inutilidade superveniente da lide.
2. Da natureza do crédito exequendo (bem comum ou bem próprio).
*
III. Fundamentação de facto.
Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:
“1. A ../../1953, BB e II contraíram casamento católico, sob o regime da comunhão geral de bens.
2. Em ../../1954 nasceu, em ..., freguesia ..., Guimarães, AA, filha de BB e II.
3. A 1 de Fevereiro de 1988, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, II requereu a separação judicial de pessoas e bens, em acção que correu seus termos no ... Juízo, ... Secção, sob o nº de proc. ...96.
4. Por decisão judicial, transitada em julgado, em 5 de Julho de 1990, foi decretada a separação judicial de pessoas e bens entre BB e II.
5. A 29 de Novembro de 1988, BB instaurou contra a aqui autora e marido, KK, acção ordinária que correu termos sob o nº ...23/88, no ... Juízo, ... Secção do, então, Tribunal Judicial da Comarca de Braga, pedindo, para além do mais, a condenação dos réus ao pagamento do montante de doze milhões de escudos, relativos ao preço da venda (simulada) de uma fracção autónoma (M).
6. Nesse âmbito, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 1993, transitado em julgado, os réus foram condenados ao pagamento do montante peticionado.
7. Na fundamentação da decisão deu-se por provado, além do mais, que:
a. “Em 04.10.75, NN subscreveu documento … no qual declarou ter vendido, ao autor, uma casa situada no ..., ...…
b. Nesse documento, declarou o mesmo NN que a respectiva escritura seria outorgada até ao fim do ano então corrente e que o comprador poderia, desde logo, tomar co1ta do prédio, referindo que, para esse efeito, lhe entregou as chaves;
c. … a partir da indicada data, o autor passou a deter o prédio;
d. O autor é, como já então era, industrial, enfrentando, na altura, problemas económicos e financeiros, que se arrastaram durante mais 10 anos e que deram origem a inúmeras acções judiciais … colocando-o à beira da falência …;
e. NN faleceu em ../../1982;
f. Por escritura de 28.10.83 … a viúva e demais herdeiros do mesmo NN … declararam vender à ré, o … prédio sito no ...;
g. Em 31.10.83, o autor e a ré, sua filha, subscreveram o documento … pelo qual a última prometeu vender ao primeiro, e este prometeu comprar, pelo preço de 15.000.000$00 que se declarou ter sido entregue, o prédio que ela adquiria pela dita escritura de 28.10.83;
h. Ao contrário do que se diz naquele documento …., o autor não pagou a … quantia de 15.000.000$00;
i. Por escritura de 13.2.84 … a ré vendeu à sociedade “EMP01..., Lda.”, o prédio que comprara pela referida escritura de 28.10.83;
j. Por escritura de 03.02.86…. aquela “EMP01..., Lda.” vendeu, à ré, duas fracções autónomas, designadas pelas letras ... e ..., de um prédio em regime de propriedade horizontal;
k. Por outra escritura, também outorgada em 03.02.86… a mesma “Construtora” vendeu, à ré, outra fracção do mesmo prédio identificada pela letra ...;
l. Por escritura de 16.04.87 … , os réus venderam a OO a fracção identificada pela letra ...;
m. Com tal contrato o autor e a ré pretenderam dissimular o verdadeiro negócio que quiseram celebrar;
n. A ré, ao outorgar a escritura de 28.10.83; … agiu conforme a incumbência e instruções que recebeu do autor e aceitou respeitar;
o. Isto para encobrir o nome do pai, que era o verdadeiro dono do negócio e para que se tinha, previamente, comprometido a transferir a propriedade do imóvel, logo que o autor o julgasse oportuno;
p. Desde a realização da venda … da fracção ..., os réus passaram a impedir o acesso do autor … às fracções ... e ....
8. Em 29 de Novembro de 1993, a sentença condenatória foi, por apenso, dada à execução, correndo, actualmente, os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão-Juiz ..., com o nº 1946/14.....
9. Em 21 de Setembro de 2022, a quantia exequenda fixava-se em € 241.813,92 (duzentos e quarenta e um mil, oitocentos e treze euros, noventa e dois cêntimos).
10. A autora foi deserdada pelo pai, em testamento.
11. Com o óbito de BB, os aqui segundo a sétimo réus foram habilitados como herdeiros/exequentes.
12. Por apenso à acção para separação judicial, BB instaurou inventário, que correu termos pela, então, ... Secção do Tribunal de Família e Menores de Braga, sob o n.º de proc. ...96.
13. O requerente exerceu as funções de cabeça-de-casal, apresentando a relação de bens, na qual elencou como dívida/credito do património comum a quantia referida em 5. e 6 (crédito do casal sobre a interessada JJ e marido KK, no valor de doze milhões de escudos e respetivos juros).
14. Com o óbito de BB, os autos de inventários foram extintos, por inutilidade superveniente da lide.
15. Em 18 de Fevereiro de 2004, por escrito, perante notário, PP, QQ e RR, declararam que II faleceu a ../../1995, em ..., Guimarães, no estado de separada judicialmente de pessoas e bens de BB, sucedendo-lhe, como única herdeira, a filha, AA.
16. Em ../../2013 faleceu, no estado de viúvo de II, BB.
17. A autora, AA, instaurou processo de inventário para partilha dos bens dos pais, que corre, sob o nº ...5, no Cartório Notarial do Notário SS, sito na Av. ..., ..., Guimarães.
18. Nesses autos, a autora exerce o cabeçalato.
19. Na relação de bens apresentada, a cabeça-de-casal não relacionou o crédito id. em 9.
20. Os interessados MM, DD e EE apresentaram reclamação à relação de bens, com fundamento na omissão do relacionamento do dito crédito.
21. Em face da reclamação dos interessados, CC, DD e EE, fundada na falta de relacionação de um crédito do património comum do ex-casal, formado por BB e II, sobre a cabeça-de-casal, AA, e marido, o Sr. notário, por despacho de 23/10/2018, decidiu, além do mais, remeter os interessados para os meios comuns quanto àquela questão, suspendendo os autos até decisão.
22. Posteriormente à decisão do Sr. notário, a cabeça-de-casal, AA, declarou admitir a existência do crédito reclamado.
23. Em face desse reconhecimento, o Sr. notário ofereceu o contraditório aos co-interessados.
24. Em contraditório, os interessados MM, DD e EE declararam que o “o valor a relacionar terá de ser o correspondente ao valor atual em dívida, o qual contempla, para além da quantia exequenda o valor dos juros de mora…”, suscitando, novamente, a questão de saber se o crédito é um bem comum do casal ou se é um bem próprio do interessado BB.
25. A interessada FF alegou que “a requerente é efetivamente devedora de BB nos montantes que vierem a resultar daqueles autos executivos, da quantia exequenda, juros e custas”, sustentando a natureza própria do bem, por pertencer, exclusivamente, a BB.”
*
IV. Do objeto do recurso.
Quanto à arguida inutilidade da lide.
Dispõe o art. 277.º, al. e) do Código de Processo Civil, que tem como epígrafe “Causas de extinção de instância”, que a instância se extingue por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
A impossibilidade superveniente da lide pode derivar de três ordens de razões:
- Impossibilidade subjetiva que sucede nos casos das relações jurídicas pessoais que se extinguem com o falecimento do titular da relação, não existindo sucessão nessa titularidade;
- Impossibilidade objetiva no caso de relações jurídicas infungíveis em que a obrigação não possa ser cumprida por outrem ou em que a coisa não seja substituível por outra;
- impossibilidade causal quando ocorre a extinção de um dos interesses em litígio, como sucede no caso de existir confusão nos termos do art. 868.º do Código Civil.
Já a inutilidade superveniente prende-se com a obtenção do efeito preconizado por uma via distinta, sendo o caso paradigmático o do pagamento da quantia peticionada, ou, em geral, o cumprimento voluntário da obrigação em causa ou a entrega da coisa reivindicada[1].
No caso dos autos, o que eventualmente poderia estar em causa seria não a impossibilidade, mas sim a inutilidade da lide, conforme referem os apelantes, sendo certo que só em abstrato, pois que em concreto nenhuma razão lhes assiste, como se passa a explicar.
Como supra já se deixou dito e agora se sintetiza, a autora alega que a quantia exequenda objeto da execução que corre termos no juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão, sob o n.º de proc. 1946/14.... era bem comum do extinto casal constituído pelos seus progenitores e nessa medida quer que seja reconhecido isso mesmo, peticionando que:
“a) Seja declarado que a quantia exequenda objeto da execução que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão-Juiz ... com o nº 1946/14...., seja considerado bem comum das heranças de BB e II, e como tal ser reconhecido por A. e RR., na qualidade de interessados naqueles autos de inventário;
b) Ser entregue à A., na qualidade de cabeça de casal no inventário para separação de bens dos seus pais que corre termos sob o nº ...5 no Cartório de SS, a quantia exequenda que for depositada nesses autos de execução.”.
Ora, como é evidente, mantém todo o interesse saber se a quantia exequenda reclamada nos autos de execução em causa era bem comum do extinto casal formado por BB e II, não ficando de algum modo precludido esse desiderato por entretanto ter sido liquida essa quantia e ter sido extinta a instância executiva, pois que o que evidentemente está em discussão é o crédito incorporado nessa execução que se alicerçou em sentença condenatório obtida em prévio processo declarativo, sendo certo que nesse processo declarativo foi alegada e provada factualidade da qual ressumou a decisão final transitada em julgado proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
É, pois, absolutamente anódino para a sorte dos presentes autos que a instância executiva tenha sido ou não declarado extinta, importando curar se a quantia exequenda ali reclamada tinha ou não a natureza de bem comum pertencente ao extinto casal supra referido. É que mesmo pelo pagamento e extinção da instância executiva esta lide continua a manter todo o interesse visto que o crédito exequendo mostrando-se liquidado, transmuta-se agora numa importância pecuniária, que assumindo a natureza de comum deverá naturalmente ser tida como tal no inventário aberto por óbito dos pais da apelada.
Mantém-se, pois, todo o interesse e pertinência na indagação da natureza (própria ou comum) do crédito em causa, pois que tal contagia a natureza da importância que foi liquidada nesse âmbito.
Ou seja, se o crédito exequendo tiver natureza comum, a importância paga para liquidar tal crédito assume necessariamente a natureza comum e tal raciocínio se aplica se estiver causa um crédito de natureza próprio em que a importância liquidada assume a natureza de bem próprio.
Inexiste, pois qualquer inutilidade superveniente da lide.
*
Da natureza do crédito exequendo.
Conforme decorre dos factos assentes constantes do acórdão condenatório, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 29 de junho de 1993, transitado em julgado, em 28 de outubro de 1983, a quantia em que a autora foi condenada a pagar ao seu pai proveio do preço de uma venda de uma fracção autónoma (M), simuladamente comprada pela autora, tudo conluio com o seu pai, BB, no propósito de titular, formalmente, os negócios deste, com o propósito de iludir credores.
Aliás, nesse contexto, a aqui autora titulou, formalmente, diversos negócios de compra e venda, de facto, celebrados pelo seu pai.
Porém, no que ao caso interessa, temos que por escritura de 3 de fevereiro de 1986, aquela “EMP01..., Lda.”. Por outra escritura, da mesma data, a mesma “EMP01...” vendeu, à autora outra fração do mesmo prédio identificada pela letra ..., que a aqui autora, e marido, venderam, por escritura de 16 de abril de 1987, venderam a OO.
Conforme se provou, a autora outorgou todos estes contratos, formalmente, segundo e seguindo as instruções do pai, para encobrir a intervenção deste, verdadeiro contratante.
Como se escreveu na decisão de primeira instância, sumariando o decidido na ação ordinária que correu termos sob o nº ...23/88, no ... Juízo, ... Secção do, então, Tribunal Judicial da Comarca de Braga, que condenou a aqui autora, para além do mais no pagamento de 12.000.000$00 ao seu falecido pai:
“No caso dos autos, a compra e venda da fracção ..., foi simulada apenas por interposição fictícia de pessoas. As declarações de vontade (de vender/comprar) são verdadeiras, apenas não estão presentes os verdadeiros sujeitos contratuais; no caso, o pai da autora enquanto comprador/vendedor.
A autora só actuou sob as instruções do pai que aceitou respeitar, para encobrir o nome deste que era o verdadeiro dono do negócio.
Segundo o disposto pelo artigo 258.º do CC, o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado produz os seus efeitos jurídicos na esfera jurídica deste. O mandatário que age em nome próprio, como no caso da autora, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, mas é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato. Tratando-se de créditos, o mandante pode substituir-se ao mandatário no exercício dos respectivos direitos (cfr. artigos 1180.º e 1181.º do CC).
Por conseguinte, a venda da fracção ..., outorgada pela autora em representação do pai, produziu os seus efeitos na esfera jurídica deste, por mero efeito do contrato, gerando a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagar o preço (cfr. 879.º do CC). Por conseguinte, a obrigação de pagamento do preço nasceu na esfera jurídica do comprador em 16 de Abril de 1987, simultaneamente, nascendo na esfera jurídica do verdadeiro vendedor o direito a receber o mesmo. Dito de outro modo, com a celebração da escritura nasceu na esfera jurídica de BB o direito de exigir o preço (e nasceu a obrigação da mandatária de lho entregar – cfr. artigo 1161.º, al. e), do CC).”.
Dissidem, porém, os apelantes na asserção produzida na Tribunal recorrido que o dito BB adquiriu o direito (crédito) em abril de 1987, quando ainda era casado, no regime da comunhão geral com II.
Dizem que o crédito apenas foi adquirido pelo dito BB com o trânsito em julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 29 de junho de 1993, ou seja já depois de requerida e decretada a separação judicial de pessoas e bens entre os pais da autora (foi requerida em 1 de fevereiro de 1988, e foi determinada, por decisão judicial, transitada em julgado, em 5 de julho de 1990).
Não assiste qualquer razão aos apelantes.
A decisão condenatória proferida nos autos em causa, em 1993, não fez nascer o crédito com o seu trânsito em julgado. Tal decisão foi proferida no âmbito de uma ação condenatória e não no âmbito de uma ação constitutiva de direitos.
De acordo com o art. 10.º, n.ºs 2 e 3 do Código de processo Civil:
“2 - As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas.
3 - As ações referidas no número anterior têm por fim:
a) As de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto;
b) As de condenação, exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito;
c) As constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente.”
As ações condenatórias, pelo menos de forma implícita impõem sempre a prévia apreciação do direito e são por isso também ações de simples apreciação[2].
“É o caso típico do credor que imputando ao réu a falta de cumprimento da obrigação, pretende que o tribunal, depois de reconhecer a existência do direito e a violação do dever correspondente, ordene ao devedor a realização da prestação devida (…)”[3]
A decisão judicial cingiu-se, pois, a declarar a existência do direito de crédito, constituído com anterioridade à data da condenação.
A posição dos apelantes não tem, assim, qualquer sentido, sendo que a ser sufragada tornaria, por exemplo, todos os créditos impugnados imprescritíveis, pois que apenas poderiam ser constituídos por decisão judicial…transitada em julgado.
Mas ainda que o crédito apenas se tivesse constituído aquando do trânsito da decisão do Supremo Tribunal de Justiça nem assim o crédito exequendo seria um bem próprio do BB.
É que a preceder a venda de tal imóvel e o recebimento do preço que a apelada se obrigou e estava obrigada a entregar ao seu pai, o mesmo foi comprado também simuladamente em 1986, com dinheiro que não podia deixar de ser comum, uma vez que o regime de bens do casamento era o de comunhão geral e nem sequer foi alegado que esse dinheiro fosse bem próprio do pai da apelada, nos escassos caso em que no regime da comunhão geral de bens se permite a titularidade de bens próprios, em consentaneidade com o plasmado no art. 1733.º, n.º 1 do Código Civil.
Ou seja, ainda que o crédito sobre a apelada se tivesse constituído depois da separação de pessoas e bens nem assim tal constituiria um bem próprio do seu pai dado que a mesma estaria fundada na alienação de património simuladamente adquirido pelo seu pai com dinheiro que por força do regime de bens seria comum, nada tendo sido alegado em sentido oposto. Aduzindo-se ainda que havendo dúvidas quanto à proveniência do dinheiro este seria um bem comum por virtude da presunção de comunicabilidade prevista no art. 1725.º do Código civil, aplicável ao regime da comunhão geral, nos estreitos casos em que tal dúvida pode eclodir, por virtude do remissivo art. 1734.º do mesmo diploma legal.
O raciocínio dos apelantes assenta ainda em premissas que não são verdadeiras, designadamente que: «Como vem sendo decidido pela nossa Jurisprudência superior: Sintetizando todo o regime numa frase: “o princípio é o de que bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos eles, não o sendo os que resultam do esforço apenas de um desses cônjuges.”.»
Refere que tal resultaria da decisão da Relação de Lisboa de 19/12/2013, no Proc. 20580/11.4T2SNT.L1-6, em que foi relator o Juiz Desembargador Vítor Amaral.
A frase em questão mostra-se totalmente descontextualizada, sendo absolutamente inverídico que os nossos tribunais superiores ou quaisquer outros, que se saiba, sufraguem como princípio geral que os bens sejam próprios ou comuns em função do esforço próprio ou conjunto dos cônjuges, o que aliás não tem qualquer base legal.
Diz-se naquele aresto da Relação de Lisboa que:
“Pretende, como dito, a A./Apelada que o imóvel em causa, não obstante adquirido por ambos os cônjuges na constância do matrimónio entre si, sob o regime da comunhão de adquiridos, é bem próprio seu e não, por isso, bem comum.
Neste regime de bens – o supletivo legal (art.º 1717.º do CCiv.) –, diversamente do que ocorre no regime da comunhão geral, em que, por regra, são comuns todos os bens dos cônjuges, presentes e futuros, “… nem os bens levados para o casal nem os adquiridos a título gratuito se comunicam”, apenas se comunicando “… os bens adquiridos depois do casamento a título oneroso”, já que o regime consagrado corresponde “… à ideia de só tornar comum aquilo que exprime a colaboração de ambos os cônjuges no esforço patrimonial do casamento” ([2]).
Daí a regra consagrada no preceito do art.º 1724.º do CCiv. (alªs a) e b) respectivas), segundo a qual fazem parte da comunhão, não só o produto do trabalho dos cônjuges, mas ainda os bens adquiridos por eles na constância do casamento.
Regra essa que, todavia, comporta excepções, entre elas as previstas no art.º 1722.º do CCiv., dentre as quais se salienta, pela sua pertinência in casu, a da al.ª c) do respectivo n.º 1, que estabelece serem considerados bens próprios dos cônjuges os “adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior”.
E, para além do mais, concretiza o n.º 2 do mesmo preceito legal (al.ª d) respectiva) serem considerados, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior “os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento”.
Quanto à natureza jurídica da comunhão conjugal, esclarece a doutrina que se trata de uma massa patrimonial (os bens comuns), com certo grau de autonomia, “que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco”, sendo tais cônjuges, ambos eles, “titulares de um único direito sobre ela” ([3]).
Nesta matéria, estabeleceu o legislador, quanto à participação dos cônjuges no património comum, a regra da metade, segundo a qual os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tendo, por isso, cada um deles, em condições de igualdade, a sua meação nos bens comuns (cfr. art.º 1730.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv.).
No que concerne à excepção prevista no citado art.º 1722.º, n.º 1, al.ª c) – bens adquiridos na constância do casamento por via de direito próprio, de um dos cônjuges, anterior ao matrimónio –, trata-se de “… bens que não resultam do esforço conjunto do casal, e portanto devem escapar à massa comum, para pertencerem apenas ao cônjuge que os fez entrar para o casamento” ([4]).
Quer dizer, o princípio é o de que bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos eles, não o sendo os que resultam do esforço apenas de um desses cônjuges.
Dito de outro modo, se um dos cônjuges – o “cônjuge adquirente” a que aludem os Autores que se vem citando ([5]) – adquire, sozinho, um bem que resulta exclusivamente do seu esforço em virtude de um direito próprio, direito esse que já lhe cabia anteriormente ao casamento, dúvidas não restam de se tratar de um bem próprio desse cônjuge, não tendo o outro (o cônjuge do adquirente, que, como tal, não outorga no contrato de aquisição, se de aquisição derivada se tratar, como ocorre na comum compra e venda, e a que, por isso, se poderia chamar “cônjuge não adquirente”) contribuído com qualquer esforço seu para a aquisição, limitando-se a ser o cônjuge de quem adquire.”.
Como se vê no Acórdão em causa trata-se de uma situação em que o regime de bens é da comunhão de adquiridos e por outro lado a asserção em causa foi produzida a propósito desse regime e mais especificamente do art. 1722.º, n.º 1, al c) do Código Civil, isto é bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior. Acresce que na decisão em apreço se teve o cuidado de dizer que tal é diverso do regime da comunhão geral de bens, em que por regra todos os bens dos cônjuges presentes e futuros são comuns.
Em suma, repete-se, a decisão em causa não tem a virtualidade que os apelantes pretendem extrair da mesma ao citarem descontextualizadamente uma passagem do aresto em causa.
De facto, de acordo com o art. 1732º do Código Civil, se o regime de bens adotado pelos cônjuges for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros não excetuados por lei, não sendo pois quanto a este ponto aplicável o remissivo art. 1734.º, que manda aplicar ao regime da comunhão geral de bens, como as adaptações necessárias, as disposições relativas à comunhão de adquiridos.
Assim sendo, e sem prejuízo do que supra se deixou dito quanto ao périplo que levou ao nascimento do crédito exequendo, esse tendo crédito em apreço surgido na constância do matrimónio dos pais da apelada tal bem era, desde logo por esta via, bem comum.
Só assim não seria se estivéssemos perante uma das hipóteses previstas no supra citado art. 1733.º que excetua da comunhão:
“a) Os bens doados ou deixados, ainda que por conta da legítima, com a cláusula de incomunicabilidade;
b) Os bens doados ou deixados com a cláusula de reversão ou fideicomissária, a não ser que a cláusula tenha caducado;
c) O usufruto, o uso ou habitação, e demais direitos estritamente pessoais;
d) As indemnizações devidas por factos verificados contra a pessoa de cada um dos cônjuges ou contra os seus bens próprios;
e) Os seguros vencidos em favor da pessoa de cada um dos cônjuges ou para cobertura de riscos sofridos por bens próprios;
f) Os vestidos, roupas e outros objectos de uso pessoal e exclusivo de cada um dos cônjuges, bem como os seus diplomas e a sua correspondência;
g) As recordações de família de diminuto valor económico.
h) Os animais de companhia que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento.”
Ora, manifestamente não se está perante nenhuma destas situações, pelo que o crédito em causa é inquestionavelmente um bem comum.
Quanto à questão de apenas o falecido BB ter sido parte na ação e não já a sua esposa II, tal nada tem a ver com a questão substantiva, sendo que tal nem sequer constituía objeto da ação movida pelo BB contra a apelada e o seu marido, sendo que ainda que assim fosse, tal nem sequer constituiria caso julgado em relação à dita II, por não ter sido parte nessa mesma ação e por inerência aos sucessores da mesma, no caso a apelada (enquanto única e universal herdeira de sua mãe e não enquanto ré demandada naquela ação).
É nesta ação que se pretende a declaração de bem comum do crédito em causa.
Note-se que para haver exceção de caso julgado que teriam que se verificar os pressupostos do art. 580.º n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil, que estabelece que a litispendência e o caso julgado pressupõem a repetição de uma causa, tendo por fim evitar que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.
O art. 581.º, n.º 1 do Código de Processo Civil dá-nos a noção de repetição de causa, ao estatuir que:
"Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir."
É, pois necessária a verificação desta triplicidade de requisitos para que de litispendência se possa falar.
Em primeiro lugar exige-se a identidade de sujeitos, que ocorre, na expressão do nº 2 do art. 581º do Código de Processo Civil, "(...) quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica". É ainda necessária a identidade de pedidos que se consubstancia “(...) quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” - art. 581º, nº 3, do Código de Processo Civil. E, finalmente, exige-se a identidade de causa de pedir, que consiste nos termos do plasmado no art. 580º, nº 4, do Código de Processo Civil, na dedução de pretensão que promana do mesmo facto jurídico.
No caso em apreço temos uma tripla divergência:
- As partes não são juridicamente as mesmas (a apelada atua aqui enquanto sucessora da sua falecida mãe que não foi parte na primeira ação);
- Os pedidos são distintos (pediu-se na primeira ação a condenação da apelada e do seu marido no pagamento de 12.000.00$00 e aqui peticiona-se o reconhecimento dessa importância como bem comum do extinto casal formado pelos seus progenitores);
- E as causas de pedir são diversas (invocaram-se ali factos consubstanciadores da simulação e da obrigação da restituição da importância em causa por virtude do mandato sem representação e aqui factos sensibilizadores da natureza comum do crédito exequendo).
Não merece, assim, censura a decisão recorrida.
As custas deverão ser suportadas pelos recorrentes, que ficaram vencidos (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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Sumário:
I – Não há inutilidade superveniente da lide quando peticiona que se declare que um crédito em execução tem a natureza de bem comum do casal, se esse crédito foi entretanto extinto pelo pagamento;
II – É bem comum do casal crédito que surgiu na constância do casamento celebrado no regime de comunhão geral de bens, mas somente reconhecido em ação intentada apenas por um dos membros do casal subsequentemente à separação judicial de pessoas e bens.
V. Decisão
Perante o exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação interposta, confirmando-se, totalmente, a sentença apelada.
Custas do recurso pelos apelantes.
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Guimarães, 28 de novembro de 2024
[1] Cfr. neste sentido, Abrantes, Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., págs. 356. [2] Cfr. neste sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. op cit, págs. 42 e 43. [3] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manuel de Processo Civil, 2ª ed., págs. 17.