HOMICÍDIO
FUGA
CONTUMÁCIA
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
PRAZO
PROCESSO EQUITATIVO
Sumário

I. Do princípio da legalidade criminal (artigo 2.º CP e 29.º, § 1.º da Constituição), decorre o princípio da irretroatividade da lei penal, dele resultando que a lei aplicável é a vigente à data da prática do ilícito criminal, não impedindo este princípio que havendo sucessão de leis no tempo se aplique ao agente a versão que mais o favoreça (artigo 29.º, § 4.º Constituição).
II. O princípio do Estado de Direito, enquanto vinculação do Estado ao direito que cria perante os seus destinatários, impõe que se considere terem sido as normas vigentes à data da prática do ilícito criminal (ainda que posteriormente declaradas inconstitucionais) aquelas que orientaram a ação e comportamento do agente - que nas circunstâncias do presente caso se traduzem na ação de fuga do agente às suas responsabilidades jurídicas de cidadania, que levou à declaração de contumácia.
III. O princípio do processo equitativo, ínsito nos artigos 20.º, § 4.º e 32.º, § 2.º da Constituição, preconiza o respeito pelos direitos fundamentais do acusado no âmbito de um processo justo.
IV. Sendo deste mesmo princípio que, ressalvadas situações limite, que emerge verbi gratia a proibição, como regra, do julgamento dos acusados à revelia. Estabelecendo a lei, com critério e equilíbrio, os casos em que a audiência pode realizar-se na ausência do acusado, deixando ao Tribunal a valoração dos respetivos pressupostos (artigos 333.º e 334.º CPP). Proibindo-se - e bem – o julgamento do acusado que nunca foi sequer notificado da acusação - ainda que por andar fugido à justiça - justamente para tutela dos seus direitos fundamentais.
V. Não podendo a lei deixar de conferir ao Estado e à comunidade, um prazo significativamente amplo para lograr localizar, apanhar e trazer o refratário à barra do Tribunal.

Texto Integral

I – Relatório
a) No ….º Juízo (1) Civil e Criminal de … pende processo comum, da competência do tribunal coletivo, no qual AA, nascido em … de 1971, com os demais sinais dos autos, está acusado de ter praticado, no dia 13/6/1998, um crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º, § 1.º do Código Penal (CP). Apesar de ter sido acusado no dia 8/8/2003, a audiência de julgamento nunca se veio a realizar, por o acusado se ter ausentado para parte incerta, situação em que ainda se encontra, tendo sido declarado contumaz.

b) Por escrito de 11/6/2024, apresentado em Juízo através de mandatário forense, o arguido veio requerer a extinção do procedimento criminal que pende contra si, por considerar estar o mesmo prescrito.

Vindo a Mm.a Juíza titular do processo a proferir o seguinte despacho:

«Requerimento do arguido AA com a Referência Citius n.º …, de 11.06.2024:

Vem o arguido requerer que seja decretada a extinção do procedimento criminal por via da prescrição e que, em consequência, seja ordenada a consequente cessação da contumácia e de quaisquer mandados de captura, com base nos argumentos ali exarados que aqui se dão por reproduzidos.

O Digno Magistrado do Ministério Público promove que se indefira o requerido com fundamento nos três primeiros parágrafos do despacho de fls. 573 verso.

Cumpre apreciar e decidir:

Compulsados os autos, constata-se que não assiste razão ao arguido, já que na argumentação aduzida no aludido requerimento, não pondera que a contagem do prazo máximo de prescrição referido no artigo 121.º, n.º 3 do Código Penal ressalva o tempo de suspensão, o que significa dizer que, no prazo máximo da prescrição a que alude o citado artigo, além de se contabilizar o prazo normal, acrescido de metade, deverá adicionar-se depois o período de suspensão que se tenha verificado, só se verificando a prescrição do procedimento se este prazo global tiver já decorrido.

Ou seja, na operação concreta de que nos ocupamos, conta-se o prazo normal da prescrição (15 anos) + metade daquele prazo normal (7 anos e 6 meses) + o tempo da suspensão (15 anos).

E conforme se extraí do decidido no identificado despacho (constante igualmente da Referência Citius n.º …, de 11.11.2020), naturalmente correspondente ao que resulta do processado, a declaração de contumácia produziu simultaneamente efeitos suspensivo e interruptivo do curso prazo prescricional – cfr. artigos 120.º, n.º 1, alínea c) e 121.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal (e a suspensão foi eficaz, nos presentes autos, entre 11.10.2004 e 11.10.2019).

Em face do exposto, por não assistir razão ao arguido, nem terem sido atingidos, quer o prazo de prescrição normal, quer o prazo de prescrição máximo (que só releva se aquele primeiro não for atingido), indefere-se o por si solicitado.»

c) Inconformado o arguido recorre desta decisão, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«A. O ora Recorrente é visado em processo-crime com mais de um quarto de século, tendo apresentado ao Tribunal a quo requerimento a pedir que fosse declarada a extinção do procedimento criminal, por ter já decorrido o prazo da al. a), do n.º 1 do artigo 118.º, ressalvadas as interrupções previstas no artigo 121.º, todos do CP.

B. O Tribunal a quo, indeferiu o pedido, na medida em que teria que ser contabilizado o prazo de suspensão da prescrição, referente à declaração de contumácia, concluindo que o prazo máximo de prescrição é de 37,5 anos (trinta e sete anos e meio), pelo que o prazo não estaria ainda precludido. É este o despacho posto em crise pelo recorrente perante essa veneranda Relação.

C. Defende o recorrente que esta visão simplista do Tribunal a quo, é violadora da Lei, na medida em que o atual regime de contumácia, apenas vigora de forma plena desde 2013, sendo que, no novo Código Penal, constava simplesmente a regra da al. c) do n.1 do artigo 120.º, claramente violadora dos preceitos constitucionais já que permitiria uma eternização do processo, sendo, assim, absolutamente ilegal.

D. Anteriormente ao código penal de 1995, a declaração de contumácia não se repercutia no prazo prescricional e, embora em 1995 tal estatuição tivesse sido criada a verdade é que se tratava de norma ilegal, com violação constitucional grosseira, apenas “sanada” com a alteração da Lei 19/2013.

E. Aceita-se que o despacho ora posto em crise, seguiu a linha mais comum e, de alguma forma mais fácil. Contudo, a questão da suspensão do prazo prescricional no período de contumácia não tem a pacificidade que o Tribunal a quo, transmite, devendo ser estudada de forma mais complexa, nomeadamente com uma apreciação do enquadramento legal constitucional e do desenvolvimento legal do instituto.

F. A questão de uma quase eternização do processo toca, indubitavelmente, direitos, liberdades e garantias constitucionais, até porque o n.º 3 do artigo 120.º do CP, não existia aquando da criação do Código Penal de 1995 – que entrou em vigor em 1 de Outubro de 1995 - sendo uma ferida aberta a questão da suspensão em sede de contumácia, sendo este tema propulsor de variada jurisprudência relativamente ao CP de 1982.

G. Sendo que o diploma preambular do atual código, contém apenas 11 artigo, dedica dois deles às questões das prescrições, demonstrando quão relevante é o tema e como deve ser tratado com enorme cuidado.

H. Compulsados os autos, percebe-se que, no entendimento do Tribunal a quo, o procedimento criminal só se extinguiria ao fim de 37 anos e meio, sendo que tal leitura, só por si, para qualquer pessoa, causa estranheza, sendo que um jurista, não sendo o Homem Médio, não pode ficar indiferente a uma extensão tão lata de um prazo prescricional.

I. Confrontar estes 37 anos e meio anos com os n.ºs 4 e 5 do artigo 20.º da Constituição, revela-se um quebra-cabeças extraordinário, até porque, não é só o visado que está em causa, são os demais intervenientes, são os meios de prova – em especial a testemunhal – são as evoluções sociais, tudo se revela desadequado perante um prazo de quase 40 anos.

J. A Justiça Penal não tem um fim meramente punitivo, mas igualmente de ressocialização, sendo que um jovem de 25 anos (idade que o Recorrente teria na data dos factos), não é a mesma pessoa que tem 63 anos. E aqui nem releva o facto de não ter cometido o crime que lhe imputam, releva o facto de se manifestar laivos de profunda injustiça, julgar um homem de 63 anos, por factos ocorridos quando o mesmo tinha 25.

K. Há, claramente uma desconformidade entre a norma processual penal e as referidas normas constitucionais, sendo que o legislador de 1995, não percebeu a gravidade, criando a regra da al. c) do n.º 1 do artigo 120.º do CP, como, no fundo, uma regra de inexistência de prescrição do procedimento criminal o que, de si, era gritantemente inconstitucional.

L. Tanto assim foi que, apenas em 24 de Março de 2013, com s Lei 19/2013, de 21 de Fevereiro, que foi introduzido o n.º 3 do artigo 120.º e, assim, a regra da al. c) do artigo 120.º do CP, só ficou de alguma forma completa com a legislação de 2013 pois que, até ali, a norma era manifestamente inconstitucional, já que perpetuava o procedimento criminal ao não criar um travão ao mesmo.

M. O legislador constatou tal inconstitucionalidade e criou, em 2013, a referida al. c), que não é mais do que uma norma travão que, ainda assim, a nosso ver, permitindo um prazo máximo de 37 anos e meio, continua a ter, pelo menos, constitucionalidade duvidosa.

N. O atual regime que consagra as regras da prescrição, no que concerne à contumácia, só se encontrou plenamente completo (ainda que com laivos de inconstitucionalidade), em 2013 e é só a partir dessa data que deve ser entendido como um regime eficazmente legal, com a ressalva que já anteriormente se fizera.

O. De alguma forma, até 2013, sendo a regra de 1995 de perpetuação do procedimento criminal manifestamente contra legis, não era mais do que inexistente, tendo que se aplicar as regras prescricionais do anterior código penal de 82.

P. De acordo com tais regras, a declaração de contumácia não tinha efeitos sobre a prescrição do procedimento criminal, sendo que o mesmo corria ininterruptamente e sem suspensão, desde a prática do facto.

Q. Tendo em conta que os factos datam de Agosto de 1998, pelas razões acima aduzidas, as regras aplicáveis (dada a ilegalidade da al. c) do n.º 1 do artigo 120.º até 2013) seriam as do código de 1982.

R. Na verdade, entende-se que a norma da al. c) do n.º 1, conjugada com o n.º 3 do artigo 120.º, quando aplicada aos crimes previstos na alínea a), do n.º 1, do artigo 118.º do CP está ferida de constitucionalidade por ofender o n.º 4 do artigo 20.º da CRP, dado permitir a perpetuação do procedimento criminal por um máximo de 37 anos e meio.

S. A Jurisprudência tem-se debruçado, por diversos ângulos sobre o problema, demonstrando que a questão está longe de ter a simplicidade que o Tribunal a quo, lhe pretendeu dar mas sim de uma delicada engenharia jurídica, nas palavras do Conselheiro Santos Cabral, num acórdão do STJ de 2008 sobre o tema, cujo sumário supra se transcreveu.

T. Mais importante ainda, o Ac. 5/2008, para Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em que aquele Colendo Tribunal, ataca até (de forma particularmente severa, diríamos), o Assento nº 10/2000, lembrando que o instituto da contumácia foi apenas criado em 1987 com a sua introdução no CPP, sendo por isso, um Instituto jovem no direito português, cujos efeitos estão longe de estar assentes e fixados e que tinha apenas 9 anos aquando da prática dos factos dos presentes autos.

U. As Relações também se têm vindo a pronunciar profusamente sobre o tema da eficácia da contumácia na suspensão do procedimento criminal, da sua aplicação no tempo e da concretização em pleno do instituto apenas em 2013;

V. Temos assim um tema com uma arquitetura jurídica burilada e, por vezes, com incompatibilidade flagrante com os princípios constitucionais, sendo que, a nosso entender, com a atual configuração - com uma possibilidade de extensão do prazo prescricional até aos 37 anos e meio, continua a conflituar com o n.º 4 do artigo 20.º da CRP.

W. Independentemente da inconstitucionalidade da referida norma, certo é que o regime da suspensão do procedimento criminal por via da declaração de contumácia, só ficou completo em 2013, sendo que, até aí, sem qualquer limitação, nomeadamente a do n.º 3 do artigo 120.º, manifestamente estávamos perante um regime ilegal por permitir a manutenção do procedimento criminal ad aeternum e, assim, sendo, seria uma norma flagrantemente inconstitucional, pelo que sendo os factos dos presentes autos anteriores, terá que ser entendido que não e aplica o regime da suspensão da contumácia ao prazo constitucional, por via do n.º 4 do artigo 29.º da CRP.

X. Finalmente pugna-se ainda, pela declaração de inconstitucionalidade da al. c) e do n.º 3, quando aplicável aos casos previstos na alínea a) do n.º 1, todos do CP, pois implica precisamente uma extensão irrazoável do procedimento criminal, podendo ir até aos 37 anos e meio, em violação do disposto no n.º 4 e 5 do artigo 20.º e 2 do artigo 32.º da CRP.

Das normas jurídicas violadas (art.º 412.º, n.º 2, al. a)

Violou o Tribunal a quoo n.º 4 do artigo 29.º da CRP, ao não determinar que, ao caso em concreto, a suspensão da prescrição do procedimento criminal era inaplicável, dado aplicar-se, in caso, as regras do código penal de 1982, dado apenas em 2013, ter sido aprovado um regime legal válido com a Lei 19/2013, de 21.02.

Violou o Princípio da Legalidade n.º 4 e 5 do artigo 20.º, 29.º, n.º 1 e 4, e n.º 2 do artigo 32.º da CRP, dado, neste quadro de entendimento, o prazo máximo de prescrição poder situar-se nos 37 anos e meio, prazo claramente contrário aos princípios estabelecidos no referido artigo 20.º.

Termos em que, sempre sem prescindir do Douto suprimento de V.Exas., deve o presente recurso obter acolhimento, substituindo o despacho ora recorrido, por outro que declare prescrito o procedimento criminal, sendo, igualmente, nessa senda, ser considerada inconstitucional a al. c) e do n.º 3, quando aplicável aos casos previstos na alínea a) do n.º 1, todos do CP, pois implica precisamente uma extensão irrazoável do procedimento criminal, podendo ir até aos 37 anos e meio, em violação do disposto no n.º 4 e 5 do artigo 20.º e 2 do artigo 32.º da CRP.»

d) Admitido o recurso o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência e concluindo do seguinte modo:

«1.ª Aplica-se ao instituto da prescrição o princípio da legalidade criminal, designadamente quanto à aplicação retroativa da lei penal mais favorável;

2.ª É mais favorável ao arguido que praticou factos em 1998 e que, desde 2004, se encontra contumaz, o regime da prescrição atualmente em vigor por este último estabelecer um limite temporal à duração do período da suspensão da contagem do prazo de suspensão;

3.ª Imputando-se ao arguido a prática de factos em 1998 e tendo o mesmo sido declarado contumaz em 2004, à data de hoje, 2024, o procedimento criminal ainda não prescreveu;

4.ª O não estabelecimento de limites temporais ao prazo da suspensão da contagem do prazo de prescrição mostra-se conforme à Constituição da República Portuguesa;

Termos em que, negando provimento ao recurso, mantendo in totum a decisão recorrida, farão V. Exas. a esperada JUSTIÇA.»

e) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância sustentou entendimento no sentido da improcedência do recurso.

f) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi exercido o direito de resposta.

g) Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação A. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (2). Suscitando-se as seguintes questões: i) Da contagem do prazo de prescrição; ii) Da inconstitucionalidade do artigo 120.º, § 1.º, al. c) e § 3.º CP, quando reportada aos crimes previstos na al. a) do § 1.º do artigo 118.º CP.

B. Apreciando B.1 Da contagem do prazo de prescrição

Sustenta o recorrente, em síntese, que lhe não é aplicável o regime de suspensão do prazo prescricional emergente da declaração de contumácia, previsto na al. c) do § 1.º do artigo 120.º CP, na medida em que essa norma não existia quando o facto ilícito de que se encontra acusado foi praticado (13/6/1998), nem na data em que foi declarado contumaz (11/10/2003), tendo-se fixado esse regime, como ora vigora, apenas em 2013. E, como assim, contando-se o prazo prescricional previsto na lei, desde a data da prática do facto ilícito e ressalvadas as interrupções previstas na lei, o procedimento criminal instaurado contra si mostra-se prescrito.

O Ministério Público entende, em contrário, que se aplica ao instituto da prescrição o princípio da legalidade criminal, designadamente quanto à aplicação retroativa da lei penal mais favorável; sendo-lhe concretamente mais favorável o regime da prescrição atualmente em vigor, no qual se estabelece um limite temporal à duração do período da suspensão da contagem do prazo de suspensão (o que não sucedia na data da prática do ilícito criminal nem na data em que foi declarado contumaz, e nesse cômputo o procedimento criminal ainda não prescreveu. Atentemos, pois.

Precisemos logo de introito que o recorrente tinha 27 anos de idade à data da prática dos factos ilícitos imputados; e tem agora 53 anos de idade (e não 25 e 63, respetivamente, conforme por lapso se refere no recurso). O recorrente reedita no recurso, como fundamento deste, uma velha questão, muito debatida na doutrina e na jurisprudência in illo tempore (3). A tese sustenta-se na redação inicial do artigo 336.º do CPP (sobre a contumácia), onde se incluía no seu § 1.º um segmento dispondo que «a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido»; e o facto de o Código Penal não prever (até 2013) o limite máximo de duração da declaração de contumácia enquanto causa de suspensão da prescrição (atualmente constante do § 3.º do artigo 120.º CP). Sucede que para aferir a suscitada prescrição do procedimento criminal, a decisão recorrida limitou-se – e muito bem – a mobilizar as normas do Código Penal com a redação atual, por ser o aplicável – como se verá. É certo que na vigência das anteriores redações dos artigos 336.º CPP e 120.º CP, na medida em que delas resultava a imprescritibilidade do procedimento criminal por via da declaração de contumácia, se colocavam problemas de constitucionalidade, tanto que o próprio Tribunal Constitucional lhes pôs cobro com o acórdão 183/2008 (4) a que se lhe seguiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que fixou como jurisprudência obrigatória que: «no domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, nas suas versões originárias, a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.»)

Pois bem. Do princípio da legalidade criminal (artigo 2.º CP e 29.º, § 1.º da Constituição), decorre o princípio da irretroatividade da lei penal, dele resultando que a lei aplicável é a vigente à data da prática do ilícito criminal (artigo 2.º, § 1.º CP), não impedindo este princípio que havendo sucessão de leis no tempo se aplique ao agente a versão que mais o favoreça (artigo 29.º, § 4.º Constituição). Conforme muito bem refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso, este princípio da legalidade criminal estende-se às denominadas normas processuais materiais, como sucede com as atinentes à prescrição do procedimento criminal.(5)

O que esse princípio não suporta é que perante a questão da sucessão de leis penais no tempo, se possam escolher (a la carte) os aspetos que melhor convêm, construindo-se uma tese que leve ao objetivo do recorrente: a prescrição do procedimento criminal. Esta tese, porém, mostra-se arredia dos referidos princípios, pois o recorrente pretende fundar a prescrição na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da lei ordinária pretérita (antigas redações dos artigos 336.º CPP e 120.º, § 3.º CP), de molde a - com esse fundamento – lograr um chocante (social e juridicamente) benefício ao infrator (ao foragido), arredando o prazo certo que a lei vigente prevê. A ideia resume-se ao seguinte: a lei antiga é-lhe aplicável porque era a vigente à data da prática do ilícito, mas como foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral, a prescrição já ocorreu! A prescrição já ocorreu? Parece que não. A conclusão do recorrente constitui uma espécie de salto para o escuro, na medida em que não logra encontrar escora normativa em nenhuma regra ou princípio vigentes no nosso ordenamento jurídico.

O critério é todo outro.

É certo, como dispõe o artigo 282.º da Constituição:

«1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.»

Mas, conforme refere Maria Fernanda Palma (6), na base do pensamento de Jorge Miranda (7), «não se poderá interpretar rigidamente o artigo 282.º [da Constituição] em conjugação com outros critérios constitucionais como o do artigo 29.º, § 4.º, ou do princípio do Estado de Direito assente na confiança.» Referindo Jorge Miranda (8) que uma norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral nunca é aplicada qua tale, ela só é tida em conta negativamente. Vistas as coisas desta forma, como é bom de ver, o que se mostra por diante é inteiramente o contrário da tese que sustenta o recorrente.

Desde logo porque o princípio do Estado de Direito, enquanto vinculação do Estado ao direito que cria perante os seus destinatários, impõe que se considere terem sido as normas então vigentes (ainda que posteriormente declaradas inconstitucionais) aquelas que orientaram a ação e comportamento do agente, e que nas circunstâncias do presente caso se traduzem na ação de fuga do agente às suas responsabilidades jurídicas de cidadania, que levou à declaração de contumácia. «O fundamento para esta solução é, por um lado, uma prevalência do princípio da igualdade subjacente ao artigo 29.º, § 4.º [da Constituição]» (9) e uma interpretação congruente do artigo 282.º, § 1.º da Constituição com tal princípio.

Feitas estas considerações, essenciais por nelas assentar a solução do caso, na equação para apurar qual o «regime que concreta e globalmente se mostra mais favorável» (10), justamente em afirmação dos princípios da legalidade e da irretroatividade da lei penal, cabe agora aferir os dois regimes normativos ordinários que se sucederam no tempo: de um lado as normas vigentes ao tempo em que o acusado optou pela fuga e não participar no processo, as quais orientaram essa sua decisão; e o complexo normativo posteriormente criado (a lei atualmente vigente). No primeiro (lei vigente à data da prática dos factos), a declaração de contumácia encontrava-se legalmente prevista como causa de suspensão da prescrição, porém, não previa o prazo máximo de vigência desta causa de suspensão, o que possibilitava a eternização do procedimento, por via da ausência de limite à suspensão do prazo de prescrição; (11) E no segundo, o regime atualmente vigente, mediante o qual a declaração de contumácia, constituindo causa de suspensão do procedimento criminal, inclui norma determinativa de tal suspensão não pode ultrapassar o prazo normal da prescrição previsto no artigo 118.º CP. Desse modo tornando possível conhecer o limite temporal da duração máxima do procedimento, que assim surge claramente estabelecido na lei (artigos 118.º, § 1.º, al. a) – i) e 120.º, § 3.º e 121.º, § 3.º, todos do CP). Do qual resulta, no presente caso, em que o recorrido está acusado da prática do crime de homicídio qualificado, o limite temporal máximo do procedimento criminal é de 37 anos e 6 meses (conforme muito bem refere a decisão recorrida): o prazo normal da prescrição (15 anos) + metade daquele prazo normal (7 anos e 6 meses) + o tempo da suspensão (15 anos).

O que efetivamente releva é que no regime vigente à data da declaração de contumácia, que foi aquele que o recorrente teve em vista quando decidiu fugir ao processo, o procedimento criminal só se extinguiria com a sua apresentação ou captura, ou com a sua morte (artigos 336.º, 4 1.º CPP e 127.º CP); e que no novo regime normativo (que entrou em vigor já com os efeitos da contumácia em curso), por força da nova redação do artigo 120.º, § 3.º CP, o procedimento criminal passou a ter um limite temporal máximo (que nas particulares circunstâncias do caso é de 37 anos e 6 meses). E, por assim ser, este último regime, em comparação com aqueloutro (no qual o processo não prescreveria enquanto vigorasse a declaração de contumácia, até que o acusado se entregasse, fosse capturado ou morresse), é aquele que – indubitavelmente - se mostra concretamente mais favorável ao acusado, sendo por isso o aplicável, de acordo com as regras e princípios em referência, emergentes dos artigos 2.º CP e 29.º, § 1.º, 2.º e 4.º da Constituição.

Façamos agora, mais detidamente, o percurso enunciativo das componentes da aritmética com resultado já adiantado:

- tendo o facto ilícito de que o recorrente se encontra acusado, sido praticado no dia 13/6/1998, de acordo com os citados princípios e regras, a prescrição do procedimento, caso se não verificasse qualquer das causas de interrupção e/ou de suspensão daquela, ocorreria a 13/6/2013; - mas como visto, a declaração de contumácia (feita a 11/10/2004) foi simultaneamente causa de suspensão e causa de interrupção do prazo prescricional (artigo 120.º, § 1.º, al. c) e 121.º, § 1.º, al. c) CP);

- tal significando que o prazo de prescrição, que esteve suspenso desde 11/10/2004 até 11/10/2019 (durante 15 anos); reiniciou o seu curso, por via da interrupção também ocorrida. Tudo sem prejuízo da regra constante do § 3.º do artigo 121.º CP, onde se fixa o prazo máximo com interrupções e suspensão); - constituindo esta regra (do artigo 121.º, § 3.º) a pedra de toque que permite aferir o prazo máximo de duração de um procedimento criminal por referência à pena máxima correspondente ao ilícito praticado, nos termos indicados. Daí que na data da apresentação do requerimento no Juízo de 1.ª instância, a reclamada prescrição do procedimento criminal ainda não tivesse ocorrido, pois dado o limite traçado na lei (nos termos enunciados) isso ocorrerá somente a 13/12/2035. Em suma: tendo em consideração a data da prática dos factos imputados ao acusado/recorrente a prescrição do procedimento ainda não ocorreu. Pelo que este fundamento do recurso não se mostra merecedor de provimento.

B.2 Da inconstitucionalidade do artigo 120.º, § 1.º, al. c) e § 3.º CP

Considera o recorrente que o artigo 120.º, § 1.º, al. c) e § 3.º CP, quando reportada aos crimes previstos na al. a) do § 1.º do artigo 118.º CP, é inconstitucional, por violar o disposto no § 4.º do artigo 20.º da Constituição, por «permitir a perpetuação do procedimento criminal por um máximo de 37 anos e meio!» Vejamos a norma do Código Penal posta em crise: «1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: (…)

c) Vigorar a declaração de contumácia;

(…) 3 - No caso previsto na alínea c) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.»

Dispondo por seu turno o § 4.º do artigo 20.º da Constituição, que: «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.»

Importará começar por referir que a norma em referência, cuja inconstitucionalidade se suscita, é justamente aquela que faltava ao ordenamento jurídico ordinário para o ajustar aos valores constitucionais, nos termos sobreditos. Essa norma conexiona-se com o artigo 118.º (onde se estabelece o prazo de prescrição com referência ao ilícito cometido); com o artigo 119.º, que estabelece o início do prazo de prescrição de acordo com a natureza do ilícito em referência; e com a prevista no § 3.º do artigo 121.º CP, que estabiliza e torna certo o prazo de duração máxima do prazo prescricional.

O princípio do processo equitativo, ínsito nos artigos 20.º, § 4.º e 32.º, § 2.º da Constituição (mas também do 6.º da CEDH; do 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia; e 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, todos inspirados no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem), preconiza o respeito pelos direitos fundamentais do acusado no âmbito de um processo justo. Sendo desse mesmo princípio que, ressalvadas situações limite, que emerge verbi gratia a proibição, como regra, do julgamento dos acusados à revelia. Estabelecendo a lei, com critério e equilíbrio, os casos em que a audiência pode realizar-se na ausência do acusado, deixando ao Tribunal a valoração dos respetivos pressupostos (artigos 333.º e 334.º CPP). (12) Proibindo-se - e bem – o julgamento do acusado que nunca foi sequer notificado da acusação, ainda que por andar fugido à justiça, justamente para tutela dos seus direitos fundamentais. Mas a lei não pode deixar de conferir ao Estado e à comunidade, um prazo significativamente amplo para lograr localizar, apanhar e levar o acusado refratário à barra do Tribunal. Exige-o, desde logo, o princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição), do qual emergem os direitos fundamentais dos arguidos, mas também o direito do Estado (da comunidade dos cidadãos) julgar todos os acusados pela prática de crimes; naturalmente num prazo razoável e suficiente amplo relativamente aos rebeldes, fugitivos das suas responsabilidades perante a comunidade, sobretudo se acusados do ilícito mais grave do nosso ordenamento jurídico (como sucede no presente caso). Daí que, no equilíbrio que as coisas sempre têm de ter, os 37 anos e seis meses que a norma posta em crise permite, no seu limite máximo (e que o recorrente considera excessivos), se vistos numa perspetiva integrada, de compromisso entre os direitos fundamentais do acusado e as expectativas (e exigências) comunitária, não se afiguram excessivos. Afigurando-se indiscutível ter o Estado o dever e a comunidade dos cidadãos o direito de, em prazo razoável e compatível com a esperança média de vida, perseguir e responsabilizar aqueles que se mostram acusados de terem violado o bem mais valioso do ordenamento jurídico.

O Tribunal Constitucional vem entendendo, no âmbito do princípio da legalidade da perseguição criminal, ser exigível «que o Estado proceda à regulamentação da prescrição - incluindo o regime de interrupção e suspensão dos prazos prescricionais - de uma forma precisa e concreta, obviando a situações em que se opere, na prática, a ineficácia do instituto da prescrição» (13) - estando isso hoje claro na lei, nos termos sobreditos. Sendo, pois, patente, a falta de razão do recorrente. Não se deixará de anotar a ironia que ressalta da situação de ser o próprio contumaz, relapso e rebelde à justiça há 36 anos, acusado do crime mais grave contra o seu semelhante, vir invocar em seu benefício, o direito a um processo equitativo! Tanto porquanto a única razão pela qual o processo pende e ele ainda não foi julgado lhe cabe exclusivamente! Consideramos que a norma impugnada contém uma previsão de prazo máximo que é razoável, compatível com os princípios e regras constitucionais, no âmbito de um compromisso que balanceia os direitos fundamentais do acusado, incluindo naturalmente o direito a um processo equitativo, por um lado; e o valor comunitário (de cidadania) da responsabilização penal daqueles que são acusados da prática do ilícito vulnerador do bem jurídico mais precioso da ordem jurídica, por outro. Neste exato contexto, consideramos que o prazo legalmente previsto não é, de modo nenhum, constitucionalmente insuportável, não sendo designadamente vulnerador do princípio do processo equitativo.

Termos em que, concluindo: o recurso não é merecedor de provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente o decidido no despacho recorrido.

b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.

Évora, 16 de dezembro de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Anabela Simões Cardoso

Edgar Valente

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

3 Cf. por todos acórdão 110/2007 do Tribunal Constitucional, da pena do Conselheiro Paulo da Mota Pinto.

4 Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008, de 13/3/2008, relatora Maria Lúcia Amaral. Já anteriormente do mesmo Tribunal e nesse sentido acórdão 110/2007, relator Paulo Mota Pinto.

5 Cf. neste sentido Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 2.ª ed., 1997, Coimbra Editora, p. 261; tb. Germano Marques da silva, Direito Penal Português, III, 1999, p. 225.

6 Maria Fernanda Palma, Direito Penal, 4.ª ed., 2019, AAFDL Editora, p. 182/184.

7 Jorge Miranda, Os princípios constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal, O Direito, 1989, IV, p. 699 ss.

8 Jorge Miranda, Os princípios constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal, O Direito, 1989, IV, p. 699 ss.

9 Maria Fernanda Palma, Direito Penal, 4.ª ed., 2019, AAFDL Editora, p. 184.

10 Neste sentido se pronunciando Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3.º ed., 2019, p. 239/240; e quanto ao efeito da inconstitucionalidade cf. Jorge Miranda, Os princípios constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal, O Direito, 1989, IV, pp. 699 ss.

11 Sendo isso insuportável à luz do princípio da legalidade criminal, «enquanto princípio-garantia direta e imediatamente aplicável aos cidadãos», previsto no artigo 29.º, § 1.º e 3.º da Constituição da República Portuguesa - cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/2008, de 13/3/2008, relatora Maria Lúcia Amaral.

12 Neste sentido cf. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, 2022, Almedina, p. 339; e a jurisprudência ali citada, designadamente do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Justiça da União Europeia. Tb. O recente acórdão deste TRÉvora, de 5dez2023, proc. 16/19.3EASTR.E1, relator Fernando Pina.

13 Neste sentido cf. acórdão n.º 492/21, de 8jul2021, relatora Maria de Fátima Mata-Mouros; e 126/2009, de 12mar2009, relator Carlos Fernandes Cadilha, no seguimento de outros: como os acórdãos n.ºs 483/2002 e 629/2005. Nesta linha vd. Faria e Costa, Linhas de Direito Penal e de Filosofia: alguns cruzamentos reflexivos, Coimbra, 2005, pp. 179 e 187.