INVENTÁRIO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CABEÇA DE CASAL
Sumário


1. A ação de prestação de contas instaurada por apenso ao processo de inventário destina-se a apurar receitas e despesas atinentes à administração da herança, tendo em vista a condenação do cabeça-de-casal no pagamento do respetivo saldo.
2. Assim, não constitui finalidade própria daquela ação o arbitramento de uma compensação com fundamento na utilização exclusiva, pelo Cabeça-de-casal, do imóvel que constitui o único bem relacionado no processo de inventário.
3. Aliás, aquela utilização exclusiva não configura um ato de administração da Herança.
4. Acresce que, encontrando-se o imóvel em situação de compropriedade, pois apenas 4/6 do mesmo integram a Herança, pertencendo os remanescentes 1/6 ao Cabeça-de-Casal e 1/6 à Interessada Requerente da prestação de contas, o regime legal aplicável à administração do bem é o que se mostra contido no artigo 1407.º do Código Civil.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Apelação n.º 2551/23.0T8FAR-B.E1

(1ª Secção)


***

Relatora: Sónia Moura

1º Adjunto: António Fernando Marques da Silva

2º Adjunto: José António Moita

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. Por apenso ao processo de inventário para partilha das heranças deixadas por AA e BB, no qual são os únicos Interessados a Requerente CC e o Cabeça-de-Casal BB, veio a Requerente instaurar processo especial de prestação de contas.

A Requerente formula, a final, o seguinte pedido:

“Nestes Termos e nos melhores de Direito deve ser promovida a citação do R. para apresentar, no prazo de 30 dias, as referidas contas ou contestação à presente ação, sob pena de, não apresentando contas ou contestar as mesmas, não poder declarar oposição às contas apresentadas, que são julgadas segundo os termos legais, nos termos do n.º 2 do art.º 943.º do CPC.

Sendo em qualquer caso, a final, condenado o R. a pagar à R. os valores correspondentes à ocupação/administração do imóvel à razão de 700,00€ (setecentos euros), desde 1 de Setembro de 2017, que até à data soma o valor de 25.200,00€ (vinte e cinco mil e duzentos euros), referente a despesa feitas pelo R. e pagas pela A., bem como ao montante de 7083,05€ (sete mil e oitenta e três euros e cinco cêntimos) referente à aquisição de mobiliário por parte da A. que o R. se apropriou e o valor de 1391,33€ (mil, trezentos e noventa e um, e trinta e três cêntimos), referente aos consumos supra explicados, bem como, ainda, o valor vincendo até à efetiva partilha de rendas do imóvel em causa, à razão, também, de 700€ (setecentos euros) mensais, sempre na razão de metade bem como o montante de 5000,00€ (cinco mil euros) gastos a título de obras, acrescidos de juros à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.

Deve também ser oficiado o banco de Portugal para efeitos de comunicar aos autos informação sobre em que instituições bancárias as 2 partes tinham contas bancárias que eram titulares, por si só ou em conjunto; Após, que sejam notificadas as instituições bancarias pelo Banco de Portugal para efeitos de facultar aso autos o saldo bancário à data de 1 de Outubro de 2007, de forma a poder fazer a partilha de valores monetários também.”

2. Nesta ação foi proferido o seguinte despacho liminar:

“Por apenso aos autos principais de processo de inventário por óbito de AA e BB, veio o Requerente pedir a prestação de contas do Cabeça de Casal sobre a administração dos bens da herança.

Em síntese alega que faz parte do acervo hereditário um imóvel no qual o Requerido/Cabeça de Casal reside, recusando-se a sair, arrendar, prestar contas ou a fazer qualquer cedência ao Requerente.

Neste contexto entende que pela utilização dos referido bem imóvel deve o Requerido pagar uma quantia mensal de €700,00 desde março de 2012, e como tal, deve prestar contas neste sentido.

Faz ainda referência ao instituto do enriquecimento sem causa, alegando que «no caso em apreço, se traduz nos bens que deveriam estar a ser administrados de maneira a que estivessem a gerar frutos, sendo que neste momento se encontra a privar o enriquecimento do acervo patrimonial, que nos termos das citadas disposições legais deve ser devolvido pelos R. à A. correspondentes aos valores das rendas do prédio de molde como referido supra, até ao dia em que efetivamente em que se tiver de fazer a partilha, portanto, vincendas.»

Considerando a natureza especial dos presentes autos, cumpre, antes de mais, apreciar liminarmente a sua admissibilidade.

Dispõe o artigo 941.º do Código Processo Civil que «a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».

Por outro lado, dispõe o artigo 2079.º do Código Civil que cabe ao Cabeça de Casal a administração da herança, tendo por isso o dever de prestar contas, nos termos do artigo 2093.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.

Conforme Alberto dos Reis1 dava conta, a obrigação de prestar contas nasce do princípio geral de «quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses»

No caso em apreço, sendo o Requerente interessado na herança e o Requerido o cabeça de casal da mesma, encontra-se positivamente preenchido a legitimidade das partes para intentar a presente ação.

Contudo, não basta, em abstrato, a legitimidade das partes. Necessário se torna a existência de contas para prestar. Isto é, a ocorrência de despesas e receitas realizadas ou auferidas pela pessoa obrigada à prestação de contas.

A este propósito, tanto a doutrina nacional como a jurisprudência têm-se pronunciado em sentido convergente sobre a exigência de inscrição de receitas e/ou despesas efetivas e não meramente virtuais ou hipotéticas.

Neste sentido, veja-se a posição de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa2, que referem «a ação de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração; não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Apenas pode discutir-se na ação de prestação de contas se existe ou não a correspetiva obrigação de prestar contas e o valor ou a inscrição de receitas efetivas e não de receitas virtuais (…)»

E ainda com especial relevo para o caso em discussão, salienta-se o teor do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.05.20103, que afirma «O processo de prestação de contas não se coaduna com larga indagação sobre a eventual responsabilidade civil ou o enriquecimento sem causa da cabeça-de-casal».

Transpondo estas considerações ao caso que em apreço, verifica-se que o Requerente não faz referência a qualquer receita efetivamente auferida e/ou despesa efetivamente realizada pelo Cabeça de Casal que o obrigue a prestar contas através da presente ação especial.

Na verdade, o que o Requerente sustenta é que o Cabeça de Casal tem utilizado um imóvel da herança em seu proveito e que tal conduta implica uma perda de rendimentos da herança, fazendo inclusive a alusão ao enriquecimento sem causa por parte daquele. Pelo contrário, em momento algum indica, esclarece ou apresenta um valor pago ou recebido por aquele, por conta da administração dos bens da herança.

Se o Requerente pretende insurgir-se contra a administração dos bens da herança por parte do Cabeça de Casal, pretendendo responsabiliza-lo civilmente pela sua conduta, terá ao seu dispor outros meios processuais, quiçá de natureza comum, não sendo, a presente ação especial de prestação de contas o meio adequado para o efeito, considerando, desde logo, a sua tramitação simplificada que não é compatível com a complexidade e indagação exigida para a discussão dessa matéria, o que igualmente impossibilita o seu aproveitamento, cf. artigo 193.º, n.º 1 do Código Processo Civil.

Como tal, não estando em causa qualquer receita efetiva auferida pela Cabeça de Casal ou despesa por si realizada que imponha o dever de prestar contas por forma a apurar um saldo final, mas apenas a averiguação de uma eventual compensação por si devida em virtude da utilização dos bens da herança, não é a presente ação especial de prestação de contas admissível, sendo, por isso, de indeferir liminarmente, a presente petição inicial .


*

Face ao exposto, indefere-se liminarmente a presente petição inicial de prestação de contas.

(…)

1 in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, pág. 303

2 In Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2022, pág. 409

3 Processo n.º 14-A/1998.C2, disponível em www.dgsi.pt”

3. Inconformada com o despacho transcrito, a Requerente CC apelou do mesmo, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Desde a morte da mãe da Requerente e Requerido, a 14 de Maio de 2012, que o Requerido reside no imóvel pertencente à herança, nomeadamente o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ...37 da freguesia de Local 1, Lote ...0, Código Postal 1 Local 2, Distrito Local 3, do qual se recusa a sair, arrendar ou a prestar contas ou recusa fazer qualquer cedência à Requerente.

2. Entende o R. na posse dos referidos bens, procedendo à sua administração, contra a vontade do A. A título de vendas/contrapartidas não pagas à aqui A. pela utilização/ocupação/administração deve o R. à aqui A. :

O valor mensal de 700€/mês desde Março de 2012, concretamente por cada mês de ocupação/administração, que corresponde ao valor de 100.800,00€ (cem mil e oito centos euros), na proporção de metade, ou seja, 50.400,00€ (cinquenta mil e quatro centos euros).

3. Vide, V. Exa. , que o imóvel em questão está sob o domínio e a posse do R. O Cabeça de Casal tem como funções: prestar contas; pagamento dos encargos; o cargo é gratuito: faz a administração da herança, mas não faz as partilhas.

4. Esta pessoa tem poderes para administrar a herança após a aceitação da mesma. O cabeça de casal é obrigado a prestar contas nos termos do art.º 2093.º do Código Civil. O cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente.

5. Nas contas entram como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça-de-casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro, bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos da administração. Havendo saldo positivo, este é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano.

6. No caso em apreço se verificam abusos por parte do cabeça-de-casal e a prestação de contas serve para evitar esses mesmos abusos. Caso o cabeça-de-casal não apresente a conta do cabecelato dever-se-á intentar uma ação judicial autónoma segundo o processo especial previsto no artigo 941.º e ss. do Código de Processo Civil.

7. Entende o R. na posse dos referidos bens, procedendo à sua administração, contra a vontade do A. Se, por sua vez, apresentar as contas em regime de conta corrente, terá que especificar as receitas e a aplicação das despesas e terá ainda que apresentar o saldo. Ora, é o que se configura no caso em apreço.

8. Desse acervo patrimonial é, em observância do critério legal enunciado no artigo 2080.º do Cód. Civil e como resulta daquela escritura, cabeça de casal, o Réu, a quem compete a administração dos bens, nos termos do artigo 2079.º do Código Civil. Integra o património hereditário o imóvel supra identificado.

9. O R. como cabeça-de-casal, pode e deve administrar os imóveis em questão, fazendo com que os mesmos gerem frutos civis a favor do património hereditário, e não estavam a ser utilizados por --- ou por um dos herdeiros de forma exclusiva, à custa e com prejuízo para o património hereditário. O que o R. não faz desde Maio de 2012. Não lhe tendo, sequer, entregue qualquer quantia por conta das rendas que podia ter ganho, correspondentes ao uso que tem feito. Ou têm feito.

10. Nos termos do nº 1 do artigo 2093.º do Código Civil, “o cabeça de casal deve prestar contas anualmente”. Com a presente ação pretende o A. exigir do R. a prestação de contas da sua administração dos bens do património hereditário desde 12 de Novembro de 2022.

11. Assistindo à A. o direito de querer que tais contas lhe sejam prestadas, para o que se vê forçada a lançar a presente ação especial, de acordo com o artigo 941º do CPC. À presente ação deu causa o R. por violação da sua obrigação de prestação de contas, enunciada no nº 1 do artigo 2093.º do Cód. Civil, devendo, por isso, as custas de ação ser suportadas pelo mesmo, nos termos do n.º 1 do artigo 527.º do CPC.

12. Devendo, uma vez apuradas essas contas, ser objeto de aprovação por A. e R., e ser entregue à A. metade do saldo que venha a resultar desse apuramento de contas. Nos termos do artigo 473.º do Código Civil, “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.

13. Compreendendo, de acordo com o n.º 1 do artigo 479.º do mesmo Código, a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, tudo quanto tenha sido obtido à custa do empobrecido. O que, no caso em apreço, se traduz nos bens que deveriam estar a ser administrados de maneira a que estivessem a gerar frutos, sendo que neste momento se encontra a privar o enriquecimento do acervo patrimonial, que nos termos das citadas disposições legais deve ser devolvido pelos R. à A. correspondentes aos valores das rendas do prédio de molde como referido supra, até ao dia em que efetivamente em que se tiver de fazer a partilha, portanto, vincendas.

14. A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.

15. Enriquecimento (injusto) esse que igualmente tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um ato jurídico não negocial ou mesmo de um simples ato material.

O enriquecimento tanto pode traduzir-se num aumento do ativo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como, inclusive, na poupança de despesas.

16. Acrescerão àquele montante os juros legais vincendos desde a citação (artigo 805.º, n.º 1 do C.C.) até integral e efetivo pagamento, contados à taxa de 6%. Pelo que se vê a A. forçada a lançar mão do presente procedimento judicial, de acordo com o art.º 941.º do Cód. Civil.

17. À presente ação deu causa o R. por violação de prestação de contas, enunciada no n.º 1 do art.º 2093.º do Cód. Civil, por ser o R. na prática e materialmente, que se encontra a administrar o supra indicado bem, devendo, por isso, as custas da ação serem suportados pelo mesmo, nos termos do n.º 1 do art.º 527.º do Cód. de Proc. Civil.

18. Ou seja, o imóvel, ao estar a ser ocupado por alguém, esse alguém não está a pagar qualquer renda ao proprietário (pelo menos ao A. ninguém está a fazer qualquer tipo de pagamento) e, por outro lado, esse alguém que está a ocupar o imóvel enriquecerá porque não está fazer qualquer pagamento e a outra parte empobrecerá porque não está a receber nada, quando o poderia estar a receber uma renda a preços de mercado.

19. Quem ocupa ou beneficia enriquece porque poupa dinheiro, e poupa muito, tendo em conta os valores das rendas de imóveis atualmente. E quem é proprietário perde porque não está a ganhar qualquer valor pelo uso ou ocupação de uma coisa que lhe pertence. Pelo que, por conseguinte, há que ter em conta o regime das dividas aplicável a este caso.

20. De maneira que há que oficiar o Banco de Portugal para efeitos de informar os autos dos saldos das contas bancárias existentes a essa data, das duas partes, para que se possa proceder à partilha dos referidos valores de acordo com a realidade. Sendo que terá de haver prestação de contas relativamente a essa matéria também.

Nestes Termos e nos melhores de Direito que V.Exa. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, determinando-se a revogação da sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento dos presentes autos,

Fazendo-se assim a habitual JUSTIÇA!”

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Nos autos de inventário foi apresentada relação de bens, da qual consta uma única verba, o “prédio urbano sito na Urbanização 1, ..., da freguesia e concelho Local 2, inscrito na matriz sob o artigo urbano ...37 da referida freguesia, com o valor patrimonial de 75.416,23 euros”, relativamente ao qual se concluiu, com base na respetiva certidão do registo predial, que apenas integra o acervo hereditário a quota de 4/6 deste imóvel, pois no mais 1/6 pertence ao Cabeça-de-Casal e o outro 1/6 à Requerente.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, mas é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).

Assim, no caso em apreço importa decidir se a ação de prestação de contas instaurada por apenso a um processo de inventário pode ter por objeto a condenação do Cabeça-de-Casal no pagamento de uma compensação fundada na utilização exclusiva do bem imóvel relacionado no inventário.

III – Fundamentação

1. Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os que constam do relatório.

2. No caso em apreço sustenta o Tribunal a quo que a Requerente não alega que o Cabeça-de-Casal realizou despesas ou obteve receitas, antes pretende obter uma compensação pela utilização exclusiva, pelo Cabeça-de-Casal, do imóvel relacionado no processo de inventário, o que não constitui um pedido próprio de uma ação de prestação de contas, pelo que indeferiu liminarmente a petição inicial.

Advoga, em sentido contrário, a Requerente que “No caso em apreço se verificam abusos por parte do cabeça-de-casal e a prestação de contas serve para evitar esses mesmos abusos”, que reconduz precisamente à ocupação exclusiva, pelo Cabeça-de-Casal, do imóvel relacionado no processo de inventário, contra a vontade da Requerente, sem pagar qualquer compensação por esse facto.

Importa, assim, averiguar a finalidade da ação de prestação de contas instaurada por apenso ao processo de inventário.

3. A norma objeto da nossa atenção particular é o artigo 941.º do Código de Processo Civil, onde se define o “objeto da ação” de prestação de contas, estabelecendo-se que:

“A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”

Trata-se de uma ação destinada a exigir a prestação de informações, integrando-se, assim, na previsão do artigo 573.º do Código Civil, onde se prescreve que “a obrigação de informação existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.”

Esta obrigação de informação alicerça-se depois, em cada caso concreto, noutros preceitos substantivos, entre os quais o artigo 2093.º do Código Civil, atinente à prestação de contas pelo cabeça-de-casal, com o seguinte teor:

“1. O cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente.

2. Nas contas entram como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça-de-casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo anterior, e bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos da administração.

3. Havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano.”

A obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal radica, por sua vez, no seu dever de administrar a herança, até à respetiva liquidação e partilha, previsto no artigo 2079.º do Código Civil.

Especifica-se, adicionalmente, no artigo 947.º do Código de Processo Civil, que “As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita.”

A causa de pedir e o pedido próprios da ação de prestação de contas reconduzem-se, assim, aos seguintes: “apenas é necessário alegar que o autor tem direito à prestação de contas e que o réu tem obrigação de as prestar, envolvendo o pedido de prestação de contas necessariamente um pedido de condenação do eventual saldo final. (…) Deve o autor concluir a petição requerendo que o réu seja citado para apresentar as contas em 30 dias ou, no mesmo prazo, contestar a ação, sob cominação de não poder deduzir oposição às contas que o autor apresente. O autor deve pedir a condenação do réu no pagamento do saldo que venha a apurar-se” (Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3ª ed., Coimbra, 2023, pp. 181-182).

Por outro lado, como assinala o Tribunal a quo, “a ação de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração; não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Apenas pode discutir-se na ação de prestação de contas se existe ou não a correspetiva obrigação de prestar contas e o valor ou a inscrição de receitas efetivas, e não de receitas virtuais” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª ed., Coimbra, 2024, p. 409; no mesmo sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pp. 177-178).

A temática que especificamente analisamos foi já tratada na jurisprudência, designadamente, nos seguintes arestos (todos in http://www.dgsi.pt/):

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.05.2015 (Tomé Almeida Ramião) (Processo n.º 2180/07.5YXLSB-B.L1-6)

“O cabeça de casal, enquanto administrador dos bens da herança e, nessa qualidade, detendo a sua posse, zelando pela sua conservação e manutenção até á sua liquidação e partilha, podendo exigir aos restantes herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, nos termos do art.º 2088.º/1 do C. Civil, não está obrigado, no âmbito da prestação de contas, a incluir como verbas de receitas o valor locativo do imóvel, cuja administração lhe pertence, por nele sempre residir.”

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.04.2017 (Maria Manuela Gomes) (Processo n.º 40827/03.0TJLSB-B.L1-6):

“ - –A obrigação de prestar contas é, sobretudo, centrada na obrigação de informar constante do artigo 573.º do Código Civil e tem como objecto estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter um saldo e determinar se uma situação é de credor, ou de devedor do “titular dos interesses geridos”. Visa-se, portanto, apurar quem deve e o que deve.

–A regra é a de quem está encarregado de gerir, ou administrar, interesses alheios – ainda que simultaneamente próprios – está obrigado a prestar contas perante o titular desses interesses. Assim é com o cabeça-de-casal (artigo 2093.º do Código Civil).

–Mas o cabeça de casal só terá de prestar contas se, no exercício da sua administração tiver obtido receitas, realizado despesas ou ambas, uma vez que o artigo 941.º CPC refere o apuramento de eventual saldo.

–Para aquilatar da diligência da administração o adequado será o processo comum, que não o processo especial de prestação de contas. Não é, pois, esta a sede para apurar se houve boa ou má administração, mas, apenas, se as receitas e despesas foram efectivamente verificadas.

–De igual modo, está também fora do âmbito do processo especial de prestação de contas a condenação do cabeça-de-casal ou da herança no pagamento de eventuais juros de mora, os quais, para além de serem, em princípio, a indemnização legalmente fixada para os casos de mora no cumprimento de obrigações pecuniárias (art. 806º nº 1 do Código Civil), o que não é o caso, a sua exigibilidade, para além de não poder recair sobre a herança sob pena de afectar todos os herdeiros e respectivos quinhões, a verificar-se recairá exclusivamente sobre o cabeça-de-casal, reunidos os requisitos geradores da sua responsabilidade extracontratual, o que excede pelas razões enunciadas o objecto deste processo especial, onde apenas se busca determinar a relação deve-haver.”

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.07.2023 (Aristides Rodrigues de Almeida) (Processo n.º 826/20.9T8OAZ-A.P1):

“I - Não cabe no objecto da acção de prestação de contas, apurar se houve má administração dos bens alheios e aprovar receitas que teriam sido obtidas ou recusar despesas que teriam sido evitadas se a administração tivesse sido cuidada, prudente e zelosa.

II - Todavia, no objecto e finalidade da acção inclui-se o julgamento das contas, a sua aprovação ou não aprovação, sendo que o juízo de aprovação não se confina ao apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas, podendo, por exemplo, aprovar-se receitas não indicadas na conta-corrente mas que se apurou corresponderem a vantagens alcançadas pelo administrador, ainda que sob outra forma, e/ou recusar-se a aprovação de despesas realmente efectuadas mas que excedem os poderes de administração do obrigado à prestação das contas.”

4. Revertendo ao caso concreto, verifica-se que a Requerente não se reporta a despesas ou receitas efetuadas ou recebidas pelo Cabeça-de-Casal, reiterando, diversamente, a afirmação de que a ocupação do imóvel relacionado no inventário, contra a vontade da Requerente, constitui fundamento para que lhe seja reconhecido o direito a uma compensação, à luz do instituto do enriquecimento sem causa.

Atento todo o acima exposto a propósito da finalidade do processo de prestação de contas resulta claro que a pretensão da Requerente não pode encontrar acolhimento, porquanto semelhante pretensão não assenta na administração do imóvel desenvolvida pelo Cabeça-de-Casal.

Aliás, já se entendeu precisamente que esta ocupação exclusiva de um bem integrante da herança pelo cabeça-de-casal não configura um ato de administração:

“I. A utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação não integra um ato de administração da herança.

II. A utilização por qualquer herdeiro dos bens da herança em proveito próprio, nas situações em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, deve considerar-se sujeita ao regime do artigo 1406.º do Código Civil, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações.” (Acórdão do Suprem Tribunal de Justiça de 21.04.2022 (Cura Mariano), Processo n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/).

Não obstante, a Requerente não se limita a aludir a este aspeto da compensação pela utilização do imóvel pelo Cabeça-de-Casal, pois começa por peticionar a citação deste para apresentar contas.

Porém, não peticiona, de seguida, a condenação do Cabeça-de-Casal no pagamento do saldo dessas contas, dirigindo-se o seu pedido tão somente à condenação do Cabeça-de-Casal no pagamento da compensação pela utilização do imóvel.

Assim, apesar do intróito do petitório corresponder ao pedido típico de uma ação de prestação de contas, quando lemos o pedido na sua globalidade vemos que as contas que a Requerente pretende que o Cabeça-de-Casal apresente se cingem afinal e estritamente à aludida compensação.

Importa assinalar mais uma dimensão do problema, que consiste na circunstância de apenas 4/6 do imóvel integrarem o património hereditário, com a especificidade de 1/6 do imóvel pertencer ao Cabeça-de-Casal e o outro 1/6 à Requerente.

Daqui decorre que a administração do bem não pode ser enquadrada tout court no quadro legal da administração da herança, porquanto aquilo que avulta aqui é uma situação de compropriedade, onde a Herança é apenas um dos comproprietários (artigo 1403.º, n.º 1 do Código Civil).

A administração da coisa comum tem um regime próprio, constante do artigo 1407.º do Código Civil, o único através do qual se alcança o imóvel na sua plenitude, isto é, só no âmbito da compropriedade é possível reunir todos os titulares de direitos sobre o imóvel.

Com efeito, apesar de existir identidade entre os titulares de quotas em nome próprio e os herdeiros, que são precisamente a Requerente e o Cabeça-de-Casal, a sua intervenção no processo de inventário e, consequentemente, na ação de prestação de contas dependência daquele, ocorre apenas na qualidade de herdeiros, não abarcando a dimensão de proprietários em nome próprio.

Em face de todo o exposto, cumpre confirmar a decisão recorrida, julgando improcedente o recurso.

5. Ficando a Requerente vencida no recurso, as custas da apelação são da sua responsabilidade (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).

IV – Dispositivo

Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique e registe.

Évora, 16 de dezembro de 2024.

Sónia Moura

António Fernando Marques da Silva

José António Moita