O requisito “fortes indícios” para imposição de medidas de coação privativas da liberdade existe quando, em face das provas conhecidas e transmissíveis para julgamento, a probabilidade de condenação é maior do que a de absolvição, com um grau de certeza próximo daquele exigido para a decisão condenatória, ressalvado o facto de carecerem, ainda, de exame contraditório, com imediação e oralidade.
A verificação desses indícios pode fazer-se por prova indireta, que não incide na demonstração direta do facto-objeto (o facto descrito no tipo legal) mas sim na demonstração dos factos-indiciantes, dos quais se pode inferir o facto-objeto. Serão relevantes para suportar uma convicção suficientemente segura sobre a veracidade do facto-objeto os seguintes elementos: (1) pluralidade de factos-indiciantes; (2) demonstração dos factos-indiciantes com elevado grau de certeza e não como meras probabilidades ou hipóteses; (3) factos-indiciantes estabelecidos com base em prova direta; (4) factos-indiciantes que permitam chegar a ilações convergentes sobre o facto-objeto; (5) relação de causalidade entre o facto-indiciante e o facto-objeto; (6) inexistência de contra-indícios que permitam chegar a ilações contrárias sobre o facto-objeto, plausíveis segundo as mesmas regras de avaliação.
Os depoimentos de testemunhas em inquérito sobre o que lhes foi dito pelo autor do crime, de forma espontânea, voluntária e informal, momentos antes e depois do crime, podem ser valorados para a determinação dos indícios com vista à aplicação de medidas de coação.
A regra da proibição de retirar ilações desfavoráveis do silêncio do arguido em julgamento não é aplicável na fase do inquérito e no âmbito da avaliação de prova indiciária para aplicação de medidas de coação.
1.1. Decisão recorrida
Despacho proferido em 4julh2024, na fase de inquérito, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no qual se decidiu sujeitar a arguida AA à medida de coação de obrigação de apresentação periódica, por se ter entendido, em suma, que existem indícios da prática de dois crimes de roubo agravados, previstos nos artigos 210º nºs 1 e 2 al. b) e 204º nº 1 al. f) e nº 2 als. e) e f), do CP.
1.2. Recurso, resposta e parecer
1.2.1. O Ministério Público recorreu pedindo a revogação do despacho e a sua substituição por outro que sujeite a arguida à medida de coação de prisão preventiva.
Tanto alegou, em suma, o seguinte:
- A prática dos crimes pela arguida não está apenas indiciada, como afirmado no despacho recorrido, mas sim fortemente indiciada e admite a ponderação sobre a aplicação da medida de coação de prisão preventiva;
- O tribunal avaliou os indícios de forma atomística e não em conjunto, na sua globalidade, não retirando deles as ilações que se impunham;
- Há perigo de fuga, na medida em que a arguida, depois do crime, se ausentou para …;
- Há perigo de perturbação do inquérito, visto que a arguida pode influenciar os depoimentos das testemunhas e a aquisição de outra prova – até porque uma das facas utilizadas nos roubos ainda não foi localizada;
- Há perigo de perturbação da ordem pública, face ao forte alarme social causado por um assalto praticado com muita violência;
- Há perigo de continuação da atividade criminosa, porque a brutalidade do assalto e a fuga posterior revelam que a arguida se sente imune à responsabilidade, o que a poderá levar a praticar novos crimes;
- A única medida suficiente para acautelar estes perigos é a prisão preventiva.
1.2.2. A arguida respondeu alegando, em resumo, que:
- Os indícios existentes não são fortes, no sentido de permitirem a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, que tem caráter excecional e subsidiário e está vinculada aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade;
- Ao contrário do alegado, a arguida estava a trabalhar em … e ausentou-se para esse país para se juntar ao pai;
- Não existem os perigos assinalados no recurso, pois apresentou-se voluntariamente quando foi notificada, mesmo sabendo do risco de ficar detida, disponibilizou-se a regressar a Portugal, encontra-se à procura de trabalho, tem cumprido as obrigações processuais a que está sujeita, passou cerca de um ano desde o crime e não é razoável afirmar-se que pode haver dissipação da prova.
1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer concordante com os fundamentos do recurso.
2. Questões a decidir
A única questão a decidir no recurso é a de saber se estão verificados os pressupostos legais para sujeitar a arguida à medida de coacção de prisão preventiva.
3. Fundamentação
3.1. Factos imputados no despacho recorrido
No primeiro interrogatório judicial, foram considerados como fortemente indiciados os seguintes factos, exceto no que respeita à autoria, relativamente ao que os indícios não foram considerados fortes:
1. Os arguidos AA, BB e CC combinaram que iriam entrar na habitação do ofendido DD de forma a fazer suas a quantia monetária que este tinha obtido da exploração do seu restaurante, sendo que, para o efeito, os arguidos BB e CC iriam levar duas facas para atemorizar o ofendido e a sua mulher para que estes lhes entregassem o dinheiro que tivessem na sua posse.
2. Mais combinaram que também iriam entrar no veículo automóvel pertencente ao ofendido DD, a fim de apurar se no mesmo se encontravam outros bens ou valores monetários.
3. DD é proprietário do restaurante “…”, situado no …, em …, onde a arguida AA trabalhou a servir às mesas até ao dia 10.09.2023.
4. No dia 10.09.2023, vinte minutos antes do fecho e saída dos funcionários do restaurante (pela meia noite), a arguida AA abandonou o local de trabalho, não tendo dado qualquer justificação, nem avisado previamente.
5. No mesmo dia, pelas 23H30, o arguido CC e a testemunha EE saíram do restaurante “…”, em …, onde tinham estado a festejar o aniversário de EE.
6. No trajeto para casa, em …, o arguido CC pediu à EE que o deixasse nas imediações do posto de combustível da …, em …, onde tinha combinado encontrar-se com os arguidos AA e BB, tendo chegado a esse local às 00H30 do dia 11.09.2023.
7. Os arguidos AA e BB já ali se encontravam e aguardavam no interior do veículo …, cor cinzenta, matrícula …, propriedade da AA, a qual estava sentada no banco do condutor, sendo que o arguido BB estava sentado ao lado, no lugar do passageiro.
8. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido CC saiu do veículo onde estava e entrou para o veículo atrás referido, mais concretamente para o banco de trás.
9. No trajeto daquele local para o …, em …, pelo menos o arguido CC trocou de roupa, sendo que vestia umas calças de fato de treino da “…” com três listas brancas a percorrer as pernas, que levou para o aniversário e trocou-as por umas calças de cor preta na sua totalidade, as quais vestia quando foi detido.
10. Em seguida, perto da uma da manhã, a arguida AA imobilizou o veículo automóvel junto à habitação do ofendido DD, tendo os arguidos saído do veículo para se dirigirem à habitação do ofendido, sita no …, em …, área do município de ….
11. Momentos antes da uma da manhã, DD saiu do restaurante “…” e deslocou-se para casa no veículo de marca …, matrícula …, de que é proprietário, tendo levado consigo o dinheiro proveniente da receita obtida naquele dia no restaurante, que era de 850 euros, e tendo estacionado o veículo nas traseiras da sua residência, entrando nesta.
12. Nesse momento, os arguidos CC, AA e BB dirigiram-se ao veículo do ofendido, arrombaram o vidro da frente do condutor, acederam ao interior e remexeram no porta-luvas, com o propósito de encontrarem o dinheiro que DD tinha levado consigo e que pensavam ter ficado aí guardado.
13. Como não encontraram qualquer dinheiro no local, a arguida AA voltou para o veículo e entrou no mesmo, ficando parada perto da habitação do ofendido a aguardar que os arguidos CC e BB cumprissem o acordado e de forma a vigiar se surgia alguém no local.
14. Os arguidos CC e BB aproximaram-se da habitação.
15. Depois de entrar em casa, DD dirigiu-se para o quarto onde se encontrava a sua esposa e ofendida FF, tendo começado a contar o dinheiro que levava, contabilizando a quantia de 850 euros.
16. Enquanto contavam o dinheiro, os ofendidos DD e FF ouviram barulho vindo da porta do quintal, tendo o DD pousado o dinheiro na mesinha de cabeceira e juntamente com FF deslocaram-se para o local de onde vinha o barulho.
17. Ali chegados, FF viu as mãos dos arguidos CC e BB por baixo da porta que estes tentavam insistentemente abrir, desferindo murros e pontapés.
18. Não tendo conseguido fazê-lo, os arguidos CC e BB dirigiram-se para a porta de entrada, onde, através de murros e pontapés, arrombaram-na, acedendo assim ao interior da habitação.
19. Já no interior da habitação, os arguidos CC e BB dirigiram-se a DD e de imediato começaram a desferir no corpo do mesmo diversos murros na face e pontapés noutras partes do corpo, sendo que, a determinado momento, o ofendido foi projetado para o chão pelo arguido BB, onde prostrado continuou a ser agredido da mesma forma por este arguido.
20. Ademais, o arguido BB golpeou o ofendido com uma faca que trazia consigo, provocando-lhe ferimentos em várias partes do corpo.
21. DD foi arrastado pelo arguido BB para a casa de banho e já nesse local da casa o arguido retomou as agressões, desferindo murros na face e na cabeça do ofendido DD, ao mesmo tempo que apontava a este a faca que tinha na sua posse e que exibia à frente dos olhos daquele, dizendo-lhe que se não dissesse onde estava o dinheiro que o matava.
22. Naquele momento, o arguido BB voltou a desferir um golpe com a faca que empunhava no ofendido, desta vez na cabeça e no braço esquerdo, causando-lhe escoriações.
23. Entretanto, o arguido CC, que se encontrava junto da ofendida FF, no hall de entrada, com a faca na mão, exibia à frente dos olhos da ofendida, fazendo movimentos dando a entender que a ia espetar na barriga daquela, chegando mesmo a encostar a ponta da faca à barriga daquela.
24. Enquanto fazia tal, o arguido CC ia dizendo à ofendida FF que matavam o seu marido caso não dissessem onde estava o dinheiro.
25. De igual modo, o arguido CC ainda desferiu um murro na zona da barriga da ofendida FF.
26. A determinado momento DD foi levado pelo arguidoBB para a cozinha e aí continuou a agredir o ofendido DD.
27. Nessa altura, o arguido CC viu em cima da mesinha de cabeceira os 850 euros que DD tinha ali deixado.
28. De imediato, o arguido CC agarrou naquela quantia e assim que o fez informou o arguido BB e disse-lhe que se podiam ir embora.
29. Ao ouvir a chegada dos veículos da GNR, a arguida AA abandonou o local no seu veículo automóvel.
30. Naquele momento, o arguido CC apercebeu-se da chegada das autoridades pelas luzes (pirilampos) dos veículos da GNR e saiu a correr da residência.
31. O arguido BB hesitou, esperou, permaneceu mais um minuto no interior da residência e depois saiu a correr para o lado contrário onde o arguido CC e os militares da GNR se encontravam.
32. O arguido CC foi avistado pela patrulha da GNR a cerca de cem metros da residência das vítimas, quando tentava fugir.
33. Perante tal, o militar da GNR acelerou o veículo na direção do arguido, que começou a correr, tendo os militardes logrado intercetar e deter o mesmo.
34. Nesse momento, o arguido CC tinha os 850 euros pertencentes ao ofendido DD, que lhe havia retirado.
35. O arguido BB logrou fugir, não tendo sido intercetado ou detetado o seu paradeiro.
36. Entretanto, a arguida AA esperava no cemitério por aqueles, sendo que, após largos minutos, contactou o arguido BB que a informou que o roubo tinha corrido mal, que o arguido CC tinha sido detido e que ele estava em fuga.
37. Seguidamente, o arguido BB e a arguida AA encontraram-se e abandonaram o local.
38. Devido às condutas dos arguidos, os ofendidos DD e FF sofreram dores e lesões no corpo.
39. Com efeito, o ofendido DD sofreu ainda as seguintes lesões:
a. No crânio; escoriação linear com 6 cm na região medio parietal;
b. Na face: equimose periorbitária esquerda e região malar; escoriação com 4 cm na região malar;
c. No membro superior esquerdo: escoriação linear com 7 cm no 1/3 médio do antebraço.
40. Tais lesões determinaram para o ofendido DD 12 dias de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho em geral e com 4 dias de afetação para a capacidade de trabalho profissional.
41. Ao cravar a faca de forma lenta em várias partes do corpo do ofendido DD, os arguidos visaram causar dor de forma lenta no ofendido, tudo com o propósito de o levar a dizer onde tinha todo o dinheiro.
42. Mais sabiam os arguidos que, ao exibirem as facas aos ofendidos, que estes não conseguiram fugir do local.
43. Devido às condutas referidas, os ofendidos tiveram de substituir as duas portas da habitação, pagando pela substituição da porta da sala a quantia de 850 euros e pela porta do jardim a quantia de 450 euros.
44. Os arguidos BB, CC e AA agiram em comunhão de esforços e intentos, na concretização do plano por todos gizado, com o propósito de molestar o corpo e a saúde dos ofendidos e utilizando as facas e dizendo as palavras referidas com o intuito de fazer suas as quantias monetárias que se encontrassem no interior da habitação dos ofendidos e entrando nesta, bem sabendo que o dinheiro não lhes pertencia e que agiam sem o consentimento e autorização dos ofendidos.
45. Os arguidos CC, BB e AA agiram em comunhão de esforços e intentos, com o propósito de molestar o corpo e a saúde dos ofendidos, sabendo que o facto de atuarem em conjunto e utilizarem as facas diminuíam consideravelmente a capacidade de defesa dos ofendidos.
46. Os arguidos sabiam que as palavras que diziam aos ofendidos, de que os matavam, eram suscetíveis de fazer com que estes ficassem com receio de que aqueles atentassem contra a sua vida e fizeram-no com o propósito de fazer com que os mesmos lhes dissessem onde estava o dinheiro, de forma a fazer suas as quantias que encontrassem na habitação, bem sabendo que as mesmas não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade e sem autorização dos ofendidos para entrarem na habitação destes e praticarem os factos descritos.
47. Agiram sempre os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
48. A arguida AA reside em ….
49. Tem um filho de 5 anos a seu cargo.
50. Estudou até ao 12º ano de escolaridade.
51. Trabalha como empregada doméstica em …, auferindo cerca de 1.400 euros mensalmente.
3.1. Mérito do recurso
Como indicámos atrás, a questão controversa é a de saber se a medida de coação que cabe à situação em apreço é a de prisão preventiva.
Seguindo o percurso argumentativo do despacho recorrido, verificamos que o tribunal considerou que os indícios que apontam para a participação da arguida nos roubos estão pouco sustentados – isto é, não são fortes. Em primeiro lugar, porque as testemunhas EE e GG, a quem a arguida admitiu ter praticado o crime e contou alguns dos seus pormenores, não presenciaram diretamente os factos. Em segundo lugar, porque o facto de os arguidos se conhecerem não chega para se concluir que praticaram os crimes em conjunto. Em terceiro lugar, porque o silêncio da arguida no primeiro interrogatório não pode ser valorado, nem favorável nem desfavoravelmente.
Podemos ter como dado de partida que os “fortes indícios” a que se referem os artigos 201º nº 1 e 202º nº 1 do CPP, como requisito para a aplicação de medidas de coação privativas da liberdade, existem quando, em face das provas conhecidas e transmissíveis para julgamento, a probabilidade de condenação é maior do que a de absolvição. O grau de certeza dado por essas provas há de ser próximo daquele exigido no julgamento para a decisão condenatória, ressalvado, é claro, o facto de carecerem, ainda, de exame contraditório, com imediação e oralidade.
Por outro lado, a verificação desses indícios pode resultar da análise crítica da chamada prova indireta, que não incide na demonstração direta do facto-objeto (o facto descrito no tipo legal) mas sim na demonstração dos factos-indiciantes, dos quais se pode inferir o facto-objeto. Esta prova exige uma operação intelectual de avaliação e conjugação de indícios, de verificação das relações de causalidade entre indícios e factos e de interpretação do significado desses indícios à luz das regras da experiência. Se realizada criteriosamente, com pleno respeito pelo princípio da presunção de inocência, a demonstração dos factos por prova indireta permite chegar a um juízo de plausibilidade sobre o facto equivalente àquele que pode resultar da ponderação de provas diretas.
Muito embora não se possa elencar o conjunto rígido de requisitos a que deve obedecer a demonstração dos factos por prova indireta, podemos dizer que serão relevantes para suportar uma convicção suficientemente segura sobre a veracidade do facto-objeto sujeito a julgamento os seguintes elementos:
- Deve haver uma pluralidade de factos-indiciantes. Não se pode excluir a possibilidade de a ilação resultar apenas de um indício indiscutivelmente determinante, mas a coexistência de indícios concorrentes permitirá chegar a ilações mais seguras sobre o facto-objeto.
- Os factos-indiciantes devem estar demonstrados com elevado grau de certeza e não como meras probabilidades ou hipóteses, que não permitam extrair ilações de prova.
- Os factos-indiciantes devem ser estabelecidos com base em prova direta e não, também eles, em prova indireta.
- Os factos-indiciantes devem permitir chegar a ilações convergentes sobre o facto-objeto.
- Deve haver uma relação de causalidade entre o facto-indiciante e o facto-objeto, que permita extrair uma ilação probatória suportada por um raciocínio lógico-dedutivo, baseado nas regras da experiência.
- Não devem existir contra-indícios que permitam chegar a ilações contrárias sobre o facto-objeto, que sejam plausíveis segundo as mesmas regras de avaliação.
Tendo em conta estes princípios norteadores, consideramos que o tribunal não avaliou corretamente os indícios existentes quando não os qualificou como fortes.
Em primeiro lugar, não é verdade que os depoimentos das testemunhas EE e GG, prestados em inquérito, não possam ser valorados por serem de “ouvir dizer”. Mesmo para quem entenda que não pode valorar-se o depoimento de uma testemunha que relata o que lhe foi contado pelo arguido, há uma distinção importante que é preciso fazer. Uma coisa é o relato do facto típico – no caso, os roubos, com as suas circunstâncias de modo, tempo e lugar – transmitido por quem os praticou à testemunha, do qual esta não tem conhecimento direto por não o ter percecionado com os seus sentidos. Outra coisa bem distinta é o relato que a testemunha faz sobre factos que percecionou diretamente, como o que viu o autor do crime fazer ou o estado em que o mesmo se encontrava.
A testemunha EE viu a arguida sair de carro com o coarguido CC pouco tempo antes dos roubos e mais tarde foi levada por ela ao local do crime e ainda lá se encontrava um veículo da GNR. A testemunha GG viu a arguida escondida na sua casa depois do crime com o coarguido BB, encontrando-se os dois muito nervosos. Estes depoimentos não podiam ser desvalorizados pelo tribunal com o argumento de serem indiretos. Nestas partes manifestamente não são.
Mas, para além disso, mesmo na parte respeitante ao que lhes foi dito pelos arguidos, os depoimentos daquelas testemunhas podem ser valorados para a determinação dos indícios nesta fase processual. O depoimento da testemunha sobre o que lhe foi dito pelo autor do crime, de forma espontânea, voluntária e informal, momentos antes e depois do crime, por isso antes sequer de haver processo e de ser constituído como arguido, não está sujeito a qualquer proibição de valoração. Neste sentido, por todos, se pronunciou o acórdão do TRE, de 10jan2017, no processo 241/07.0GBMMM.E1 (www.jurisprudencia.csm.org.pt)
Em segundo lugar, o argumento do despacho recorrido, de que do facto de os arguidos se conhecerem não se pode retirar que praticaram os crimes em conjunto, não é válido. Se os arguidos foram vistos juntos pelas testemunhas, antes e depois dos roubos, e se confirmaram a essas testemunhas que foram os seus autores, a demonstração da sua participação conjunta não resulta do facto de serem conhecidos, mas sim de outros meios de prova.
Em terceiro lugar, também não é correto afirmar que o silêncio da arguida em primeiro interrogatório, quando confrontada com os factos que lhe são imputados é completamente irrelevante. O princípio de que o exercício do direito ao silêncio em julgamento não pode beneficiar o arguido está consolidado na nossa jurisprudência. O arguido não pode esperar que o seu silêncio reforce a presunção de inocência, anulando o valor das outras provas demonstrativas da culpabilidade. Pode manter-se em silêncio sem que tal atitude o desfavoreça, mas não pode pretender que daí surja um agravamento do ónus da prova imposto ao Ministério Público ou um especial reforço da presunção de inocência com base no princípio in dubio pro reo.
Depois, a possibilidade de retirar ilações desfavoráveis do silêncio do arguido, mesmo em julgamento, tem vindo a ser admitida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em casos excepcionais (ver, por exemplo, as decisões dos casos John Murray v. United Kingdom, em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-57980, Beckles v. United Kingdom, em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-60672 e Telfner v. Austria, em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-59347, de onde resulta que o TEDH não considera contrária à Convenção Europeia dos Direitos Humanos a possibilidade de retirar ilações desfavoráveis do silêncio do acusado, quando tal silêncio se deva considerar fútil; isto é, quando em face das circunstâncias do caso e das regras da experiência for de esperar do acusado uma explicação (1).
Apesar de entre nós tal possibilidade não ter qualquer acolhimento para a fase do julgamento, face à proibição expressa e clara do artigo 343º nº 1 do CPP, a objeção não procede na fase do inquérito e no âmbito da avaliação de prova indiciária. A formulação do juízo sobre a existência de indícios para decidir sobre a aplicação de medidas de coação não está limitada pela proibição do referido artigo 343º nº 1. Essa conclusão resulta da inserção sistemática da norma proibitiva na regulamentação da fase do julgamento. Mas também resulta da diferente natureza e consequências entre um juízo sobre a existência de indícios do facto e um juízo sobre a prova do facto para além de uma dúvida razoável. Nada impede que para a verificação dos indícios do crime, para o efeito de decidir sobre a aplicação de medidas de coação, o tribunal retire uma ilação desfavorável ao arguido a partir do seu silêncio face a indícios tais que só ele poderia explicar.
Por isso, sendo a arguida confrontada com a imputação dos factos em primeiro interrogatório, a circunstância de se recusar a fornecer uma explicação alternativa, que a existir só ela podia conhecer, para mais havendo corroboração por outras provas que apontam no sentido de ela ser a autora do crime, não pode deixar de ser tida em conta como indício relevante.
Resolvidos estes pontos prévios, vejamos exatamente os indícios que existem sobre a autoria da arguida nos crimes, retirados das provas que o tribunal elencou.
A arguida trabalhava no restaurante das vítimas. Daqui decorre que era ela quem estava em melhores condições para saber o local onde residiam, para conhecer as suas rotinas e para identificar o dia e hora em que levariam haveria dinheiro. Se não foi ela a ter a ideia, tive de certeza um papel importante no fortalecimento do processo de decisão e na elaboração do plano criminoso. Ninguém se prepara para fazer um assalto como aquele que ocorreu, correndo um risco elevado, sem ter a certeza de que há boas probabilidades de sucesso.
Na noite do crime, a arguida saiu mais cedo do restaurante, sem avisar e sem dar qualquer explicação. Este comportamento não é normal. Ninguém sai do local de trabalho inopinadamente sem razão de peso. É evidente que a arguida atuou assim para se preparar para o crime, pois queria ir buscar os coarguidos e chegar ao local da residência do patrão, ou antes dele ou logo após a sua chegada.
Encontrou-se pouco depois com os arguidos e era ela que conduzia o veículo. Não é possível que cerca de 20 minutos antes do assalto se tivesse encontrado com os coarguidos – recorde-se que um deles foi apanhado pela polícia a 100 metros do local, logo a seguir ao crime – e que não tivesse sido ela a levá-los lá. De resto, foi isso mesmo que ela disse depois à testemunha EE, que tinha conduzido os coarguidos ao local e que tinha participado no crime.
Ninguém naquelas circunstâncias diria isso, incriminando-se, se não o tivesse feito.
Pela hora em que saiu do restaurante, pelo seu conhecimento da hora de fecho e pelo tempo que demorou a chegar ao local do crime, a arguida tinha de saber que as vítimas ainda não estariam a dormir e que necessariamente haveria confronto físico ou ao menos constrangimento com ameaça. Isso torna altamente provável que soubesse que os coarguidos levavam facas com eles. Nem é, tão pouco, normal que no caminho não tivessem falado na maneira como iriam atuar. Para além disso, a arguida, enquanto estava à espera dentro do veículo nas imediações, teve de se aperceber que havia violência. Nem uma pessoa é agredida sem gritar nem os assaltantes haviam de constranger as vítimas falando com elas em voz baixa. Repare-se que a polícia apareceu no local, chamada por terceiros, que só podem ter sido os vizinhos que ouviram o mesmo barulho que a arguida certamente ouviu.
A arguida fugiu à chegada da polícia e foi esperar pelo arguido BB junto ao cemitério, onde se encontraram pouco depois. Isso mostra que tinham combinado o local, o que corrobora a existência de um plano que envolvia a participação da arguida em todos os momentos como elemento de apoio e transporte.
Fugiu com esse coarguido para a casa da testemunha GG, onde entraram arrombando a porta e onde foram vistos momentos depois muito nervosos. É evidente que se foram esconder e que estavam com tal pressa que não esperaram pela chegada da dona da habitação e forçaram a entrada. Quando chegou a dona, contaram que tinham acabado de assaltar o proprietário do restaurante na casa dele mas que tinha corrido mal e que o coarguido CC tinha sido apanhado. Ficaram escondidos nessa casa dois dias, incomunicáveis e sem vontade de serem localizados. Tanto assim é que a mãe da arguida (a testemunha HH) tentou localizá-la através do telemóvel, o que a deixou chateada.
Nessa noite, a arguida ainda levou a testemunha EE ao local do crime, quando ainda se encontrava lá um veículo da GNR, tendo-lhe contado o que se passou com pormenores que só quem participou no crime poderia conhecer. É impossível que tivesse feito isso se não tivesse participado nos roubos.
Não voltou mais ao local de trabalho e não deu qualquer explicação. A única razão plausível é que não queria encarar o patrão depois do que fez.
Dias depois foi-se embora para … com o coarguido BB. Não se tratou de uma ida normal para trabalhar, mas sim de uma fuga, como foi percecionado pela testemunha GG, que falou com ela e viu os bilhetes.
Independentemente do apuramento mais preciso dos factos em julgamento, não há dúvida sobre a forte indiciação da participação da arguida. Participou no processo de decisão e no plano, informou os coarguidos sobre a melhor ocasião para o assalto, levou-os ao local, esperou por eles, fugiu à chegada da polícia, encontrou-se com um deles, escondeu-se uns dias e depois fugiu para …. À luz das regras da experiência, não há outra explicação possível para o que se sabe, pois todos os indícios concorrem no mesmo sentido e não são contrariados por qualquer explicação alternativa à da imputação feita pelo Ministério Público.
Pelas razões expostas, o despacho recorrido não avaliou corretamente os indícios quando os considerou insuficientes para a imposição da prisão preventiva. O que, porém, não quer dizer que seja essa a medida de coação adequada ao caso. É o que vamos analisar de seguida, à luz dos argumentos do recurso.
No despacho recorrido identificou-se a existência de perigo de fuga. Com inteira razão. A arguida foi-se embora para … dias depois do crime. E explicação que deu na resposta ao recurso, que simplesmente foi trabalhar para junto do pai em …, não é credível. Ela esteve escondida numa casa com o coarguido BB e a forma como disse à amiga que já tinha comprado os bilhetes e se ia embora criou a perceção de que estava a fugir. O facto de se ter apresentado voluntariamente em Portugal é importante mas não decisivo para afastar o perigo de fuga, na hipótese de vir a encarar como provável a condenação. Tendo família em …, já tendo aí trabalhado e podendo deslocar-se para lá sem qualquer controlo, o perigo permanece.
Já não se pode dizer, como no despacho recorrido, que há perigo de continuação da atividade criminosa, em razão da gravidade do crime e das circunstâncias em que foi praticado. É certo que a desfaçatez com que a arguida admitiu às pessoas com quem contactou que participou no assalto e com que levou uma delas a ver o local, mostra que estamos na presença de alguém com uma personalidade indiferente a valores básicos de convivência social. Porém, não tendo antecedentes criminais registados e sabendo agora que está a ser investigada e vai ser provavelmente julgada e responsabilizada, não vemos exista um risco importante de praticar novos crimes na pendência do processo.
O Ministério Público invoca ainda existir perigo de perturbação da aquisição de prova no inquérito. Não nos parece. A prova mais importante sobre a autoria da arguida são os depoimentos das testemunhas referidas. É certo que há sempre o risco de a arguida poder tentar demovê-las de dizer a verdade em julgamento. Mas o que não se pode é dizer que esse risco se vai agravar agora, quando a arguida já teve a possibilidade de o fazer. O facto de uma das facas não ter ainda sido localizada também não cria um risco de a arguida poder dissipar essa prova. Passado mais de um ano desde a prática do crime e encontrando-se a arguida em Portugal e em liberdade, não se vê, nem o recurso nos diz, que provas precisam ainda de ser produzidas no inquérito cuja aquisição a arguida possa perturbar.
O mesmo se pode dizer, também, do perigo de perturbação da ordem pública, igualmente invocado no recurso. É verdade que estamos na presença de um crime muito violento, praticado num meio pequeno, em que crimes idênticos não são raros. Porém, para que se verifique o perigo que pode servir de fundamento à aplicação de medidas de coação, é necessário que seja particularmente grave e que resulte de circunstâncias conhecidas, concretas e individualizadas do caso. Não basta um risco vago e abstrato, apenas inerente à natureza odiosa do crime.
O recurso remete-nos para as finalidades preventivas da pena, que devem estar arredadas da decisão cautelar sobre as medidas de coação. Não é lícito restringir a liberdade de um arguido em nome da perceção social que possa existir sobre certo crime, se não existir um concreto perigo que o justifique.
Dito isto, dos perigos a que se refere o artigo 204º do CPP, que podem justificar as necessidades cautelares e a aplicação de medidas de coação, apenas existe o perigo de fuga, previsto na sua alínea a).
Resta, assim, ver se há razões para agravar a medida de coação fixada para prisão preventiva ou até obrigação de permanência na habitação.
A escolha da medida de coação deve ter em atenção os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade referidos no artigo 193º do CPP. A medida deve ser adequada à proteção das exigências cautelares do caso e a compressão de direitos que dela resulta não deve ser mais do que a necessária para assegurar essa proteção.
Por outro lado, a medida deve ter em conta também as sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao crime. Se em face das circunstâncias do facto não for previsível que ao crime em investigação venha a caber uma pena privativa de liberdade em medida superior à da duração previsível da medida de coação, poderá ser desproporcionado sujeitar a pessoa investigada a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação.
Por isso, sempre que para acautelar as exigências cautelares for adequado e necessário sujeitar a pessoa investigada a uma medida de coação, a aplicação de medidas privativas da liberdade só é admissível se outras menos graves forem inadequadas ou insuficientes.
Ora, no caso existem duas ordens de razões que impedem o agravamento da medida de coação.
Por um lado, a arguida encontra-se em liberdade, sujeita à medida de apresentações periódicas, a qual, de acordo com as informações que nos são trazidas no recurso, tem sido suficiente para acautelar o identificado perigo de fuga. Passado mais de um ano sobre a prática do crime e mais de cinco meses sobre a data da imposição da medida de coação vigente, se não se assinalam razões concretas para a agravar, a imposição de prisão preventiva seria excessiva.
Por outro lado, com os dados que se conhecem nesta fase, não se afigura como altamente provável que a arguida, vindo a ser condenada, o seja em pena de prisão efetiva. Na verdade, só em audiência será possível apurar com mais rigor o grau de ilicitude da sua ação na comparticipação, designadamente saber se e em que medida poderá ser responsabilizada pela violência perpetrada nas vítimas, uma vez que não é ainda nítido que tal lhe possa ser imputado em toda a extensão. Para além disso, não tem antecedentes criminais registados e tem um modo de vida aparentemente inserido dentro dos padrões normativos socialmente aceites. Como tal, tratando-se de uma primeira condenação e com aquela questão da avaliação da ilicitude na comparticipação, uma medida de coação privativa da liberdade, com as exigências cautelares que estão em jogo, que também não são muito elevadas, seria desproporcional e não observaria a regra do artigo 193º nº 1 do CPP.
Em conclusão, está fortemente indiciada a prática dos dois crimes de roubo, existe perigo de fuga em grau moderado, mas uma medida de coação privativa da liberdade é desnecessária, visto a outra menos gravosa em vigor estar a cumprir as finalidades cautelares, e é desproporcional, tendo em conta a sanção que pode vir a ser aplicada à arguida.
Improcede, portanto, o recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso e em confirmar o despacho recorrido.
Sem custas.
Évora, 16dez2024
Manuel Soares
Artur Vargues
Maria Filomena Soares
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1 Ver com mais desenvolvimento, Manuel Soares – Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento – a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis, Revista Julgar, nº 32, Almedina, em https://julgar.pt/proibicao-de-desfavorecimento-do-arguido-em-consequencia-do-silencio-em-julgamento-a-questao-controversa-das-ilacoes-probatorias-desfavoraveis/ .