I - A servidão é um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (v. artigo 1543º, do Código Civil, abreviadamente CC), exceção ao princípio geral do conteúdo, tendencialmente, ilimitado do direito de propriedade, consagrado no art. 1305º, do mesmo diploma legal.
II - As servidões constituídas por destinação do pai de família (cfr. nº1, do art. 1547º e 1549º, do CC) - forma originária e automática de constituição de servidões -, têm natureza voluntária e, assim sendo, permite a lei a sua constituição mesmo quando não são estritamente necessárias, a verificarem-se os pressupostos, cumulativos, da constituição de uma servidão por destinação do pai de família, a saber: i) os dois prédios terem pertencido ao mesmo dono; ii) existirem sinais visíveis e permanentes que revelem a existência de uma relação estável de serventia de um prédio (serviente) para o outro (dominante); iii) os prédios se separarem quanto à sua titularidade; iv) não existir no respetivo documento declaração contrária à constituição do encargo.
III - Podendo ser configurados casos de extinção das servidões constituídas por destinação do pai de família (cfr. nº1, do art. 1569º, do CC), não podem, por terem natureza voluntária, tais servidões ser extintas por desnecessidade (de outro modo nem se poderiam constituir).
IV - O recurso, pedido de reapreciação de uma decisão judicial apresentado a um órgão judiciário superior, não destina a suscitar a apreciação de questões novas, que não sejam de conhecimento oficioso, sendo, contudo, o abuso de direito a conhecer, por de apreciação oficiosa.
V - A pretensão de reconhecimento de servidão por destinação do pai de família, mesmo que estrita necessidade se não configure, não integra o exercício abusivo de um direito, antes traduzindo o, normal, exercício de um direito.
Recorrentes: os Autores, AA e esposa BB.
Recorridos: os Réus, CC e esposa DD.
AA e esposa BB propuseram ação declarativa de simples apreciação negativa, sob a forma do processo comum, contra CC e esposa DD, pedindo:
a) Seja declarado que sobre o prédio urbano dos Autores identificado em 1.º, 2.º e 3.º da petição inicial e a favor do prédio urbano dos Réus identificado em 9.º e 10.º da petição inicial não existem quaisquer servidões de passagem, seja a pé seja de veículo automóvel, designadamente as pretensas passagens que os Réus abusivamente utilizam e mencionadas nos artigos 17.º, 18.º, 19.º, 20.º e 21.º da petição inicial;
b) Seja ordenado aos Réus se abstenham de praticar atos que ofendam a posse e ou o direito de propriedade dos Autores sobre o seu prédio urbano identificado em 1.º, 2.º e 3.º da petição inicial;
c) Sejam os Réus condenados a pagar aos Autores uma compensação no valor de, pelo menos, €1.000 (mil euros), a título de danos não patrimoniais por estes sofridos e dado o alegado em 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º e 32.º, da petição inicial;
Subsidiariamente, para a hipótese de sobre o prédio urbano dos Autores identificado em 1.º, 2.º e 3.º e a favor do prédio urbano dos Réus, mencionado em 9.º e 10.º da petição inicial existirem as duas servidões de passagem alegadas nos artigos 17.º, 18.º, 19.º, 20.º e 21.º da petição inicial, constituídas por usucapião, deverão ser as mesmas declaradas extintas, por desnecessidade, em virtude do prédio urbano dos Réus mencionado me 9.º e 10.º da petição inicial, confrontar pelo lado nascente, e em toda a sua extensão de 23 metros com a via pública, consoante alegado nos artigos 11.º e 12.º da petição inicial e haver acesso direto para o seu prédio urbano e quintal que dele faz parte integrante desde essa via pública através de dois caminhos que se iniciam junto da Avenida ... e que assentam o seu leito em terreno que faz parte integrante desse prédio urbano dos Réus, acessos esses mencionados nos artigos 15.º e 16.º da petição inicial.
Alegam, em síntese, que são proprietários do prédio urbano que referem, do qual faz parte um corredor de cimento e uma rampa que os Réus utilizam para aceder ao seu quintal e a uma plataforma em coberto e que os Réus não precisam de passar quer pelo corredor de cimento quer pela rampa, pois têm acesso quer ao quintal quer à plataforma, respetivamente, por outras passagens situadas na sua própria fração e apesar de terem manifestado a sua oposição às referidas passagens, os Réus continuam a fazê-lo, violando a sua vida privada e familiar, o que lhes causou danos de natureza não patrimonial.
Regularmente citados, os Réus contestaram, impugnando os factos alegados pelos Autores, e deduziram pedido reconvencional, pedindo a condenação dos Autores reconvindos a reconhecer que sobre o seu prédio urbano (melhor identificado no artigo 1.º da petição inicial) existe uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, com o seu início na entrada situada a nascente (junto à via pública), com cerca de 4,50 metros de largura e que, com a mesma largura, se prolonga para poente numa extensão ou comprimento de cerca de 9,50 metros, através de uma rampa em cimento assente no logradouro deste prédio dos Autores, por onde os Réus reconvintes circulam de carro até atingir o patamar e garagem do seu prédio urbano que se localiza ao nível do rés do chão do prédio destes imediatamente à esquerda do fim da aludida rampa, servidão de passagem que se prolonga, a pé, no mesmo sentido nascente/poente, através de um corredor em cimento, assente no prédio dos Autores reconvindos com cerca de 1,50 metros de largura e cerca de 6,50 metros de comprimento, a confrontar com a parede norte do prédio dos Réus reconvintes, por onde estes passam e acedem a pé ao quintal situado nas traseiras do seu prédio. Subsidiariamente, para a hipótese de se entender que não se encontra constituída a servidão de passagem alegada na alínea anterior, então, com as mesmas características e extensão da anterior, deverão os Autores reconvindos ser condenados a reconhecer que sobre o seu prédio se encontra constituída por usucapião, a favor do prédio dos Réus reconvintes, uma servidão de passagem. Mais pedem a condenação dos Autores reconvindos a não praticarem atos turbativos ou impeditivos do direito de passagem dos Réus reconvintes.
Alegaram, em síntese, que o prédio de que são proprietários, assim como o prédio de que os Autores são proprietários já pertenceram ao mesmo proprietário e que quer o corredor quer a rampa sempre foram utilizados para a entrada e saída de veículos para o prédio dos Réus e para aceder ao quintal dos mesmos e que tal vem sendo feito, ao longo dos anos, à vista de todos e sem oposição de ninguém.
Os Autores apresentaram réplica a impugnar os factos alegados pelos Réus em sede de reconvenção.
Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, com relevância para a decisão (transcrição):
1. Por escritura pública outorgada em 31 de julho de 2020, no Cartório Notarial A... – Notário S.P., sociedade unipessoal, Lda., AA e a BB, que declararam comprar a EE e FF que declararam vender, mediante uma contrapartida de €120.000 (cento e vinte mil euros), um prédio urbano, composto de casa rés-do-chão, andar e logradouro, sito na Avenida ..., Lugar ..., da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...09, mais constando do referido escrito que o prédio “é vendido livre de ónus ou encargos”, conforme teor do documento n.º 3 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2. Na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...59, o prédio referido em 1 encontra-se descrito como tendo uma área total de 220 m 2, sendo a área coberta de 163,4 m 2 e a área descoberta de 56,6 m 2, a confrontar a norte com GG, a sul com HH, a nascente com a Estrada Nacional n.º ...06 e a poente com um ribeiro, conforme teor do documento n.º 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3. A aquisição por compra a favor dos Autores do prédio identificado em 1 encontra-se registada pela ap. ...77 de 2020.07.31, conforme teor do documento n.º 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4. O acesso desde a via pública ao 1.º andar do prédio mencionado em 1 é feito através de um corredor de cimento, com leito revestido a tijoleira, com início na via pública e que se prolonga até àquele 1.º andar, com o comprimento de 9,30 metros e largura de 1,15 metros.
5. O acesso ao rés-do-chão do mesmo prédio é feito através de uma rampa de cimento que tem início na via pública e que assenta o seu leito no logradouro do mesmo prédio, tendo uma largura de 4,70 metros e o comprimento de 9,30 metros.
6. Por escritura pública outorgada em 15 de janeiro de 2004, no Cartório Notarial ..., os Réus, CC e DD, declararam comprar a HH e a II, que declararam vender, mediante uma contrapartida de €80.000 (oitenta mil euros), um prédio urbano, composto de casa de dois pavimentos com logradouro, com área coberta de cento e quarenta e oito metros quadrados e descoberta de quatrocentos e oito virgula cinco metros quadrados, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Penafiel, sob o número ..., conforme teor do documento n.º 6-A junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7. O prédio referido em 6 confronta, pelo seu lado nascente, e em toda a sua extensão de cerca de 23 metros, com a Estrada Nacional n.º ...06, atualmente designada Avenida ...
8. E confronta pelo lado norte, numa extensão de 29 metros, com o prédio identificado em 1, que tem a cor branca e o telhado escuro.
9. Nas traseiras do prédio identificado em 6, entre este e a Ribeira ..., com a qual confronta a poente, faz parte uma parcela de terreno destinada a quintal, em forma retangular.
10. O prédio identificado em 6 tem ligação direta com a via pública através de duas entradas, cada uma com o seu portão de ferro, localizando-se uma entrada na estrema nascente sul, com uma largura de cerca de 5 metros, que dá acesso a uma garagem e à casa de habitação dos réus e outra entrada com 1,20 metros de largura, que se localiza a meio do prédio que constitui a habitação dos réus e onde estes residem.
11. Os prédios identificados em 1 e 6 pertenceram a HH e ao seu marido, CC.
12. Por via do falecimento de CC, em ../../1986, os referidos prédios passaram para a titularidade exclusiva dos seus herdeiros, a identificada HH e a filha, II, permanecendo a sua propriedade em comum e sem determinação de parte ou direito a favor das identificadas.
13. Por escritura pública outorgada em 12 de outubro de 2001, no Cartório Notarial ..., HH e II declararam vender a JJ e KK, que declararam comprar, o prédio descrito em 1., mediante uma contrapartida de treze milhões e quatrocentos mil escudos, conforme teor do documento n.º 1 junto com a contestação.
14. Por volta de meados da década de 1960, foi construído o prédio urbano descrito em 6.
15. Esse prédio é constituído por uma casa de dois pavimentos, rés do chão e primeiro andar, com quintal na parte traseira localizado a poente e ao nível do rés-do-chão.
16. Todo o rés-do-chão do prédio identificado em 6 localiza-se a uma cota inferior, não menos do que 3 metros, à Avenida ....
17. Por causa do mencionado em 16, quando o prédio descrito em 6 foi construído por CC e HH, estes construíram a rampa que servia de acesso a um patamar e garagem localizados do lado esquerdo dessa mesma rampa, no sentido descendente, e ao quintal.
18. Em meados da década de 1970, CC e HH construíram o prédio identificado em 1.
19. Antes da construção do prédio descrito em 1, foi deixado um corredor aberto, com cerca de 1,50 metros de largura e cerca de 6,50 metros de comprimento, ao nível do rés-do-chão, localizado a norte do prédio descrito em 6 que é de acesso ao quintal existente nas traseiras deste prédio.
20. Quer o pavimento da rampa, quer o pavimento do corredor foram cimentados no momento da construção de ambos os prédios.
21. CC e HH, de modo a acederem ao 1.º andar do prédio descrito em 6, faziam-no através de um portão, com cerca de 1,05 metros de largura, localizado ao nível da Avenida ....
22. Existindo na estrema sul desse prédio uma outra entrada também ao nível da Avenida ..., que dá acesso a uma divisão existente no 1.º andar.
23. CC e HH acediam da Avenida ... ao patamar e garagem localizados no rés-do-chão do prédio descrito em 6 e destes para a via pública, através da rampa cimentada, aí estacionando e guardando a sua viatura automóvel.
24. Também através do corredor, pavimentado em cimento, CC e HH acediam a pé ao quintal sempre que assim o entendessem e sem qualquer limitação.
25. Após a celebração do acordo mencionado em 13, os réus continuaram a aceder com o seu veículo ao rés-do-chão através da rampa, em direção à plataforma e garagem existentes neste local e daqui para a Avenida ....
26. Bem como a circular a pé, sem qualquer limitação, pelo corredor localizado a Norte do prédio descrito em 1 em direção ao quintal.
27. CC e HH deixaram aberto o corredor de acesso ao quintal para por aí, de forma exclusiva, acederem ao quintal, transportando fertilizantes, recolhendo os frutos e os sobrantes da limpeza.
28. Antes da celebração do acordo descrito em 13, JJ, KK e, posteriormente, FF e EE nunca se opuseram a que os réus circulassem pela rampa provindos da Avenida ... em direção à plataforma e garagem existentes no rés do chão do prédio descrito em 6.
29. O mesmo sucedendo com a passagem pelo corredor existente entre os prédios descritos em 1 e 6.
30. Há cerca de 2 anos, os réus fecharam com blocos de cimento a porta que dava acesso ao quintal situado nas traseiras e que estava aberta na parede a poente do prédio descrito em 6, a 4 metros de distância da esquina poente/norte.
31. A porta não era utilizada para se passar para o quintal.
32. O prédio descrito em 6. tem uma entrada aberta e larga por onde passam automóveis e que dá acesso à garagem dos réus.
33. E também uma outra entrada a pé.
34. Para que os réus alcancem o quintal, localizado nas traseiras do seu prédio, é possível reabrir a porta que existia na parede poente da sua casa de habitação e que confronta com o quintal.
35. Podem, ainda, passar pelo caminho que dá acesso à garagem existente no estremo nascente sul do prédio descrito em 6.
36. E esse caminho dá acesso ao quintal integrante do prédio descrito em 6.
37. O portão de entrada e acesso à rampa existente junto à Avenida ... foi aí colocado pelos réus conjuntamente com JJ.
38. Ficando cada um com umas chaves.
39. Os autores residem no rés-do-chão do prédio identificado em 1 com a sua família, que é constituída por eles e um filho comum menor de idade, onde pernoitam e tomam refeições.
40. Os réus utilizam a rampa do logradouro que faz parte do prédio descrito em 1 e que dá acesso ao rés-do-chão do mesmo, para estacionarem os seus veículos automóveis e para virarem à esquerda, no fim da descida da rampa, atento o sentido nascente-poente, acedendo a uma parte aberta do rés-do-chão do prédio descrito em 6. e onde os réus secam a roupa e estacionam os seus veículos.
Foram os seguintes os factos considerados não provados pelo Tribunal de 1ª instância:
a) Há mais de 30 anos que os acessos identificados em 4 e 5 dos factos provados foram de uso exclusivo dos autores e de JJ, KK e, posteriormente, FF e EE;
b) Os réus e CC, HH e II, para acederem a pé ou com veículos automóveis ao prédio identificado em 6 dos factos provados, desde a Avenida ..., sempre o fizeram diretamente através do seu terreno, que integra este prédio;
c) Para acederem ao quintal que integra o prédio descrito em 6, os réus e CC, HH e II, passavam através de uma porta que estava aberta na parede a poente deste prédio, a 4 metros de distância da esquina poente/norte desse prédio;
d) Em substituição da porta que foi fechada com blocos de cimento, os réus começaram a passar através de uma parcela de terreno cimentado, em forma retangular, com comprimento de 6,20 metros e largura de 1,50 metros, que constitui um corredor, existente no interior do rés-do-chão do prédio descrito em 1 dos factos provados e por baixo do 1.º andar do mesmo, contra a vontade dos autores;
e) Os autores, por diversas vezes, comunicaram aos réus que não autorizavam que passassem quer a pé quer com os seus veículos automóveis pela rampa do logradouro do seu prédio;
f) Como também comunicaram aos réus que não os autorizavam a passar pelo corredor, existente no rés-do-chão e por baixo do 1.º andar do prédio identificado em 1 dos factos provados;
g) A circunstância de os réus passarem contra a vontade dos autores no corredor e na rampa integrantes do prédio descrito em 1 dos factos provados causou angústia, ansiedade, tristeza e mal-estar psicológico aos mesmos;
h) Se os réus alguma vez passaram por esse corredor e rampa foi por mero favor dos autores ou contra a vontade dos mesmos;
i) Antes da celebração do acordo mencionado em 1 dos factos provados, os autores desconheciam que os réus acediam pelos locais descritos em 4 e 5 dos factos provados.
Analisemos se o referido despacho padece do vício arguido.
Sendo frequente a confusão entre a nulidade da decisão (que a proceder conduz à sua anulação) e a discordância do resultado obtido, cumpre deixar claro que os vícios da sentença não podem ser confundidos com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito, estes decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou aplicação do direito (error juris) de forma que o decidido não corresponde à realidade normativa (que, na procedência, conduzem à alteração/revogação da decisão).
E, com efeito, “Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos … (ac. do STJ de 17.10.90, Roberto Valente, AJ, 12, p. 20 …). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1994, I. p 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão…”[4].
Assim, “é nula a sentença que não especifique os fundamentos…, previsões que a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 2-6-16,781/11).” [5].
Deste modo, importa distinguir entre erros de atividade ou de construção da sentença, geradores de nulidade a que se reporta aquele art. 615º, n.º 1, dos erros de julgamento, que apenas afetam o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada[6] atacáveis em via de recurso e não determinativos daquela invalidade.
Relativamente ao vício de omissão de pronúncia (al. d)), cumpre referir que “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, com as respetivas causas de pedir, das exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (v. nº2, do art. 608º), o não conhecimento de pedido ou exceção, cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes das seguidas na sentença, que as partes hajam invocado”[7].
Assim, cabe distinguir “questões” das “razões ou argumentos”, sendo que “o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”[8].
A não apreciação pelo tribunal de questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença, não a sendo suscetível de determinar a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
Orienta-se a jurisprudência uniformemente no sentido de a nulidade por omissão de pronúncia supor o silenciar por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão escassamente fundamentada a propósito dessa questão[9] ou decisão que não acolha os argumentos do apelante e decida em sentido oposto ao que o mesmo se apresentou a propugnar, sendo esta a situação que se verifica no caso concreto. Confundem os apelantes a invocação da nulidade do despacho (por falta de fundamentação e omissão de pronúncia) com a existência de erro de julgamento.
Assim, não se verifica a arguida nulidade do despacho saneador, nos termos do art. 615º, nº1, ex vi art. 613º, nº3, pois que fundamentado se mostra o despacho em causa tendo sido apreciada a questão da admissibilidade da reconvenção e decidido foi ser a mesma admissível, face à alínea a), do n.º 2, do artigo 266.º, por se fundar na defesa apresentada pelos Réus no processo. Fundamentada se mostra, pois, a decisão de admissão, liminar, da reconvenção, não padecendo a mesma dos apontados vícios formais, que improcedem.
Concluem os apelantes que se verificam contradições dos factos provados nos Pontos nº 30 e 31, 34, 35 e 36 por um lado, e dos factos não provados na alínea c) e os factos provados no Ponto 30, por outro lado, e impugnam a decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida, pretendendo que seja alterada por forma a os factos dados como provados nos pontos 14, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31 e 40 passem a não provados e os factos não provados constantes das alíneas a), b), c), d), e), f), g), h) e i) passem a provados.
Analisemos, em primeiro lugar, se se verificam as apontadas contradições. Têm os referidos factos provados a seguinte redação: “30. Há cerca de 2 anos, os réus fecharam com blocos de cimento a porta que dava acesso ao quintal situado nas traseiras e que estava aberta na parede a poente do prédio descrito em 6, a 4 metros de distância da esquina poente/norte.”, “31. A porta não era utilizada para se passar para o quintal.”, “34. Para que os réus alcancem o quintal, localizado nas traseiras do seu prédio, é possível reabrir a porta que existia na parede poente da sua casa de habitação e que confronta com o quintal.”, “35. Podem, ainda, passar pelo caminho que dá acesso à garagem existente no estremo nascente sul do prédio descrito em 6.” e “36. E esse caminho dá acesso ao quintal integrante do prédio descrito em 6.”. E a alínea c) dos factos não provados tem o seguinte teor: “c) Para acederem ao quintal que integra o prédio descrito em 6, os réus e CC, HH e II, passavam através de uma porta que estava aberta na parede a poente deste prédio, a 4 metros de distância da esquina poente/norte desse prédio”.
Ora, do confronto dos referidos itens, do não provado e dos provados, temos que nenhuma contradição se verifica. Com efeito, não se provou que “Para acederem ao quintal que integra o prédio descrito em 6, os réus e CC, HH e II, passavam através de uma porta que estava aberta na parede a poente deste prédio, a 4 metros de distância da esquina poente/norte desse prédio;” (referida al. c)). E da consideração dos referidos factos provados, pontos 30, 31 e 34 a 36, nenhuma contradição resulta entre eles e/ou com aquele não provado (al. c)).
Na verdade, não se provou que “Para acederem ao quintal que integra o prédio descrito em 6, os réus e CC, HH e II, passavam através de uma porta que estava aberta na parede a poente deste prédio, a 4 metros de distância da esquina poente/norte desse prédio” (al c), dos factos não provados), antes se provou que a porta em causa não era utilizada (f.p. nº31). E, não obstante “Há cerca de 2 anos” os réus terem fechado “com blocos de cimento a porta que dava acesso ao quintal situado nas traseiras e que estava aberta na parede a poente do prédio descrito em 6, a 4 metros de distância da esquina poente/norte” (f.p. nº 30), certo é que “Para que os réus alcancem o quintal, localizado nas traseiras do seu prédio, é possível reabrir a porta que existia na parede poente da sua casa de habitação e que confronta com o quintal” (f.p. nº34), embora haja o caminho por onde, sempre, os Réus e os referidos anteriores proprietários da fração dos Réus passavam, o em causa nos autos, resultando provado que “Podem, ainda, passar pelo caminho que dá acesso à garagem existente no estremo nascente sul do prédio descrito em 6”. “E esse caminho dá acesso ao quintal integrante do prédio descrito em 6” (fp.s 35 e 36).
Nenhuma contradição existe, sendo bem percetível, claro e lógico o sentido dos factos provados e não provado.
Após justificar a sua convicção para considerar provada e não provada a factualidade relevante para a decisão da causa, referindo que a mesma se formou na análise das provas “conjugada com as regras da experiência e do normal acontecer”, o Tribunal a quo considerou, a fundamentar, com rigor e detalhe, a sua convicção quanto à resposta que deu aos referidos itens provados impugnados “o teor do relatório pericial junto aos autos onde se pode aferir das caraterísticas dos prédios… à data da perícia, bem como da rampa e do corredor em causa nos presentes autos, a sua localização nos imóveis e suas dimensões. Relatório este que foi quanto ao seu teor e conclusões explicitado e confirmados pelos senhores Peritos em sede de audiência de julgamento”. “Da conjugação do teor do referido relatório e dos esclarecimentos prestados pelos Senhores Peritos resulta que é possível reabrir a porta que da cozinha do rés do chão do prédio dos Réus deita para o quintal, de forma a se aceder por ela àquele ou em alternativa fazer um acesso mediante a construção de umas escadas através da garagem existente no estremo sul do prédios dos Réus, porém ficaria inviabilizado acesso dos Réus ao seu quintal com máquinas agrícolas”. Mais motivou que, em conjugação com tal relatório, no que concerne às caraterísticas dos prédios dos Autores e dos Réus, da rampa e do corredor em causa nestes autos e à sua utilização, teve em consideração o teor dos depoimentos das testemunhas II, LL, EE e MM, bem analisando, como resulta da gravação:
“A testemunha II, filha dos primitivos proprietários, CC e HH, dos prédios que hoje pertencem quer aos Autores quer aos Réus, explicou de forma assertiva e convincente as diversas fases por que passaram os referidos prédios desde a sua construção levada a cabo pelo seu falecido pai, primeiro da casa que hoje pertence aos Réus e posteriormente da casa que hoje pertence aos Autores.
Com efeito, explicou que o seu falecido pai, nos anos 60 (sessenta) mandou construir o prédio que hoje pertence aos Réus e que só mais tarde, por volta da década seguinte, já depois do 25 de abril de 1974, é que mandou construir o prédio que hoje pertence aos Autores. Como aliás decorre da fotografia que a referida testemunha se fazia acompanhar e cuja junção foi ordenada pelo Tribunal em sede de julgamento, fotografia datada de 1973 e da qual se pode verificar que o prédio que hoje pertence aos Autores ainda não se encontrava construído.
Explicou ainda que após a morte do seu pai, ocorrida em ../../1986, a depoente e a sua mãe acabaram por vender os prédios em causa nestes autos.
Primeiro venderam o prédio que hoje pertence aos Autores, ao Sr. JJ e à esposa deste, sendo que após 2 ou 3 anos depois é que venderam o prédio que hoje pertence aos Réus, o que aliás decorre dos documentos juntos aos autos, designadamente os constantes dos n.ºs 3 junto com a petição inicial e 6-A junto com a contestação.
Explicou que enquanto a depoente e os pais aí residiram e após a morte do pai até às ditas vendas, sempre utilizaram quer a rampa para estacionar os veículos quer o corredor para aceder ao quintal e que mesmo após terem procedido à venda ao Sr. JJ e enquanto lá viveram a depoente e a sua mãe continuaram a passar livremente quer a pé quer de veículo pela rampa em causa nestes autos para estacionar o seu veículo ou de quem visitava a sua casa assim como o corredor para acederem ao quintal que a sua mãe sempre produziu. O que sempre fizeram de forma livre, sem qualquer tipo de oposição, designadamente do Sr. JJ e ininterruptamente, na firme convicção de que tinham direito de usar e passar a pé e de veículo pela dita rampa e a pé pelo dito corredor.
Mais referiu que na altura da venda do prédio ao Sr. JJ lhe comunicou que a rampa e o corredor eram comuns a ambos os prédios, razão pela qual este nunca manifestou qualquer oposição à utilização por esta e sua família e amigos dos mesmos.
Mais explicou ainda que quando o Sr. JJ vendeu o prédio à filha EE e ao genro, FF, estes fizeram obras, tendo colocado uma porta ao fundo do corredor, mas que nunca impediu o acesso ao quintal pelos réus.
O seu depoimento foi ainda relevante na parte em que explicou que a porta que existia na parede da cozinha no rés do chão do prédio dos Réus e que estes fecharam nunca foi utilizada para se aceder ao quintal da casa, pois tal era inviável quer por causa das colheitas e das máquinas que se usavam para o trato do terreno, tendo referido que na época em que a mãe produzia o quintal e com as idas frequentes do jornaleiro ao quintal para o tratar e que na maior parte do tempo aquele rés do chão esteve sempre arrendado a terceiras pessoas e como tal a mãe ou a própria não iriam pedir arrendatários para passarem por dentro de sua casa para acederem ao quintal. Assim o acesso ao quintal nunca foi feito pela porta que os Réus fecharam, mas sim pelo corredor dos autos.
O seu depoimento mostrou-se sustentado pelo conhecimento direto e circunstanciado dos factos sobre que depôs, pelo que logrou convencer o Tribunal.
A testemunha EE, anterior proprietária do prédio que hoje pertence aos Autores que o adquiriu ao Sr. JJ, a quem a anterior testemunha e sua mãe venderam, confirmou que a rampa e o corredor em causa nestes autos sempre foram utilizados pelos Réus e que estes nunca lhe solicitaram autorização para passarem por aqueles locais, pois conforme disse “era natural eles poderem passar por lá, até para conseguirem passar com os seus carros”.
Como os pais desta testemunha adquiriram o prédio à testemunha II e sua mãe antes de estas venderem o prédio que hoje pertence aos Réus, houve um período de cerca de 3 anos (atendendo às datas das escrituras) em que a referida EE foi vizinha da testemunha II e sua mãe.
Assim, esta testemunha explicou que a Dra. II e o marido desta entravam diariamente com o seu carro pela rampa a fim de acederem à garagem e que mesmo quando recebiam convidados em sua casa, estes também passavam pela rampa. Esclareceu ainda que a Dra. II e a mãe e todas as pessoas a mando destes sempre que queriam aceder ao quintal passavam pelo corredor, sendo que o acesso ao quintal sempre foi feito pelo dito corredor.
Esta testemunha depôs de forma escorreita e demonstrou possuir um conhecimento direto e circunstanciado quanto aos factos sobre que depôs.
No mesmo sentido depuseram as testemunhas LL e MM.
A primeira das referidas testemunhas é primo da testemunha II e esclareceu que conhece os prédios em causa desde há pelo menos 29 anos, pois frequentava a casa da prima.
Confirmou e identificou a sucessão dos diversos proprietários dos prédios que hoje pertencem aos Autores e aos Réus.
Esclareceu ainda que desde que se lembra, a tia sempre manteve o quintal cultivado e que o acesso ao mesmo era desde sempre efetuado pelo corredor em causa nestes autos, o mesmo acontecendo com a rampa que dá acesso à garagem e ao patamar. Referindo-se quer à rampa quer ao corredor, “eles sempre partilharam aquilo”.
Também a testemunha MM, pai de uma anterior arrendatária do rés do chão do prédio dos Réus, que aí residiu cerca de 6/7 anos, esclareceu que conhecia os prédios em causa nestes autos, mesmo antes da sua filha ter residido naquele rés-do-chão e que a rampa de cimento sempre existiu e por aí se podia passar livremente para o patamar e que o acesso ao quintal sempre foi feito pelo corredor, sem nunca a filha ter tido qualquer problema com o então proprietário do prédio dos Autores, o Sr. JJ.
O seu depoimento mostrou-se sério e desinteressado no desfecho da ação e revelou conhecimento direto dos factos, pelo que logrou convencer o Tribunal.
As testemunhas NN e OO, ambos filhos do Réus, sendo que a testemunha OO reside com o marido no rés do chão do prédio dos Réus.
Ambas esclareceram que foram residir para o prédio dos Réus com cerca de 18 e 8 anos, respetivamente, recordando com manifesta nitidez da configuração dos prédios ao tempo da compra dos seus pais.
Apesar do vinculo familiar que os une aos Réus, o Tribunal não notou qualquer hesitação ou falta de espontaneidade nos seus depoimentos.
A testemunha NN esclareceu que quando foi residir para a casa dos pais, tinha cerca de 18 anos, confirmando que à data a rampa já existia e que desde que para lá foi viver passava por ela com o seu carro para o estacionar no patamar coberto que ainda hoje existe e que o fazia a qualquer hora do dia, que “estava sempre livre”, nunca a sua passagem foi impedida.
Mais confirmou e explicou que acediam ao quintal pelo corredor, nunca a porta existente na cozinha servir essa finalidade. Esclareceu que o quintal sempre foi cultivado pelos seus pais e que o corredor por ser largo e cimentado era utilizado para passar com carrelas para o dito quintal, o que é coerente com as regras da experiência e do normal acontecer.
Mais referiu que o portão foi colocado pelo pai e pelo Sr. JJ, que o pagaram a meias, tendo ficado cada um com as respetivas chaves.
No mesmo sentido depôs a testemunha OO” (negrito nosso).
Assim, bem considerou, como resulta da reanálise da referida prova produzida, nenhuma credibilidade nos merecendo o depoimento das testemunhas PP, prima da Autora, QQ, tia dos Autores, RR, tio da Autora, e SS, também familiar dos Autores, tal como todas as testemunhas dos mesmos. Na verdade, prestaram estas um depoimento inverosímil, parcial, lacónico e que se revelou concertado e preparado para tentar convencer o Tribunal do que convinha aos Autores que dissessem. Bem motiva o Tribunal a quo: “Quanto aos factos não provados nenhuma prova direta, circunstanciada e sustentada foi feita quanto aos mesmos. De referir que a testemunha PP, prima dos Autores, referiu que no início da prima residir na casa que comprou, os Réus passavam no corredor e na rampa em causa nestes autos por favor, depois a prima disse-lhes que não podiam passar e que estes continuaram a passar por lá, mas de forma abusiva, sendo que esclareceu que este conhecimento advinha da prima lhe ter referido isso mesmo. Mais disse que num fim de semana que não sabe precisar, mas que se situa no ano de 2020, chegou a ouvir e ver uma menina, que pensa ser a filha dos Réus, a pedir à Autora se podia passar por favor na rampa. A testemunha QQ, tia dos Autores, também afirmou ter ouvido, em data que não sabe precisar, mas que situa mais ou menos em 2021, (tendo em conta que o seu pai foi viver para casa da Autora no inverno de 2020 e que o seu pai já lá estaria mais ou menos há cerca de um ano) o vizinho (réu) ter pedido à sobrinha (Autora) para ver se podia passar pela rampa, tendo esta autorizado a passagem. A testemunha SS, prima da Autora, referiu que conhece a casa daquela por visitar o seu avô que passou a aí residir desde finais de 2020 e que numa dessas visitas ouviu o Réu a pedir o favor se podia passar pela rampa, ao que a prima, ora Autora lhe disse que sim. Ora, todas estas testemunhas depuseram de forma manifestamente tendenciosa à versão trazida aos autos pelos Autores, comprometida com aquela, faltando espontaneidade ao discurso que muitas das vezes se apresentava mais como opinativo do que baseado em factos que de alguma forma tivessem experienciado. Não se mostrando ainda como razoável e coerente com as regras da experiência e do normal acontecer que as mencionadas testemunhas, todas elas familiares dos Autores e que em momento algum disseram que estiveram juntas em casa daqueles, tivessem ouvido os Réus ou a filha destes a pedir autorização para passarem pela rampa, sendo que nenhum soube esclarecer para onde pretendiam ir”. Também a testemunha RR, que apenas começou a ir a casa dos Autores quando eles a compraram, nada revelou saber com rigor, tendo-se limitado, igualmente, a manifestar opiniões suas.
Ficou este Tribunal convencido de que o discurso destas quatro testemunhas, todas familiares dos Autores, não corresponde à verdade, tendo todas elas revelado, uníssono, de modo inverosímil, pedidos de passagem por favor, tendo, ao invés, o desinteressado, circunstanciado, espontâneo, credível e convincente depoimento de todas as referidas testemunhas dos Réus incutido neste Tribunal a convicção de que falaram verdade.
O facto não provado constante da alínea i), que “Antes da celebração do acordo mencionado em 1 dos factos provados, os autores desconheciam que os réus acediam pelos locais descritos em 4 e 5 dos factos provados”, fundou-se nos depoimentos das testemunhas II e TT, tendo este Tribunal ficado com o convencimento, pelo que tais testemunhas referiram, de modo pormenorizado e absolutamente convincente, pela sua razão de ciência e espontaneidade, de que tal não corresponde à verdade. A testemunha II bem esclareceu que antes da escritura disse ao Autor, Marcelo, que conhece desde criança, que a rampa e o corredor de acesso ao quintal eram comuns, para passagem aos dois imóveis a que os autos aludem, e que referiu à agente imobiliária, TT, para esclarecer todos os interessados na casa da existência da servidão de passagem em causa nos autos, sendo que, a corroborar o referido, temos, mesmo, os emails trocados entre aquela testemunha e a agente imobiliária, em que aquela alerta para a necessidade de se fazer uma declaração da qual conste que os eventuais compradores têm conhecimento dos acessos comuns. A testemunha TT foi absolutamente convincente e esclarecedora ao afirmar, com pormenores, como refere o Tribunal a quo “que esteve presente nas visitas ao prédio e que aquela condição dos acessos comuns foi comunicada aos Autores. Aliás, referiu que tal assunto foi um tema dominante nas negociações e que o Autor constatou, na sequência de estarem a falar que não podiam impedir o acesso à rampa, que se o seu carro ficasse encostadinho não incomodava, razão pela qual conclui que os Autores perceberam a informação que lhes foi transmitida”. Ficou este Tribunal, tal como o Tribunal a quo, convencido de que a testemunha UU, também primo dos Autores, não falou a verdade quando referiu que o assunto da rampa e do corredor não foi discutido nas negociações, em que participou, bem denotando o seu depoimento, em particular aquando da acareação efetuada em audiência de julgamento, que não depôs com verdade, tentando, por diversas vezes, fugir à perguntas diretas que lhe foram colocadas.
Pelo modo seguro, assertivo e bem revelador de ciência e de desinteresse no desfecho da causa, ficou este Tribunal convencido de que as testemunhas II e TT falaram inteiramente a verdade, que a servidão de passagem existia, tendo os Réus e ante proprietários, livremente, desde a construção do prédio e até ao presente, passado pela rampa e corredor em causa para o seu prédio, a pé e com máquinas agrícolas e veículos, no convencimento de terem tal direito, à vista de todos e sem oposição de ninguém, que a existência da servidão foi falada aos autores, durante as negociações e imediatamente antes da escritura de compra e venda do imóvel, que os Autores bem perceberam o referido e que os mesmos, para prova da sua falsa versão apresentada nos autos indicaram familiares seus, como testemunhas, os quais vieram afirmar factos falsos e opinar sobre direitos de que nada sabiam.
Bem resultou provado, como acima se referiu, desde logo pelo depoimento da testemunha II, que de tudo sabia, como se esclareceu, a qual viveu na casa dos Réus, mandada construir, como repetidamente deixou claro, pelo seu pai na década de sessenta do século passado, tal como, posteriormente (na de setenta), o foi, a dos Autores, que: Por volta de meados da década de 1960, foi construído o prédio urbano descrito em 6.; Por causa do mencionado em 16, quando o prédio descrito em 6 foi construído por CC e HH, estes construíram a rampa que servia de acesso a um patamar e garagem localizados do lado esquerdo dessa mesma rampa, no sentido descendente, e ao quintal. Em meados da década de 1970, CC e HH construíram o prédio identificado em 1.; Antes da construção do prédio descrito em 1, foi deixado um corredor aberto, com cerca de 1,50 metros de largura e cerca de 6,50 metros de comprimento, ao nível do rés-do-chão, localizado a norte do prédio descrito em 6 que é de acesso ao quintal existente nas traseiras deste prédio; Quer o pavimento da rampa, quer o pavimento do corredor foram cimentados no momento da construção de ambos os prédios; CC e HH acediam da Avenida ... ao patamar e garagem localizados no rés-do-chão do prédio descrito em 6 e destes para a via pública, através da rampa cimentada, aí estacionando e guardando a sua viatura automóvel. Também através do corredor, pavimentado em cimento, CC e HH acediam a pé ao quintal sempre que assim o entendessem e sem qualquer limitação; Após a celebração do acordo mencionado em 13, os réus continuaram a aceder com o seu veículo ao rés-do-chão através da rampa, em direção à plataforma e garagem existentes neste local e daqui para a Avenida ...; Bem como a circular a pé, sem qualquer limitação, pelo corredor localizado a Norte do prédio descrito em 1 em direção ao quintal. CC e HH deixaram aberto o corredor de acesso ao quintal para por aí, de forma exclusiva, acederem ao quintal, transportando fertilizantes, recolhendo os frutos e os sobrantes da limpeza. Antes da celebração do acordo descrito em 13, JJ, KK e, posteriormente, FF e EE nunca se opuseram a que os réus circulassem pela rampa provindos da Avenida ... em direção à plataforma e garagem existentes no rés do chão do prédio descrito em 6. O mesmo sucedendo com a passagem pelo corredor existente entre os prédios descritos em 1 e 6. A porta não era utilizada para se passar para o quintal; Os réus utilizam a rampa do logradouro que faz parte do prédio descrito em 1 e que dá acesso ao rés-do-chão do mesmo, para estacionarem os seus veículos automóveis e para virarem à esquerda, no fim da descida da rampa, atento o sentido nascente-poente, acedendo a uma parte aberta do rés-do-chão do prédio descrito em 6. e onde os réus secam a roupa e estacionam os seus veículos.
E não se provou, por falta de prova, que: - Há mais de 30 anos que os acessos identificados em 4 e 5 dos factos provados foram de uso exclusivo dos autores e de JJ, KK e, posteriormente, FF e EE;- Os réus e CC, HH e II, para acederem a pé ou com veículos automóveis ao prédio identificado em 6 dos factos provados, desde a Avenida ..., sempre o fizeram diretamente através do seu terreno, que integra este prédio;- Para acederem ao quintal que integra o prédio descrito em 6, os réus e CC, HH e II, passavam através de uma porta que estava aberta na parede a poente deste prédio, a 4 metros de distância da esquina poente/norte desse prédio; - Em substituição da porta que foi fechada com blocos de cimento, os réus começaram a passar através de uma parcela de terreno cimentado, em forma retangular, com comprimento de 6,20 metros e largura de 1,50 metros, que constitui um corredor, existente no interior do rés-do-chão do prédio descrito em 1 dos factos provados e por baixo do 1.º andar do mesmo, contra a vontade dos autores; - Os autores, por diversas vezes, comunicaram aos réus que não autorizavam que passassem quer a pé quer com os seus veículos automóveis pela rampa do logradouro do seu prédio; - Como também comunicaram aos réus que não os autorizavam a passar pelo corredor, existente no rés-do-chão e por baixo do 1.º andar do prédio identificado em 1 dos factos provados; - A circunstância de os réus passarem contra a vontade dos autores no corredor e na rampa integrantes do prédio descrito em 1 dos factos provados causou angústia, ansiedade, tristeza e mal-estar psicológico aos mesmos; - Se os réus alguma vez passaram por esse corredor e rampa foi por mero favor dos autores ou contra a vontade dos mesmos; - Antes da celebração do acordo mencionado em 1 dos factos provados, os autores desconheciam que os réus acediam pelos locais descritos em 4 e 5 dos factos provados. Não indicam os Autores prova que imponha, sequer que justifique ou de modo, minimamente, seguro possa fundamentar as alterações solicitadas a este Tribunal de recurso.
Com efeito, como referimos e resultou de toda a prova produzida, foi efetuada a prova dos factos provados impugnados supra referidos. E não houve prova credível e convincente que permita que seja dada aos factos considerados não provados uma resposta no sentido de se terem como provados.
Bem concluem os apelantes nas suas alegações de recurso traduzir o que afirmam a sua opinião. Ora, com o convencimento pessoal dos Autores, infundado e parcial, não pode este Tribunal concordar. Na verdade, nenhuma prova credível e convincente resulta que permita a alteração pretendida, bem tendo os Réus logrado provar os referidos factos dados como provados. Ao invés, não lograram os Autores a prova dos factos constantes do elenco dos não provados que, por falta de prova, antes se tendo provado a versão contrária, foram julgados não provados.
Bem fundou o Tribunal a quo a sua convicção, que também é a nossa, não colhendo as razões dos apelantes.
Com efeito, integralmente revisitada a prova e vista a fundamentação da decisão da matéria de facto, supracitada, ficou-nos a convicção de a matéria de facto ter sido livremente e bem decidida, sendo que cada elemento de prova de livre apreciação, não pode ser considerado de modo estanque e individualizado. Há que proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura. Fazendo essa análise crítica, conjunta e conjugada de toda a prova produzida, e com base nas regras de experiência comum, não pode este Tribunal divergir do juízo probatório do Tribunal a quo, não havendo elementos probatórios produzidos no processo que imponham ou justifiquem decisão diversa (cfr. o nº1, do artigo 662.º) como pretendem os apelantes.
Assim, tendo-se procedido a nova análise da prova, ponderando, de uma forma conjunta e conjugada e com base em regras de experiência comum, os meios de prova produzidos, que não foram validamente contraditados por quaisquer outros meios de prova, pode este Tribunal concluir que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne a esta matéria de facto, se mostra conforme com a prova, de livre apreciação, produzida, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, que se mantém, na íntegra.
E, na verdade, não obstante as críticas que são dirigidas pelos Recorrentes, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência. Tendo a convicção do julgador apoio nos ditos meios de prova produzidos e na ausência de prova que permita fundar resposta diversa, é de manter a factualidade tal como decidido pelo tribunal recorrido, não sendo de aderir ao mero convencimento subjetivo dos Apelantes.
Correspondendo a convicção livre e adequadamente formada pelo julgador (ante a prova prestada perante si e, por isso, com oralidade e imediação), que também é, como vimos, a nossa, havendo concordância entre a apreciação probatória do Tribunal de 1ª instância e o Tribunal da Relação, tem de se concluir pela improcedência da apelação, nesta parte.
Não é pelo facto de a servidão não vir, como concluem os apelantes, referida nas escrituras públicas ou no registo predial que os factos provados impugnados que a densificam (sobejamente, como vimos, demonstrados pelos referidos elementos de prova pessoal, voluntariamente constituída, como resulta de toda a referida prova oferecida pelos Réus, por destinação do pai de família e, sempre, usada pelos Réus e anteriores proprietários do seu prédio, para passarem a pé, de veículo automóvel - para estacionarem no seu prédio - ou com máquinas agrícolas para o quintal) devem ser dados como não provados.
Improcede, pois, na totalidade, o recurso, na vertente da impugnação da matéria de facto.
Uma vez fixada a matéria de facto, cumpre reapreciar a decisão de mérito.
Julgou o Tribunal recorrido a ação improcedente, por não provada, e a reconvenção procedente, por terem os Réus logrado provar os factos constitutivos do direito que, por via reconvencional, se apresentaram, a atuar, factos esses densificadores da defesa útil que apresentaram, e, em consequência, condenou os Autores reconvindos a reconhecer que sobre o seu prédio urbano identificado nos autos existe a servidão de passagem, constituída por destinação de pai de família, condenando os Autores Reconvindos a não praticarem qualquer ato turbativo ou impeditivo do seu direito de passagem.
Sendo de manter a decisão de facto, também a de mérito merece confirmação, procedendo o pedido reconvencional formulado pelos Réus a título principal, por se mostrar constituída a invocada servidão de passagem, não se mostrar a mesma extinta pela afirmada desnecessidade, antes sendo usada e se revela necessária para passar, por forma a aceder ao prédio dos Réus - ao patamar e ao quintal -, designadamente de carro e com máquinas agrícolas.
Na verdade, conforme a efetuada subsunção jurídica do caso, os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no ponto 1, dos factos provados, e os Réus são donos do prédio identificado no ponto 6, de tais factos, o que pacífico é. Contudo, não é por das escrituras e dos registos, estes a permitir presumir a propriedade, nos termos consagrados no art. 7º, do Código de Registo Predial, não figurar a servidão de passagem que a mesma se não constituiu e não tem existência legal. E, provados os factos constitutivos do direito, conducentes à automática constituição da servidão, nada obsta ao reconhecimento da mesma e a que se imponha o seu respeito.
Analisemos.
A servidão é um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro, pertencente a dono diferente (cfr. definição constante do artigo 1543º, do Código Civil, diploma a que pertencem, doravante, todos os preceitos citados sem outra referência) e constitui exceção ao princípio geral do conteúdo, tendencialmente ilimitado, do direito de propriedade, consagrado no art. 1305º, devendo, por isso, conter-se nos seus precisos limites e a atualização do seu conteúdo não pode traduzir-se num extravasamento do fim para que foi constituída[16].
O art. 1544º, dispondo sobre o seu “Conteúdo”, consagra poderem ser objeto da servidão “quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante”.
Assim, “no que toca à natureza das utilidades que podem preencher o conteúdo da servidão, o artigo (…) admite que a servidão se constitua validamente para garantir meras utilidades futuras ou eventuais”. E “não pode olhar-se apenas ás necessidades ou às vantagens do prédio no seu estado natural, mas também às utilidades que ele pode gozar, através da afetação especial a que se encontra adstrito”[17].
O artigo 1565.º, com a epígrafe “Extensão da servidão”, consagra que:
“1. O direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação.
2. Em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente”.
Deste modo, “a servidão apresenta-se como uma restrição ao direito de propriedade, sendo um direito real de gozo, que pode ter por objecto quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, desde que susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor (artº. 1544º., do Cód. Civil)”, sendo “reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título, e compreendem tudo quanto seja necessário para o seu uso e conservação (artº. 1564º., do Cód. Civil)” e havendo “dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente (artº. 1565º., nº. 2 do Cód. Civil)”[18].
“Extensão da servidão”, por referência ao Direito de servidão, com uma significação quantitativa, exprime a concretização prática e os limites do respetivo modo de exercício, sendo que, quer na extensão quer no modo de exercício, as servidões se regulam pelo título constitutivo e, na insuficiência deste, pelas normas dos arts 1565º e ss. do CC[19].
Com efeito, o nº2, deste último preceito, regula, apenas, para o “caso de dúvida”, o modo como, as faculdades e os poderes necessários ao exercício, uso e conservação do direito de servidão devem ser exercidos, sendo que “a sua determinação dependerá de um juízo de proporcionalidade, a realizar através da comparação entre o que é necessário para a satisfação das necessidades normais e previsíveis do prédio dominante e o prejuízo que um determinado modo de exercício acarreta para o prédio serviente”[20].
Assim, é, desde logo, necessário determinar o que se integra nas “necessidades normais e previsíveis do prédio dominante”, para, procurando a forma de exercício da servidão que importe menor prejuízo para o prédio serviente[21], se lograr encontrar solução que observe e respeite os juízos de adequação e proporcionalidade impostos pelas circunstâncias do caso.
Neste preceito, “como primacial objetivo, manda-se atender às necessidades normais e previsíveis do prédio dominante; por outro lado, entre as várias formas que possivelmente satisfaçam esse desideratum, escolher-se-á a que menos onerosa se torne para o prédio serviente”[22].
Prevendo “concretamente as necessidades normais e previsíveis, a disposição sacrifica as necessidades anormais ou que surjam imprevisivelmente”[23].
E “quais sejam as necessidades normais e previsíveis do titular do prédio dominante dependerá do tipo de servidão (de águas, de passagem, de vistas), das características do prédio dominante (prédio urbano destinado a uma atividade industrial, prédio rústico afeto à pecuária) e da efetiva utilização do prédio dominante e sua extensão”[24]. Afasta, pois, o legislador necessidades anormais ou imprevisíveis.
A “forma de exercício da servidão que importe menor prejuízo para o prédio serviente dependerá, semelhantemente, das características daquele (urbano ou rústico), da sua afetação económica (habitação, agricultura, etc.), da sua efetiva utilização pelo titular e do investimento que este haja realizado para o seu aproveitamento”[25].
No caso, estamos perante a constituição de uma servidão de passagem por destinação do pai de família – cfr. nº1, do art. 1547º, que dispõe, quanto ao modo de constituição das servidões prediais, poderem as mesmas ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família – estatuindo o artigo 1549.º, quanto a estas:
“Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, posto em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento.”
Assim, a par da usucapião, a destinação do pai de família constitui uma forma originária não negocial de constituição de servidões aparentes, sendo que enquanto os prédios pertencerem ao mesmo dono, por imperativo da conhecida máxima nemini res sua servit, a servidão não existe (dado o nosso ordenamento jurídico não admitir a servidão do proprietário), surgindo a figura da servidão, do modo automático, a verificar-se separação dos prédios, passando a ser de proprietários diferentes, na verificação de todos os pressupostos[26].
São pressupostos, cumulativos, da constituição de uma servidão por destinação do pai de família:
i) os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, terem pertencido ao mesmo dono;
ii) existirem sinais visíveis e permanentes que revelem a existência de uma relação estável de serventia de um prédio (serviente) para o outro (dominante);
iii) os prédios se separem quanto à sua titularidade;
iv) não existir no respetivo documento declaração contrária à constituição do encargo[27].
Assim, temos que só as serventias aparentes - uma vez que se exige que os sinais sejam visíveis e permanentes - podem estar na base da constituição de servidões por destinação do pai de família. E podem estas ser excluídas por negócio jurídico ou ato voluntário, mediante declaração expressa em contrário ao tempo da separação dos prédios, no respetivo documento.
Revertendo para as circunstâncias do caso temos que resultou demonstrado que:
- os prédios referidos nos autos, propriedade, um, dos autores, o outro, dos Réus, pertenceram ao mesmo proprietário (HH e seu marido CC e, por morte deste, seus herdeiros, a esposa, HH e a filha, II);
- o proprietário inicial dos prédios (que hoje pertencem a Autores e Réus, construiu o prédio presentemente dos Réus e só depois o agora dos Autores (pontos 14 e 18 dos factos provados)) antes de construir o prédio dos Autores, construiu a rampa que servia de acesso a um patamar e garagem localizados do lado esquerdo dessa mesma rampa, no sentido descendente, e ao quintal (ponto 17 dos factos provados) e deixou um corredor aberto, com cerca de 1,50 metros de largura e cerca de 6,50 metros de comprimento, ao nível do rés-do-chão, localizado a norte do prédio que hoje pertence aos Réus, de acesso ao quintal existente nas traseiras desse prédio (ponto 19 dos factos provados), quer o pavimento da rampa quer o pavimento do corredor foram pavimentados no momento da construção dos prédios (ponto 20 dos factos provados) e foi colocado um portão com cerca de 2,70 metros de largura localizada na Avenida ... para aceder ao prédio que hoje pertence aos Réus (ponto 21 dos factos provados), assim resultando provados sinais visíveis e permanentes da existência de uma relação de serventia entre os prédios, exercida nos termos constantes dos pontos 21 a 27 dos factos provados.
- em 12 de outubro de 2001, HH e II procederam à venda do prédio que hoje pertence aos Autores a JJ e KK (ponto 13 dos factos provados), assim ocorrendo a separação dos prédios, que passaram a ter diferentes donos.
- do documento que formalizou o ato de separação dos prédios não resulta estipulação do afastamento da constituição da servidão.
Bem entendeu o Tribunal a quo resultarem, assim, preenchidos os pressupostos que permitem afirmar estar o prédio dos Autores onerado com uma servidão de passagem pela rampa e corredor para acesso ao patamar, com coberto, e ao quintal, direito este constituído por destinação do pai de família em benefício dos prédios dos Réus, uma das formas originárias de constituição de servidões.
Constituída se mostra, automaticamente, a servidão afirmada nos autos, como decidiu a sentença recorrida, verificados se encontrando os quatro pressupostos cumulativos de que a mesma estava dependente, existindo, pois, a servidão em causa. Acresce referir que, nos termos do nº1, do artigo 1565.º, no que concerne ao modo de exercício das servidões, como já supra se mencionou, o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação e o n.º 2 do referido artigo consagra que, no caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente, devendo, pois os Autores absterem-se de praticar atos impeditivos do direito de passagem dos Réus pelos locais em causa para acederem aos seus patamar (com coberto) e quintal.
Pretendem os Autores que, a ser reconhecida a servidão, se declare extinto, por desnecessidade, o direito de servidão de passagem.
Constituído se mostrando tal direito por destinação do pai de família, cumpre, agora, analisar da extinção do mesmo, como pretendem os Autores.
Consagram os nº1, 2 e 3, do artigo 1569º, casos de extinção das servidões.
Na doutrina vemos o entendimento de em todos os casos em que a constituição da servidão não provenha de usucapião ou não seja legal, a extinção da servidão só poderá ter lugar quando se preencherem (e se se preencherem) os requisitos necessários para que o não uso opere[28], sendo que as servidões constituídas por destinação do pai de família não podem ser extintas por desnecessidade; só podendo ser extintas nas situações referidas no nº1 deste artigo, designadamente o não uso durante vinte anos, qualquer que seja o motivo, conforme previsto na alínea b)[29].
E bem decidiu o Tribunal a quo, seguindo a jurisprudência dos tribunais superiores, no sentido de uma “servidão de passagem constituída por destinação de pai de família tem por base um facto voluntário, podendo ser constituída mesmo quando não é estritamente necessária, pelo que não é possível a sua extinção pela sua desnecessidade (…). Ou seja, é-lhe inaplicável o disposto no artigo 1569.º, n.º 2 e 3 do CC”, dada a sua natureza voluntária[30]. Como decidiu o STJ, “Permitindo a lei que a servidão por destinação de pai de família se constitua, mesmo quando não estritamente necessária, não pode extinguir-se por desnecessidade, porque, então, nem se poderia constituir (art. 1569º, nº2, do CC)” e “Como tal, a pretensão de exercício de tal servidão, mesmo sem necessidade, não configura abuso de direito (Ac. STJ de 29/5/2014, proc. 1183/10: Sumários, 2014, pág. 346)[31]
Outrossim, resulta, mesmo, que os Réus passam, quer pela mencionada rampa quer pelo dito corredor, no exercício de um direito, que usam, o direito de servidão de passagem, constituído, automaticamente, por destinação do pai de família, e dela necessitam para aceder a esta parte do seu prédio, designadamente com automóveis (ao patamar) e com máquinas agrícolas (ao quintal), constituída se mostrando a servidão, que existe e bem foi mantida, por não ter operado qualquer causa extintiva, não se estando perante situação que configure invocado caso de extinção da mesma.
Suscitam, ainda, os recorrentes, também com vista a afastar, a impedir, o direito que se reconheça existir, a questão do abuso de direito dos Réus reconvintes. Concluem “a pretensão dos réus mesmo que tivessem direito - mas não têm - consubstancia um manifesto ABUSO DE DIREITO consignado no artigo 334º do Código Civil que é do conhecimento oficioso deste Venerando Tribunal, pois o titular desse pretenso direito excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, atentas as respostas dadas pelo Senhor Perito aos quesitos 3º, 4º, 5º e 6º apresentados pelos Autores e constante de folhas 3, 4, 5, 6 e 7 do relatório pericial e toda a matéria de facto provada nos PONTOS nºs 32, 33, 34, 35 e 36 da sentença recorrida”.
Visando o recurso o reexame da matéria apreciada pela primeira instância na decisão recorrida, não a apreciação de questões novas que não sejam de conhecimento oficioso (cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2), sendo aquele um meio específico de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se visa a sua modificação - o recurso é um “pedido de reapreciação de uma decisão judicial apresentado a um órgão judiciário superior”[32] e não via para suscitar a apreciação de questões novas, não destinado a suscitar a apreciação de questões novas que não sejam de conhecimento oficioso - contudo, a existência de exercício abusivo de direito suscitada, de conhecimento oficioso, é de apreciar.
Estatui o art. 334º, do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O abuso de direito, cuja aplicação depende de terem sido alegados os factos e provados os referidos pressupostos, de conhecimento oficioso, é uma válvula de segurança do sistema.
“As regras jurídicas não se aplicam isoladamente. Em cada caso, é sempre a ordem jurídica, no seu todo, que é chamada a depor. Esta, através da boa-fé e dos princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente, está sempre disponível para o controlo interno do exercício dos direitos. Quando atuadas em contradição com a boa fé (com o sistema, no seu essencial), há abuso, normalmente manifestado através de algum dos tipos abusivos. (…) O abuso é, hoje, um instituto objetivo. Não depende de culpa do agente ou de quaisquer intenções suas”[33].
E a verificação de “desproporção entre a vantagem auferida pelo titular do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem constitui … abuso de direito, por atentado à boa fé. Está em especial jogo o princípio da primazia da materialidade subjacente. As valorações subjacentes à atribuição de um direito subjetivo nunca são absolutas”[34].
Não se mostra abusivo o exercício de um direito que vem a ser exercido pelos Réus/Reconvintes, havendo ação associada a uma conduta justificada por um legítimo interesse. Não estamos perante uma atuação desequilibrada nem perante desproporção entre o benefício pretendido pelos Réus e o sacrifício imposto aos Autores[35].
A pretensão de exercício de servidão por destinação do pai de família, mesmo que sem estrita necessidade, não configura abuso de direito, antes traduz o normal exercício de um direito por quem dele é titular. Tendo os Réus direito de passar pela rampa e corredor existentes no prédio dos Autores, para o seu patamar e quintal, a pé e de carro e a, por eles, fazer passar máquinas agrícolas para o ser quintal, não se configura o referido pelos Autores situação de exercício abusivo de direito, antes o normal exercício do direito constituído, originariamente, por destinação do pai de família, não sendo imprescindível estrita necessidade.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Ana Olívia Loureiro
Manuel Domingos Fernandes