A nomeação de intérprete carece da revelação pelo interveniente das dificuldades quanto à compreensão da língua portuguesa, ou da perceção oficiosa disso mesmo pela entidade competente.
Não estando comprovado nos autos que o recorrente não conhecia ou não dominava a língua portuguesa, nenhuma imposição legal existia de nomeação de intérprete idóneo, não se vislumbrando qualquer violação do disposto no art.º 92.º. n.º 2, estando, assim, afastadas quaisquer consequências legais que seriam decorrência da mesma.
No Juízo de Instrução Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de …, foi proferido pelo Mm.º JIC no processo de inquérito (atos jurisdicionais) n.º 69/23.0TELSB, o seguinte despacho:
“Da arguida nulidade por violação do disposto no artigo 92.º, 1 do CPP
Veio o requerente AA, inquirido nos presentes autos na qualidade de testemunha, arguir a nulidade da sua inquirição por a mesma ter decorrido sem tradutor. Mais alega que não domina plenamente a língua portuguesa, a inquirição decorreu na língua inglesa, mas a documentação entregue ao mesmo foi apresentada na língua portuguesa, sem a presença de um tradutor.
Mais alega que não prestou consentimento para a dispensa de sigilo nas telecomunicações por não compreender o conteúdo e não o ter prestado de forma livre e esclarecida, tendo sido, ao invés, constrangido a assinar.
Conclui pugnando pela proibição de prova da consulta ao conteúdo do telemóvel do requerente.
O MP promoveu o indeferimento da invocada nulidade, sustentada na circunstância de o requerente não ter, durante a inquirição, revelado desconhecer a língua portuguesa e não ser suspeito nos autos, razão pela qual não foi constituído arguido.
Apreciando.
Observado o artigo 92.º n.º 1 e 2 do CPP, resulta inequívoco que nos atos processuais, escritos ou orais, sejam neles intervenientes sujeitos processuais ou outra pessoa, nomeadamente, testemunhas, é utilizada, obrigatoriamente, a língua portuguesa.
A nomeação de intérprete carece da revelação pelo interveniente das dificuldades quanto à compreensão da língua portuguesa, ou da perceção oficiosa disso mesmo pela entidade competente.
No caso dos autos, não resulta dos mesmos que o requerente tivesse anunciado tal limitação ou que tal tivesse sido percecionado pelos agentes responsáveis pela direção da inquirição realizada nos autos a fls. 501-502, a qual resulta assinada pelo próprio. Mais, no requerimento de fls. 538, no qual é solicitada cópia do auto de apreensão de 04-07-2024, nada é alegado pelo requerente relativamente a este respeito, continuando a comunicação a ser estabelecida na língua portuguesa sem constrangimentos anunciados.
A nacionalidade do requerente não permite inferir, por si só, a falta de domínio da língua portuguesa, país onde se encontra a residir, não sendo mero turista.
Nestes termos, em face do estado dos autos, não é possível concluir pela necessidade e consequente omissão da nomeação e presença de intérprete durante a inquirição do requerente, razão pela qual julgo não verificada a nulidade invocada nesta sede.
Notifique.”
Inconformado com o assim decidido, AA interpôs recurso de tal despacho, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
“1.ª Vem o recorrente, interveniente acidental nos presentes autos, interpor recurso do Despacho proferido pelo Tribunal de Instrução Criminal de …, com referência n.º …, com o qual julgaram-se não procedentes as invalidades processuais invocadas, nomeadamente a nulidade do interrogatório realizado ao recorrente. por violação do disposto no artigo 92º, nº 2 do Código de Processo Penal, a nulidade do consentimento de dispensa de sigilo das telecomunicação e por sua vez, a analise realizada ao seu telemóvel, porquanto a sua condição de validade assenta em prova proibida nos termos do artigo 126°, nº 2, al. a) in fine do Código de Processo Penal.
2.ª Antes de mais. cumpre salientar a legitimidade e interesse em agir do recorrente. nos termos da al. d) do nº 1 e n.º 2, do art. 401.º do Código de Processo Penal, porquanto a sua inquirição assentou em autênticas violações dos seus direitos processuais e constitucionais, e ditou, afinal e sem qualquer justificação válida, a apreensão dos seus bens, ficando, até ao momento, o mesmo privado do seu uso, ferindo o seu direito à propriedade privada, disposto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa.
3.ª Assim, parece-nos, ressalvado o douto suprimento de Vossas Excelências, que o recorrente mantém um direito afectado - digam-se vários, até - pela decisão da qual recorre, detendo legitimidade e interesse em agir em impugná-la nos termos da al. d) do nº 1 e nº 2, do art. 401.º do Código de Processo Penal.
4.ª Depois, no que à violação do disposto no artigo 92.º n.º 2 do Código de Processo Penal, concerne, a fundamentação do Tribunal recorrido, com todo respeito, parece-nos debater-se de frente com uma exigência probatória imponderada, porque impossível, e consequentemente, desvirtua a aplicabilidade do determinado no artigo 92º do Código de Processo Penal.
5.ª Desde logo, nos termos e em cumprimento do disposto no artigo 92º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e contrariamente àquilo que nos parece entender o Tribunal recorrido, temos para nós que impenderá sobre o defensor/mandatário constituído, independentemente do domínio ou não, da língua portuguesa, pelo seu constituinte interveniente ou sujeito processual, estabelecer o contacto com o Tribunal na língua portuguesa, redigindo e remetendo as suas peças nessa mesma língua, tal e qual assim sucedeu.
6.ª Pelo que, não alcançamos de que forma o facto do primeiro requerimento dirigido pelo recorrente, por intermédio do advogado subscritor, ter sido redigido e remetido na língua portuguesa - em cumprimento do estipulado no artigo 92º, nº 1 do Código de Processo Penal - sustenta a decisão do Tribunal recorrido, nomeadamente a inexistência de violação do disposto no artigo 92º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal, por ausência de nomeação de interprete ao recorrente aquando da sua inquirição.
7.ª Para além disso, novamente em esclarecimento do que fora pelo Tribunal recorrido invocado, cumpre não olvidar que, no requerimento inicial dirigido aos presente autos, nada fora invocado, no que a invalidades processuais concerne, porquanto apenas posteriormente com o Despacho proferido pelo Ministério Publico, com referência n.º …, se teve conhecimento que o recorrente havia assinado documentação que o mesmo desconhecia - declaração de dispensa de sigilo nas telecomunicações - crendo, até àquele mesmo momento, que assinara, somente, documentação de mero expediente (tal e qual lhe fora indicado), o que, a priori, não acarretaria sérias e graves violações dos seus direitos e garantias, tal e qual agora se verificam.
8.ª A par de que. o recorrente tem nacionalidade … e expressa-se integralmente na língua inglesa, tal como foi já por si invocado, não dominado, apesar da sua residência em território nacional, a língua portuguesa, sendo isso imediatamente percetível ao homem médio.
9.ª Contudo. parece-nos que o Tribunal recorrido impende sobre o recorrente a prova da sua incapacidade de domínio da língua portuguesa, esquecendo-se, com todo o devido respeito, que não existe um certificado negativo de línguas faladas e percebidas, sendo apenas possível comprovar-se quais as línguas, para além da língua materna, se domina.
10.ª Pelo que, parece-nos que a fundamentação que o Tribunal aduz para concluir pela inviolabilidade do disposto no artigo 92º, n.º 2 do Código de Processo Penal, é, francamente, irrealista, probatoriamente impossível e enviesa totalmente o disposto legalmente, impondo sobre o recorrente a chamada prova diabólica, exigindo que o recorrente demonstre para além daquilo que lhe é possível fazer - mera invocação da ausência de domínio da língua portuguesa.
11.ª Assim, uma vez que o recorrente não domina a língua portuguesa, sendo isso imediatamente alcançável através do contacto direito, aquando do seu interrogatório, tinha o concreto direito de ter sido acompanhado, para que o intérprete lhe tivesse assegurado o direito que lhe é conferido pelo artigo 92º n.º 2 do Código de Processo Penal, o que, como vimos, assim não sucedeu. Portanto. estamos perante uma nulidade.
12.ª Essa ausência de nomeação de interprete, inquina de nulidade todos os atos ali praticados, com especial enfoque, a analise ao conteúdo do telemóvel do recorrente, pois não é possível ora assegurar que a documentação preenchida de dispensa de sigilo de telecomunicações tenha sido assinada de forma livre e esclarecida, com a compreensão efetiva do seu alcance, conforme o disposto no artigo 15° da Lei do Cibercrime.
13.ª Pelo que. não havendo quaisquer garantias de ter sido prestado um consentimento claro, livre e esclarecido, porquanto não lhe fora assegurada a nomeação de um interprete para o efeito, só podemos concluir que o acesso e analise ao conteúdo do seu telemóvel, ocorreu à margem do disposto no artigo 92º, n.º 2 do Código de Processo Penal e artigo 15º da Lei do Cibercrime, sem o consentimento do visado, chocando, ainda, diretamente com a proibição de obrigação da auto-incriminação.
14.ª Veja-se que, o cumprimento formal da lei não garante, por si só, que este tenha sido materialmente observado, isto é, não é por constar dos presentes autos uma declaração de dispensa de sigilo assinada pelo recorrente que, efetivamente, no exato momento da sua assinatura o mesmo encontrava-se claramente esclarecido sobre o seu teor e autorizou de forma livre. E facto é que assim não se verifica.
15.ª Com efeito. a violação do disposto no artigo 92, n.º 2 do Código de Processo Penal, fere toda a diligencia de inquirição a que o recorrente foi sujeito no dia 04 de julho de 2024, de nulidade, por força do disposto no artigo 120°, n.º 2, al. c) daquele mesmo diploma legal, devendo, igualmente, serem considerados nulos todos os atos ali praticados, nos termos do disposto no artigo 122º, o que expressamente se invoca.
16.ª Para além de tudo isto, do recorrente não ter sido auxiliado por interprete, nos termos e para efeito do disposto no artigo 92º, nº 2 do Código de Processo Penal, aquando da assinatura da declaração de dispensa de sigilo das telecomunicações, o recorrente encontrava-se ainda plenamente convencido que aquele documento tratava-se de documentação de mero expediente - porque assim lhe foi explicado em inglês pelo OPC - mas jamais uma dispensa de sigilo das telecomunicações que consentia a pesquisa e análise desmedida ao seu telemóvel, com possível recolha do que ali fosse encontrado e considerado relevante.
17.ª Pelo que, seja o acesso ao seu telemóvel. como a consequente e eventual prova dali recolhida, assentam num pressuposto de validade - declaração de consentimento - que fora obtida com recurso a meios enganosos, pois, em momento algum foi explicado ao recorrente o fiel teor daquele documento, sendo transmitido - de forma enganosa - que era apenas documentação de mero expediente.
18.ª A declaração de dispensa de sigilo das telecomunicações, como condição de validade da analise ao seu telemóvel, foi preenchida à custa de um engano, mormente, mediante a assinatura de um documento escrito na língua que não domina e cujo teor lhe foi informado erradamente, levando a que não tenha sido prestado um consentimento esclarecido e livre.
19.ª Por tudo isto, estamos em crer, salvo melhor opinião de Vossas Excelências que, a analise realizada ao telemóvel do recorrente, porquanto realizada fora do disposto no artigo 15º da Lei do Cibercrime e mediante a utilização de meios enganosos na obtenção do seu pressuposto de validade - declaração de consentimento - constitui, pois, método de obtenção de prova proibido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 126º, n° 2, al, a) in fine do Código de Processo Penal, levando a que, seja de considerar, igualmente, prova proibida todos os elementos que foram extraído por seu intermédio, o que se invoca.”
Pugnando, a final, pelo seguinte:
“Pelo exposto (…) deverá ser parcialmente revogado o Despacho recorrido e, consequentemente:
i.) Declarada nula a diligência interrogatória realizada no dia 04 de julho de 2024, e todos os demais atos ali praticados, nos termos do artigo 120°, n.º 2, alínea c), por violação do disposto no artigo 92º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal;
ii.) Considerado nulo o "consentimento", por violação do disposto no artigo 15° da Lei do Cibercrime;
E, por sua vez,
iii.) Declarado método de obtenção de prova proibido a análise feita ao telemóvel e bem assim, prova proibida, todos os elementos que desta analise poderão ter sido recolhidos, nos termos do disposto no artigo 126°, n.º 2, al. a) in fine do Código de Processo Penal.”
O recurso foi admitido.
Em resposta, o MP defende que (transcrição das conclusões):
“1. A testemunha que alega desconhecer a língua portuguesa e à qual não foi nomeado intérprete em diligência de inquirição em inquérito-crime, em suposta violação do art.º 92, n.º 2 do Código de Processo Penal e a quem foi recolhido termo de consentimento e dispensa de sigilo nas telecomunicações sem perceber o conteúdo e alcance do ato, em violação do art.º 126º, n.º 2, al.ª a) do Código de Processo Penal, é titular de um interesse jurídico-relevante, atentas as consequências processuais advenientes e a tutela do direito a intervir em condições de equidade no processo, legitimando o seu direito a recorrer de uma decisão judicial que julgou improcedente tais ilegalidades para efeitos do disposto no art.º 401º, n.º 1, al.ª d) «in fine» daquele Código.
2. Não resultando dos autos que em algum momento, antes, durante e imediatamente a seguir à diligência de inquirição de uma testemunha de nacionalidade nigeriana que reside em Portugal há 4 anos e aqui está estabelecida, tenha informado ou reclamado desconhecer / não compreender a língua portuguesa, acrescendo que do auto, supostamente lido e explicado na sua língua materna, constava expressamente que compreendia a língua portuguesa, fundamenta o juízo de desnecessidade de nomeação de intérprete para o acompanhar nos termos do disposto no art.º 92º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
3. Reforça este juízo a circunstância de a testemunha, ora recorrente, se ter dirigido ao processo 12 dias depois dessa diligência, nada referindo sobre a incompreensão do seu teor nem reclamando a nomeação de intérprete para o ato, nem colocando em causa o conhecimento do seu conteúdo e da língua portuguesa (falada e escrita).
4. Nada tendo sido sinalizado pela entidade policial que indiciasse a não compreensão da língua do ato pela testemunha, nada se inferindo sobre quais as razões para uma tal recusa de nomeação de intérprete por tal entidade e nada sendo invocado que justifique minimamente suposto constrangimento para uma tal atuação policial desviada da legalidade, nem o recorrente alegando o que quer que seja sobre estes aspetos, conclui-se que inexistem fundamentos para considerar ter sido violada aquela disposição legal e consequentemente para a verificação de uma nulidade nos termos do art.º 120º, n.º 2, al.ª c) do Código de Processo Penal, podendo mesmo questionar-se se a conduta do ora recorrente não releva para efeitos do disposto na al.ª a), do n.º 3 do mesmo artigo.
5. Resultando que o recorrente indicou à autoridade policial as suas credenciais (password) de acesso a conta de correio, disso constando do auto de inquirição e de consentimento de acesso às telecomunicações, dado que tais elementos têm implícito o reconhecimento de que se está a franquear ou a possibilitar a utilização de dados para terceiros entrarem em áreas reservadas e acederem a informações pessoais não livremente acessíveis, inequivocamente o recorrente teria de saber o significado, efeitos e o que estava a assinar, ainda que lhe tenha sido lido em inglês, e que não se tratava de documentação de mero expediente.
6. Não foi indicada, nem argumentada qualquer razão ou motivo para que a Polícia Judiciária manipulasse o consentimento do recorrente e o levasse a dispensar o sigilo no acesso às suas telecomunicações, quando o acesso a tais conteúdos seria possível através de intervenção judicial, tal como sucedera no processo em relação a outros intervenientes, inexistindo qualquer indicação de que em concreto os agentes policiais, atuando de má-fé, o tivessem enganado, manipulando o seu discernimento.
7. Os elementos juntos aos autos indicam que o recorrente tendo conhecimentos da língua portuguesa suficientes para compreender e entender o alcance e significado quer da diligência de inquirição em que foi interveniente quer do termo de dispensa de sigilo nas telecomunicações, decorrido algum tempo, ter-se-á arrependido deste seu comportamento e decisão, dando o dito por não dito, decidindo criar dúvidas, invocando a sua nacionalidade estrangeira para dizer que afinal não compreendera nada do que assinara e que fora enganado pelas autoridades policiais a fazê-lo.
8. A prova do desconhecimento de uma determinada língua estrangeira por um interveniente processual deve ser extraída de indicações, atos e comportamentos factuais e bem assim apelando a regras de normalidade e de razoabilidade, sendo que no caso nada infirma o entendimento da entidade policial de que o recorrente conhecia suficientemente a língua portuguesa para entender os termos e autos que assinou
9. Falecendo a pretensão do recorrente porque assente na sua própria versão, sem qualquer plausibilidade e sustento factual, conclui-se que, ao invés do invocado, deve prevalecer o despacho judicial que decidiu pela desnecessidade de nomear intérprete ao mesmo, dado que não existiu qualquer nulidade processual por violação do disposto no art.º 15º da Lei do Cibercrime e no art.º 126º, n.º 2, al.ª a) do Código de Processo Penal, e não merecendo provimento o recurso apresentado.”
Pugnando, em síntese, pelo seguinte:
“Em suma, o despacho da M.ª Juiz de Instrução foi correto e não violou qualquer norma jurídica nem constitui errada interpretação jurídica, termos em que deve ser mantido na íntegra, improcedendo o recurso.”
O Exm.º Sr. PGA neste Tribunal da Relação exarou parecer defendendo que:
“Não assiste qualquer razão ao ora requerente.
Reforçando esta ideia importa sublinhar como bem refere a nossa Ex.ma Colega junto da 1ª instância: “…Reforça este juízo a circunstância de a testemunha, ora recorrente, se ter dirigido ao processo 12 dias depois dessa diligência, nada referindo sobre a incompreensão do seu teor nem reclamando a nomeação de intérprete para o ato, nem colocando em causa o conhecimento do seu conteúdo e da língua portuguesa (falada e escrita). (negrito e sublinhado da nossa responsabilidade).
Face a esta manifesta omissão por parte da testemunha / recorrente ter-se-á, de concluir que da sua postura processual (mais contemporânea – com a data dos factos) nada foi evidenciado, por si, que desconhecia a língua portuguesa ou que precisava de intérprete para qualquer contacto com os autos.
Também neste segmento, bem andou a nossa Ex.ma Colega junto da 1ª instância quando refere, com pleno acerto que: A prova do desconhecimento de uma determinada língua estrangeira por um interveniente processual deve ser extraída de indicações, atos e comportamentos factuais e bem assim apelando a regras de normalidade e de razoabilidade, sendo que no caso nada infirma o entendimento da entidade policial de que o recorrente conhecia suficientemente a língua portuguesa para entender os termos e autos que assinou.
Ora, como se deixou explanado nunca a testemunha referenciou tal situação, a qual só veio a ser abordada, muito mais tarde, pela pena do seu Ilustre advogado. Estamos nas antípodas do caso apreciado por esta Relação de Évora no seu Ac. de 23.04.2024, Desembargadora Fátima Bernardes, no âmbito do processo 1485/23.2GBABF.E1 onde se concluiu que: “…a) Declarar a nulo, por falta de nomeação de intérprete e/ou de tradução, de todo o processado subsequente à constituição de arguido de …, este ato incluído, bem assim como a notificação efetuada para requerer a realização da contraprova…”. Porquanto aí foi, “ab initio”, invocado o desconhecimento da língua portuguesa por parte do arguido e no próprio auto ficou a constar que o arguido “percebia certas coisas de português”. Ora nada disto ocorreu no caso em apreço.
Nesta conformidade, o nosso parecer vai no sentido da manutenção do despacho judicial posto em crise pela testemunha / recorrente. Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, negar provimento ao recurso apresentado pela testemunha AA e manter o douto despacho proferido na 1ª instância.”
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), respondeu o recorrente, afirmando que a “forma como o Ministério Público, na senda aliás, da posição assumida na Decisão recorrida, configura a realidade sub judice, é injusta”, mantendo o peticionado no recurso.
Procedeu-se a exame preliminar.
Após a realização da conferência, cumpre apreciar e decidir.
2 - Fundamentação.
A. Delimitação do objeto do recurso.
A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
As questões a decidir no presente recurso são:
1.ª questão – Verificação (ou não) da nulidade do “interrogatório” do recorrente, por violação do art.º 92.º, n.º 2.
2.ª questão – Nulidade do consentimento de dispensa do sigilo das telecomunicações, por violação do disposto no art.º 126.º, n.º 2 in fine.
*
1.ª questão – Verificação (ou não) da nulidade do “interrogatório” do recorrente, por violação do art.º 92.º, n.º 2.
Vejamos o quadro normativo aplicável (e invocado expressamente pelo recorrente):
Nos termos do art.º 92.º, n.º 2:
“Artigo 92.º (Língua dos actos e nomeação de intérprete)
1 - Nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.
2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.”
Segundo o recorrente, a desnecessidade (defendida no despacho recorrido) de nomear intérprete ao ora recorrido porque aquele não anunciou a limitação do conhecimento da língua portuguesa nem tal limitação foi percecionada pelos agentes policiais, “debate-se de frente com uma exigência probatória imponderada, porque impossível” e “irrealista”, impondo-lhe uma “prova diabólica”. Mais adianta que, sendo … e alegadamente desconhecedor da língua portuguesa, quando assinou a documentação na polícia, acreditou que “assinara, somente, documentação de mero expediente”. Vejamos. Começando por esta última referência, mesmo desconhecendo nós, neste contexto, o que significa “documentação de mero expediente” (2), não deixa de se revelar significativo que o ora recorrente conheça diferenças entre categorias (legais?) de documentos, apresentando agora uma convicção de que teria (na altura) acedido a assinar documentação apenas de uma categoria específica de documentos e que, se soubesse que a mesma integrava categoria diversa, já não assinaria. Estamos, assim, perante argumentação especialmente inverosímil e essencialmente indemonstrada. Por último, quanto a este segmento, insiste o recorrente em alegar que o teor da documentação que assinou não corresponde ao que lhe foi transmitido, não chegando a concretizar o que lhe “foi transmitido” (3), desconhecendo-se assim a mencionada “vertente enganosa” da comunicação policial a que, na sua ótica, “real e lamentavelmente se tem vindo a assistir com enorme frequência”, traduzindo, mais uma vez, um anátema essencial e nuclearmente indemonstrado. Quanto ao alegado desconhecimento da língua portuguesa (e conhecimento exclusivo da língua inglesa – que apelida de “idioma universal”) e a prova “diabólica” do mesmo, sempre se dirá o seguinte: Consta do auto de inquirição” do ora recorrente “[q]eu compreende a língua Portuguesa escrita de forma a conseguir ler um documento não técnico em Português e a Língua Portuguesa falada de forma a funcionar socialmente diariamente na comunidade Portuguesa.” De forma especialmente significativa, nenhuma referência é feita pelo recorrente a esta menção expressa. Por seu turno, sendo o auto em causa(4) um documento autêntico, deveria ser arguida a respetiva falsidade. Por último, não se nos afigura que a prova do não domínio da língua portuguesa levante especiais dificuldades probatórias, sendo operativos todos os atinentes meios legais – De qualquer forma, nunca o recorrente, nem perante o MP, nem perante o JIC, apresentou qualquer prova (testemunhas, documentos…), que comprovasse aquilo que alega, que assim se esgota numa petição de princípio.
Por seu turno e como, acertadamente, se refere na decisão recorrida, se a intervenção do recorrente naqueles atos tivesse acontecido inteiramente à revelia do seu conhecimento da língua portuguesa e do entendimento da mesma, este, já devida e legalmente aconselhado pelo seu ilustre advogado, teria seguramente suscitado tal questão logo no requerimento constante de fls. 538, o que não aconteceu. Do exposto flui com toda a clareza que, como se assinala na decisão recorrida, não está comprovado nos autos que o recorrente não conhecia ou não dominava a língua portuguesa (5) (está, como vimos, comprovado no próprio auto de inquirição o contrário), nenhuma imposição legal existia de nomeação de intérprete idóneo, não se vislumbrando qualquer violação do disposto no art.º 92.º. n.º 2, estando, assim, afastadas quaisquer consequências legais que seriam decorrência da mesma. Mais se entende que, não estando comprovado que o ora recorrente desconhecesse o que assinou, nomeadamente o “termo de consentimento de dispensa de sigilo de comunicações”, também se considera que tal consentimento foi validamente expresso, não se vislumbrando qualquer violação da normas atinentes, nomeadamente a invocada norma da Lei do Cibercrime (art.º 15.º), ou seja, aquilo que designa por “pesquisa e análise desmedida ao seu telemóvel”. A questão é, assim, notoriamente improcedente.
2.ª questão – Nulidade do consentimento de dispensa do sigilo das telecomunicações, por violação do disposto no art.º 126.º, n.º 2 in fine.
Como vimos, não se comprova nos autos (nem o recorrente apresenta qualquer prova nesse sentido) que o recorrente não conhecesse ou não dominasse a língua portuguesa (estando até comprovado o contrário), sendo que, por outro lado, insiste o recorrente, também nesta sede, em alegar que o teor da documentação que assinou não corresponde ao que lhe foi transmitido, voltando a sublinhar-se que o mesmo não concretiza o que lhe “foi transmitido” (insistindo que acreditou tratar-se de “mero expediente”), desconhecendo-se, assim, a mencionada “vertente enganosa” da comunicação policial, com as consequências acima mencionadas.
Deste modo, também aqui não se revela minimamente demonstrada a utilização (resulta até o contrário), pelas autoridades policiais, de meios enganosos de prova, não estando, pois, preenchida a previsão do art.º 126.º, n.º 2, alínea a) in fine.
Sem necessidade de mais considerandos, o recurso é, assim, totalmente improcedente.
3 - Dispositivo.
Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora não conceder provimento ao recurso, confirmando integralmente o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente (artigo 515.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal – por analogia – e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais), fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.
(Processado em computador e revisto pelo relator)
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1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores sem indicação diversa.
2 Confessamos que apenas conhecemos a categoria de despachos de mero expediente.
3 Ou seja, a concretizar o que seria a aludida “documentação de mero expediente”. É completamente inverosímil que lhe tivesse sido dito pelos agentes policiais (como alega) que a assinatura “em nada impactava nos [sic] seus direitos, nomeadamente no direito à reserva da vida privada, à liberdade de expressão e inviolabilidade do domicílio e correspondência”.
4 Sendo certo que é indiscutível que se trata de um documento “não técnico”, uma que vez apenas descreve o que, factualmente, ocorreu durante inquirição respetiva.
5 Não permitindo apenas e tão só a nacionalidade estrangeira, como também consta da decisão recorrida, inferir a falta de domínio da língua portuguesa.