A aplicação da pena acessória em caso de cometimento de crime de ofensa à integridade física grave por negligência surge como uma imposição legal e uma consequência obrigatória e incontornável, relativamente à qual não está prevista qualquer margem de discricionariedade do julgador.
Aplicar a pena acessória de proibição de conduzir é um imperativo, sendo deixada ao Tribunal apenas a tarefa de determinação da medida concreta dessa pena acessória.
A condenação em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, a que se reporta o artigo 69.º do Código Penal, não pode ser dispensada, nem atenuada especialmente, suspensa ou substituída por caução de boa conduta ou por trabalho a favor da comunidade, sob pena de violação do princípio da legalidade e da tipicidade.
I – RELATÓRIO
1. No Juízo Local Criminal de … - Juiz …, o arguido AA, com os sinais dos autos, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, após acusação do Ministério Público, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência agravado, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao disposto no artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal, com referência aos artigos 13.º, 15.º, alíneas a) e b), 26.º, do mesmo diploma legal, a que acresce a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, previsto e punido pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência ao disposto nos artigos 11.º, n.ºs 1 a 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea a), 99.º, n.º 2, alínea a), 103.º, n.ºs 1, 2, 3, todos do Código da Estrada.
2. Por sentença de 18 de abril de 2024, foi decidido:
“Pelo exposto, atentas as disposições legais e os fundamentos supramencionados, decide-se:
1. Condenar o Arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao disposto no artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal, com referência ao disposto nos artigos 11.º, n.ºs 1 a 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea a), 99.º, n.º 2, alínea a), 103.º, n.ºs 1, 2, 3, todos do Código da Estrada, na pena de 6 (seis) meses de prisão.
2. Suspender a pena aplicada no ponto anterior pelo período de 1 (um) ano, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 5 do Código Penal, com sujeição a regime de prova que assentará num plano de reinserção social, a executar durante o tempo de duração da suspensão, com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, a qual fica ainda subordinada ao cumprimento do dever de o Arguido pagar à Assistente BB uma indemnização no valor de € 2.400,00, durante o período da suspensão, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal [valor integrante da quantia referente ao pedido de indemnização civil apresentado pela Assistente constante do ponto 5].
3. Condenar o Arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 meses.
4. Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenar os demandados AA e CC a pagar, solidariamente, ao demandante Centro Hospitalar de …, a quantia de € 2.546,30, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até ao efectivo e integral pagamento.
5. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenar o demandado AA a pagar a demandante BB, a quantia de € 5.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil e até ao efectivo e integral pagamento, absolvendo-se o demandado do demais peticionado;
6. Condenar o Arguido AA no pagamento das custas e demais encargos com o processo que se fixa em 3 UC’s, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
7. Condenar solidariamente os demandados AA e CC no pagamento das custas cíveis, relativamente ao pedido de indemnização civil apresentado pelo Centro Hospitalar de …, sem prejuízo de isenções a que haja lugar (cf. artigo 4.º, n.º 1, alínea n), a contrario, do Regulamento das Custas Processuais).
8. Condenar demandante BB e demandado AA no pagamento das custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo de isenções a que haja lugar (cf. artigo 4.º, n.º 1, alínea n), a contrario, do Regulamento das Custas Processuais).
*
Após trânsito:
- Remeta boletim à Direcção de Serviços de Identificação Criminal (cf. artigo 374.º, n.º 3, alínea d), do CPP, e artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, al. a) e n.º 3, da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio).
- Comunique à DGRSP nos termos e para os efeitos do artigo 494.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
- Comunique à ANSR e ao IMTT (cf. artigo 69.º, n.º 4, do Código Penal e artigo 500.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
- No prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da decisão, deverá o arguido entregar o seu título de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, nos termos do artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal, e artigo 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sob pena de cometer um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
*
Deposite (cf. artigos 372.º, n.º 5 e 373.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).”.
3. Inconformado com a decisão final na parte em que se refere à condenação na pena acessória de proibição de conduzir, dela interpôs recurso o arguido, pedindo que se altere a decisão objeto do recurso, “decidindo pela não aplicação da pena acessória de não condução de veículos com motor”.
Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
“1 - O Recorrente vinha acusado pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência agravado, previsto e punido pelo Artº 148º nº 1 e 3, com referência ao disposto no Artº 144º alíneas b) e c) do Código Penal.
2 - Ainda na Pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, previsto e punido pelo Artº 69º nº 1 alínea a) do Código Penal.
3 - Efectuado o julgamento, foi o Recorrente condenado a uma pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa por 1 (um) ano, com sujeição a regime de prova assente num plano de reinserção social a executar durante o tempo de duração da suspensão.
4 - Ao pagamento de uma indemnização à Assistente no valor de 2.400,006 durante o período de suspensão.
5 - Condenado ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 (dez) meses.
6 - Condenado solidariamente com o CC ao pagamento de 2.546,30€ ao Centro Hospitalar de … a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescidos de juros à taxa legal.
7 - Ainda condenado ao pagamento de 5.000,00€ à Assistente a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescidos de juros à taxa legal.
8 - Condenado ao pagamento das custas processuais no valor de 3 UCs.
9 - A prova foi de manifesta insuficiência, incorrecto apuramento dos factos, no seu encadeamento e cotejo, na sua imputação quer subjectiva como objectiva.
10 - Os elementos probatórios e a prova prestada em sede de audiência de julgamento, não contém por si, factos suficientes nem bastantes para tal condenação.
11 - Pese embora este entendimento o Recorrente aceitou as condenações, ainda assim, como excessivas.
12 - O principal objectivo das penas aplicadas é evitar a reincidência e permitir a reinserção social, tornar o agente socialmente útil e cumpridor da lei e obviamente as finalidades preventivas geral e especial.
13 - Foi-lhe aplicada pena sobejamente suficiente para obter esse desiderato.
14 - Formulando facilmente um juízo favorável quanto ao seu comportamento futuro e ser a condenação suficiente para assegurar as finalidades da punição.
15 - A imposição da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 (dez) meses de que ora se recorre, a ser aplicada colocaria o Recorrente inevitavelmente em grave crise, a da sua sobrevivência económica, pela impossibilidade de exercer a sua profissão de motorista de pesados e consequente desemprego, violando assim, o disposto no Artº 51 nº 2 do Código Penal, sendo este o fundamento do Recurso.
4. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
5. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência. Extraiu as seguintes conclusões:
“1.º
Por sentença proferida a 18/04/2024, no âmbito dos autos de processo à margem referenciados, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao disposto no artigo 144.º,alíneas b) e c), do Código Penal, com referência ao disposto nos artigos 11.º, n.ºs 1 a 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea a), 99.º, n.º 2, alínea a), 103.º, n.ºs 1, 2, 3, todos do Código da Estrada, além do mais, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, com sujeição a regime de prova que assentará num plano de reinserção social, a executar durante o tempo de duração da suspensão, com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, a qual fica ainda subordinada ao cumprimento do dever de o arguido pagar à assistente BB uma indemnização no valor de €2.400,00, durante o período da suspensão, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal [valor integrante da quantia referente ao pedido de indemnização civil apresentado pela Assistente constante do ponto 5]; e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 meses.
2.º
Inconformado com o respectivo teor, o arguido interpôs recurso da douta sentença recorrida, por entender que não lhe deveria ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pois que a respectiva aplicação ao arguido o impossibilitará de exercer a sua profissão de motorista e, assim, será colocada em crise a sobrevivência económica do arguido.
3.º
Não nos merece reparo a douta sentença recorrida. Senão vejamos.
Da factualidade considerada provada na douta sentença recorrida, verifica-se o preenchimento, por banda do arguido, de todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo incriminador pelo qual veio a ser condenado.
4.º
Para o cometimento deste ilícito criminal, o nosso legislador prevê, além de uma pena principal, de multa ou de prisão, uma pena acessória, de proibição de conduzir veículos motorizados, entre três meses e três anos.
5.º
A condenação em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, a que se reporta o artigo 69.º do Código Penal, não pode ser dispensada, nem atenuada especialmente, suspensa ou substituída por caução de boa conduta ou por trabalho a favor da comunidade, sob pena de violação do princípio da legalidade e da tipicidade (1).
6.º
Ao contrário do pretendido pelo arguido, que não pode colher, a aplicação ao arguido de pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados é obrigatória e decorre obrigatoriamente da lei, sem que tal dependa da vontade ou da discricionariedade do julgador, e sem que tal dependa, também, da suficiência e adequação da pena principal para, por si só, acautelar as finalidades da punição.
7.º
O arguido foi condenado pela prática de um crime de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, cometido como consequência de um acidente de viação pelo qual o mesmo foi responsável, por violação das regras do Código da Estrada, mostrando-se, assim, preenchido o pressuposto de que depende a aplicação da sobredita pena acessória, não havendo que averiguar quaisquer necessidades de prevenção especial específicas para a sua aplicação (2).
8.º
Fica, pois, assim, patente que não existe fundamento legal que sustente a pretensão do arguido de não aplicação de tal pena acessória, não podendo o mesmo escudar-se no facto de ser motorista de profissão e de a pena acessória em questão o impedir de trabalhar e fazer perigar a sua sobrevivência económica.
9.º
Justamente por essa razão, sobre o arguido, motorista de profissão, impende uma maior exigência no não cometimento de determinadas infracções e a sua situação laboral deveria ter servido de mote para uma condução mais prudente e não para reclamar do Tribunal a não aplicação de uma pena que, nos termos legais, se impõe que lhe seja aplicada, assumindo ela, essencialmente, uma função preventiva, de prevenção especial, de afastamento da perigosidade revelada pela conduta empreendida pelo arguido.
10.º
Destarte, andou bem o Tribunal a quo ao condenar o arguido nos exactos termos em que o condenou e ao aplicar ao arguido, e ao graduar como graduou, as penas principal e acessória fixadas na douta sentença recorrida, pois fez uma correcta apreciação dos critérios legais para a determinação da medida concreta das penas aplicadas àquele, assim se acautelando, in casu, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
11.º
Não merecendo quaisquer reparos, deverá, pois, a sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos, sendo o recurso julgado totalmente improcedente”.
6. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer no sentido da improcedência do recurso.
7. Notificado de tal parecer, o arguido recorrente não veio responder ao mesmo.
8. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II – QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença condenatória proferida nos autos –, a questão a examinar e decidir prende-se exclusivamente com a pena acessória de proibição de conduzir fixada ao arguido e com a possiblididade de a mesma não lhe ser aplicada no caso dos autos.
*
III – TRANSCRIÇÃO DOS SEGMENTOS DA DECISÃO RECORRIDA RELEVANTES PARA APRECIAÇÃO DO RECURSO INTERPOSTO.
“Factos provados
Realizada a audiência de julgamento, com relevância para a decisão da causa, o Tribunal considerou provados os seguintes factos:
Da acusação pública
1) No dia 13 de Outubro de 2020, pelas 15:00, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros de marca …, modelo …, de cor …, com a matrícula …, a velocidade não concretamente apurada, pela Avenida …, em …, no sentido sul para norte, a velocidade compreendida entre os 28,10 e os 34,35 km/h.
2) Nas circunstâncias de tempo e lugar identificados em 1), era de dia, havia boa luminosidade natural, o piso da faixa de rodagem era em aglomerado asfáltico, encontrando-se em normal estado de conservação e de manutenção, seco e limpo.
3) O mencionado local é uma recta, com 18,00 metros de largura, de boa visibilidade, sem inclinação, dotada de duas vias de trânsito em cada sentido, com 3,50 metros de largura cada, uma no sentido seguido pelo arguido, e outra no sentido contrário, divididas por separador jardinado, com a largura de 4,00 metros, sem possibilidade de encandeamento para o arguido, sendo o limite de velocidade de 50 km/h e o tráfego rodoviário era pouco intenso.
4) Nas mencionadas vias de trânsito e, portanto, no sentido de marcha prosseguido pelo arguido, existe uma passagem para peões, vulgo passadeira, demarcada com linhas brancas no pavimento (marca M11), visível e sinalizada através de dois sinais verticais H7 passagem para peões, colocados antes da mesma, do lado esquerdo e direito, marca M8 (linha de paragem demarcada antes da passagem para peões) e, ainda, a marca longitudinal M2 (linha descontínua a separar as vias de trânsito no mesmo sentido).
5) Nesse mesmo dia, hora e local, a ofendida BB efectuava o atravessamento da faixa de rodagem das referidas vias, na mencionada passadeira para peões, da esquerda para a direita, de oeste para este, tendo em consideração o sentido seguido pelo arguido, o que fazia após verificar que o podia fazer em segurança e que nenhum automóvel aí circulava.
6) Nas mencionadas circunstâncias de tempo e lugar em 1), o arguido, atento o sentido por si seguido, não abrandou e não parou antes da passagem para peões, bem como não viu a ofendida a atravessar a mesma, a qual já havia percorrido a via da esquerda e quase na totalidade a via da direita da faixa de trânsito em que aquele circulava.
7) Acto contínuo, o arguido, que circulava desatento, não logrou imobilizar a marcha do veículo no espaço livre e visível à sua frente, e embateu com a zona frontal direita do automóvel que conduzia no corpo da ofendida, do seu lado direito.
8) Momento em que o arguido travou a marcha que imprimia ao veículo, fazendo um rasto de travagem de 4,80 metros.
9) Em resultado do embate, a ofendida foi projectada para a frente, cerca de 3 a 4 metros, caindo ao solo, onde ficou prostrada no solo até à chegada dos meios de socorro.
10) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido deu-se o referido embate e, por força de tal circunstância, a ofendida sofreu dores, lesões, fracturas ósseas e traumatismos, mormente traumatismo craniano sem perda de consciência, hematoma periorbital, ferida no supracilio direito, fractura avulsa da espinha da tíbia à direita, traumatismos da coluna cervical e do ombro direito, que determinaram o seu transporte para o Hospital de … a fim de receber cuidados médicos, com necessidade de transporte posterior para internamento no Hospital do…, onde foi submetida a cirurgia ao membro superior esquerdo a 16/10/2020 para redução e fixação artroscópica de fractura da espinha da tíbia e redução de osteossíntese de fractura da clavícula, com fractura do úmero proximal esquerdo Neer III (com fractura do troquino impactada).
11) Ainda como consequência da descrita conduta do arguido, a ofendida sofreu fortes dores nos locais mencionados, com necessidade de realização de fisioterapia, registando como sequelas:
a. Face: Região supraciliar direita com vestígio cicatricial com 1 cm de comprimento linear, não visível;
b. Membro superior esquerdo: Face lateral externa do ombro com cicatriz cirúrgica com 6 cm de comprimento; e 4 cicatrizes cirúrgicas justapostas com 1 cm de comprimento, com limitação grave da mobilidade do ombro, com abdução inferior a 80º, flexão inferiores a 80º, extensão limitada a 45º, rotação externa ausente e com atrofia muscular da cintura escapular em relação ao lado contra-lateral;
c. Membro inferior esquerdo: Cicatriz na face anterior do joelho com 1 cm de diâmetro.
12) Tais lesões causadas pelo arguido à ofendida tiveram como resultado que a mesma sofreu doença particularmente dolorosa, com dificuldade funcional importante e com grave limitação da mobilidade da cintura escapular esquerda, as quais pela sua gravidade, conduta terapêutica encetada, determinam uma evolução para provável artrose com necessidade de artroplastia do ombro, as quais afectam de maneira grave a capacidade de trabalho da ofendida (ombro dominante em operadora de hipermercado).
13) Tais lesões causadas pelo arguido determinaram um período de doença de 328 dias para a consolidação médico legal, ocorrida a 06/09/2021, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional da dita ofendida por, igualmente, 328 dias, tendo resultado para a mesma como consequências de carácter permanente as cicatrizes e as sequelas supradescritas, as quais afectam de maneira grave a capacidade de trabalho e possibilidade de usar o corpo por parte da ofendida.
14) O arguido, apesar da aproximação da passagem de peões, de forma a verificar se ali caminhavam ou atravessavam peões, conduziu o referido veículo de forma imprevidente e distraída, bem como não abrandou a velocidade que imprimia ao veículo em que seguia de forma a adaptá-lo ao supra descrito local onde o embate ocorreu, não logrando parar o mesmo no espaço visível e livre à sua frente.
15) Agiu o arguido sem o cuidado e atenção a que estava obrigado e de que era capaz, prosseguindo a sua marcha sem verificar se algum peão atravessava a passadeira para peões na via em que seguia, não adaptando a velocidade a que circulava às condições e características da mesma e de trânsito, ignorando, deste modo, os demais utilizadores da mesma, sinais e regras de trânsito, ao contrário do que sabia estar obrigado e de que era capaz, até porque conhecia o local em que circulava.
16) Com a descrita conduta, não adequou o arguido a sua condução à via em que seguia, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia actuar no exercício da condução, e cujo cumprimento evitaria o acidente acima descrito e as graves lesões provocadas no corpo da ofendida, não chegando, também, a prever como consequência possível da sua condução, que, ao fazê-lo naquelas circunstâncias, poderia causar lesões físicas à mesma, como, de facto, causou.
17) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais resultou demonstrado com relevância para a decisão da causa que:
18) Nas circunstâncias descritas no ponto 1), o referido veículo não tinha seguro de responsabilidade civil obrigatório.
Do pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar de …:
19) O Demandante é uma instituição hospitalar integrada no Serviço Nacional de Saúde e tem como objecto a prestação de cuidados de saúde em assistência hospitalar.
20) Em consequência da actuação do Arguido acima descrita, o Demandante Centro Hospitalar de … prestou cuidados de saúde à Assistente no valor global de € 2.546,30, ainda não liquidado.
Do pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente:
21) A alegria e a vivacidade da Assistente foram bruscamente interrompidas com o acidente acima descrito.
22) A Assistente permaneceu em choque durante vários meses.
23) Para além da intervenção cirúrgica, a Assistente foi sujeita a vários tratamentos.
Das condições pessoais da Assistente:
24) A Assistente trabalha um supermercado, auferindo um rendimento mensal de € 900,00.
25)Completou o 5.º ano de escolaridade.
26) Vive com o marido e com o filho de 23 anos de idade que ainda se encontra a concluir os estudos.
27) A Assistente tem outra filha, maior de idade.
28) O marido é pedreiro e aufere um rendimento mensal de € 1.000,00.
29) Vivem em casa própria, pela qual procedem a um pagamento mensal ao banco no valor de € 700,00.
30) A Assistente tem actualmente dívidas de cartões de crédito que se encontra a proceder ao pagamento mensal no valor total de € 300,00.
Das condições pessoais do Arguido:
31) O Arguido é motorista de pesados internacional, auferindo um rendimento mensal de € 2.400,00.
32) Completou o 9.º ano de escolaridade.
33) Vive com a companheira que se encontra desempregada, em casa arrendada, pela qual procedem ao pagamento da renda no valor de € 450,00.
34) Para além das despesas normais necessárias à sua subsistência, o Arguido não tem outras dívidas de carácter avultado que se encontre a liquidar.
35) O Arguido tem 2 filhos, ambos maiores de idade.
36) O Arguido tem um antecedente estrangeiro registado no seu certificado de registo criminal.
Factos não provados
Realizada a audiência de julgamento, com relevância para a decisão da causa, o Tribunal não considerou provados os seguintes factos:
Do pedido de indemnização civil apresentado pela Assistente:
(...)
Das contestações à acusação e aos pedidos de indemnização civil:
b) Nas circunstâncias descritas no ponto 5), a ofendida surgiu por detrás de uma outra viatura que acabara de ultrapassar o Arguido.
c) Nessa ocasião, a ofendida vinha distraída a falar ao telemóvel, sem se aperceber da aproximação do veículo do Arguido que é silencioso.
d) Ao se aperceber da ofendida, o Arguido se desviou para o seu lado esquerdo, com o objectivo de passar por detrás, razão pela qual o embate se deu com a frente já com o lado direito da viatura.
f) Ao tentar equilibrar-se, a ofendida bateu com o telemóvel, que segurava com a mão junto ao ouvido, no capot da viatura, deixando uma marca bem visível.
g) Após o embate, a ofendida ficou sentada na passadeira e foi de imediato assistida pela mulher do Arguido, que lhe entregou o telefone.
h) Foi o Arguido que chamou a polícia e o INEM contra a vontade da ofendida.
i) As despesas médicas e medicamentosas da ofendida foram pagar pelo CC.
*
Com relevância para a decisão da causa não ficaram por provar quaisquer outros factos.
*
(…)
IV. Enquadramento jurídico-penal
O Arguido AA vem acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência agravado, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao disposto no artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal, com referência aos artigos 13.º, 15.º, alíneas a) e b), 26.º, do mesmo diploma legal, a que acresce a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, previsto e punido pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência ao disposto nos artigos 11.º, n.ºs 1 a 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea a), 99.º, n.º 2, alínea a), 103.º, n.ºs 1, 2, 3, todos do Código da Estrada.
(…)
Preceituam os artigos 144.º, alíneas b) e c), e 148.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, o seguinte:
«Artigo 144.º
Ofensa à integridade física grave
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: (…)
b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;
c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou
(…)
é punido com pena de prisão de dois a dez anos.
Artigo 148.º
Ofensa à integridade física por negligência
1 - Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
(…)
3 - Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
(…)»
O bem jurídico protegido pelos tipos criminais de ofensas à integridade física visa acautelar, essencialmente, a integridade física, abrangendo a sua integridade corporal como a psíquica, bem como a saúde do indivíduo.
O crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 144.º, do Código Penal, é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, à excepção da alínea d), em que configura um crime de perigo concreto) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção).
O tipo objectivo consiste no ataque ao corpo ou à saúde de uma outra pessoa viva, sendo relevante, no caso concreto da alínea b), a ofensa no corpo de outrem donde advém uma incapacitação da vítima para desenvolver qualquer trabalho em geral ou para o trabalho específico da vítima e, no caso concreto da alínea c), a ofensa no corpo de outrem, provocando «doença particularmente dolorosa ou permanente».
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, «A doença particularmente dolorosa é aquela que produz efeitos físicos e psíquicos penosos (ou seja, dificilmente suportáveis) para uma pessoa com as características da vítima, quer sejam de curta duração, quer sejam de longa duração. A doença permanente é aquela que produz efeitos de média e longa duração, mesmo que não sejam particularmente dolorosos (…)» (in Comentário do Código Penal – à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 3.ª edição actualizada, 2015, p. 561).
Por seu turno, Paula Ribeiro de Faria, reportando-se à alínea em análise, refere como fundamento da agravação, a intensidade da dor, a permanência e a sua incurabilidade (in Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte I, Coimbra Editora, 2.ª edição, p. 351).
A mesma Autora, em anotação ao artigo 148.º, do Código Penal, ensina que, tratando-se do tipo negligente do crime «a ofensa à integridade física terá que resultar da violação de um dever objectivo de cuidado pelo agente. A violação do dever objectivo de cuidado integra, juntamente com a produção do resultado de ofensas ao corpo ou à saúde o tipo objectivo de ilícito negligente, e traduz o desvalor da conduta próprio do facto negligente».
O apuramento da violação do dever de cuidado está sempre dependente das circunstâncias do caso concreto (vide artigo 15.º, do Código Penal), constituindo elementos determinantes da sua concretização, as normas que instituem deveres concretos de actuação para determinados sectores e que definem o círculo dos riscos permitidos para esse âmbito de actuação, em que são, paradigmáticas as normas reguladoras da condução de veículos.
Com particular interesse para o caso vertente, diz a mesma Autora que: «No âmbito da circulação rodoviária (…) o sentido de dever de cuidado que resulta das regras de circulação rodoviária e do princípio da confiança tem vindo a ser objecto de concretização pela jurisprudência. O ponto de partida é sempre o padrão de conduta correspondente ao condutor medianamente previdente e cauteloso, tendo em conta o tipo de transporte em causa, as condições atmosféricas e de visibilidade, o estado da via, o comportamento dos restantes participantes no tráfego, e os particulares conhecimentos de que ele dispunha (…) entre outros factores eventualmente relevantes.».
No que diz respeito ao tipo subjectivo de ilícito, a formulação de um juízo de culpa negligente supõe que seja possível censurar o agente pelo seu comportamento objectivamente contrário ao dever de cuidado. Pese embora seja discutida a possibilidade da sua autonomização, sempre se considerará que consiste na relação psíquica entre o agente e a acção praticada, quando vislumbrou a possibilidade de realização do tipo sem se conformar com o mesmo, assumindo a forma consciente nos termos da alínea a), do artigo 15.º, do Código Penal, ou quando nem tampouco discerniu a possibilidade da sua ocorrência, sendo negligência chamada de inconsciente nos termos da alínea b) do citado artigo (a este propósito, veja-se, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Teoria do Crime, Universidade Católica Editora, Lisboa 2015, pp. 127 e 128).
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Tendo em conta a configuração do crime imputado ao Arguido como negligente, cabe ainda tecer outras considerações.
Nos termos do disposto no artigo 15.º, do Código Penal, age com negligência quem realizar um facto típico por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz.
O proémio do referido normativo fornece o tipo de ilícito e o tipo de culpa comuns a toda a acção negligente penalmente punível: o primeiro consubstanciado na violação do dever de cuidado devido, e o segundo na violação do cuidado que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar.
Como acima se referiu, pode a negligência ser consciente, se o agente representar como possível a realização do facto típico mas actuar sem se conformar com essa realização, ou inconsciente, se o agente não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto típico (cf. artigo 15.º, alíneas a) e b), do Código Penal).
Esta norma representa a referência geral para todos os crimes em que a lei expressamente preveja a punição da negligência.
O cerne da imputação de uma actuação negligente encontra-se, no entanto, apenas na conduta desconforme ao dever de cuidado imposto pelo caso concreto, detendo a distinção entre negligência consciente e inconsciente apenas importância acessória, nomeadamente quando se suscite a possibilidade de imputação de um comportamento a título de dolo eventual, ou eventualmente para efeitos de determinação da medida da pena aplicável.
Conforme ensina FIGUEIREDO DIAS, o tipo de ilícito do crime negligente considera-se preenchido sempre que a conduta do agente viole o dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia, em função das circunstâncias do caso concreto, e conduza à produção do resultado típico, por tal resultado ser, em face daquela conduta e circunstâncias, previsível e evitável para uma pessoa prudente e cuidadosa; o mesmo é dizer que o resultado produzido tem de ser objectivamente imputável à conduta do agente (in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 1.ª ed., Coimbra Editora, p. 634,).
Na determinação do concreto cuidado a observar por cada pessoa ao desenvolver determinada actividade social potencialmente lesiva de bens jurídicos – como é a circulação rodoviária – assumem especial importância as normas jurídicas de comportamento, que estabelecem critérios gerais e abstractos cujo cumprimento previne em princípio a lesão de bens jurídico-penais. Devendo-se, na sua falta, recorrer ao critério da figura-padrão, que se traduz na averiguação da conformidade ou não da actuação do agente, com a que teria tido uma pessoa prudente e conscienciosa, do tipo social do agente, se estivesse na mesma situação.
Por outro lado, o tipo de culpa do facto negligente corresponde à indagação, se o dever de cuidado objectivamente exigível pelo ordenamento jurídico, podia, no caso concreto, ter sido cumprido pelo agente, em face, entre outros, das suas capacidades individuais, inteligência, formação, experiência de vida ou posição social.
Em suma, são requisitos do tipo de crime em análise:
1) A violação de dever(es) objectivo(s) de cuidado;
2) A verificação de um resultado lesivo típico, in casu, grave (está em causa, dir-se-á, um crime de dano e de resultado);
3) A imputação objectiva desse resultado à conduta do agente; e
4) O juízo de censurabilidade dessa conduta.
Veja-se cada um deles, com detalhe.
A violação de dever(es) objectivo(s) de cuidado
Quanto ao primeiro pressuposto, cumpre atentar às normas relativas à circulação rodoviária, mormente aquelas que impõem deveres objectivos de cuidado aos condutores, visando, dessa forma, diminuir ou evitar os riscos próprios da actividade de condução.
Concretamente para o caso dos autos cabe chamar à colação o disposto nos artigos 11.º, n.ºs 1 a 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea a), 99.º, n.º 2, alínea a), 103.º, n.ºs 1, 2, 3, todos do Código da Estrada, que dispõem o seguinte:
«Artigo 11.º
Condução de veículos e animais
1 - Todo o veículo ou animal que circule na via pública deve ter um condutor, salvo as exceções previstas neste Código.
2 - Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.
3 - O condutor de um veículo não pode pôr em perigo os utilizadores vulneráveis.
Artigo 24.º
Princípios gerais
1 - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Artigo 25.º
Velocidade moderada
1 - Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:
a) À aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões e ou velocípedes;
Artigo 99.º
Lugares em que podem transitar
1 - Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas.
2 - Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos:
a) Quando efetuem o seu atravessamento;
Artigo 103.º
Cuidados a observar pelos condutores
1 - Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.
2 - Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes, junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões ou velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.
3 - Ao mudar de direção, o condutor, mesmo não existindo passagem assinalada para a travessia de peões ou velocípedes, deve reduzir a sua velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões ou velocípedes que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via em que vai entrar.»
Retomando ao caso dos autos e subsumindo estas normas jurídicas ao caso concreto. Efectuando uma síntese da factualidade que ficou demonstrada, importa reter que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar identificadas na matéria de facto provada, o arguido conduzia o referido veículo ligeiro de passageiros na mencionada via de trânsito com a sinalização vertical e horizontal que consta da matéria de facto provada. Mais importa reter que nesse momento, a Assistente efectuava o atravessamento da faixa de rodagem na passadeira para peões, o que fez após verificar que o podia fazer em segurança e que nenhum automóvel aí circulava.
Mais resultou demonstrado que, nessas circunstâncias, o arguido, atento o sentido por si seguido, não abrandou e não parou antes da passagem para peões, bem como não viu a ofendida a atravessar a mesma, a qual já havia percorrido a via da esquerda e quase na totalidade a via da direita da faixa de trânsito em que aquele circulava, não logrando imobilizar a marcha do veículo no espaço livre e visível à sua frente, tendo vindo a embater com a zona frontal direita do automóvel que conduzia no corpo da Assistente, tendo a mesma sido projectada para a frente, cerca de 3 a 4 metros, caindo ao solo, onde ficou prostrada no solo até à chegada dos meios de socorro.
Conclui-se, assim, que o Arguido violou todos os deveres objectivos de cuidado acima referenciados que sobre o mesmo impendiam na situação em apreço, não tendo resultado demonstrado que a Assistente tenha, em algum momento, violado os deveres que sobre a mesma impendiam, enquanto peã porquanto, desde logo, a mesma se encontrava a realizar a travessia de acordo com as normas jurídicas acima consignadas.
E a verdade é que a violação descrita resulta tanto mais relevante, porquanto o âmbito de protecção das normas estradais em apreço visa, precisamente proteger a integridade física dos peões que realizem a travessia em passadeiras (como o caso da aqui Assistente), tratando-se de deveres objectivos de cuidado impostos com esse mesmo desidrato.
A verificação de um resultado lesivo típico, in casu, grave
Face à factualidade descrita na matéria de facto provada, dúvidas não restam que tal pressuposto se encontra preenchido.
De facto, como consequência directa e necessária do embate em apreço nos autos, a Assistente sofreu dores, lesões, fracturas ósseas e traumatismos, mormente traumatismo craniano sem perda de consciência, hematoma periorbital, ferida no supracilio direito, fractura avulsa da espinha da tíbia à direita, traumatismos da coluna cervical e do ombro direito, que determinaram o seu transporte para o Hospital de … a fim de receber cuidados médicos, com necessidade de transporte posterior para internamento no Hospital do …, onde foi submetida a cirurgia ao membro superior esquerdo a 16/10/2020 para redução e fixação artroscópica de fractura da espinha da tíbia e redução de osteossíntese de fractura da clavícula, com fractura do úmero proximal esquerdo Neer III (com fractura do troquino impactada). Mais resultou demonstrado que a Assistente teve necessidade de realização de fisioterapia e que o acidente em causa lhe determinou uma evolução para provável artrose com necessidade de artroplastia do ombro, as quais afectam de maneira grave a capacidade de trabalho da ofendida (ombro dominante em operadora de hipermercado).
A imputação objectiva desse resultado à conduta do agente
Resultou também manifesta a existência de um nexo causal entre a conduta do Arguido e os danos sofridos pela Assistente, imputação essa evidenciada em todos os elementos de prova constantes dos autos e que encontram respaldo na matéria de facto provada.
De facto, ao violar as regras estradais já acima identificadas, o Arguido criou um risco juridicamente proibido e, com isso, provocou o atropelamento da Assistente causou os danos no corpo e saúde da mesma que resultam da matéria de facto provada acabada de mencionar.
O juízo de censurabilidade dessa conduta
Demonstrada a tipicidade, a ilicitude da conduta, bem como a culpa do Arguido, conclui-se que este praticou o crime pelo qual vem acusado.
Com efeito, conclui-se que a ocorrência do embate se ficou a dever a culpa exclusiva do Arguido que conduziu com falta de cuidado e desatento, violando, concretamente o disposto nos artigos 11.º, n.ºs 1 a 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea a), 99.º, n.º 2, alínea a), 103.º, n.ºs 1, 2, 3, todos do Código da Estrada.
Traduziu-se, assim, a conduta do Arguido numa violação dos mais elementares deveres de cuidado que os condutores devem seguir no exercício da condução, em especial, condutores como o Arguido, profissionais da área.
Conhecia, assim, o Arguido – porquanto não podia validamente desconhecer – as referidas normas legais que violou, não tendo, no entanto, previsto, como consequência possível da sua condução, que, ao fazê-lo naquelas circunstâncias, poderia causar lesões físicas à Assistente, como, de facto, causou.
De notar ainda que, conforme resultou da matéria de facto provada, o tempo estava seco, limpo e em normal estado de conservação, donde resulta não se ter apurado qualquer circunstância alheia à vontade do Arguido que pudesse ter contribuído para o atropelamento em apreço.
Nesta conformidade, pode concluir-se da matéria de facto dada como provada, e com recurso às regras da experiência comum e de normalidade social, que o resultado (nefasto) da acção do Arguido poderia ter sido evitado caso o mesmo tomasse as devidas precauções/adoptasse o devido cuidado no exercício da condução automóvel.
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Verificam-se, assim, todos os elementos objectivos constitutivos do crime de ofensa à integridade física negligente.
Por fim diga-se que não se olvida a importância do comportamento da vítima, em sede de eventual redução ou exclusão da responsabilidade do agente, permitindo, dessa forma, questionar a imputação objectiva do evento danoso à conduta do agente.
Ora no caso concreto dos autos, como se disse, nada há a apontar à Assistente.
Quanto à verificação do elemento subjectivo, provou-se que o Arguido conduziu o referido veículo de forma imprevidente e distraída, agindo sem o cuidado e atenção a que estava obrigado e de que era capaz, não adaptando a velocidade a que circulava às condições e características da mesma e de trânsito, ignorando, deste modo, os demais utilizadores da mesma, sinais e regras de trânsito, ao contrário do que sabia estar obrigado e de que era capaz, até porque conhecia o local em que circulava. Mais resultou demonstrado que o arguido, não agindo com o zelo e diligência com que devia e podia actuar no exercício da condução, e cujo cumprimento evitaria o acidente acima descrito e as graves lesões provocadas no corpo da ofendida, não chegando, também, a prever como consequência possível da sua condução, que, ao fazê-lo naquelas circunstâncias, poderia causar lesões físicas à mesma, como, de facto, causou. Por fim resultou demonstrado que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Destarte, a conduta apurada do Arguido preencheu o tipo subjectivo de ilícito, a título de negligência inconsciente.
*
Quanto ao tipo de culpa, que nos crimes negligentes merece especial consideração nos termos que já ficaram expostos, ficou provado que o Arguido não agiu com o cuidado devido, como podia ter feito, agindo de modo desatento.
Ter-se-á de considerar pois que o Arguido tinha capacidade de cumprir os deveres de cuidado que sobre si impendiam, enquanto condutor profissional e experiente.
Donde se conclui que a conduta levada a cabo pelo Arguido é ilícita – porque contrária à ordem jurídica – e culposa – pois, nas concretas circunstâncias em que o Arguido estava inserido, era-lhe exigível a adopção de outra conduta possível e não lesiva dos bens jurídicos tutelados por este tipo de crime – merecendo, nessa medida, a emissão de um juízo de censura penal.
Pelo que, não operando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, deverá o Arguido AA ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao disposto no artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal, com referência aos artigos 13.º, 15.º, alíneas a) e b), 26.º, do mesmo diploma legal.
Determinação da medida concreta da pena
O crime de crime de ofensa à integridade física grave, por negligência é punível com pena de prisão de 1 mês até 2 anos ou com multa de 10 até 240 dias, em conformidade com o preceituado nos artigos 41.º, 47.º, 144.º, alínea c) e 148.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código Penal.
(…)
Da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor
Acresce ainda que a condenação pelo crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, cometida no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário dá origem à condenação na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor por um período fixado entre três meses a três anos, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Esta pena acessória visa prevenir a perigosidade do agente. Trata-se de uma censura adicional pelo facto que ele praticou, correspondendo a uma necessidade de política criminal por motivos óbvios que se prendem com a elevada sinistralidade nas estradas portuguesas.
No que concerne à determinação da medida concreta da pena acessória, esta será efectuada tal como a pena principal, de acordo com os critérios gerais enunciados no artigo 71.º do Código Penal acima densificados, ou seja, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo por base «todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele».
Assim, e volvendo ao caso concreto, tendo em conta os fundamentos referidos supra em sede de determinação concreta da pena principal aplicável, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, por economia processual, considera-se justo, adequado e proporcional a condenação do Arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 meses.
(…)”.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO.
Nos presentes autos, foi o arguido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao disposto no artigo 144.º, alíneas b) e c), do Código Penal, com referência ao disposto nos artigos 11.º, n.ºs 1 a 3, 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea a), 99.º, n.º 2, alínea a), 103.º, n.ºs 1, 2, 3, todos do Código da Estrada, sendo-lhe aplicada pena principal de prisão, suspensa na sua execução e, bem assim, a pena acessória de 10 meses de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos previstos pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
O inconformismo do recorrente restringe-se a esta pena acessória, pugnando pela sua não aplicação ao arguido, argumentando que os graves inconvenientes que dela decorrerão para o condenado, designadamente a nível profissional (“impossibilidade de exercer a sua profissão de motorista de pesados”), correspondem à imposição de obrigação cujo cumprimento não será razoavelmente de lhe exigir.
Cumpre apreciar.
O recorrente não coloca em crise que os factos provados integram todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo incriminador pelo qual veio a ser condenado. Assim é, efetivamente.
Como acertadamente refere o Ministério Público na resposta ao recurso, a aplicação da pena acessória em caso de cometimento desse crime surge como uma imposição legal e uma consequência obrigatória e incontornável, relativamente à qual não está prevista qualquer margem de discricionariedade do julgador.
Aplicar a pena acessória de proibição de conduzir é um imperativo, sendo deixada ao Tribunal apenas a tarefa de determinação da medida concreta dessa pena acessória.
As penas correspondentes a cada crime previsto na lei estão determinadas pelo Legislador, não cabendo ao Tribunal qualquer margem de liberdade de enjeitar a aplicação de uma pena legalmente prevista.
Para o cometimento do crime de ofensa à integridade física cometido no exercício da condução de veículo motorizado, com violação das regras de trânsito rodoviário, a Lei prevê, além de uma pena principal (de multa ou de prisão), a aplicação de uma pena acessória, de proibição de conduzir veículos motorizados.
Prevê atualmente e já previa na data em que os factos foram praticados.
Como se explicitou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de fevereiro de 2023:
“Como é jurisprudência pacífica, a aplicação das penas está sujeita ao princípio da legalidade e de exigência constitucional.
Assim, a imposição desta pena acessória não depende de um raciocínio de adequação, de discricionariedade judicial, antes sendo determinada por vontade legislativa expressa – isto é, verificando-se o preenchimento dos elementos constantes na previsão normativa (art.º 69 do C. Penal), o sancionamento do comportamento criminal de um agente determinará que lhe tenha de ser imposta uma pena acessória, cumulativamente com a pena principal.
Neste mesmo sentido se pronunciou, entre muitos outros, o acórdão do TRC, processo 1662/16.2PBVIS.C1, de 22-11-2017 (in www.dgsi.pt):
I - Pela redacção introduzida no artigo 69.º, n.º 1, do CP, pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, o legislador fez desaparecer as menções referentes a qualquer pressuposto material que ultrapassasse a objectiva condenação por qualquer um dos crimes.
II - O que revela claramente o seu entendimento de que nos casos referenciados naquele normativo, a condenação em pena acessória não depende da verificação de quaisquer especiais circunstâncias que justifiquem a necessidade da sua aplicação, mas unicamente do cometimento de um dos crimes enumerados e sempre cumulando com a pena principal (neste sentido, v.g. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 53/2011[ ], acessível em www.tribunalconstitucional.pt e Acórdão da Relação de Coimbra de 9 de Setembro de 2009, acessível em www.dgsi.pt).
6. De igual modo, é há muito jurisprudência pacífica (inclusive em sede de TC), que a imposição de tal pena acessória não ofende qualquer norma constitucional, mormente o disposto no art.º 34 nº4 da CRP, (vide ac. do TC 139/2012), assim como não ofende o direito ao trabalho (vide, neste sentido, ac. do TRP de 3/3/2010, proc.1418/09.9PTPRT.P1, in www.dgsi.pt: A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no art.º 69º, 1 do C. Penal, não viola o art.º 58º, n.º 1 da CRP, segundo o qual “todos têm direito ao trabalho”. Com efeito, o que está em causa com a proibição de conduzir veículos com motor é a restrição de um direito civil que só colateralmente atinge o direito ao trabalho. Este, no entanto, na vertente do direito à segurança no emprego, não constitui um direito absoluto, podendo ser legalmente constrangido, desde que se mostre justificado, proporcional e adequado à preservação de outros direitos ou garantias constitucionais.
7. No caso que ora nos ocupa, mostrando-se preenchidos os requisitos constantes no art.º 69 nº1 al. a) do C. Penal, a imposição de pena acessória, pelo juiz, mostra-se obrigatoriamente determinada por lei, à semelhança, aliás, do que sucede a título de pena principal, pois a sua aplicação depende, de igual modo, do mero preenchimento dos elementos constitutivos do ilícito. É assim patente que não existe qualquer fundamento legal que ampare a pretensão do recorrente de não aplicação de tal pena acessória. A pena acessória de proibição de conduzir, emergente da prática de um crime, não é contemplada, no âmbito do C. Penal vigente, pela possibilidade de ser substituída por outra pena ou medida alternativa, nem de ser suspensa na sua execução, nem de ser especialmente atenuada, nem de haver lugar à sua dispensa.
Todas estas possibilidades se mostram consagradas relativamente a penas de natureza diversa – designadamente, a penas de prisão ou de multa. Não havendo previsão legal que possibilite a aplicação de tais institutos substitutivos ou suspensivos, não é legalmente admissível a sua determinação por via jurisdicional.
8. A pena acessória será graduada pelo juiz entre os limites fixados na lei, em função dos factos, das circunstâncias, da culpa do arguido e das exigências de prevenção, nos termos do art.º 71º C. Penal. A pena de inibição a impor deve mostrar-se proporcional à pena principal, atendendo-se à diversa moldura penal prevista para cada uma destas sanções.” (3).
Ou seja, a condenação em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, a que se reporta o artigo 69.º do Código Penal, não pode ser dispensada, nem atenuada especialmente, suspensa ou substituída por caução de boa conduta ou por trabalho a favor da comunidade, sob pena de violação do princípio da legalidade e da tipicidade.
É, pois, imperioso concluir que não existe fundamento legal que sustente a pretensão do arguido de não aplicação da pena acessória, não relevando a circunstância de ser motorista de profissão e de a pena acessória em questão introduzir dificuldades acrescidas para o desempenho das suas funções.
Como se reconhece no douto parecer emitido pelo Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, em considerações absolutamente corretas e que fazemos nossas:
“Reconhece-se que a proibição de conduzir (veículos motorizados) causa transtornos e não deixa de traduzir-se num sacrifício real para o agente, tanto mais para quem necessita da carta para o exercício da sua actividade profissional, mas tal mostra-se (absolutamente) necessário para prevenir a sua perigosidade ao desconsiderar os perigos resultantes de uma condução violadora das normas estradais.
A “talhe de foice” importa referenciar que sendo o arguido motorista de profissão devia ter particular cuidado na condução de veículos automóveis, ou dito de outra forma, cuidado acrescido na condução de molde a não infringir normas estradais.
(…)
Importa que se reafirme, desde já e com pleno vigor, que essa condenação em pena acessória de inibição da faculdade de conduzir não viola preceitos constitucionais relativamente ao exercício do direito ao trabalho
A este propósito, cita-se o Ac. da Relação, de Évora de 27.09.2011, Proc. nº 249/11.0PALGS quando nele se refere “Os custos, de ordem profissional e/ou familiar, que poderão advir para o arguido do facto de a proibição de conduzir em causa afectar o seu emprego, são próprios das penas, que só o são se representarem para o condenado um verdadeiro e justo sacrifício, com vista a encontrarem integral realização as finalidades gerais das sanções criminais, sendo que tais custos nada têm de desproporcionados em face dos perigos para a segurança das outras pessoas criados pela condução em estado de embriaguez e que a aplicação da pena pretende prevenir(4).”
Relativamente, à questão da relação entre a inibição de conduzir e o direito ao trabalho, já se pronunciou o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/02, de 23.10.2002, proferido no processo 281/2002, em que foi Relator o Conselheiro Bravo Serra, aí se referindo o seguinte: “… o direito ao trabalho, com o conteúdo positivo de verdadeiro direito social e que consiste no direito de exercer uma determinada actividade profissional, se confere ao trabalhador, por um lado, determinadas dimensões de garantia e, por outro, se impõe ao e constitui o Estado no cumprimento de determinadas obrigações, não é um direito que, à partida, se possa configurar como não podendo sofrer, pontualmente, quer numa, quer noutra perspectiva, determinadas limitações no seu âmbito, quando for restringido ou sacrificado por mor de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
(…) ainda que fosse demonstrada…que…inelutavelmente necessitava de conduzir veículos automóveis para o exercício da sua profissão…adianta-se desde já que a objectiva «constrição» que porventura resultaria da aplicação da medida sancionatória em causa se apresenta, de um ponto de vista constitucional, como justificada.
Efectivamente, uma tal justificação resulta das circunstâncias de a sanção de inibição temporária da faculdade de conduzir se apresentar como um meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente, quer, por um lado, na perspectiva do arguido…a quem é imposta e destinada a pena aplicada, quer, por outro, na perspectiva da sociedade – a quem, reflexamente, se dirige também aquela medida, - na medida em que se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, compensá-la do risco a que os seus membros forma sujeitos com a prática de uma condução sob o efeito do álcool. (…) o conteúdo essencial do direito ao trabalho…não é atingido, na medida em que a ponderação que resulte do confronto deste direito ao trabalho com a protecção de outros bens – que fundamentam a sua limitação…- não redunda na aniquilação ou, sequer, na violação desproporcionada de qualquer direito fundamental ao trabalho. E assim é, sobretudo, se atentarmos no facto de que o que se visa proteger, também, com a aplicação desta sanção…são bens ou interesses (a segurança e a vida das pessoas) constitucionalmente protegidos, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores uma tal conduta comporta, pondo em causa a vida de todos os que circulam na estradas...a…violação do direito a trabalhar sem restrições …não possa, sem mais, ser valorada em termos absolutos, pois que a limitação que a este direito é imposta com a aplicação da sanção inibitória o é na medida em que o sacrifício parcial que daí resulta não é arbitrário, gratuito ou carente de motivação, mas sim justificado para salvaguarda de outros bens ou interesses constitucionalmente protegidos pela Lei Fundamental.”.
Nesta esteira e em caso que apresenta algumas coincidências com o presente surge o acórdão do Tribunal Constitucional nº 742/2021, relatora Conselheira Joana Fernandes Costa (processo 796/2020 – 3ª secção) (5).
Aqui chegados importa concluir e sem necessidade de outras considerações, que a pena acessória de inibição de conduzir veículos automóveis, não é inconstitucional, uma vez que a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir é consequência e resulta da prática de um crime perpetrado pelo arguido.
Trata-se, de uma medida temporária, delimitada no tempo que não constrange ou restringe, de forma intolerável, os direitos do arguido / recorrente, antes se mostrando adequada, proporcional e até necessária à salvaguarda de outros valores imanentes à nossa sociedade, também com dignidade constitucional e legal, como sejam a vida e a integridade física dos condutores e dos outros utentes das vias estradais.
“In casu”, a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir não viola os direitos do arguido, designadamente o direito ao trabalho, apenas comportando uma proibição temporária do exercício da condução, de forma alguma desproporcionada e/ou desadequada (6).
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Neste âmbito merece referência, o Ac. Relação de Évora de 21.11.2023, relator João Carrola (processo 594/23.2GBLLE.E1) onde se consagra:
“I. O decretamento de pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados é um imperativo legal relativamente a quem seja punido pela prática de um dos crimes indicados no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, conforme do mesmo expressamente decorre.
II. Esta pena acessória tem um sentido e um conteúdo não apenas de intimidação da generalidade, mas de defesa contra a perigosidade individual.
III. A circunstância de dever ser sempre aplicada logo que aplicada pena principal por um dos crimes do catálogo, não implica colisão com a proibição de automaticidade das penas acessórias (artigo 30.º n.º 4 da Constituição) porquanto a aplicação desta - tal como a aplicação da pena principal – se fundamenta na prova do facto típico ilícito e na respetiva culpa, sem necessidade de quaisquer factos adicionais.”,
bem como o Ac. Relação de Évora de 22.09.2022, relatora Laura Goulart Maurício (processo 63/22.8GBMMN.E1) onde se consagra, certeiramente, que:
“I. A pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, por força do disposto no artigo 69.º, n.º 1, al. c), do C. Penal reveste a natureza de pena acessória, visando prevenir a perigosidade do agente.
II. O que está em causa com a proibição de conduzir veículos com motor é a restrição de um direito civil, só podendo atingir colateralmente o seu direito ao trabalho.
III. Este, no entanto, na sua vertente de direito à segurança do emprego, não constitui um direito absoluto, podendo ser legalmente constrangido, desde que este se mostre justificado, proporcional e adequado à preservação de outros direitos ou garantias constitucionais, podendo, pois, ser restringido para a salvaguarda de outros direitos humanos, como o direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa.
IV. Os custos, de ordem profissional e/ou familiar, que poderão advir para o arguido do facto de a proibição de conduzir em causa afetar o seu emprego, são próprios das penas, que só o são se representarem para o condenado um verdadeiro e justo sacrifício, com vista a encontrarem integral realização as finalidades gerais das sanções criminais.
V. Tais custos nada têm de desproporcionados em face dos perigos para a segurança das outras pessoas e que a aplicação da pena pretende prevenir.”.
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O princípio da legalidade, consagrado no artigo 1º do Código Penal, em obediência ao estabelecido no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, obsta a que os Tribunais, na aplicação da Lei penal, apliquem soluções de sancionamento fora da verificação dos limites e pressupostos previstos pelo Legislador.
Nessa medida, o nº 3 do artigo 1º do Código Penal proíbe o recurso à analogia não só para qualificar um facto como crime ou para definir um estado de perigosidade, mas também para determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde.
Aqui chegados, constatada a completa ausência de fundamento legal, impõe-se concluir pela improcedência do recurso.
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V. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, em confirmar a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
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Tributação.
Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.
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D.N.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
Évora, 16 de dezembro de 2024
Jorge Antunes (Relator)
António Condesso (1º Adjunto)
Laura Goulart Maurício (2ª Adjunta)
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1 Neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16/11/2011, relatado pelo Desembargador Paulo Guerra, no processo n.º 87/11.0GTCTB.C1, acessível em www.dgsi.pt.
2 Neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 23/03/2022, relatado pela Desembargadora Maria Perquilhas, no processo n.º 1915/19.8T9AMD.L1-3, acessível em www.dgsi.pt.
3 Cfr. Ac. da Rel. Lisboa de 22.02.2023 – Relatora: Maria Margarida Almeida – acessível em: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/16d2f3cf96dc15c480258963004c3ace?OpenDocument
4 Relator Sérgio Corvacho
5 Disponível para consulta integral no website do Tribunal Constitucional, mormente em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
6 Neste sentido, Ac. Relação do Porto de 07.12.2022, relatora Amélia Catarino (processo 314/22.9PFVNG.P1) onde se consagra: I - A pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, não viola os direitos do arguido, designadamente o direito ao trabalho, apenas comportando uma proibição temporária do exercício da condução, adequada, proporcional e até necessária à salvaguarda de outros valores imanentes à nossa sociedade, também com dignidade constitucional e legal, como sejam a vida e a integridade física dos condutores e dos outros utentes das vias estradais.