PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
VIOLAÇÃO
PENHORA
RECTIFICAÇÃO
NULIDADE
Sumário


1. Um auto de penhora, ainda que possa tratar-se de uma correção a um auto anterior, deve sempre ser notificado ao executado, sob pena de violação do princípio do contraditório (artigo 3.º do Código de Processo Civil).
2. Com efeito, inexiste qualquer princípio ou regra no sentido de dispensar a notificação às partes de retificações de atos processuais, pelo contrário, o dever de efetuar semelhante notificação decorre do disposto no artigo 613.º do Código de Processo Civil, atinente à sentença e aplicável aos despachos.
3. A violação do princípio do contraditório tem sido apreciada sob distintas perspetivas na doutrina e na jurisprudência:
- como nulidade procedimental, enquanto omissão do ato legalmente devido de audição das partes previamente à tomada de decisão sobre aspetos adjetivos ou substantivos, seja no plano dos factos, seja no plano da aplicação do direito, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil;
- como nulidade de sentença, enquanto excesso de pronúncia, por conhecimento de questão que o tribunal não podia apreciar, em virtude de não ter previamente auscultado as partes sobre a mesma, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil;
- sob as duas vestes de nulidade procedimental e de nulidade de sentença, em concurso;
- como nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais.
4. Compatibilizando as duas nulidades evidenciadas, pode dizer-se que:
- a inobservância do princípio do contraditório começa por constituir uma nulidade procedimental, que se subsume ao disposto no artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;
- se a parte arguir a nulidade e a mesma for indeferida, assiste-lhe a faculdade de recorrer dessa decisão de indeferimento, ao abrigo do disposto no artigo 630.º, n.º 2 do Código de Processo Civil;
- se a parte não arguir a nulidade, pode recorrer da decisão proferida com inobservância do contraditório, invocando a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Apelação n.º 1946/19.8T8SLV-D.E1

(1ª Secção)


***

Relatora: Sónia Moura

1ª Adjunta: Ana Pessoa

2º Adjunto: José António Moita

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. O Condomínio da Rua 1, em Local 1, instaurou execução de sentença contra AA.

Por falecimento do Executado, foi habilitada para prosseguir nos mesmos, em sua representação, BB.

2. A 28.02.2024 a Executada apresentou o seguinte requerimento:

“1) Após uma consulta ocasional aos vários processos em que o ora signatário está associado na árvore de proccessos citius, apercebeu-se de que o Sr Agente de Execução e o Exequente praticaram nos autos supra melhor identificados, vários atos processuais, nomeadamente uma penhora.

2) Acontece que a executada e o seu patrono não foram notificados desses atos para o contraditório.

I- ARGUIÇÃO DE NULIDADE PROCESSUAL, ART.200.º, 3 E 195.º DO CPC

3) A executada é requerente no processo de inventário Judicial a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca Local 1, proc. nº 2957/21.9T8PTM- Juizo Local Civel de Local 1- Juiz 2. (Doc.1)

4) Não foi notificada de qualquer diligência levada a cabo pelo Sr Agente de Execução ou pelo exequente, nomeadamente do auto de penhora de 12-02-2024.

5) O ora signatário e patrono também não notificado de qualquer diligência praticada pelos Srs Agente de Execução e Exequente.

6) O artigo 719.º, nº 1 do CPC, cuja epigrafe é ”Repartição de competências”, diz-nos que:”(..)cabe ao agente de execução efectuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuidas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos.”

7) Sobre as competências da secretaria, preceitua o nº 3 deste normativo, que incumbe à secretaria, para além das competências que lhe são especificamente atribuidas no presente titulo, exercer as funções que lhe são cometidas no artigo 157.º, na fase liminar e nos procedimentos ou incidentes de natureza declarativa deduzidos na execução e dos atos aí praticados que possam ter influência na instância executiva.

8) Assim como estabelece o art.720.º, nº 7 do CPC, que na falta disposição especial, o agente de execução realiza as notificações da sua competência no prazo de cinco dias (e pratica os demais atos no prazo de 10 dias).

9) Por sua vez preceita o art.13.º da Portaria nº 282/2013, de 29 de agosto, cuja epigrafe é ”Termos e Notificações” o seguinte:”1-O agente de execução efectua todas as notificações previstas na lei preferencialmente por transmissão eelctrónica de dados, atravès do sistema informático de suporte à actividade dos agentes de execução.”

10) Os mandatários/patronos dos executados são notificados nos termos do artigo 247.º do CPC.

11) Como resulta do exposto supra, incumbe obrigatoriamente aos srs agentes de execução, a notificação dos atos aos executados e aos seus mandatários.

12) No caso em apreço, nem a executada nem o seu patrono foram notificados pelo sr agente de execução da diligência de penhora de 12-02-2024.

13) Assim atento o exposto supra, determina o artigo 195.º, nº 1 do CPC, que: ”Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescrevam só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”

14) Ao não ter notificado a executada e o seu patrono, da penhora de 12-02-2024, o Sr. Agente de execução violou as normas plasmadas nos artigos 719.º, 1, 720.º, 7, 247.º e 3.º, 3 do CPC e 13.º da Portaria 282/2013 de 29/8.

15) Nestes termos, vem a executada nos termos dos arts 200.º,3, 195.º, 1, 199.º, 1 do CPC. Invocar nulidade processual, por violação do principio do contraditório, artigo 3.º, 3 e arts 719.º, 1, 720.º, 7, 247ºdo CPC e art.13.º da Portaria nº 282/2013 de 29/8.

16) Tal omissâo é susceptivel de criar elevados prejuizos á executada, que esta não deixará de pedir judicialmente a devida compensação junto do Sr. Agente de Execução e do Sr. Exequente, já que pareçe existir intencionalmente, um objectivo ilicito oculto.

Termos em que:

A) A executada vem arguir e reclamar nulidade processual nos termos do disposto nos artigos 200.º, 3, 195.º 1 e 2, 199.º e 202.º todos do CPC, por violação dos artigos, 3.º, 3, 719.º, 1, 720.º, 7, 247.º do CPC e 13.º da Portaria 282/2013 de 29-8.”

3. Foram ouvidos o Exequente, que pugnou pela improcedência da arguição de nulidade, bem como a Agente de Execução, a qual ofereceu a seguinte resposta, a 09.03.2024:

“1º - Após decretada a sentença de habilitação de herdeiros aos 07-05-2021 por Vossa Excelência, a executada foi citada aos 13-10-2021, pelo Documento: q12yJJyiDow, cuja citação foi recebida aos 18-10-2021, a qual veio deduzir embargos de executado;

2º - Posteriormente, foi dado cumprimento ao nº 2 do art.º 781 do C.P.C., na pessoa da Senhora D. CC, contitular nas heranças abertas por óbito de DD, falecido aos ../../2010 e de EE, falecida aos ../../2019;

3º - Após a referida notificação sob forma de citação remetida aos 15-03-2023, pelo Documento: 5jgB82kUJKB e recebida aos 20-03-2023 pela Senhora D. CC, procedeu-se à penhora do quinhão hereditário que a executada detém nas heranças atrás identificadas, lavrando o presente auto e notificando a executada da referida penhora aos 18-05-2023, pelo Documento: 609LZqztGXE, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, tendo o mesmo vindo deduzir Oposição à Penhora.

4º - Entretanto, foi junto ao requerimento inicial de Oposição, o Título de Transmissão emitido aos 12-12-2019, no âmbito do Processo de Execução Nº 1483/10.6TBPTM – Tribunal Judicial da Comarca Local 2 – Local 3 –Juízo Execução – Juiz 1, correspondente à venda do quinhão hereditário de que o falecido AA, era titular na herança aberta por óbito de seu falecido pai DD.

5º - Tendo em consideração a venda do referido quinhão, constata-se que a executada é atualmente titular do quinhão hereditário, em representação do seu falecido pai, na herança aberta por óbito de sua avó, EE e que já se encontrava penhorado, conforme auto de penhora, que se anexa.

6º - Pelo que se procedeu à correção do referido auto de penhora inicial, do qual foi dado conhecimento ao Ilustre Mandatário da executada, com a notificação da modalidade para venda do bem penhorado.

6º - Entendendo a signatária que não houve outra penhora, mas apenas a correção do auto de penhora a reportar a realidade atual do bem penhorado.”

4. Nesta sequência foi proferido o seguinte despacho:

“Por requerimento de 28.02.2024, veio a Executada BB, apresentar “ARGUIÇÃO DE NULIDADE”, invocando, em síntese, que:

- “Não foi notificada de qualquer diligência levada a cabo pelo Sr. Agente de Execução ou pelo exequente, nomeadamente do auto de penhora de 12-02-2024”;

- “Ao não ter notificado a executada e o seu patrono, da penhora de 12-02-2024, o Sr. Agente de execução violou as normas plasmadas nos artigos 719.º, 1, 720.º, 7, 247.º e 3.º, 3 do CPC e 13.º da Portaria 282/2013 de 29/8”.


*

Notificada, a Exequente respondeu conforme requerimento de 06.03.2024, pugnando pela improcedência da invocada nulidade.

O Sr. AE respondeu conforme consta do requerimento de 09.03.2024.


*

Apreciando.

Compulsados os autos, verifica-se que:

- por sentença de 07.05.2021, a ora Executada foi habilitada como sucessora do falecido Executado AA;

- a ora Executada foi devidamente citada e veio apresentar oposição à execução que foi liminarmente indeferida em 08.01.2022;

- por Auto de Penhora de 18.05.2023, foi penhorado o “quinhão hereditário da executada BB nas heranças abertas por óbito de DD, falecido aos ../../2020, com o NIF: ...23 e de EE, falecida aos ../../2019, com o NIF: ...60 das quais o seu falecido pai, AA, já falecido, foi herdeiro, conforme certidões de Imposto de Selo. Foi instaurado nos presentes autos o incidente de habilitação de herdeiros por óbito de AA, tendo sido a aqui executada habilitada como sucessora do seu falecido pai, AA, conforme sentença de habilitação de herdeiros”;

- a Executada foi notificada de tal penhora e veio a apresentar oposição à penhora em 30.05.2023, a qual foi indeferida por sentença de 03.10.2023;

- em 12.02.2024, a Sra. AE lavra novo Auto de Penhora com o seguinte teor: “Penhora do QUINHÃO HEREDITÁRIO da executada BB, na qualidade de sucessora e em representação de seu falecido pai, AA, na herança aberta por óbito de sua avó, EE, falecida aos ../../2019, correspondente ao NIF de herança indivisa ...60, devidamente habilitada, conforme sentença de habilitação de herdeiros”.

É, pois, notório que a invocada falta de notificação de “qualquer diligência levada a cabo”, não corresponde à verdade.

No que se refere ao Auto de Penhora de 12.02.2024, resulta claro que o objecto da mesma corresponde à penhora levado a cabo pelo Auto de Penhora de 18.05.2023, do qual constitui mera correcção.

Ainda que assim não fosse, a Executada veio a tomar conhecimento do Auto de Penhora lavrado em 12.02.2024, vindo a apresentar o requerimento sob apreciação, pelo que, de todo o modo, não se mostra prejudicada a defesa da Executada.

Termos em que improcede a invocada nulidade.

Custas a cargo da Executada, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Notifique.”

5. Inconformada com o sobredito despacho, a Executada apelou do mesmo, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1-O Tribunal Judicial da Comarca Local 2, Juizo de Execução Local 3-Juiz 2, considerou improcedente a reclamação onde se arguiu a nulidade por omissão de notificação do ato de penhora de 12-02-2204 ao mandatário da recorrente pela sra agente de execução.

2-O Tribunal “a quo” ao não declarar a nulidade processual prevista no art.195.º, 1 do CPC, negou á executada/recorrente o direito ao contraditório e violou o principio da proibição da indefesa nos termos do artigo 20.º, 4 do CRP.

3-A omissão da notificação da recorrente para esta exercer o seu direito ao contraditório viola o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, 3 e 4.º do CPC e artigo 20.º, 4 do CRP.

4-Os Agentes de Execução estão obrigados a pugnar pela boa aplicação do direito e pela rápida adminsitração da justiça (artigo 124.º, 1 do EOSAE) e do dever de praticar diligentemente os atos processuais cuja competencia lhes está cometida por lei no Âmbito do processo executivo (artigo 168.º, nº 1, alinea a) EOSAE) de entre os quais avultam precisamente as notificações da sua competência (artigo 720.º, 7 do CPC) Tribunal da Relação de Évora, Ac.,de 12-04-2018, proc. nº 607/13.6TBUNO-A.E1.

5-A regra estabelecida no artigo 157.º, nº 6 do CPC, de que os erros ou omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em quaqluer caso, prejudicar as partes, constitui uma regra geral que, de igual modo se deve aplicar aos erros e omissões de agente de execução.

6-Ora no caso subjudice a omissão da pratica pelo Sr.Agente de Execução do ato de notificação da penhora nova prejudicou a recorrente.

7-O Tribunal a quo, fez uma errada interpretação dos factos e do direito, já que falsamente veio afirmar que a recorrente foi notificada do ato de penhora de 12-02-2024, que como se comprovou pelo historico de notificações do mandatário da executada tal afirmação além de ser falsa, dá a ideia que o mandatário mentiu, o que é uma ofensa á diginidade profissional do mesmo, até porque as pessoas que têm acesso ao citius facilmente podem comprovar que o alegado pelo tribuinal e agente de execução não corresponde á verdade.

8-A decisão do tribunal dá a ideia ou que não conhece a lei ou representou falsamente os factos existentes nos autos, o que tem como consequência o vicio de erro de julgamento nos termos do artigo 662.º, e 615.º ambos do CPC., o que se invoca.

9-O vicio de erro de julgamento dá origem a que o Tribunal da Relação anule a sentença nos termos dos arts 662.º, 1 e 2, c) e 615.º todos do CPC, o que se requer,

10-A violação pelo tribunal do principio do contraditório, art. 3.º, 3 e 4.º do CPC que vai dar origem a uma decisão surpresa tem como consequência a nulidade da sentença por excesso de pronuncia, art. 615.º, 1. al) d do CPC., que se requer.

11-Assim a decisão recorrida, é nula por ofensa ao principio do contraditório, e da igualdade de armas, nos termos dos artigos 615.º, 1, al) d, CPC, por violação dos artigos 3.º, 3 e 4.º todos do CPC e artigo 20.º, 4 da CRP.

12-É inconstitucional a interpretação da norma contida no artigo 719.º, nº 1 e 720.º, 7 do CPC, no sentido de que o agente de execução não está obrigado a notificar o executado ou o seu mandatário do ato da penhora nova, por violação do artigo 20.º, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

13-Assim nestes termos e com o mui douto suprimento de V.Exas deverá ser dado provimento á presente apelação, declarando-se verificada a nulidade da sentença conforme resulta das anteriores conclusões, sendo revogada a decisão recorrida e substituida por outra que julgando procedente a arguição da nulidade por violação do principio do contraditório, considere também nulos os atos subsequentes ao ato de penhora de 12-02-2024, e se determine que se notifique a sra agente de execução para vir notificar a recorrente da penhora, dando á recorrente a oportunidade de se pronunciar sobre a mesma.”

6. O Exequente contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

7. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, mas é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil).

No caso em apreço constatamos que no corpo das alegações de recurso o Recorrente invoca a nulidade contida na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, porém, omitiu qualquer referência a esta questão nas conclusões do recurso, o que impede o conhecimento de tal questão.

Entendeu-se, com efeito, no Acórdão do Tribunal desta Relação de 10.10.2024 (António Fernando Marques da Silva) (Processo n.º 2037/20.4T8STB-B.E1, in http://www.dgsi.pt/) que “Existe, assim, entre as alegações e as conclusões uma relação «bi-unívoca» ou de interdependência e complementaridade, já que as alegações sustentam as conclusões, e as conclusões delimitam o alcance das alegações, fixando o seu sentido. Deste modo, os fundamentos invocados para sustentar o recurso têm que constar quer das alegações, onde são discutidos, quer das conclusões, onde são sumariamente evidenciados como questão a apreciar: nas alegações, o recorrente explana as razões, motivos e interpretações; nas conclusões, define o sentido preciso do argumento ou fundamento, assim o integrando no objecto do recurso. Sem a conclusão, o fundamento não integra o objecto do recurso; sem a alegação, a conclusão atraiçoa a sua finalidade, pois, sem suporte argumentativo, não constitui síntese de coisa alguma, sendo assim gratuita. No caso, o executado apenas invoca a referida nulidade nas conclusões que formula, sendo as alegações completamente omissas quanto a tal questão. O que inviabiliza o seu conhecimento.”

Assim, no caso em apreço importa decidir:

a) se o Despacho recorrido é nulo, por erro de julgamento e excesso de pronúncia;

b) se deve ser julgada procedente a arguição de nulidade relativa à alegada falta de notificação de auto de penhora lavrado a 12.02.2024.

III – Fundamentação

A) Fundamentação de Facto

Para além dos factos enunciados no relatório, são ainda relevantes para a apreciação do caso os seguintes factos, todos extraídos do sistema informático Citius:

1. A 18.05.2023 foi penhorado o “quinhão hereditário da Executada BB nas heranças abertas por óbito de DD, falecido aos ../../2020, com o NIF: ...23 e de EE, falecida aos ../../2019, com o NIF: ...60 das quais o seu falecido pai, AA, já falecido, foi herdeiro, conforme certidões de Imposto de Selo.

Foi instaurado nos presentes autos o incidente de habilitação de herdeiros por óbito de AA, tendo sido a aqui executada habilitada como sucessora do seu falecido pai, AA, conforme sentença de habilitação de herdeiros proferida aos 06-05-2021”.

2. Na sequência da notificação daquela penhora, veio a Executada deduzir oposição à execução, a qual foi indeferida, com fundamento em que os factos invocados pela Executada não preenchem os pressupostos legais do incidente, pois a Executada alegou que o quinhão hereditário penhorado pertence a terceiro.

3. A 12.02.2024 foi registado no sistema informático Citius um auto de penhora do “QUINHÃO HEREDITÁRIO da executada BB, na qualidade de sucessora e em representação de seu falecido pai, AA, na herança aberta por óbito de sua avó, EE, falecida aos ../../2019, correspondente ao NIF de herança indivisa ...60, devidamente habilitada, conforme sentença de habilitação de herdeiros”, dele constando, a final, a seguinte menção: “a) Comunicação enviada em conformidade com o disposto no artigo 5º da Portaria 282/2013 de 29 de Agosto.”

4. Na mesma data de 12.02.2024, seguidamente ao registo do auto de penhora, encontra-se registado no sistema informático Citius o seguinte ato:

“Notificação

“Exmo(a) Senhor(a)

Dr(a). Hortense Dias

Ilustre Mandatário(a)

Via Telemática”

Data: 12-02-2024 Documento: q10gGyRUjxL Referência interna do processo: PE/2/2020 (…)

Nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 811º e nº 2 alínea b) do artigo 812º ambos do Código do Processo Civil, fica V. Exa. notificada, na qualidade de Ilustre Mandatária do Exequente, para, no prazo de 10 (dez) dias, indicar à signatária qual a modalidade da venda pretendida, bem como o valor base de mercado para venda do bem penhorado nos presentes autos.

De referir que, por força do artigo 837º do Código de Processo Civil, a venda do bem penhorado é feita preferencialmente através de leilão eletrónico, na plataforma www.e.leiloes.pt aprovada por despacho nº 12624/2015 - D.R. nº 219/2015, Série II de 2015-11-09. (…)

PROVA DE LEGITIMIDADE

Nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 37º da Portaria 282/2013 de 29 de agosto, a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução certifica que este documento foi gerado através do sistema informático de suporte à atividade dos agentes de execução (SISAAE), fazendo assim prova de que o agente de execução FF, cédula ...56, nif ...01..., com domicilio profissional na Rua 2, Ed.Empreend. 1, Código Postal 1 Local 3, se encontra designado no processo 1946/19.8T8SLV, Tribunal Judicial da Comarca Local 2, Local 3 - Juízo Execução - Juiz 2 (valor do processo: 40335.06 euros) em que é Exequente Condomínio da Rua 1, e Executado(s) BB e outros.

Este documento foi emitido no dia 12-02-2024, podendo ser consultado o seu suporte eletrónico através da página de internet www.solicitador.org, utilizando a opção "validar documentos", inserindo o identificador do documento q10gGyRUjxL.

Caso verifique desconformidade entre o documento em papel e o suporte eletrónico contacte os serviços da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução para o email geral@osae.pt.”

5. Encontra-se em anexo a esta “Notificação” o auto de penhora de 12.02.2024.

6. Na mesma data de 12.02.2024, seguidamente à “Notificação” antecedente, encontra-se registado no sistema informático Citius o seguinte ato:

Notificação

“Exmo(a) Senhor(a)

GG

Via Telemática

Data: 12-02-2024 Documento: W2aLM1RtgqJ Referência interna do processo: PE/2/2020 (…)

Nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 811º e nº 2 alínea b) do artigo 812º ambos do Código do Processo Civil, fica V. Exa. notificado, na qualidade de Ilustre Patrono da Senhora BB, para, no prazo de 10 (dez) dias, indicar à signatária qual a modalidade da venda pretendida, bem como o valor base de mercado para venda do bem penhorado nos presentes autos.

De referir que, por força do artigo 837º do Código de Processo Civil, a venda do bem penhorado é feita preferencialmente através de leilão eletrónico, na plataforma www.e.leiloes.pt aprovada por despacho nº 12624/2015 - D.R. nº 219/2015, Série II de 2015-11-09. (…)

PROVA DE LEGITIMIDADE

Nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 37º da Portaria 282/2013 de 29 de agosto, a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução certifica que este documento foi gerado através do sistema informático de suporte à atividade dos agentes de execução (SISAAE), fazendo assim prova de que o agente de execução FF, cédula ...56, nif ...01..., com domicilio profissional na Rua 2, Ed.Empreend. 1, Código Postal 1 Local 3, se encontra designado no processo 1946/19.8T8SLV, Tribunal Judicial da Comarca Local 2, Local 3 - Juízo Execução - Juiz 2 (valor do processo: 40335.06 euros) em que é Exequente Condomínio da Rua 1, e Executado(s) BB e outros.

Este documento foi emitido no dia 12-02-2024, podendo ser consultado o seu suporte eletrónico através da página de internet www.solicitador.org, utilizando a opção "validar documentos", inserindo o identificador do documento W2aLM1RtgqJ.

Caso verifique desconformidade entre o documento em papel e o suporte eletrónico contacte os serviços da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução para o email geral@osae.pt.”

7. Encontra-se em anexo a esta “Notificação” o auto de penhora de 12.02.2024.

B) Fundamentação de direito

1. Invoca o Recorrente a nulidade do despacho recorrido, com fundamento em erro de julgamento e em excesso de pronúncia.

Ora, antes de mais, o erro de julgamento, que tanto pode incidir sobre a decisão de facto, como sobre a decisão de direito, não gera a nulidade da decisão, antes determina a sua alteração, pois traduz-se na desconformidade entre o conteúdo da decisão e as normas que presidem à mesma, isto é, não configura um vício no processo de formação da decisão.

Assim se enunciou a questão, em termos que são consensuais, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.03.2021 (Leonor Cruz Rodrigues) (Processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/):

“I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.”

2. No que tange ao excesso de pronúncia, vício da decisão constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, onde se alude às questões de que o tribunal não podia tomar conhecimento, aponta o Recorrente em suporte do mesmo que a violação do princípio do contraditório, em que funda o recurso, determina que a decisão proferida pelo Tribunal a quo constitua uma decisão surpresa.

O contraditório é um princípio estruturante do processo civil, integrante da noção de processo equitativo, consagrado nos artigos 20.º, n.º 4 da Constituição, 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e 47.º, § 2º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.

Afirma-se no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

Numa moderna conceção ampla deste princípio visa-se não só assegurar que não sejam tomadas providências contra uma pessoa sem que esta seja previamente ouvida, como garantir que ao longo de todo o processo as partes tenham a possibilidade de nele intervir de forma produtiva, como acentuam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, p. 7): “este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.

A violação do princípio do contraditório tem vindo a ser apreciada sob distintas perspetivas na doutrina e na jurisprudência (acompanhamos, em particular, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.05.2024 (Arlindo Crua), Processo n.º 16858/22.0T8SNT-A.L1-2, in http://www.dgsi.pt/):

- como nulidade procedimental, enquanto omissão do ato legalmente devido de audição das partes previamente à tomada de decisão sobre aspetos adjetivos ou substantivos, seja no plano dos factos, seja no plano da aplicação do direito, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil;

- como nulidade de sentença, enquanto excesso de pronúncia, por conhecimento de questão que o tribunal não podia apreciar, em virtude de não ter previamente auscultado as partes sobre a mesma, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil;

- sob as duas vestes de nulidade procedimental e de nulidade de sentença, em concurso;

- no sentido de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais.

Assim, pronunciaram-se mais recentemente sobre o tema em apreço, entre outros, os seguintes arestos (todos in http://www.dgsi.pt/):

- no sentido da nulidade procedimental, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.2024 (Maria Olinda Garcia) (Processo n.º 3231/16.8T8AVR.P1-A.S1):

“II. O facto de a recorrente não ser chamada a pronunciar-se sobre a caducidade invocada pela recorrida faz com que a decisão proferida viole o princípio do contraditório (artigo 3º, n.º 3 do CPC). Tal falha ao nível dos pressupostos em que assenta o processo decisório, por não haver a ponderação explícita da posição que a recorrente tinha direito de exprimir, torna a decisão nula e atacável nos termos do artigo 195º, mas não nos termos artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, pois em tal hipótese não existe um excesso de pronúncia no sentido (mais restrito) que é pressuposto por esta última norma, ou seja, no sentido de a própria decisão estatuir para além do objeto decisório, conhecendo de uma questão que ninguém suscitou e que também não seja de conhecimento oficioso.” (neste sentido, também, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.05.2021 (Moreira do Carmo), Processo n.º 1250/20.9T8VIS.C1, e do Tribunal da Relação do Porto de 19.02.2024 (Fernanda Almeida), Processo n.º 6609//22.4T8PRT-B.P1, bem como o acima referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.05.2024);

- no sentido da nulidade da decisão, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.04.2023 (Cristina Dá Mesquita) (Processo n.º 2650/17.7BELSB.E1):

“Uma decisão-surpresa é um vício que afeta a própria decisão, tornando-a nula nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, na medida em que através dela o tribunal pronuncia-se sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes interessadas sobre a matéria.”

- no sentido do concurso de vícios, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.09.2023 (Diogo Ravara) (Processo n.º 7165/22.9T8LSB.L1-7):

“I.-A prolação de decisão de rejeição da execução, nos termos previstos no art. 734º do CPC, sem prévia audição das partes, configura uma decisão-surpresa, decorrente da omissão de um ato legalmente prescrito, a saber a observância do princípio do contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC).

II.-Quando o Tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, tendo essa omissão relevância para o exame ou decisão da causa verifica-se não só uma nulidade secundária (art. 195º do CPC), mas também a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, al. d)), uma vez que, ao proferir tal decisão, conhece de matéria que, naquelas circunstâncias, não podia apreciar.”

- no sentido de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.2024 (Luís Correia de Mendonça) (Processo n.º 86/22.7T8PTL.G1.S1):

“(…) o contraditório é um princípio estruturante do processo civil, mas é mais do que isso: é um direito processual fundamental.

Esta sua natureza decorre da consagração constitucional nos artigos 20.º, 1 e 202.º, 2 CRP, enquanto direito de defesa, e no artigo 32.º, 5, mas ainda do artigo 6.º da Convenção europeia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e do artigo 47.º da Carta dos direitos fundamentais da união europeia.

O direito ao contraditório está ínsito no direito de defesa e o direito de defesa requer que o processo se estruture nas várias fases, de acordo com o princípio do contraditório. Nesta tautologia se realiza a elementar concretização da garantia do processo equitativo. (…)

A falta de actuação do contraditório concretiza um mau exercício dos poderes do juiz, que se traduz na impossibilidade para as partes de exerce rem os respectivos poderes processuais.

A decisão final proferida nestas condições pode, por isso, considerar-se ferida de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais.”

No que tange especificamente à articulação entre a nulidade procedimental e a nulidade de sentença destacamos o percurso efetuado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.05.2024 (Nuno Ataíde das Neves) (Processo n.º 1099/21.1T8AMD.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/), onde após se afirmar que a omissão da audição das partes configura a nulidade prevista no artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil se conclui que, na eventualidade da mesma não ser arguida perante o tribunal de 1ª instância, assiste ainda à parte a faculdade de reagir contra a decisão pela via do recurso, nele invocando a nulidade contemplada na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

De igual modo, enveredando por uma interpretação compatibilizadora das duas nulidades evidenciadas, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.06.2024 (Jorge Almeida Esteves) (Processo n.º 31078/22.5T8LSB.L1-6, in http://www.dgsi.pt/) que:

“I- Existe atualmente uma clivagem na jurisprudência, incluindo a do STJ, quanto à natureza do vício decorrente da omissão do contraditório prévio, havendo dois entendimentos distintos: um no sentido de se tratar de uma nulidade processual, prevista no artº 195º/1 do CPC, seguida pela jurisprudência mais recente, e outro no sentido de se tratar de uma nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, nos termos do artº 615º/1, al. d) do CPC.

II- Uma vez que se trata de uma questão meramente formal, mesmo que se considere que estamos perante uma nulidade processual – a arguir perante o tribunal que proferiu a decisão – é de admitir a respetiva invocação em sede de recurso de apelação, nos termos do artº 615º/4 do CPC, pois não deve a parte ser prejudicada quando baseia a sua conduta processual em entendimentos que têm sustentáculo em vária jurisprudência do STJ e das Relações.”

Ainda nesta linha de argumentação e perante caso em que a parte arguiu a nulidade perante o tribunal de 1ª instância, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.09.2024 (Rui Manuel Pinheiro de Oliveira) (Processo n.º 26838/21.7T8LSB-A.L1-8, in http://www.dgsi.pt/) que:

“I - Importa distinguir as nulidades de procedimento (derivadas da omissão de acto que a lei prescreva ou da prática de acto que a lei não admita ou admita sob uma forma diversa daquela que foi executada) das nulidades da sentença previstas no art.º 615.º, n.º 1 do CPC;

II - Sem embargo dos casos em que são de conhecimento oficioso, as primeiras devem ser arguidas perante o juiz (arts. 196.º e 197.º do CPC) e é a decisão que for proferida que poderá ser impugnada pela via recursória, com a limitação constante do n.º 2 do art.º 630.º do CPC;

III - Já as segundas, devem ser invocadas em sede de recurso, restringindo-se a reclamação para o próprio tribunal quando se trate de decisão irrecorrível, nos termos do art.º 615., n.º 4, do CPC;

IV - Não obstante, sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art.º 615.º, n.º 1 al. d), do CPC, quando a mesma traduza uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art.º 3.º, n.º 3) e a parte não dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do acto;

V - Optando, no entanto, a parte interessada por arguir a nulidade perante o tribunal a quo e conhecendo este dessa arguição, indeferindo-a, sem que a parte recorra desta última decisão, já não pode a mesma recorrer da decisão inicial alegadamente afectada por essa nulidade, por tal questão encontrar-se definitivamente decidida, impedindo o tribunal ad quem de a conhecer novamente (cfr. arts. 619.º e 635.º, n.º 5 do CPC).”

É, pois, antes de mais consensual que a violação do princípio do contraditório assume, prima facie, uma dimensão processual, traduzindo a ultrapassagem de uma etapa do processo decisório consubstanciada na audição das partes.

O problema consiste, então, em saber se o vício reside apenas aí ou se estende à decisão proferida nessas circunstâncias, convolando-a numa decisão em que o tribunal conhece de questão que não podia apreciar.

Afigura-se-nos que a mais recente linha argumentativa, que concilia ambas as perspetivas, se revela mais adequada, ao conferir maior tutela às situações de ofensa ao princípio do contraditório, sendo por isso também mais consentânea com a importância nuclear deste princípio no âmbito do processo civil.

O artigo 630.º, n.º 2 do Código de Processo Civil constitui, neste cenário, um elemento interpretativo muito relevante, pois estabelece-se aí a regra de que não são recorríveis as decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, mas consagra-se a exceção de que tais decisões são recorríveis se contenderem com o princípio do contraditório.

Assim, o caminho traçado é este:

- a inobservância do princípio do contraditório começa por constituir uma nulidade procedimental, que se subsume ao disposto no artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;

- se a parte arguir a nulidade e a mesma for indeferida, assiste-lhe a faculdade de recorrer dessa decisão de indeferimento, ao abrigo do disposto no artigo 630.º, n.º 2 do Código de Processo Civil;

- se a parte não arguir a nulidade, pode recorrer da decisão proferida com inobservância do contraditório, invocando a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

3. Revertendo agora ao caso dos autos verificamos que o Recorrente alega que não lhe foi notificado o auto de penhora de 12.02.2024, tendo, com esse fundamento, arguido a nulidade, por violação do princípio do contraditório, a qual foi indeferida, pelo que apelou depois deste despacho de indeferimento.

Cumpre, deste modo, apreciar se ocorre a invocada nulidade.

Ora, verifica-se que consta do sistema informático Citius o envio do auto de penhora ao Patrono da Executada.

Esse envio foi feito através de “via telemática”, como se consignou na respetiva “Notificação”, onde se contém ainda uma declaração com a identificação do código através do qual o documento é acessível.

No artigo 13.º da Portaria n.º 282/2013, de 29.08, que regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis, disciplina-se a forma das notificações a efetuar por agente de execução:

“1 - O agente de execução efetua todas as notificações previstas na lei preferencialmente por transmissão eletrónica de dados, através do sistema informático de suporte à atividade dos agentes de execução.

2 - A notificação dos mandatários das partes efetua-se por transmissão eletrónica de dados, nos termos da portaria que regula a tramitação eletrónica dos processos judiciais.

3 - Para efeitos do número anterior, a data de elaboração da notificação corresponde à data de depósito da notificação no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais.”

O aludido “sistema informático de suporte à atividade dos agentes de execuçãoé o SISAAE mencionado na comunicação da Agente de Execução acima transcrita, existindo “uma intercomunicabilidade entre a plataforma GPESE/SISAAE e o sistema CITIUS, onde por essa via ficam registados todos os procedimentos realizados pelo agente de execução” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.2023 (Tomé de Carvalho), Processo n.º 641/21.2T8MMN-A.E1, in http://www.dgsi.pt/).

Assim, não tendo sido arguida a falsidade do ato consubstanciado na comunicação eletrónica evidenciada e considerando-se essa comunicação um documento autêntico, porque efetuada através das plataformas oficiais (artigo 363.º, n.ºs 1 e 2, 1ª parte do Código Civil), nem tendo sido alegada qualquer circunstância que tivesse obstado ao conhecimento do teor desse ato, tem-se como certo que aquela “Notificação” foi enviada ao Patrono da Executada e que em anexo à mesma se encontrava o auto de penhora de 12.02.2024.

Neste sentido pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01.03.2018 (Pedro Damião e Cunha) (Processo n.º 1103/10.9TBGMR.G1, in http://www.dgsi.pt/):

“I- Os actos processuais de notificação efectuados pelo Agente de Execução, em sede de acção executiva, constituem documentos autênticos com a força probatória plena inerente a essa sua natureza.

II- Assim, só se o Recorrente tivesse arguido a falsidade da prova documental (dos actos processuais de notificação documentados no processo), pelo incidente processual próprio (art. 451º do CPC), é que a força probatória do documento podia ser posta em causa, e só nesse caso é que a sua eficácia como meio de prova passaria então a depender da livre apreciação do julgador.”

Assinale-se, adicionalmente, que tendo esse envio sido direcionado ao Patrono da Executada, o procedimento adotado foi, quanto a este aspeto, conforme com o disposto no n.º 1 do artigo 247.º do Código de Processo Civil, onde precisamente se estabelece que as notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais.

4. Passamos à segunda questão, que se reconduz a saber se o auto tinha de ser notificado à Executada.

Ora, não oferece qualquer dúvida a obrigatoriedade de notificação de um auto de penhora ao executado, tanto mais quanto está especificamente prevista a possibilidade de oferecimento de um específico meio de defesa relativamente a esse ato, a oposição à penhora, como resulta do disposto nos artigos 753.º, 783.º e 784.º a 785.º do Código de Processo Civil.

Estabelece-se especificamente naquele artigo 753.º do Código de Processo Civil que:

“1 - Da penhora lavra-se auto, constante de modelo aprovado por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.

2 - O agente de execução notifica o executado da realização da penhora no próprio ato, se ele estiver presente, advertindo-o da possibilidade de deduzir oposição, com os fundamentos previstos no artigo 784.º, e do prazo de que, para tal, dispõe entregando-lhe cópia do auto de penhora.

3 - O executado é ainda advertido de que, no prazo da oposição e sob pena de ser condenado como litigante de má-fé, deve indicar os direitos, ónus e encargos não registáveis que recaiam sobre os bens penhorados, bem como os respetivos titulares ou beneficiários; é-lhe ainda comunicado que pode requerer a substituição dos bens penhorados ou a substituição da penhora por caução, nas condições e nos termos do disposto na alínea a) do n.º 5 e no n.º 6 do artigo 751.º

4 - Se o executado não estiver presente no ato da penhora, a sua notificação tem lugar nos cinco dias posteriores à realização da penhora.”

Sustenta, porém, o Tribunal a quo, em linha com a resposta oferecida pela Agente de Execução à arguição de nulidade, que aquele auto de 12.02.2024 é uma mera “correção” do auto de penhora lavrado a 18.05.2023, o qual foi oportunamente notificado à Executada, que contra ele deduziu oposição à penhora, já apreciada e indeferida.

Pergunta-se, então, se semelhante circunstância permite dispensar a notificação do auto de penhora de 12.02.2024?

Antes de mais importa sublinhar que não consta do próprio auto de 12.02.2024 qualquer menção no sentido de que o mesmo consubstancia uma mera “correção” do auto de 18.05.2023.

Por outro lado, ainda que tal sucedesse, não podemos considerar que exista norma ou princípio do qual se extraia a desnecessidade de notificação da retificação de um ato integrado na marcha do processo.

Aliás, em sentido contrário depõem as normas atinentes à retificação da sentença, que são extensíveis aos despachos, sendo inequívoco que qualquer retificação de uma sentença ou despacho deve ser levada ao conhecimento das partes (artigos 613.º e 614.º do Código de Processo Civil).

Se tivermos presentes os despachos de mero expediente, reforçada fica esta leitura do princípio do contraditório.

Com efeito, não obstante os despachos de mero expediente sejam “inócuos do ponto de vista da decisão, julgamento, aceitação ou reconhecimento do direito requerido”, porque se destinam apenas a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes, e não sejam, por isso, recorríveis, tais despachos são suscetíveis de impugnação com fundamento em ilegalidade (artigos 152.º, n.º 4 e 630.º, n.º 1 do Código de Processo Civil; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., Almedina, 2024, p. 207), pelo que devem ser notificados às partes.

É certo que se encontra legalmente prevista a possibilidade de dispensa do contraditório em casos de “manifesta desnecessidade”, mas esta exceção deve ser interpretada com razoabilidade, isto é, efetuando uma equilibrada ponderação dos interesses em presença: “Na formulação do nº 3 foram adotados conceitos indeterminados ou cláusulas gerais cuja maleabilidade permite assegurar a instrumentalidade do processo face ao direito substantivo sem, no entanto, dispensar critérios rigorosos e convincentes relativamente à sua delimitação a partir da análise ou resolução de casos concretos. Cabe ao juiz um papel fundamental na compatibilização dos diversos interesses que no processo se interligam.” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., p. 22).

Ora, tendo em conta as fortes implicações de uma penhora na vida de um cidadão, não se afigura razoável a dispensa da notificação de qualquer ato que lhe diga diretamente respeito, designadamente, uma retificação do correspondente auto.

A este propósito alega ainda o Recorrente que é inconstitucional a interpretação da norma contida nos artigos 719.º, n.º 1 e 720.º, n.º 7 do Código de Processo Civil, no sentido de que o agente de execução não está obrigado a notificar o executado ou o seu mandatário do ato da penhora nova, por violação do artigo 20.º, n.ºs 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.

Afirma-se no primeiro normativo indicado que “Cabe ao agente de execução efetuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos”, e no segundo que “Na falta de disposição especial, o agente de execução realiza as notificações da sua competência no prazo de 5 dias e pratica os demais atos no prazo de 10 dias.”

Como decorre do acima exposto, a questão que se coloca aqui não contende com a delimitação das competências do agente de execução, mas antes com a natureza do ato, isto é, não se cura de saber se o agente de execução era a pessoa competente para proceder a esta notificação, antes se discute se ela é legalmente devida, atenta a alusão à circunstância de se tratar de uma mera “correção” de um auto de penhora anterior.

Não se suscita, pois, a apontada questão de constitucionalidade.

5. Aqui chegados, pergunta-se se o modo como foi feito o envio do auto permite considerar que a Executada foi dele notificada.

Desde logo, constata-se que o envio do auto não foi acompanhado das menções impostas no acima citado artigo 753.º do Código de Processo Civil.

Para além disto, uma notificação destina-se a facultar à parte o conhecimento de um facto (artigo 219.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), isto é, possui uma função informativa.

A notificação deve consistir, assim, na transmissão da informação sobre o ato praticado no processo, com remessa de cópia do mesmo, em obediência ao disposto no n.º 3 do artigo 219.º do Código de Processo Civil, onde se estabelece que “a citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto”.

Comentando este preceito legal, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., p. 280), que aqui se “institui o princípio da transparência da citação e notificação, impondo a completude e legibilidade dos elementos necessários à compreensão do ato recetício em causa (art. 131º, nº 3).”

Diz-se, efetivamente, no referido artigo 131.º, n.º 3 do Código de Processo Civil que “os atos processuais que hajam de reduzir-se a escrito devem ser compostos de modo a não deixar dúvidas acerca da sua autenticidade formal e redigidos de maneira a tornar claro o seu conteúdo, possuindo as abreviaturas usadas significado inequívoco.”

A esta luz diremos que o envio de um auto de penhora em anexo a uma notificação onde nada se diz sobre esse auto, circunscrevendo-se o conteúdo da notificação exclusivamente à definição da modalidade de venda, não cumpre o princípio da transparência das notificações e o princípio do contraditório.

Assinale-se ainda que a definição da modalidade de venda é uma etapa do processo executivo posterior à realização da penhora, pressupondo que todas as questões atinentes à penhora estejam já resolvidas, o que fica perturbado pelo envio de um novo auto de penhora, sem qualquer explicação, em anexo à notificação para pronúncia sobre a modalidade de venda.

Não podemos, deste modo, considerar que o envio do auto, nas circunstâncias em que ocorreu, consubstancie a sua notificação, ainda que se aceite que o auto chegou ao conhecimento da Executada, como decorre do acima exposto.

6. Por último, cabe indagar das consequências desta situação.

A declaração de nulidade, por omissão da prática de ato legalmente devido, determina a prática do ato em falta.

Não obstante, porque a Executada já teve conhecimento do auto, não se justifica ordenar a notificação do mesmo.

Trata-se, então, de garantir o exercício do contraditório, permitindo à Executada a pronúncia sobre o auto de penhora.

Pode ainda colocar-se, no entanto, a questão de saber se, nestas circunstâncias, deve o Tribunal da Relação substituir-se ao Tribunal a quo e proferir decisão sobre a matéria de fundo em discussão, nos termos do artigo 665.º do Código de Processo Civil.

Assim se entendeu no acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.05.2024, desde que em sede de alegações a parte expresse a sua pronúncia sobre a questão que foi decidida sem a sua audição e a parte contrária se pronuncie a propósito nas contra-alegações.

Como aí se reconhece, todavia, este não é um entendimento que suscite unanimidade, apontando-se jurisprudência no sentido de que o normativo indicado não é aplicável nos casos em que ocorre nulidade procedimental (o acima citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.09.2023).

No caso em apreço o Recorrente sustenta, nas suas alegações, que a penhora efetuada em 12.02.2024 não é igual àquela que foi concretizada em 18.05.2023, e que é ilegal, por incidir sobre um bem próprio da Executada, sendo que esta apenas se encontra em juízo em representação do seu falecido pai, pelo que respondem pela dívida tão somente os bens que integram o acervo hereditário do seu pai e não os seus bens próprios.

Diversamente, o Exequente secunda a posição do Tribunal a quo no sentido de que este auto consubstancia tão somente uma correção do anterior e, por outro lado, assinala que tendo sido já apreciada um incidente de oposição à penhora deduzido pela Executada, por sentença transitada em julgado, é inadmissível nova apreciação da sobredita penhora.

Efetivamente, correu já termos nestes autos um incidente de oposição à penhora, com respeito à penhora realizada a 18.05.2023, o qual foi indeferido por ter sido fundado no facto do bem penhorado pertencer a terceiro.

Com efeito, no incidente de oposição à penhora cabem exclusivamente os casos em que são penhorados bens pertencentes ao executado, com fundamento na inadmissibilidade da penhora desses bens ou de se tratar de bens que não respondem pela dívida, ou não respondem precipuamente (artigo 784.º do Código de Processo Civil).

Ora, a questão que foi apresentada ao Tribunal a quo cingiu-se à omissão de notificação do auto de penhora, tendo sido esse estritamente o objeto do despacho recorrido.

A ilegalidade da penhora constitui questão surgida nas alegações do Recorrente e, reflexamente, nas contra-alegações do Recorrido.

Não estamos, deste modo, perante uma questão cujo conhecimento tenha ficado prejudicado pelo indeferimento da arguição de nulidade, antes se configura uma questão nova, não suscitada em 1ª instância, a que acresce a circunstância de não se revelar uma questão de conhecimento oficioso.

Em face do exposto, afigura-se que não deverá o Tribunal da Relação antecipar a forma de reação da Executada, devendo apenas determinar, como consequência da declaração de nulidade, que assiste ao Recorrente a faculdade de se pronunciar sobre o auto de penhora de 12.02.2024, pelo que não deverá operar, neste caso, a regra da substituição.

7. As custas são suportadas pelo Recorrido, que fica vencido no recurso (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).

IV - Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, declarando a nulidade, por violação do princípio do contraditório, da omissão de notificação do auto de penhora de 12.02.2024 à Executada, e determinando que assiste à Executada a faculdade de, após a notificação desta decisão, se pronunciar sobre o indicado auto de penhora de 12.02.2024.

Custas pelo Recorrido.

Notifique e registe.

Évora, 16 de dezembro de 2024.

Sónia Moura

Ana Pessoa

José António Moita