À omissão da documentação em acta das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo do depoimento.
A nulidade decorrente, não constando do elenco do art. 119.º do CPP, considerar-se-á como dependente de arguição, nos termos do art. 120.º, n.º 1, do CPP a ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo,.
a nulidade sana-se se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias a partir da audiência acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido. Se a audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo conta-se a partir de cada sessão da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.
No Juízo de Competência Genérica de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 512/22.5GESLV, tendo no mesmo o arguido AA sido condenado (no que ora interessa) nos seguintes termos (reprodução):
“A) Julga-se a douta acusação do Ministério Público procedente, por provada, e, em consequência, decide-se:
1. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, com dolo direto, e na forma consumada, no ano de 2020 a 2022, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º1, 26.º, 152.º, n.º1, alínea b), e n.º4 todos do Código Penal na:
1.1. pena principal de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão; e
1.2. pena acessória, pelo período de um ano, de proibição de contato com a vítima, por qualquer meio, e de se aproximar da mesma e a menos de 500m da área onde reside ou trabalha;
2. Suspender a execução da pena de prisão aplicada em 1.1., por um período de 1 (um) ano.”
Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“a) Não pode o Recorrente concordar com a decisão proferida, nem com a fundamentação da decisão pela qual foi condenado pela prática, em autoria material, com dolo directo e na forma consumada de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º nº. 1, b) e nº. 4 do Código Penal, na pena de 1 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano e na pena acessória, pelo período de um ano, de proibição de contacto com a vítima, por qualquer meio, e de se aproximar da mesma e a menos de 500m da área onde reside ou trabalha.
b) Antes de mais, importa referir que ocorrem manifestas e sérias deficiências na gravação do depoimento do Arguido, em algumas passagens que são essenciais para a cabal reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal superior, nulidade que desde já se invoca para os devidos efeitos.
c) No entanto, sem conceder, o Recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, no que respeita aos pontos 4 a 15 da sentença.
d) Desde logo, no que se refere aos factos constantes do ponto 4, o Recorrente admitiu ter apodado a ofendida de “puta” aquando de uma discussão e por uma vez.
39.39 – Arguido: o relacionamento terminou nessa altura, lá dentro da camioneta (…) foi quando eu lhe chamei puta e prontos. Então és uma puta porque roubavas-me para dar ao chulo. Foi exactamente isto que eu disse
e) A sentença recorrida menciona que O arguido prestou as suas declarações de forma circunstanciada, espontânea, descritiva, objectiva, clara e pormenorizada, tendo no seu cômputo, e analisando as mesmas de forma individual e isolada relativamente à demais prova produzida, sido coerente.
f) Por outro lado, considerou que a ofendida, BB prestou um depoimento de forma espontânea, adoptando uma postura defensiva, com alguma falha de memória relativamente à localização temporal de alguns dos eventos ocorridos, atento o esgotamento após a pandemia que alegou ter sofrido, mas que se revelou, no seu cômputo, um depoimento descritivo e coerente. O depoimento da testemunha, na parte em que foi espontâneo, foi prestado de forma pouco concretizada, tendo sido tal ausência de concretização colmatada com questões mais específicas e fechadas à ofendida.
g) E, de facto, quanto ao facto de o Recorrente lhe ter apodado de “puta”, a ofendida nada concretiza:
01.24.30 - ofendida: Chamar nomes, falta de respeito mesmo em frente às pessoas no mercado. O telefone tinha de estar ligado quando não estava com ele.
01.24.40 – Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: mas chamar nomes mas que nomes é que o Sr AA lhe chamava?
01.24.42 (…) - ofendida: és a maior puta que conheci na vida.
Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: não percebi. A senhora tem de falar mais alto e tem de falar virada para mim. E tem de ter outra postura. Não pode ter essa postura. Peço desculpa.
01.25.00 Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: então que nomes é que o sr AA lhe chamava
(…) - ofendida: puta
– Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: e isso acontecia quando? 01.25.13 - ofendida: em várias situações, várias vezes
h) Mas optou, erradamente, o Tribunal a quo por valor mais o depoimento da ofendida do que o do Arguido / Recorrente.
i) Quanto a este facto, não ficou claro nos autos em que momento é que essa situação ocorreu e se, de facto, o Recorrente APODAVA a ofendida de “puta” ou se terá, em circunstâncias isoladas, apodado uma vez a ofendida de “puta”.
j) É que isso é fulcral para a qualificação do tipo de crime em causa.
k) Pelo que não deveria ter sido dado como provado o ponto 4 da sentença ora recorrida.
l) O Tribunal a quo deu ainda como provado que 5. Em data não apurada, mas no mês de março de 2020, no interior da residência de BB, no seguimento de uma discussão, AA colocou as mãos no corpo daquela e, exercendo força muscular, empurrou-a. 6. Após, AA disse a BB que se iria matar, tendo ido á cozinha buscar uma faca, a qual encostou ao peito. 7. Em data não apurada, mas no ano de 2022, AA disse a BB que esta tinha até ao mês de dezembro para lhe devolver 60.000,00€ que aquele alegava que esta lhe havia roubado, e que se a mesma não lhe devolvesse o dinheiro a matava, e de seguida suicidava-se.
m) Quanto questionada a ofendida sobre o que se passou na altura da pandemia, em Março de 2020, a mesma, inicialmente nada referiu quanto a uma eventual agressão
Sessão de 03-07-2024 (entre as 10.22 e as 12.43)
Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: olhe aconteceu alguma coisa no início da pandemia, que o senhor AA tenha ido à sua casa, alguma coisa que ele tenha feito que se recorde?
Ofendida: Não.
– Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: não? Em Março de 2020 não acontece nada…? No interior da sua residência, não?
Ofendida: Março de 2020…. não faço ideia. Não me lembro. Não me lembro porque eu tive um esgotamento a seguir à pandemia e há muitas coisas e datas que eu não sei. (…) essas datas, março de 2020 já não sei precisar.
n) Pelas declarações da ofendida, que não concretizou as circunstâncias do facto, o Tribunal a quo deveria ter colocado em causa se, de facto, o Recorrente empurrou ou não empurrou a ofendida.
o) É que a própria ofendida desvalorizou o sucedido.
p) Já quanto ao acto de de “empurrar”, este poderá envolver, ou, uma certa violência sobre o corpo de outra pessoa, ou poderá configurar um acto para afastar alguém que se aproxima demasiado e assim poderá situar-se na fronteira da (i)licitude penal.
q) Pelo que, na senda da presunção de inocência do arguido, não deveria o tribunal ter dado como provado que AA colocou as mãos no corpo daquela (pois tal não foi descrito pela testemunha) e, exercendo força muscular (pois não há qualquer elemento probatório quanto à força exercida), empurrou-a. (ponto 5 da sentença).
r) Assim, se por um lado se impugna que tenha sido dado como provado que o Recorrente empurrou a ofendida, por outro, impugna-se a sua valoração como um facto subsumível à prática do crime de violência doméstica.
s) No que respeita ao episódio da faca, não se afigura essencial para a boa decisão da causa a factualidade dada como provada (ponto 6).
t) Já no que respeita aos factos descritos no ponto 7 da sentença, o Recorrente negou-o.
u) Contudo, mais uma vez é arguida a nulidade da prova, uma vez que a gravação do seu depoimento é, em vários minutos, imperceptível.
v) No entanto, diga-se que não deviam ter sido dado como provados os factos constantes no ponto 7 da sentença, sobretudo que o arguido disse à ofendida “que se a mesma não lhe devolvesse o dinheiro a matava e de seguida se suicidava”, pois nem a própria confirma que esses factos tenham ocorrido.
w) Quanto a ameaças, a ofendida apenas referiu factos genéricos: 1.51.29 - Ofendida: ele sempre me ameaçou de morte
Meritíssima Juiz - Mas em que circunstâncias? É que o Sr. AA a ameaçou de morte?
- Ofendida: Quando estava descontrolado nas conversas quando eu dizia que não tinha roubado e que não tinha outra pessoa
– Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: Mas a senhora disse que ele só a confrontou para o final e agora está a dizer que era ameaçada constantemente… eu perguntei-lhe se o Sr. AA a confrontava se a senhora tinha roubado dinheiro, a senhora disse me que foi só para o final
- Ofendida: Final para mim foi esse último ano, ano e qualquer coisa que nós estivemos juntos
01.53.23 – Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: então e nessas alturas, se a senhora tinha medo do Sr AA porque é que não terminou a relação - Ofendida: Por medo. Aí está, por medo
– Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: Mas por medo de que? A senhora acabou de dizer ao tribunal que a única situação de agressões que teve com o Sr AA que envolveu o Sr AA foi no dia 20 agosto de 2022. Que medo é que a senhora tinha do Sr AA antes disso?
- Ofendida: Porque ele me ameaçava de morte. Dizia “sabes que eu tenho uma arma”
x) Pelo que impõe-se decisão diversa, dando-se como não provados os factos constantes dos pontos 5 a 7.
y) Já no que respeita ao alegado episódio de 20 de Agosto de 2022 (e aos factos dados como provados nos pontos 8 a 12 da sentença), o Recorrente impugna a decisão do Tribunal a quo de ter dado como provados os factos aí descritos.
z) Estes factos não passam de uma fabulação da ofendida.
aa) É que, quanto a todos estes factos, temos duas versões: a do Arguido / Recorrente, que a nega, e a da ofendida, que relata os factos que diz ter vivenciado e que bem poderá estar a faltar com a verdade.
bb) O que é certo é que a sua versão não convence.
cc) Se o Recorrente estava completamente fora de si, como é que ia acautelar não ter batido à ofendida na cara, para não deixar marcas, como a própria ofendida alega?
dd)A ofendida conseguiu libertar-se evitando que o Arguido lhe apertasse o pescoço mas porque não se libertou dos actos de violência praticados por ele, segunda ela, durante duas horas?
ee) Tampouco convence que a ofendida tivesse medo do Recorrente e por isso não tenha saído.
ff) É que, segundo a própria, esta era a primeira vez que o Recorrente a agredia fisicamente.
gg)o Tribunal a quo julgou incorrectamente provados os factos constante no ponto 8. da sentença, quanto à parte em que refere que este puxou o cabelo de BB e desferiu-lhe um número não apurado de chapadas na face.
hh) O Tribunal a quo não tinha prova bastante que sustentasse esses factos, pelo que não os deveria ter dado como provados.
ii) E acrescentou, na sua fundamentação que ainda que inexista qualquer elemento clínico junto aos autos, o Tribunal formou convicção positiva acerca dos factos em análise, pela corroboração do depoimento da testemunha e ofendida mediante os depoimentos das testemunhas CC e DD.
jj) Ora, estas testemunhas apenas têm conhecimento do que a ofendida lhes contou… kk) Confrontando ambas as versões dos factos, é questionável o que realmente aconteceu.
a. Pelo que, a decisão deveria ter sido em benefício do ARGUIDO!
ll) No que se refere aos factos vertidos no ponto 9 da sentença, AA colocou as mãos nos braços de BB, e, exercendo força muscular, apertou-os, bem como lhes desferiu um número não apurado de pontapés nas pernas, diga-se que a ofendida não referiu no seu depoimento ter sofrido apertões nos braços.
mm) Por outro lado, e quanto aos factos descritos no ponto 10, que referem que o Recorrente tentou ainda apertar o pescoço de BB, apenas não tendo logrado conseguir, porquanto a mesma conseguiu libertar-se, tal facto tampouco convence.
nn) A ofendida referiu ter estado durante duas horas a ser sovada e pontapeada, sem conseguir escapar, mas conseguiu libertar-se de uma tentativa de aperto de pescoço por parte do Recorrente…
oo) Conseguia ou não conseguia libertar-se do Recorrente?
pp) Por outro lado, e no que se refere aos factos descritos no ponto 11, da sentença, Quando BB se conseguiu libertar e tentava sair do quarto, AA disse àquela para não sair e que se ela chamasse a polícia, quando chegassem, estariam os dois mortos, mais lhe dizendo: “sabes que tenho e espingarda no carro, porque sei que já a viste”.
qq) Ora, ofendida referiu não ter saído do quarto por medo.
– Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público:
Então a senhora esteve duas horas dentro do quarto a ser agredida?
- Ofendida: Sim, entretanto ele depois foi dormir e eu fiquei no quarto, que eu tinha medo de sair do quarto. Só sai de manha para ir à missa visitar a minha filha
Mas a ofendida não disse, em julgamento, que tentou sair do quarto.
rr) Logo, nunca deveriam tais factos ter sido dados como provados.
ss) A ofendida refere ter estado sábado a levar pancada do Recorrente durante cerca de duas horas: pontapés, socos, puxões de cabelo e bofetadas.
tt) O Tribunal a quo, apesar de não existirem relatórios médicos ou qualquer suporte documental que provem as agressões, baseou a sua convicção nas testemunhas.
uu)Ora, a testemunha DD é filha da ofendida e, naturalmente, contou ao tribunal aquilo que a mãe lhe terá dito:
Diligência de 03-07-2024 das 14.36 às 15.38
51.26: Testemunha DD: ela estava com nódoas negras nas pernas, nos braços, na cabeça não dava para ver por causa do cabelo mas ela mostrou-me onde é que tinha batido com a cabeça. Eu sugeri-lhe que tirasse fotografias e fui eu própria que tirei mas só que não sei se ela ainda as tem se não.
– Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: Mas era muitas nódoas negras? Testemunha DD: Eram eram, espalhadas pelas pernas, pelos braços (….) 55.0 – parecia uma Joaninha. Estava cheia de pitinhas
vv) Já a testemunha CC com quem a ofendida foi ter na semana seguinte disse ao Tribunal:
08:59 – Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: (…) ela mostrou-lhe alguma marca que tivesse? Porque conta disso que ela lhe tinha contado Testemunha CC: Imperceptivel acho que era no esquerdo mas não me lembro bem. mas não era desse dia, era de uns dias atrás Imperceptivel estava assustada, não conseguia parar de chorar (…) ela não podia ir para casa, porque ele ia lá procura-la de certeza (…)
12.24 – Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: – essa nódoa negra que ela tinha no braço, isso era muito visível essa nodoa negra? Era muito visível para a senhora? A senhora apercebeu-se? Ou só se apercebeu quando ela lhe mostrou?
Testemunha CC: Porque ela me mostrou. Porque eu perguntei se ele tinha batido nela, (…)
– Exma. Sra. Procuradora do Ministério Público: (..) era uma marca visível? Porque nós no verão andamos de manga curta (…)
Testemunha CC: É assim, eu vi a marca. Eu tenho uma memória que não vale nada (…) ela disse-me que ele a tinha agredido mas não foi nesse dia. Foi no fim-de-semana.
ww) Em suma, a filha da ofendida disse ao Tribunal que a mãe parecia uma Joaninha, toda cheia de marcas, mas a colega de trabalho apenas viu uma nódoa negra que admitiu que pudesse ser do trabalho, pudesse ser antiga, ou seja, não faz ideia de como foi feita.
xx) Por último, o tribunal a quo deu como provado que durante o período que durou o relacionamento amoroso, AA exigiu a BB que esta lhe ligasse todos os dias à hora do almoço e após o horário de trabalho, a fim de o informar onde e com quem estava.
yy) O Recorrente ligava à ofendida, para saber dela e falar com ela.
zz) Não resulta claro da prova testemunhal que a ofendida fosse obrigada a ligar ao Recorrente
37.18 – Meritíssima Juiz: Quando assistia a esses telefonemas, ainda que se calhar a senhora achasse que era um bocadinho exagerado, nunca se apercebeu que havia ali algum relacionamento mais doentio, entre eles?
Testemunha CC: Não não não não
aaa) Nestes termos, e salvo o devido respeito, que é muitíssimo, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos dados como provados nos pontos 8 a 13 e assim também, consequentemente, os factos dados como provados em 14 e 15.
bbb) Impõe-se decisão diversa, dando-se como não provados os factos constantes dos pontos 8 a 15 da sentença ora recorrida.
ccc) Não resulta da prova produzida, por seu lado, que a ofendida vivesse amedrontada, oprimida, vexada ou, de alguma forma, maltratada pelo arguido / Recorrente.
ddd) Pelo que, ainda que se considerasse parte da matéria de facto dada como provada, o que só por mero dever de patrocínio se admite, ainda que, no âmbito de uma discussão, o recorrente tivesse perdido as estribeiras tal conduta teria tutela penal, como crime de ofensas à integridade física, injúrias ou ameaça.
eee) No entanto, tais factos não constituem, por si só, a prática de um crime de violência doméstica, e assim não se entendendo, encontra-se o Tribunal a quo em clara violação do princípio constitucional da proporcionalidade.”
Pugnando, a final, pelo seguinte resultado:
“TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER APRECIADO, MERECENDO PROVIMENTO, COM A CONSEQUENTE REVOGAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA, DEVENDO O ARGUIDO SER ABSOLVIDO DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.”
O recurso foi admitido.
O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo que não assiste razão ao recorrente, alegando que:
“Concorda-se integralmente com a sentença proferida, que se encontra devidamente fundamentada, designadamente quanto à matéria de facto dada como provada, pelo que bem andou o Tribunal a dar os factos provados, tal como consignados na sentença.
E assim, bem andou a Mma. Juiz a quo ao decidir como decidiu, condenando o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada e com dolo directo, do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1 alínea b) e n.º 4, do Código Penal.”
Pugnando, a final, pelo seguinte:
“Termos em que deve se negado provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.”
O Exm. PGA neste Tribunal da Relação deu parecer, defendendo que “deve ser negado provimento ao recurso e mantida a douta sentença recorrida.”
Procedeu-se a exame preliminar.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), sem resposta.
Colhidos os vistos legais e após conferência, cumpre apreciar e decidir.
Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:
“III – Fundamentação:
III.A - Factos Provados:
Da discussão da causa, e com interesse para a boa decisão da presente ação, resultaram provados os seguintes factos:
1. Em data não apurada, mas em julho de 2015, AA (doravante, AA) e BB (doravante, BB) iniciaram um relacionamento amoroso, sem coabitação, que teve o seu terminus no dia 25 de agosto de 2022.
2. BB residia em …, mas pernoitava aos fins-de-semana na residência de AA, na ….
3. Em datas não apuradas, mas nos últimos dois anos de relacionamento e em várias ocasiões, AA disse a BB que esta tinha amantes, que esta andava envolvida com o marido de uma sua amiga, e que esta lhe roubava dinheiro quando faziam os mercados.
4. Nessas alturas, AA apodava BB de “puta”.
5. Em data não apurada, mas no mês de março de 2020, no interior da residência de BB, no seguimento de uma discussão, AA colocou as mãos no corpo daquela e, exercendo força muscular, empurrou-a.
6. Após, AA disse a BB que se iria matar, tendo ido á cozinha buscar uma faca, a qual encostou ao peito.
7. Em data não apurada, mas no ano de 2022, AA disse a BB que esta tinha até ao mês de dezembro para lhe devolver 60.000,00€ que aquele alegava que esta lhe havia roubado, e que se a mesma não lhe devolvesse o dinheiro a matava, e de seguida suicidava-se.
8. No dia 20 de agosto de 2022, cerca das 22:30 horas, no seguimento de uma discussão ocorrida no interior da residência de AA, este puxou o cabelo de BB e desferiu-lhe um número não apurado de chapadas na face.
9. Ainda nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, AA colocou as mãos nos braços de BB, e, exercendo força muscular, apertou-os, bem como lhes desferiu um número não apurado de pontapés nas pernas.
10. AA tentou ainda apertar o pescoço de BB, apenas não tendo logrado conseguir, porquanto a mesma conseguiu libertar-se.
11. Quando BB se conseguiu libertar e tentava sair do quarto, AA disse àquela para não sair e que se ela chamasse a polícia, quando chegassem, estariam os dois mortos, mais lhe dizendo: “sabes que tenho a espingarda no carro, porque sei que já a viste”.
12. Como consequência direta e necessária das condutas de AA, referidas em 8, 9 e 10, BB sofreu de dores e mal-estar físico, bem como de hematomas nos braços e nas pernas.
13. Durante o período que durou o relacionamento amoroso, AA exigiu a BB que esta lhe ligasse todos os dias, à hora do almoço e após o horário de trabalho, a fim de o informar onde e com quem estava.
14. Ao agir da forma descrita, AA sabia que molestava a saúde física e psíquica de BB, que fazia com que ela receasse pela sua integridade física e de vida, que abalava a sua segurança pessoal, o seu amor próprio e a sua dignidade, ou seja, sabia que lhe provocava grande sofrimento físico e psíquico, o que pretendeu e fez de forma reiterada.
15. AA atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.
Mais se provou que,
16. A ofendida BB manifestou expressamente a sua oposição a que lhe seja arbitrada uma quantia a título de reparação dos danos causados.
17. A ofendida refez a sua vida amorosa há cerca de 6 meses.
18. A ofendida exerce a atividade profissional de ….
19. Pela atividade profissional referida em 18, aufere mensalmente a quantia de 1.140,02€, a título de salário.
20. A ofendida reside sozinha em casa própria, pagando mensalmente a quantia de 248,00€, a título de prestação bancária em empréstimo à habitação.
21. Para além da despesa mencionada em 20, a ofendida despende a título de custos com bens essenciais da habitação a quantia mensal total de 150,00€.
22. A ofendida contraiu três créditos pessoais.
23. A ofendida tem o 12.º ano de escolaridade, como habilitações literárias.
E que,
24. O arguido é tido pelas pessoas próximas, como uma pessoa calma e pacífica.
25. A última vez que o arguido contatou, por qualquer forma, com a ofendida foi no dia 25.08.2022.
26. O arguido é …, sendo gerente remunerado de uma empresa por si constituída, retirando daquela atividade cerca de 1.000,00€.
27. O arguido reside sozinho em casa própria, pagando prestação bancária no valor mensal de cerca de 380,00€.
28. Pela habitação mencionada em 27 o arguido despende mensalmente a quantia de cerca de 55,00€, a título de bens essenciais.
29. O arguido tem um filho, menor de idade, despendendo mensalmente a quantia de 130,00€, a título de pensão de alimentos, em benefício deste.
30. O arguido completou o 6.º ano de escolaridade.
31. O arguido não tem qualquer condenação anteriormente registada.
*
III.B. – Factos Não Provados:
Da discussão da causa, com interesse para a decisão de mérito da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
a. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 8, AA colocou as mãos no corpo de BB e, exercendo força muscular, empurrou-a por diversas vezes contra a parede.
*
III.C – Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção, com base na análise da prova produzida, conjugada entre si e analisada à luz das regras da experiência comum.
(…)
A convicção do Tribunal relativamente à factualidade dada como provada e supra elencada, assentou na análise crítica, ponderada e conjugada de todo o contexto probatório coligida nos autos e da prova produzida em sede de Audiência Final de Julgamento, a saber: quanto à prova documental, no Auto de Notícia (junto aos autos a fls. 3 e 4) e certificado de registo criminal atualizado, com a referência …, de 15.07.2024, da prova testemunhal indicada na Douta Acusação Pública (BB, CC e DD), e na contestação deduzida pelo arguido (EE e FF).
Toda a prova mencionada foi individualmente dissecada e, após, entrecruzada, de modo a aferir dos seus pontos de coerência e de concludência.
*
Assim, relativamente à factualidade dada como provada:
Primeiramente, importa referir que o arguido, não pretendeu fazer uso da prerrogativa legal que lhe assiste, tendo prestado declarações sobre os factos de que vem acusado, pelo que o Tribunal logrou apurar a sua versão dos factos.
O arguido prestou as suas declarações de forma circunstanciada, espontânea, descritiva, objetiva, clara e pormenorizada, tendo no seu cômputo, e analisando as mesmas de forma individual e isolada relativamente à demais prova produzida, sido coerente.
O arguido assumiu a veracidade de alguns factos constantes da Acusação, tendo negado outros, na sua totalidade ou com o sentido que resulta daquela.
Vejamos de forma pormenorizada.
No que diz respeito aos factos consignados nos pontos 1 e 2, os quais se referem ao tipo de relação existente entre arguido e vítima, sua duração e locais onde residia cada um, o Tribunal teve em consideração, para formar a sua convicção, as declarações do arguido devidamente conjugadas com o depoimento da testemunha, aqui ofendida, BB, os quais foram, quanto aos factos em análise consonantes entre si.
A testemunha mencionada prestou um depoimento de forma espontânea, adotando uma postura defensiva, com alguma falha de memória relativamente à localização temporal de alguns dos eventos ocorridos, atento o esgotamento após a pandemia que alegou ter sofrido, mas que se revelou, no seu cômputo, um depoimento descritivo, e coerente.
O depoimento da testemunha na parte em que foi espontâneo, foi prestado de forma pouco concretizada, tendo sido tal ausência de concretização colmatada com questões mais específicas e fechadas à ofendida. Ora, importa que referir que é comum que os depoimentos das vítimas de violência doméstica sejam prestados de forma menos concretizada, em datas e pormenores, atento o sofrimento e desgaste que os factos típicos causam naquelas, sendo que, se considera que incumbe ao Tribunal esclarecer à vitima a necessidade de concretizar o relato, atendendo a que o Tribunal não assistiu aos factos, e desta feita, colocando questões mais fechadas àquela.
Ora, foi o que aconteceu nos presentes autos, relativamente à vítima, tendo a mesma acabado por pormenorizar melhor os factos que ocorreram na realidade.
Ademais, a testemunha, na qualidade de lesada, não deduziu pedido de indemnização civil, não obstante ser um direito que lhe assistia, tendo, de forma expressa, quando questionada das suas condições pessoais socioeconómicas derrogado a sua vontade em receber qualquer quantia a título de reparação, por eventuais danos causados. Aliando isso ao facto de aquela nunca ter tecido comentários depreciativos e pessoais relativamente à pessoa do arguido, tendo-se limitado a relatar os factos em que interveio, descrevendo-os, e que ocorreram na realidade, o Tribunal apenas poderá extrair que aquela prestou o seu depoimento sem qualquer interesse num desfecho específico da presente causa, como seja o de prejudicar o arguido, deturpando a realidade e veracidade dos factos.
Acresce que o relato da ofendida corresponde ao por si declarado perante autoridade policial e aposto no Auto de Notícia junto aos autos.
Por esse motivo o Tribunal conferiu total credibilidade ao seu depoimento.
Relativamente aos factos vertidos nos pontos 3 e 4, os quais se referem às expressões proferidas pelo arguido e dirigidas à ofendida, o Tribunal formou convicção positiva acerca dos mesmos partindo das declarações da ofendida, correspondendo aqueles à sua versão apresentada quer em Audiência de Julgamento quer em declarações prestadas no início do processo de inquérito perante autoridade policial, em detrimento da versão apresentada pelo arguido, em sede de declarações prestadas em Audiência de Julgamento.
O arguido assumiu que a determinada altura do relacionamento amoroso que manteve com a ofendida, desconfiou que a mesma tinha um relacionamento paralelo com marido de uma amiga da ofendida e que lhe tirava dinheiro dos mercados que efetuavam, tendo posteriormente confrontado a mesma com tal facto, o que, segundo aquele, foi assumido pela ofendida ao arguido.
Negou, porém, que tenha apodado a mesma de “puta”, com exceção de uma única vez quando confrontou a ofendida com a retirada de dinheiro para dar ao amante e segundo o mesmo aquela assumiu a verdade de tais factos.
Em contraposição, a testemunha BB, e ofendida, relatou que a determinada altura do relacionamento com o arguido este tinha atitudes ciumentas para consigo, quando aquela falava com clientes nos mercados, e especificou a desconfiança do arguido relativamente ao alegado relacionamento mantido pela ofendida, em simultâneo com o arguido, com o marido de uma amiga sua, declinando a veracidade de tais desconfianças, e que as mesmas surgiram acompanhadas da acusação do arguido de que aquela havia retirado dinheiro dos mercados. Mais referiu que nessas alturas, chamava-a de “puta”, dizendo-lhe inclusivamente “És a maior puta que eu já vi”, circunstanciando o motivo por que aquele lhe dirigia tal expressão: no seguimento de o arguido lhe dizer que ela tinha amantes.
Importa igualmente referir que as inveracidades de tais desconfianças do arguido foram sustentadas pela testemunha perante o esclarecimento da mesma de que não convivia com o marido da amiga e que o arguido nunca lhe pediu esclarecimentos sobre as contas dos mercados, podendo fazê-lo, porém, nunca foi confrontada com tal possibilidade.
Ora, tal relato quanto às concretas desconfianças ou acusações foi ao encontro do referido pelo arguido.
Porém, o Tribunal atribuiu credibilidade à versão apresentada pela ofendida atendendo a que, em primeiro lugar, inexiste nos autos qualquer elemento que permita corroborar as desconfianças e o relatado, em declarações, pelo arguido.
Em segundo lugar, pela forma como a ofendida prestou o seu depoimento, mormente quanto à concreta expressão dirigida pelo arguido à ofendida.
Por último, foi relatado pelo arguido que as desconfianças surgiram mais de um ano antes do término do relacionamento, sendo que, no que se reporta à questão da alegada retirada de dinheiro do produto dos mercados que ambos faziam, não resultou que aquele tenha retirado a ofendida de tal função: a de receber os pagamentos dos clientes e registar tais pagamentos, o que, à luz das regras da experiência comum - no sentido em que qualquer homem médio assim atuaria perante uma situação idêntica à relatada pelo arguido - seria a conduta mais coerente a adotar pelo arguido perante tais desconfianças.
Ademais, mostrar-se-ia coerente com as regras da lógica e da experiência comum que, perante tais desconfianças, o arguido terminasse o relacionamento amoroso com a ofendida, o que não fez, tendo sido a ofendida a terminar o relacionamento, após agressões físicas perpetradas pelo arguido, anos depois. Acresce que, a justificação apresentada pelo arguido para não ter posto termo a tal relacionamento se deveu ao facto de pretender resolver a situação, descobrindo a verdade das suas desconfianças. Porém, nenhuma prova adveio aos autos de que tais desconfianças eram verdadeiras.
Importa também referir que, em sede de Audiência de Julgamento, prestou depoimento a testemunha CC - colega de trabalho da ofendida, desde momento anterior à data da prática dos factos em causa nos autos e no momento em que se realizou o Julgamento, nestes autos – a qual referiu que a ofendida era pessoa séria, sem qualquer necessidade de retirar dinheiro do arguido, que trabalhava muito, e que todos os dias na hora que tinham para almoçar a ofendida falava com o arguido ao telemóvel, referindo aquela que estava na companhia da testemunha.
O depoimento da testemunha mencionada foi prestado de forma espontânea, serena e firme, circunstanciada e descritiva, objetiva, clara e coerente.
Ademais, embora a testemunha seja colega de trabalho da ofendida a mesma, durante o seu depoimento, não teceu quaisquer comentários depreciativos ou pessoais acerca do arguido, não sendo percetível a existência de qualquer conflito entre ambos, e qualquer interesse daquela testemunha em prejudicar ou beneficiar o arguido, com aquele seu depoimento.
No que se refere ao facto constante no ponto 5 a 7, o Tribunal formou convicção positiva acerca da verificação dos mesmos na realidade.
No que diz respeito ao episódio da faca, o arguido assumiu a veracidade do mesmo e tal facto foi também relatado pela ofendida.
Já no que se refere aos factos vertidos nos pontos 5 e 7, o Tribunal teve em consideração o depoimento prestado pela ofendida, o qual mereceu credibilidade por parte do Tribunal, pelos fundamentos já anteriormente expostos.
Quanto aos factos constantes nos pontos 8 a 12, os quais se referem ao evento ocorrido em agosto de 2022, e concretos atos perpetrados pelo arguido no corpo da ofendida, os mesmos correspondem à versão apresentada pela ofendida, tendo o tribunal formado convicção positiva sobre as mesmas ainda que inexista nos autos qualquer documento clínico que comprove os hematomas constantes dos factos em análise.
Ora, o arguido negou a prática destes factos.
Porém, a ofendida descreveu os mesmos, e relatando o tipo de agressões levadas a cabo pelo arguido (socos, pontapés, aperto de pescoço e puxões de cabelo), as concretas partes do seu corpo atingidas, o local onde se encontravam nesse momento, a motivação do arguido (desconfianças suprarreferidas) e bem assim a descrição das lesões provocadas pelas mesmas.
Ainda que inexista qualquer elemento clínico junto aos autos, o Tribunal formou convicção positiva acerca dos factos em análise, pela corroboração do depoimento da testemunha e ofendida mediante os depoimentos das testemunhas CC e DD.
As testemunhas CC e DD, prestaram o seu depoimento de forma serena, objetiva, pormenorizada e circunstanciada, clara e coerente, tendo apenas relatado os factos que tiveram conhecimento direto por terem presenciado os mesmos e, tendo relatado aqueles que tiveram conhecimento por lhes ter sido referido pela ofendida.
Ora, as testemunhas mencionadas não presenciaram as agressões do arguido à ofendida, porém, estiveram com a mesma alguns dias depois, tendo visto os hematomas no corpo da ofendida, tendo sabido por esta que foi o arguido quem lhe causou os mesmos, no fim-de-semana anterior.
A testemunha CC relatou que no mês dos factos indicados na Acusação Pública, a ofendida ligou à testemunha para que fosse ter com a mesma ao seu carro, tendo relatado o estado emocional em que encontrou a mesma, e o que lhe foi referido pela ofendida como sendo o motivo pelo qual se encontrava a chorar. Foi nesse momento que a ofendida relatou as agressões que foi alvo no fim-de-semana anterior, as ameaças que aquele lhe fazia e o receio manifestado pela ofendida do que o arguido pudesse fazer. Mais relatou que viu hematomas em um dos braços e o incentivo dado pela mesma e patrão de ambas para que apresentasse queixa, após regressar de férias.
Já a testemunha DD, filha da ofendida, relatou que, encontrando-se a mesma a residir em um Convento que, após os factos em causa nos autos acolheu a sua mãe, tendo descrito as nódoas negras que a mesma tinha no corpo, que conseguiu percecionar perfeitamente. Mais relatou o motivo fundado em ciúmes e desconfiança do arguido nas agressões que a ofendida relatou à testemunha, vindo a corroborar a versão presentada pela ofendida.
Ambas referiram que apenas naquelas datas tiveram conhecimento que a ofendida e o arguido vivenciavam conflitos. Ademais, a testemunha CC descreveu aquela como uma pessoa reservada.
Importa referir que o arguido indicou duas testemunhas que prestaram o seu depoimento em Audiência de Julgamento: EE e FF, os quais conviveram com arguido e ofendida em contexto profissional, sendo que em contexto mais privado, nada presenciaram.
Já o facto consignado no ponto 13, resultou do depoimento da testemunha e ofendida corroborado pela testemunha CC, não obstante o arguido ter negado ligar para “controlar os passos” da ofendida, i.e., a fim de saber com quem aquela estava e o que fazia.
Relativamente aos factos vertidos nos pontos 14, e 15., os quais se referem à intenção e consciência do arguido na sua conduta e bem assim à consciência da ilicitude daquela, o Tribunal formou convicção positiva sobre a verificação dos mesmos considerando toda a factualidade objetiva que antecede e que adveio como provada nos autos, e uma vez associada às regras da experiência comum.
No que concerne aos factos vertidos nos pontos 16., a 23., que se consubstanciam nas condições pessoais e de vida da ofendida e situação atual da sua vida amorosa, o Tribunal, para formar a sua convicção sobre os mesmos, considerou o depoimento da testemunha e ofendida, inexistindo nos autos elementos capazes de os infirmar.
Quanto ao facto 24, o qual se refere à personalidade do arguido evidenciada pelas pessoas mais próximas, o Tribunal teve em consideração os depoimentos das testemunhas indicadas pelo arguido: EE e FF, os quais prestaram um depoimento de forma objetiva, clara e espontânea, tendo merecido credibilidade por parte do Tribunal.
Ambas são amigos do arguido há mais de 5 anos, tendo ambas reconhecido o arguido como pessoa pacífica.
Relativamente aos factos vertidos nos pontos 25., a 30., os quais se referem às condições de vida e pessoais do arguido e último contato estabelecido com a ofendida, o Tribunal formou convicção positiva sobre os mesmos considerando as declarações do arguido, inexistindo nos autos quaisquer elementos capazes de infirmar os mesmos. Já no que se refere à data do último contato estabelecido entre ofendida e arguido o tribunal formou convicção positiva sobre o mesmo atendendo o depoimento da ofendida prestado em Audiência de Julgamento o qual foi corroborado pelo arguido.
Ademais, o facto vertido no ponto 31., correspondente às condenações anteriores do arguido, o Tribunal formou convicção positiva sobre o mesmo, atendendo ao teor do certificado de registo criminal junto aos autos, e do qual nada consta.
*
No que diz respeito à factualidade considerada como não provada, mormente o facto vertido no ponto a, o Tribunal formou convicção negativa sobre os mesmos, considerando a inexistência de prova nesse sentido.
Em sede de depoimento da ofendida, a mesma negou a prática de tal facto pelo arguido.
Acresce que o arguido também negou a prática de tais factos, aqui em análise.
Por último, nenhuma testemunha ouvida em Audiência de Julgamento presenciou tais factos.
*
Por último, importa mencionar que a matéria não incluída no elenco dos factos provados e não provados, é conclusiva ou redunda em juízos de valor, não constituindo matéria de facto nem sendo relevante para a decisão a proferir.”
2 - Fundamentação.
A. Delimitação do objeto do recurso.
A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1.ª questão - A nulidade decorrente das alegadas deficiências na gravação dos depoimentos.
2.ª questão – Impugnação da matéria de facto.
B. Decidindo.
1.ª questão - A nulidade decorrente das alegadas deficiências na gravação dos depoimentos.
Questão similar foi dirimida no Acórdão deste TRE de 18.10.2018 proferido no processo n.º 48/15.0GBTVR.E1 (2), dali se sublinhando a seguinte passagem:
“A inobservância dessa documentação foi merecendo diferentes perspectivas da jurisprudência no respeitante às suas consequências legais, muitas vezes de sentido contraditório, até à prolação do acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência (AFJ) n.o 13/2014, de 03.07.2014 (in DR 1.ª Série de 23.09.2014), que fixou a jurisprudência: «A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada».
E sempre se foi entendendo que a ausência de documentação se deve equiparar à deficiência parcial na gravação da prova que atinja um grau de imperceptibilidade que impeça o seu efectivo conhecimento e, como tal, a sua impugnação, com vista a ser reapreciada, aliás, de harmonia com a circunstância de que a documentação deva assegurar a reprodução integral das declarações, como consta do art. 364.º, n.º 1, do CPP.
Assim, não só a não documentação das declarações orais, mas também a ausência, ainda que parcial, dessa documentação, por não ter sido efectuada nessa parte ou por não ser perceptível, não pode deixar de ser pertinente à luz desse princípio geral e das respectivas consequências legais.
Já nesse AFJ se sublinhou que tem-se entendido que à omissão da documentação em acta das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo do depoimento (por referência, que citou, ao acórdão do STJ de 24.02.2010, no proc. n.º 628/07.8LSB.L1.S1).
A nulidade decorrente, não constando do elenco do art. 119.º do CPP, considerar-se-á como dependente de arguição, nos termos do art. 120.º, n.º 1, do CPP (…).
Também, neste aspecto, pacificamente, se fundamentou no referido AFJ:
Não se tratando de nulidade elencada no artigo 119.º nem sendo expressamente classificada como insanável, pela própria norma, a nulidade prevista no artigo 363.º é, pois, uma nulidade sanável que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º. Por outro lado, é consubstanciada por um vício procedimental cometido durante a audiência. Com efeito, a omissão da gravação ou a deficiência equiparável a falta de gravação ocorrem na audiência. Não se trata, por conseguinte, de uma nulidade da sentença.
E como tal, como aí também se sublinhou, O vício da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência tem, pois, de ser arguido perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, dirigido ao juiz do processo, no prazo geral de 10 dias, a partir do momento em que dele se toma conhecimento.
Assim, quando, em audiência, a ausência de documentação seja logo detectada, deve o interessado argui-la nesse acto, de acordo com o n.º 3, alínea a), daquele art. 120.º.
Já o mesmo não será aplicável quando o interessado se apercebe posteriormente da inaudibilidade/imperceptibilidade das gravações, depois de lhe ter(em) sido facultada(s), a seu requerimento, cópia(s) do(s) suporte(s) técnico(s) respectivo(s) - o que lhe deve ser entregue pelo funcionário no prazo de quarenta e oito horas (art. 101.º, n.º 4, do CPP) -, na medida em que só a partir desse momento lhe é possível conhecer, após audição, dessa deficiência.
De qualquer modo, na esteira desse AFJ, a arguição da nulidade deverá respeitar o prazo supletivo de 10 dias fixado para a prática de acto processual, determinado no art. 105.º, n.º 1, do CPP.
Acerca do momento a partir do qual esse prazo deve ser contado, consignou-se na fundamentação do mesmo AFJ:
Da conjugação das normas dos artigos 101.º, n.º 3 (actual n.º 4), e 364.º, n.º 1, resulta que, sempre que for realizada gravação, o sujeito processual interessado pode requerer a entrega de uma cópia facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, devendo o funcionário entregar uma cópia, no prazo de quarenta e oito horas. Nessa altura, o sujeito processual fica em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência.
Por isso, o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efectuada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário (por lei, quarenta e oito horas).
Neste sentido, já se pronunciou o referido acórdão deste Tribunal de 23/11/2011 (processo n.º 161/09.3GCALQ. L1.S1). Ponderando-se que, uma vez decorridas quarenta e oito horas sobre o termo do acto em que houve gravação das declarações orais, o sujeito processual interessado pode exigir a entrega de uma cópia, facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, ficando, nessa altura, em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência e porque, «de acordo com o disposto no artigo 9.º do Decreto -Lei n.º 39/95, de 25 de Fevereiro, que, regulando o registo da prova em processo civil, se aplica analogicamente ao processo penal, nos casos omissos, em conformidade com o disposto no artigo 4.º do CPP, a falta de gravação, ou a sua deficiência, implica a repetição da parte omitida, desde que "essencial ao apuramento da verdade" e essa repetição deve ser feita o mais rapidamente possível, sem afectação de direitos processuais, até porque em processo penal a celeridade constitui garantia de defesa com assento constitucional (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição), o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade deve contar -se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efectivada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário».
Também na posição sustentada por Paulo Pinto de Albuquerque, a nulidade sana-se se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias a partir da audiência acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido. Se a audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo conta-se a partir de cada sessão da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.
Oliveira Mendes (…), em comentário ao artigo 363.º, adverte que, «quanto à deficiente documentação, ou seja, a documentação que não possibilite, no todo ou em parte, a captação das declarações oralmente prestadas em audiência, há que considerar duas situações possíveis».
«Caso a deficiência da documentação impeça a captação do sentido das declarações prestadas, deve ser equiparada à falta de documentação, visto se tratar, verdadeiramente, de uma documentação inexistente ou ineficaz. A nulidade daí resultante, como o conhecimento da deficiência só se torna possível ao sujeito processual com o acesso ao suporte técnico, deverá ser arguida no prazo de dez dias contados da data em que ao sujeito processual tenha sido entregue o respectivo suporte técnico, caso haja sido requerida a sua entrega - artigo 101.º, n.º 3 (actual n.º 4); caso não tenha sido requerida a entrega do suporte técnico aquele prazo conta-se a partir da data do termo ou encerramento da audiência em que foi efectuada a deficiente documentação.”
Flui do exposto que, como acertadamente afirma o MP na sua resposta ao recurso, os registos da gravação foram disponibilizados em 15.07.2024 (3) e o recurso apenas entrou em 08.08.2024 (4) pelo que o aludido prazo de 10 dias já se mostrava ultrapassado (trata-se de processo urgente), encontrando-se a eventual nulidade decorrente da alegada circunstância, assim, sanada.
De qualquer forma, ainda que assim não se entendesse, ouvidos os trechos indicados pelo recorrente, podemos concluir que, apesar de estarem (em parte) afetados por evidentes distorções, com algum esforço (e eventual necessidade de repetição de audições (5)), é possível ouvir e perceber aquilo que o ora recorrente declarou. Deste modo, trata-se apenas de uma dificuldade acrescida na audição de tal depoimento que não coloca em causa a possibilidade de sindicar (com recurso à indicação das passagens atinentes) a matéria de facto dada como provada.
A questão é, assim, improcedente.
2.ª questão – Impugnação da matéria de facto.
Constitui princípio geral que os tribunais da relação conhecem de facto e de direito, nos termos do art.º 428.º.
Apesar de, como vimos, o recorrente também configurar a existência dos vícios acima referidos, também afirma pretende impugnar a matéria de facto dada como provada na sentença, sem que refira o disposto no art.º 412.º, que, recorde-se, tem o seguinte teor:
“(…) 3 – Quando impune a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do art.º 428.º.
O recorrente afirma, como acima mencionámos, que ocorre a invocada insuficiência para prova dos aludidos factos e que, assim, foi violado o art.º 340.º.
A este propósito, importa lembrar o que dispõe o art.º 412.º, com referência à motivação do recurso e conclusões:
“(…)
3 – Quando impune a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Como consta do Comentário do Código de Processo Penal, de Paulo Pinto de Albuquerque (6), em anotação à referida norma, “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)”; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”, a que “(…) [a]cresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação.” Assim sendo, sempre que seja impugnada a matéria de facto por se entender que determinado aspecto da mesma foi incorrectamente julgado, o recorrente tem de expressamente indicar esse aspecto, a prova em que apoia o seu entendimento e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida.
Tal exigência decorre da circunstância de que todos os recursos – à excepção do recurso de revisão – se encontrarem “concebidos na lei como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial, o que inculca que aos impugnantes seja pedido (em obediência ao princípio da lealdade processual) que indiquem qual o defeito ou vício de que padece o acto impugnado, por forma a habilitar o tribunal superior a ajuizar do mérito das razões invocadas.
Ora é exactamente para isso que serve a motivação: permitir ao recorrente apontar ao Tribunal ad quem o que na sua perspectiva foi mal julgado e oferecer uma proposta de correcção para que o órgão judiciário o possa avaliar.” (7)
Por outro lado, pretendendo o recorrente “impugnar a decisão da matéria de facto, forçosamente há-de saber o que nesta decisão concretamente quer ver modificado, e os motivos para tal modificação, podendo, portanto, expressá-lo na motivação.” (8)
As exigências previstas nos números 3 e 4 do art.º 412.º não se revestem de natureza meramente secundária ou formal: ao invés, relacionam-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e só a sua estrita observância permitirá ao tribunal de recurso conhecer a vontade do recorrente e pronunciar-se sobre um objeto escolhido, não por si próprio, mas por quem não se conforma com uma decisão.
Complementarmente se dirá que a ratio das aludidas exigências repousa na circunstância de o recurso sobre a matéria de facto não ter como escopo “a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância” (9), como sucede quando “o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário” (10), por exemplo, “se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto (…) [ou] se, apesar de afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros” (11).
Por outro lado, é de sublinhar que, “se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”.(12)
A razão de ser de tais exigências decorre da circunstância de o recurso sobre a matéria de facto não visar “a realização, pelo tribunal ad quem, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros clamorosos (evidentes e óbvios) na apreciação/aquisição da prova produzida em primeira instância”(13).
É de salientar que o tribunal a quo, face a duas versões contraditórias dos factos (apresentadas pelo arguido e por BB), optou pela tese da última, considerando credíveis as suas declarações da ofendida em detrimento de parte do depoimento do arguido e explica detalhadamente tal opção.
Mais especificamente:
Quanto ao facto 4), é a testemunha BB que confirma que o arguido lhe chamava tais nomes e “em várias situações, em várias vezes” (14), o que consta da motivação (a “forma como a ofendida prestou o seu depoimento”), sendo certo que o próprio arguido reconhece que lhe dirigiu tal palavra uma vez, muito embora tenha negado que tal tivesse acontecido mais vezes (15).
De referir que a referência feita na decisão recorrida à não confirmação das suspeitas de infidelidade de BB não tem qualquer significado, pois, como o próprio recorrente afirma, é circunstância inócua em sede subsuntiva e, como tal, irrelevante.
Aliás, o ora recorrente começa por alegar que “foi possível perceber que o Arguido não quis atingir a dignidade da ofendida, ou que tenha afectado a saúde física e psíquica da mesma”, o que se nos afigura como conclusivo, reproduzindo um trecho do seu (próprio) depoimento em que reconhece que “depois quando eu fiz para a apanhar, porque eu tinha de fazer para apanhar”, ou seja, exteriorizando um comportamento obsessivo para com aquela.
Quanto aos factos provados 5) e 6) (16):
Desde logo, quanto ao facto 6), dir-se-á que se nos afigura essencialmente inócuo em termos subsuntivos, pois não integra a prática de qualquer ilícito criminal nem contribui, de algum modo, para a prova de factos penalmente relevantes. Assim, ao abrigo do disposto no art.º 380.º, n.º 2, deverá ser considerado não escrito, o que determina a prejudicialidade do conhecimento da impugnação da matéria de facto atinente (17).
Relativamente ao facto provado 5) e atendendo à motivação da decisão recorrida que, como vimos, assenta a prova dos factos no depoimento de BB, apesar da mesma ter afirmou que a “única agressão que houve foi no dia 20 de agosto de 2022”, veio depois a esclarecer que, na mencionada altura, o arguido a agarrou e a empurrou, concluindo que tal “é considerado agressão mas… não é tão grave”. Tais declarações confirmam o facto em causa, a que o tribunal a quo conferiu credibilidade, pelo que a impugnação é, pelos motivos expostos, improcedente.
No que respeita ao facto provado 7), é o próprio trecho do depoimento da testemunha BB que confirma (dada a credibilidade conferida pelo tribunal ao mesmo) a mencionada ameaça: “ele sempre me ameaçou de morte” quando “estava descontrolado nas conversas quando eu dizia que não tinha roubado e que não tinha outra pessoa”. Aliás, percebe-se do depoimento da testemunha e do próprio arguido a acentuada importância que este atribuía ao montante alegadamente “roubado” por aquela, o que confere especial credibilidade ao aludido depoimento de BB.
Quanto aos factos provados 8) a 12):
Diz o recorrente que tais factos “não passam de uma fabulação da ofendida” e que a “versão da ofendida de como se deram as agressões não convence”.
O ora recorrente não coloca, assim, em causa que o depoimento da aludida testemunha pudesse fundamentar a prova daquele acervo probatório, mas apenas que o conteúdo de tal depoimento não corresponde à verdade. É, pois, uma questão de credibilidade de tal depoimento. Só que, como vimos, se o tribunal optar por uma das possibilidades probatórias em confronto e se o fizer (como fez) de forma fundamentada, explicando o iter de tal escolha, a impugnação deve improceder.
De qualquer forma, neste caso, até nem é o único acervo probatório a considerar, fazendo-se alusão aos testemunhos de CC e de DD.
É de sublinhar que os depoimentos dessas duas testemunhas, se em parte são indiretos (quando descrevem o que BB lhes relatou sobre os comportamentos do arguido, são diretos no que respeita à descrição do sofrimento que observaram naquela e nos demais factos por si observados e descritos.
Mesmo considerando a parte em que tais depoimentos apenas relatam o que lhes foi contado por aquela testemunha, tais depoimentos têm ainda valor na concessão de credibilidade daquele depoimento , quanto à coerência entre este e aquilo que anteriormente foi objeto do seu depoimento e ao por esta diretamente observado, sendo tal coerência essencialmente observada (18).
É indiscutível que o depoimento indireto tem valor probatório autónomo face ao da testemunha-fonte (a vítima) e flui da letra do art.º 129.º, n.º 1 que é um verdadeiro meio de prova, não sendo apenas uma forma de identificar a testemunha-fonte ou de avaliar a credibilidade do seu depoimento. Este normativo apenas obriga a que se chame a testemunha-fonte (e, mesmo aí, com exceções), não a que esta efetivamente deponha e confirme o declarado pela testemunha inicial. Assim, o valor probatório a atribuir-lhe variará em função da feição concreta de cada caso.
Quanto ao facto provado 13):
Mais uma vez, afigura-se-nos estarmos perante um facto essencialmente inócuo em termos subsuntivos, pois não integra a prática de qualquer ilícito criminal (não estamos perante qualquer facto integrador, de algum modo, de maus tratos) nem contribui, de algum modo, para a prova de factos penalmente relevantes (19). Assim, ao abrigo do disposto no art.º 380.º, n.º 2, será considerado não escrito, o que determina a prejudicialidade do conhecimento da impugnação da matéria de facto atinente.
Quanto aos factos provados 14 e 15):
Segundo o recorrente, não resulta da prova produzida que a ofendida vivesse amedrontada, oprimida, vexada, ou, de alguma forma, maltratada pelo arguido.
Segundo a fundamentação de facto da decisão recorrida, o tribunal formou convicção positiva sobre a verificação de tais factos, considerando toda a factualidade objetiva provada “e uma vez associada às regras da experiência comum”.
Sobre a prova dos factos atinentes aos elementos subjetivos, importa, em nossa opinião, atender aos seguintes trechos de acórdãos que permitem delimitar com clareza o iter a seguir para tal desiderato: Acórdão da Relação de Évora de 28.10.2014 proferido no processo n.º 3/09.0AASTB.E1 (Relatora Ana Barata Brito): “Os factos do tipo subjectivo resultam frequentemente dos factos externos. E eles constituem também um exemplo de demonstração por prova indirecta. (…) Assim, os factos que integram o dolo (…), os actos interiores ou internos, por respeitarem à vida psíquica raramente se provam directamente. Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo far-se-á por ilações, retiradas de indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente. (…) O julgador resolverá a questão de facto decidindo que (ou se) o agente agiu internamente da forma como o terá revelado externamente. (…) As dificuldades e as vicissitudes da prova da intenção serão, assim, comuns à generalidade dos crimes.”
Acórdão do STJ de 06.10.2010 proferido no processo n.º 936/08.JAPRT (Relator Henriques Gaspar) “A prova de determinados factos que não são directamente apreensíveis in natura, no plano da observação imediata, física e sensorial, só pode ser obtida por aproximações empíricas, permitidas pelas deduções decorrentes de factos ou comportamentos individuais, aceitáveis ou pressupostos pela normalidade de consequências que está suposta pelas regras da experiência e do fluir normal dos acontecimentos e relações. Estes elementos de construção e apreciação permitirão o estabelecimento de um facto não directamente apreensível (mas apenas deduzido de referências comportamentais concretas), como resultado de uma conclusão sustentada, e por isso afastando uma apreciação dominada pelas impressões. Nesta perspectiva metodológica, as regras da experiência são a base e o limite do resultado, positivo ou negativo, de uma presunção natural, como critério, ou no rigor, regra normativa de prova. Com uma de duas possíveis consequências. Pode verificar-se um afastamento entre a base da presunção (o facto conhecido, preciso e determinado) e o facto desconhecido (objecto de prova), de tal modo que a relação se situa apenas no simples domínio das possibilidades físicas e materiais, sem proximidade que caiba nos limites razoáveis do id quod; neste caso, o facto desconhecido não poderá considerar-se como assente. Mas, ao invés, as regras da experiência podem determinar que, segundo a normalidade das coisas, dos comportamentos e da apreciação externa comum e referencial sobre a causalidade e a sequência, um facto ou uma série de factos conhecidos não se compreende, nem por si tem relevante significado autónomo e não apresenta qualquer sentido, razão ou explicação, se não for pelas consequências normais e típicas que a experiência das coisas e da vida lhe associa; neste caso, a presunção deve ser estabelecida: os factos serão precisos e concordantes.”
Os factos objetivos anteriores (relevantes), atendendo às “regras da experiência” (que a decisão recorrida corretamente invoca), determinam que, segundo a normalidade das coisas, dos comportamentos e da apreciação externa comum e referencial sobre a causalidade e a sequência, que a sua compreensão não apresenta qualquer sentido, razão ou explicação, se não for acompanhada pela prova dos factos aqui em causa, traduzindo uma consequências normal e típica que a experiência das coisas e da vida lhe associa, pelo que a presunção se estabelece e tais factos serão precisos e concordantes, devendo ser considerados provados. Por outras palavras, o comportamento reiterado abusivo e obsessivo apenas faz sentido se tiver tido como substrato psicológico a factualidade aqui impugnada, impugnação essa, que, consequentemente, terá de naufragar.
A impugnação é, pois, totalmente improcedente, pelo que não existe qualquer violação de princípios constitucionais (20).
3 - Dispositivo.
Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)
(Processado em computador e revisto pelo relator)
1 Diploma a que pertencerão todas as indicações normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.
2 Disponível, como todos os demais mencionados sem indicação diversa, em www.dgsi.pt.
3 Referência Citius …..
4 Referência Citius ….
5 Com auscultadores.
6 5.ª edição, UCP Editora, Volume II, 2023, páginas 677/678: anotação, para além do autor referido, de Helena Morão.
7 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.
8 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10 de Março de 2004 – Diário da República, II Série, de 17 de Abril de 2004, referindo-se a uma versão do art.º 412.º, n.º 3 e nº 4 do Código de Processo Penal que era menos exigente do que a actual relativamente aos ónus dos recorrentes.
9 Acórdão deste TRE de 19.05.2015, proferido no processo 441/10.5TABJA.E2.
10 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.05.2017, proferido no processo 324/14.0SGPRT.P1.
11 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.02.2004, proferido no processo 0315956.
12 Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 15.03.2011 proferido no processo 212/04.8TACTX.E1.
13 Acórdão deste TRE de 19.05.2015, proferido no processo 441/10.5TABJA.E2.
14 Como o próprio recorrente reproduz na sua motivação.
15 Salvo o devido respeito, o argumento de que, se “estivesse a faltar à verdade, não iria admitir ter chamado “puta” à ofendida naquelas circunstâncias” carece de demonstração, pois a admissão por parte do arguido de uma das condutas acusadas não significa que não se provem as demais e que, como admitiu uma, daí se tenha de inferir que as outras não de provam. Esta conclusão também é inteiramente válida para o argumento de que não é minimamente “razoável que o Recorrente tivesse contado tantos detalhes da sua vida privadíssima se os mesmos não correspondessem àquilo que realmente se passou” e que, se “estivesse a esconder alguma coisa, não teria dado tantos detalhes pormenorizados da vida conjugal com a ofendida”. A experiência e o senso comum dizem-nos que a exposição de detalhes da vida pessoal não tem de corresponder integralmente à verdade e que, por tal circunstância, nada seja ocultado.
16 Recorde-se, com o seguinte teor: (5) Em data não apurada, mas no mês de março de 2020, no interior da residência de BB, no seguimento de uma discussão, AA colocou as mãos no corpo daquela e, exercendo força muscular, empurrou-a. (6) Após, AA disse a BB que se iria matar, tendo ido á cozinha buscar uma faca, a qual encostou ao peito.
17 De qualquer forma, sempre se dirá que o depoimento de BB suporta o juízo probatório de tal facto.
18 A questão da extensão (menor ou menor, mais ou menos disseminada(s)) é, neste conspecto, irrelevante, pois, uma vez que a aludida testemunha estava vestida, é natural que esta apenas visse parte das lesões existentes.
19 De qualquer forma, também aqui se dirá que os depoimentos de BB e de CC suportam o juízo probatório de tal facto, como da decisão recorrida expressamente consta.
20 Cuja invocação dependia expressamente do êxito, ainda que meramente parcial, da pretensão impugnatória.