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IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
RESERVA DE PROPRIEDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Sumário
I – O artigo 662.º, n.º 1, do CPC, compreende a possibilidade de actuação oficiosa da Relação em matéria de reapreciação da matéria de facto, por via da aplicação de regras vinculativas de direito material probatório que tenham sido ignoradas ou desrespeitadas pela decisão recorrida, situações em que o poder de cognição da segunda instância não está dependente do cumprimento do triplo ónus previsto no artigo 640.º do CPC (ao contrário do que sucede nas situações em que a alteração da matéria de facto está dependente da reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal), podendo nem sequer depender da própria impugnação da decisão da matéria de facto, desde que a atuação da Relação se contenha no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e nos limites objectivo e subjectivo do recurso. II – No caso de alienação de um veículo automóvel com reserva de propriedade, devidamente inscrita no registo, o alienante mantém o direito de propriedade reservada, cabendo ao adquirente uma expectativa real de aquisição, igualmente oponível a terceiros. III – No conceito de responsável civil, para efeitos da legitimidade plural prevista no artigo 62.º, n.º 1, do SORCA, incluem-se todos os que, de acordo com a lei civil, possam responder, no caso concreto, pela obrigação de indemnizar os danos com fundamento na responsabilidade civil por factos ilícitos ou pelo risco. IV – A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo proprietário, visto que este é, por regra, a pessoa que aproveita das vantagens dessa utilização e que, por isso, deve suportar os riscos próprios da mesma. V – Tal presunção não se aplica ao titular da propriedade reservada, relativamente ao qual não é possível afirmar ser a pessoa que, por regra, tem o poder de facto sobre o veículo, que beneficia das vantagens da sua utilização e à qual cabe controlar o seu funcionamento, não sendo, sequer, sujeito da obrigação de segurar. VI – Ainda que não seja titular do direito de propriedade, o adquirente do veículo com reserva de propriedade é, por regra, o detentor real do veículo e o beneficiário da sua utilização, cabe-lhe zelar pelo seu funcionamento e é o sujeito da obrigação de segurar, pelo que lhe é aplicável a presunção de direcção efectiva e interessada do veículo. VII – Significa isto que a mera alegação e posterior demonstração da qualidade de adquirente com reserva de propriedade permite equacionar a sua responsabilidade objectiva, ao abrigo do disposto no artigo 503.º do CC, pelo que a circunstância de não ter sido demandado juntamente com o FGA e o condutor do veículo configura uma preterição do litisconsórcio necessário passivo previsto no artigo 62.º, n.º do SORCA.
Texto Integral
Proc. n.º 3827/22.9T8MTS.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
A... Unipessoal, Lda., com sede na Rua ... Porto, intentou a presente acção declarativa comum contra AA, com residência na Rua ..., ... Porto, e Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Avenida ..., ..., ... Lisboa.
Alegou, em essência, os danos que sofreu em virtude do embate entre o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-ZD, na altura conduzido pelo seu proprietário, AA, e o veículo ligeiro de passageiros da autora, com a matrícula ..-XB-.., cuja ocorrência imputa à conduta culposa do condutor do primeiro. Mais alegou que a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ZD não estava coberta por qualquer seguro válido. Alegou ainda que o Fundo de Garantia Automóvel (doravante FGA) procedeu ao pagamento da indemnização pelos danos sofridos, mas não considerou nessa indemnização a totalidade dos dias de paralisação do veículo, nem o valor despendido pela autora com o aparcamento do mesmo até à data em que o FGA assumiu a responsabilidade e emitiu a documentação para pagamento da indemnização, danos que ascendem a um valor total de 10.712,20 €, pelo qual o réu AA é solidariamente responsável.
Conclui pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe:
- A quantia de 9.064,00 Euros, a título de capital pelos lucros cessantes decorrentes dos 88 dias, à razão diária de 103,00 Euros, em que o veículo automóvel de que é proprietária, com a matrícula ..-XB-.., esteve paralisada e impossibilitada de realizar qualquer transporte de passageiros;
- A quantia de 1.648,20 Euros, a título de capital pelos 67 dias de aparcamento do veículo automóvel de que é proprietária, com a matrícula ..-XB-.., na oficina B..., à razão diária de 20,00 Euros mais IVA;
- Juros de mora desde a data da citação dos réus até efetivo e integral pagamento.
O réu FGA apresentou contestação onde, para além de impugnar parcialmente a factualidade alegada pela autora, sustentou que o acidente se ficou a dever à conduta culposa do condutor do veículo com a matrícula ..-..-ZD, mas que, à data do sinistro, ainda era válido o contrato de seguro celebrado com a C... – Companhia de Seguros, S.A., dado que a alienação do veículo alegada por esta seguradora apenas veio a ocorrer em data posterior ao sinistro. Mais sustentou que os valores peticionados pela autora são exagerados e que se encontram limitados nos termos do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
Concluiu pugnando pela improcedência da ação.
Também o réu AA apresentou contestação, onde impugnou, por desconhecimento, a factualidade alegada e arguiu a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, alegando que o veículo ZD não era conduzido por si, mas sim BB.
Concluiu pugnando pela sua absolvição da instância.
Notificada para esse efeito, a autora veio responder às excepções invocadas nas contestações.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade processual do réu AA, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos e em face do exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:
1. Condenam-se os réus, AA e Fundo de Garantia Automóvel, a pagar solidariamente à autora, A..., Unipessoal, Lda., a quantia global de 10.672,52 Euros (dez mil seiscentos e setenta e dois euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal aplicável às obrigações emergentes de transações civis, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
2. Condenam-se a autora e os réus no pagamento das custas processuais na proporção dos respetivos decaimentos, fixando-se em 1% a responsabilidade da autora e em 99% a responsabilidade dos réus, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam».
*
Inconformada, o réu FGA apelou da sentença, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
«1) Conforme se constata de um documento (não impugnado) junto aos autos em 09.08.2023 (e notificado à Autora em 30.08.2024 pela referência citius n.º 451238317), a Conservatória do Registo de Veículos do Porto veio atestar, por certidão, que o proprietário do veículo de matrícula ..-..-ZD, à data em que ocorreu o sinistro aqui em causa, não era o Réu AA, mas antes CC;
2) A Autora não demandou, conjuntamente, o FGA e os responsáveis civis (condutor e proprietário do veículo de matrícula ..-..-ZD);
3) Desta feita, em virtude de a Autora não ter demandado, conjuntamente, o FGA e os responsáveis civis (condutor e proprietário do veículo lesante), não poderá o FGA ser condenado, de forma alguma, nos presentes autos, uma vez que este é parte processualmente ilegítima, atento ao facto de estarmos perante uma situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo;
4) Ademais, uma vez que a lesada (in casu, a Autora) não fez valer o seu direito contra o proprietário do veículo lesante – tendo, de certa forma, perdido esse direito – não faz sentido algum que o FGA passe da qualidade de garante desse proprietário para figurar como um dos devedores principais;
5) Face ao supra exposto, impõe-se absolver o FGA da instância.
6) O Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto nos artigos 62.º e 54.º, ambos do Dec. Lei nº 291/2007 de 21 de agosto e ainda, o disposto no artigo 30.º e 33.º do CPC;
Sem prescindir,
7) O Tribunal a quo entendeu que o veículo de matrícula ..-..-ZD não possuía seguro válido e eficaz à data do sinistro, motivo pelo qual considerou que o Recorrente FGA seria o responsável pelo pagamento dos danos peticionados pela Autora.
8) Acontece que, tal conclusão não corresponde à verdade.
9) O Recorrente FGA juntou com a sua contestação um documento emitido pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), o qual atesta que o veículo de matrícula ..-..-ZD possuía seguro válido e eficaz à data do sinistro.
10) Ora, salvo o devido respeito, confrontada com o documento emitido pela ASF e ainda, com as comunicações que a própria Autora junta com a petição inicial, deveria a Autora ter demandado (ou chamado ao processo) a Seguradora em causa.
11) Sendo que, conforme se constata pelos pontos 10, 11, 12, 13 dos factos provados, a verdade é que existia, indubitavelmente, um contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...42 na Seguradora C..., Companhia de Seguros, S.A (através da marca D...).
12) Acresce que, atento ao facto de a ASF ser a autoridade nacional responsável pela regulação e supervisão, quer prudencial, quer comportamental, da atividade seguradora, resseguradora, dos fundos de pensões e respetivas entidades gestoras e da mediação de seguros, devemos entender que o documento junto aos autos faz prova plena dos factos aí constantes.
13) Deste modo, deve o Tribunal alterar o ponto 2. dos factos dados como não provados e, nesse sentido, dar como facto provado que: “O veículo de matrícula ..-..-ZD, à data do embate, tinha a responsabilidade civil por danos provocados a terceiros transferida para a C..., Companhia de Seguros, S.A, com a apólice n.º ...42”.
14) Face ao supra exposto, impõe-se absolver o FGA do pedido.
15) O Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto no artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto e 362.º e seguintes do Código Civil.
Ainda, sem prescindir,
16) Dispõe a alínea a) do n.º 2 do artigo 52.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto que “estão também excluídos da garantia do Fundo de Garantia Automóvel os danos materiais causados aos incumpridores da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel”.
17) A Autora intentou a presente ação contra o Recorrente FGA e o Réu AA peticionando desses Réus o pagamento de determinadas quantias respeitantes a danos materiais/patrimoniais.
18) O Tribunal a quo julgou como facto não provado: “O veículo da Autora, com a matrícula ..-XB-.., tinha a responsabilidade civil por danos provocados a terceiros (…)” – Cfr. ponto 1 dos factos não provados.
19) Pelo que se conclui que a Autora circulava sem beneficiar de seguro válido e eficaz à data do sinistro.
20) Assim, os danos peticionados pela Autora estão inelutavelmente excluídos da garantia do FGA, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 52.º do Dec. Lei n.º 291/2017, de 21 de agosto.
21) Face ao supra exposto, impõe-se absolver o FGA do pedido.
22) O Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 52.º do Dec. Lei nº 291/2007 de 21 de agosto.
Contudo, caso V. Exa. entenda não absolver o FGA,
23) In casu, uma vez que a lesada não procedeu a qualquer pagamento e tampouco lhe foi exibida ou emitida qualquer fatura (Vide documentação junta aos autos), esta não viu o seu património diminuído e tampouco, existe título idóneo que ateste que esta irá ver o seu património diminuído.
24) Portanto, conclui-se, forçosamente, que a mesma não tem interesse direto em demandar, pelo que carece de legitimidade ativa para peticionar nos presentes, pelo menos, o valor atinente aparcamento do veículo de matrícula ..-XD-.. nas instalações da B... – Cfr. artigo 30.º n.º 1 do CPC.
Caso assim não se entenda,
25) Veja-se que a Autora não juntou qualquer fatura respeitante ao serviço do referido aparcamento, nem procedeu a qualquer pagamento.
26) Ademais, no seguimento da inquirição de um dos sócios da Autora relativamente aos pagamentos a efetuar à entidade B... foi ordenada a extração de uma certidão com cópia da gravação do depoimento dessa testemunha, para que a mesma fosse remetida à Autoridade Tributária para investigação de eventual infração tributária.
27) Pelo que, face ao motivos supra expostos, não pode o Tribunal a quo dar com provado o ponto 23 dos factos provados, devendo, por seu turno, considerar como facto não provado.
28) Face ao exposto, deverá absolver o FGA e o Réu AA do pedido acima referido.
Caso V. Exa. assim não entenda
29) Face ao exposto, entre outros, nos artigos 25) e 26) das presentes conclusões, impõe-se que o Tribunal que dê como provado o ponto 23. dos factos provado na sua integralidade, devendo o referido ponto referir o seguinte: “23. Tendo essa oficina exigido à autora o valor de 20,00 Euros por cada dia que o veículo se encontrou aparcado nas suas instalações”
30) Pelo que, nesta tese, apenas deverá condenar o FGA e o Réu AA no pagamento do valor de € 20,00 por cada dia que o referido veículo se encontrou aparcado nas instalações da dita oficina, num total de 67 dias.
Ainda, mesmo que assim não se entenda,
31) Sem prejuízo de se considerar como facto provado que a oficina exigiu à Autora o valor de 20,00 Euros acrescido de IVA, a verdade é que, uma vez que não consta dos autos qualquer fatura emitida, não pode o tribunal condenar o FGA no montante atinente ao IVA.
Sem prescindir,
32) O montante indemnizatório arbitrado a título de dano pela privação do uso é excessivo.
33) O montante Indemnizatório a título de dano pela privação do uso deve fixar-se em montante não superior a € 1.000,00 (mil euros)
34) O Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto no n.º 3 do artigo 566.º o n.º 2 do artigo 762.º, ambos do Código Civil.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, nos termos supra expostos».
A autora respondeu à alegação do recorrente, pugnando pela total improcedência da apelação.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes as questões a decidir:
- O erro no julgamento da matéria de facto descrita no ponto 23 dos factos provados e no ponto 2 dos factos não provados;
- A ilegitimidade processual do réu FGA, por preterição de litisconsórcio necessário passivo;
- A exclusão da garantia do FGA, nos termos previstos no artigo 52.º, n.º 2, al. a), do Decreto-Lei n.º 291/2001, de 21 de Agosto;
- A inexistência do dano relativo ao aparcamento do veículo sinistrado e a consequente falta de legitimidade activa para peticionar o respectivo valor;
- A quantificação da indemnização devidas pelos danos apurados.
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III. Fundamentação A. Os Factos 1. Factos julgados provados pelo Tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. A autora tem por objeto social o “transporte de passageiros efetuado em veículos ligeiros, com capacidade até nove lugares incluindo o condutor, que também poderá ser efetuado em veículo descacterizado a partir de plataforma eletrónica (TVDE); Atividades de agência de viagens e animação turística, organização de viagens turísticas e atividades de operadores turísticos; Organização, promoção e realização de eventos sociais, culturais e desportivos; Recolha, tratamento, transporte e entrega de mercadorias, efetuadas por meio de motociclos ou veículos automóveis ligeiros com peso bruto até 2500 kg, inclui entregas ao domicilio e serviços de estafetas; Transfer de passageiros em veículo automóvel ligeiro com lotação até nove lugares; Aluguer de veículos automóveis ligeiros, motociclos e autocaravanas. Comércio de veículos automóveis ligeiros e pesados. Comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis.”.
2. No dia 13 de Agosto de 2019, pelas 06h55m, o gerente da sociedade autora, DD, encontrava-se a fazer um transporte de passageiros, com o veículo de matrícula ..-XB-.., na A..., sentido Porto/....
3. DD circulava na via de trânsito da esquerda, quando se deparou com o veículo de matrícula ..-AG-.. parado, em consequência de avaria, nessa mesma via de trânsito.
4. O condutor do veículo ..-XB-.. abrandou assim a marcha e aguardou que fosse possível mudar de via de trânsito.
5. Enquanto aguardava para mudar de via de trânsito, o veículo com a matrícula ..-..-ZD, conduzido pelo réu AA, que circulava com velocidade não concretamente apurada, não conseguiu imobilizar o veículo, tendo acabado por embater na traseira do carro conduzido por DD, que se encontrava ao Km 4.6, na autoestrada A..., sentido Porto/....
6. Como resultado do embate, o carro conduzido pelo gerente da autora foi bater na traseira do carro que se encontrava avariado na via de trânsito, com a matrícula ..-AG-...
7. No dia do embate, o céu encontrava-se limpo, o tempo seco, nada havendo que obstruísse a visibilidade.
8. DD conduzia de forma atenta e a velocidade muito reduzida, transportando inclusive passageiros.
9. Após o embate, a autora efetuou a respetiva participação do sinistro à seguradora E....
10. A autora efetuou também participação do sinistro à D..., S.A., o que deu origem ao processo de sinistro n.º .../...74/2019.
11. A 26/08/2019, a D..., S.A. remeteu um email à autora com o seguinte teor: “V/Ref: Veículo: PEUGEOT Matrícula: ..-XB-.. Data do Acidente: 13/08/2019 Ref: Processo nº: .../...74/2019 Ramo: Automóvel Apólice nº: ...42 Conclusão Peritagem: 20/08/2019 Código Reporte: ...02 Para: A... Unipessoal, Lda Exmos. Senhores, Informamos que procedemos à peritagem do veículo em referência, da qual se concluiu estarmos perante uma PERDA TOTAL, uma vez que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável e o valor estimado para os danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassar o valor venal do veículo antes do sinistro. A estimativa do valor da reparação, efectuada por F... S.A. e de comum acordo com a oficina escolhida, totalizou 15757.62 €. Após consulta feita ao mercado e de acordo com as tabelas do Eurotax, o valor de venda do veículo, à data do acidente, era de 14000.00 €. Informamos ainda que o valor apurado para o salvado foi de 4555.00 €, conforme proposta de: G... LDA ... ... LISBOA Dado o nosso processo ainda se encontrar em fase de instrução e a peritagem ter sido efectuada a título condicional, não nos é possível, de momento, pronunciarmo-nos quanto à responsabilidade do acidente, nem assumirmos quaisquer compromissos quanto ao ressarcimento dos danos e prejuízos resultantes do mesmo. Salientamos que, após a recepção desta comunicação, a D... não poderá ser responsabilizada por eventuais prejuízos decorrentes de atrasos na regularização do sinistro, com custos de recolhas em oficinas ou garagens, privação de uso do veículo ou outros. Continuaremos à disposição para qualquer esclarecimento necessário e apresentamos os nossos melhores cumprimentos. Atentamente, EE Gestor de Sinistros G Sinistros - Auto Part D..., S.A.”.
12. Tendo a autora, na pessoa da agente de seguros FF, respondido, em 26/08/2019, nos seguintes termos: “Boa tarde, Exmos. Srs. O nosso cliente recebeu a comunicação abaixo. Reiteramos a informação de que a viatura ..-XB-.. é de uso profissional – trabalha para a plataforma UBER -, pelo que está desde a data do acidente imobilizada e sem poder circular, com todas as perdas que daí advêm, perdas essas pelas quais não é responsável, e que terá de imputar a quem de direito. Solicitamos que possam, com urgência, pronunciarem-se sobre as responsabilidades, pois como podem compreender, sem o apuramento das responsabilidades e sem o valor da indemnização pago o nosso cliente não pode adquirir nova viatura e por consequência, não pode minimizar o impacto da paralisação da mesma. Certos da vossa melhor compreensão, o lesado aguarda com brevidade a vossa resposta, Com os melhores cumprimentos, FF.”.
13. No dia 02/09/2019, a D... respondeu o seguinte: “Exmos. Srs. No âmbito das averiguações efetuadas às circunstâncias em que ocorreu o sinistro, viemos a verificar que o Tomador do Seguro vendeu o veículo ..-..-ZD em data anterior ao sinistro. Neste contexto, e dado que o contrato deixou de produzir efeitos desde a data da alienação, estamos impedidos de nos responsabilizar pelas consequências do acidente. Junto anexamos elementos processuais para encaminhamento de reclamação para o Fundo de Garantia Automóvel. Ficamos ao dispor para qualquer esclarecimento adicional. Melhores Cumprimentos, EE D..., S. A. Grupo H...”.
14. No dia 03/09/2019, a autora comunicou o sinistro ao Fundo de Garantia Automóvel, dado origem ao processo de sinistro n.º ...92.
15. No dia 08/11/2019, o Fundo de Garantia Automóvel respondeu nos seguintes termos: “Exmos. Senhores Reportamo-nos ao acidente e processo acima identificados. Junto enviamos o(s) recibo(s) de indemnização n.o(s) ...20, no(s) montante(s) de 9445,00 euros. Para efeitos de pagamento, pode a pessoa lesada optar por: i. receber através de transferência bancária, enviando para a Tesouraria da ASF (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), sita na Av. ..., ..., em Lisboa (CP ... LISBOA), documento bancário que identifique nome e NIB do beneficiário, indicando o número do Processo FGA; após confirmação do crédito em conta, o recibo de indemnização deverá ser devolvido para a mesma morada; ii. receber na Tesouraria da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, na morada acima indicada, com marcação prévia de pagamento, através do telefone ...24; iii. devolver o recibo devidamente assinado, acompanhado de fotocópia do Bilhete de Identidade / Cartão de Cidadão / Passaporte ou, tratando-se de pessoa coletiva, de fotocópia de certidão atualizada que permita aferir os poderes de quem assina, a fim de receber, por correio, o respetivo cheque. Para qualquer esclarecimento adicional acerca do pagamento, podem ser contactados os Serviços de Tesouraria, para o número de telefone acima referido. Com os nossos cumprimentos, (…)”.
16. No dia 13/12/2019, o Fundo de Garantia Automóvel propôs o seguinte: “N/Proc. ...92 Exmos. Senhores, Reportamo-nos ao acidente ocorrido no dia 13-08-2019. Analisado o nosso processo, verificamos que o FGA já assumiu uma indemnização, por perda total do veículo ..-XB-... Em relação à imobilização, verificamos que não há no nosso ordenamento jurídico legislação relativamente aos veículos de transportes de passageiros associados à plataforma UBER. Por esse motivo, considera o Fundo de Garantia Automóvel que deve ser utilizado o Acordo de Paralisação associados aos Táxis. Nesse sentido, foi considerado um período de imobilização de 14 dias, desde o dia do acidente até à comunicação da D..., o que perfaz um valor final de 798,70 euros, a um valor diário de 57,05 euros. Em relação aos danos nos óculos, verificamos que as autoridades policiais não fazem registo do referido dano, pelo que não podemos dar sequência ao pedido. Caso haja aditamento à participação de acidente, no qual o agente confirme que, no dia do sinistro, foi-lhe dado conhecimento do referido danos estamos disponíveis mas por lapso não o mencionou o documento policial, estamos disponíveis em rever a nossa posição. Com os nossos cumprimentos, GG FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL TÉCNICO DE REGULARIZAÇÃO DE SINISTROS Rua ... ... Porto ...09 ... ”.
17. A autora não concordando com os dias de paralisação propostos, respondeu nesse mesmo dia mencionando o seguinte: “Boa tarde Sr. GG, permita me descordar dos dias que contabilizou, vou resumir e basta recorrer aos emails e cartas trocadas para provar isto: 1.- 13-08-2019 Acidente 2.- 26-08-2019 (passado 14 dias) email da D... onde informa que a peritagem deu perda total, mas que ainda não conseguiram identificar os culpados, depois dizem que não se responsabilizam nada após essa data, mas eu continuo sem poder trabalhar porque ainda ninguém assumiu o prejuízo. 3.- 2-09-2019 (passado 7 dias) (total de 21 dias) resposta da D... que não assume porque o carro nao tinha seguro, e manda para remeter para vocês. 4- 8-11-2019 (passado 67 dias) (total de 88 dias) assumiram e mandam a documentação para me fazerem o pagamento. 5- 13-12-2019 finalmente fizeram a transferência. Resumindo eu estive constantemente a vos enviar email e a telefonar dizendo para acelararem o processo porque diariamente o carro factutava 150€/dia. Portanto eu até ao dia 13-12-2019 não tive forma de conseguir substituir a viatura porque não tinha dinheiro para o fazer, portanto penso que até à data de me liquidarem o valor total eu tenho de ser ressarcido do valor. Mas como no dia 8-11-2019 eu tive a certeza que iria receber dinheiro pelo carro dei ordem para começarem a arranjar o carro porque depois de voces me pagarem eu ja conseguiria pagar o arranjo do carro. Portanto os meus prejuizos são os seguintes: Tirei o carro da I... no dia 2-9-2019, porque me ligaram a dizer que não podiam ter ali mais o carro, tive de o colocar noutra oficina ate saber que iam assumir a culpa e ter dinheiro para o concerto. 67 dias que o carro esteve numa oficina 20/dia + iva = 1340€ + iva E 88 dias de paralisação ate saber da vossa resposta 88 x 57.05€ = 5020.40€, e já estou a aceitar o valor que vocês estipularam. Alguem tem de ser responsável por os meus prejuizos tenho uma micro empresa e este incidente abalou finaceiramente a empresa, portanto alguém tem de ser responsavel por estes valores. Aguardo uma resposta célebre da vossa parte, porque se não chegarmos perto destes valores irei pedir apoio judiciário à minha companhia e seguir para as entidades competentes para resolução do mesmo. Porque vocês estão me oferecer 800€ de compensação quando eu fiquei 88 dias sem saber se me iriam pagar. Se o acidente não tivesse acontecido, em 1 semana tinha esses 800€. Atentamente A...”.
18. A essa reclamação o réu Fundo de Garantia Automóvel respondeu nos seguintes termos: “Exmos. Senhores, (...) Cumpre-nos informar que a proposta apresenta pelo FGA é definitiva em sede extrajudicial (...)”.
19. O veículo da autora está afeto ao transporte de passageiros através da plataforma TVDE.
20. Tal veículo ficou imobilizado desde a data do embate, a 13/08/2019.
21. A autora, em resultado da atividade que desenvolveu com o veículo com a matrícula ..-XB-.., auferiu as seguintes quantias semanais:
- 08/07/2019 a 15/07/2019: 1.103,45 Euros;
- 15/07/2019 a 22/07/2019: 1.038,59 Euros;
- 22/07/2019 a 29/07/2019: 626,70 Euros;
- 29/07/2019 a 05/08/2019: 334,78 Euros;
- 05/08/2019 a 12/08/2019: 475,77 Euros.
22. O veículo da autora encontrou-se aparcado na oficina da B... desde 02/09/2019.
23. Tendo essa oficina exigido à autora o valor de 20,00 Euros, mais IVA, por cada dia que o veículo se encontrou aparcado nas suas instalações.
24. Valor esse que, a autora ainda não entregou à B..., porquanto aguarda que tal pagamento lhe seja efetuado pelos réus.
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
1. O veículo da autora, com a matrícula ..-XB-.., tinha a responsabilidade civil por danos provocados a terceiros transferida para a E..., titulado pela apólice n.º ...51.
2. O veículo com a matrícula ..-..-ZD, à data do embate, tinha a responsabilidade civil por danos provocados a terceiras transferida para a D..., S.A., com a apólice n.º ...42.
3. A participação do sinistro feita pela autora à seguradora E... deu origem ao processo de sinistro n.º ...54....
4. O veículo com a matrícula ..-..-ZD era conduzido por BB, seguindo ainda com uma passageira de nome HH.
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3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto 3.1. Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Dispõe, por sua vez, o n.º 1, do artigo 640.º, que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Concatenando este ónus, a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre o recorrente independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);
- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Em coerência, o mesmo autor (cit., pp. 199 e 200), enuncia assim as situações que determinam a rejeição, total ou parcial do recurso:
- Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC);
- Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC);
- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou nele registados, em que o recorrente se baseia;
- Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
As normas dos artigos 640.º e 662.º do CPC concretizam o papel que o legislador pretendeu atribuir aos tribunais de segunda instância no âmbito da reapreciação da matéria de facto, assumindo-a como uma função normal da Relação, por contraste com a excepcionalidade que, no passado, a caracterizava, mas rejeitando soluções maximalistas que a transformassem numa repetição do julgamento, rejeitando igualmente a possibilidade de interposição de recursos genéricos sobre a matéria facto.
Assim se compreendem as exigências em que se traduzem os ónus primários acima descritos, previstos no n.º 1, do artigo 640.º, do CPC, os quais devem ser interpretados à luz do aludido papel ou função. O mesmo sucede com o ónus secundário previsto na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo, sem perder de vista que este visa possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, isto é, a localização, no suporte que contém a gravação dos depoimentos invocados, das passagens da gravação em que se funda o recurso.
Como se escreve no ac. do STJ, de 28.04.2016 (proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. Abrantes Geraldes), estamos perante «um ónus multifacetado cujo cumprimento não se torna fácil, mas que encontra diversas justificações, entre as quais as seguintes:
- A Relação é um Tribunal de 2ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
- O sistema não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam um resultado diverso;
- Importa que seja feito do sistema um uso sério, de forma evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais».
Deste modo, vem sendo reafirmado pela jurisprudência que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Como escreve Abrantes Geraldes (cit., p. 200), «[t]rata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo».
Mas, pelas mesmas razões, associadas à impossibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto (cfr. artigo 639.º, n.º 3, do CPC), o Supremo Tribunal de Justiça vem alertando para a necessidade de não se exponenciarem os apontados requisitos formais e de se compaginar a sua interpretação e aplicação com os princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
No caso concreto, ainda que na motivação da alegação de recurso o recorrente pareça aludir a outros pontos de facto que considera incorretamente julgados, inclusivamente por não terem sido, mas deverem ser, incluídos no elenco dos factos julgados provados ou não provados, verifica-se que, nas conclusões da alegação, o recorrente apenas indica como concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados os pontos 2 dos factos provados e 23 dos factos não provados – cfr. conclusões 13), 27) e 29) – não aludindo a quaisquer outros pontos incorrectamente julgados ou que devam ser aditados aos fundamentos de facto da sentença.
Nestes termos, em coerência com o exposto, considera-se cumprido o ónus primário previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. a), apenas relativamente àqueles dois pontos.
Quantos aos ónus primários previstos nas demais alíneas deste n.º 1, o seu cumprimento pelo recorrente não suscita dúvidas, visto que este fundamentou a sua discordância na prova documental que descreve e analisa na sua alegação e especifica a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os dois pontos de facto acima referidos.
Em suma, verificado o cumprimento dos respectivos ónus, impõe-se conhecer a impugnação da decisão sobre os pontos 23 dos factos provados e 2 dos factos não provados. 3.2. A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados». 3.2.1. No caso vertente, o recorrente entende que deve ser alterado o sentido da decisão relativa ao ponto 2 dos factos não provados, julgando-o provado. Baseia-se, para tanto, no documento emitido pela ASF que juntou com a sua contestação – afirmando que este faz prova plena dos factos aí descritos –, bem como nos pontos 10. 11 e 13 dos factos provados – onde, na verdade, é descrito o teor de diversos documentos juntos aos autos.
Não esclarece o recorrente em que norma de direito probatório material se baseia para afirmar a força probatória plena do documento por si apresentado. Mas atribui essa força probatória «ao facto de a ASF ser a autoridade nacional responsável pela regulação e supervisão, quer prudencial, quer comportamental, da atividade seguradora, resseguradora, dos fundos de pensões e respetivas entidades gestoras e da mediação de seguros», o que julgamos ser uma invocação implícita do artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil (CC).
Seja como for, temos como certo que nem esta nem qualquer outra norma permitem afirmar que o documento em causa está dotado de força probatória plena.
Nos termos daquele artigo 371.º, n.º 1, os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador. Ora, o documento em causa não refere qualquer acto praticado pela ASF, nem atesta qualquer facto por si percepcionado.
No sítio electrónico de onde foi extraído esse documento, a ASF limita-se a publicitar os contratos de seguro de responsabilidade civil automóvel que lhe são comunicados pelas seguradoras, por referência à matrícula dos veículos. No caso concreto, informar que foi celebrado com C..., Companhia de Seguros, S.A. um contato de seguro (de responsabilidade civil) automóvel relativo ao veículo com a matrícula ..-..-ZD, com início de vigência às 12h55 do dia 26.11.2018 e fim às 23h59 do dia 23.08.2019, titulado pela apólice ...42. Mas logo se acrescenta no mesmo local que «[e]sta informação deve ser confirmada junto da(s) entidade(s) acima referida(s)», no caso a C..., Companhia de Seguros, S.A., assim corroborando que a informação prestada não diz respeito a factos praticados ou directamente percepcionados pela ASF.
Não estamos, portanto, perante prova vinculada, mas antes perante prova sujeita ao princípio geral da livre apreciação do tribunal.
Em todo o caso, a celebração do referido contato nunca foi questionada pela autora e é corroborada pela troca de correspondência entre esta e a D... (incorporada na C..., Companhia de Seguros, S.A.), bem como pelo relatório de averiguação junto aos autos em 25.07.2023, documentos onde é identificada a apólice de seguro n.º ...42, ao abrigo da qual aquela seguradora deu início à averiguação do sinistro e se pronunciou pela perda total.
Porém, na referida correspondência, aquela seguradora veio informar que, no âmbito das averiguações efetuadas às circunstâncias em que ocorreu o sinistro, verificou que o tomador do seguro havia vendido o veículo ..-..-ZD em data anterior ao sinistro, pelo que o contrato deixou de produzir efeitos desde a data da alienação.
Esse facto, nunca antes questionado por nenhuma das partes, é inteiramente corroborado pela certidão do registo automóvel junta aos autos em 09.08.2023 (também invocada pelo recorrente para fundamentar a sua ilegitimidade processual passiva), da qual resulta que a propriedade do veículo com a matrícula ..-..-ZD foi registada a favor de AA em 21.08.2018 e sucessivamente a favor de J... e CC em 23.11.2018, sendo certo que o sinistro em causa nestes autos ocorreu em 13.08.2019.
Assim, apesar da informação constante do sítio electrónico da ASF, perante a abundante prova da alienação do veículo e face ao disposto nos artigos 21.º e 22.º do regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto – de acordo com os quais o contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, sendo esta cessação oponível aos lesados – nada pode ser censurado à decisão do tribunal a quo se julgar não provado que o veículo com a matrícula ..-..-ZD, à data do embate, tivesse a responsabilidade civil por danos provocados a terceiras transferida para a D..., S.A., com a apólice n.º ...42.
Nestes termos, improcedem as conclusões 7 a 15 da alegação do recorrente. 3.2.2. Afirma também o recorrente que deve ser alterado o sentido da decisão relativa ao ponto 23 dos factos provados, julgando-o não provado. Alega, para tanto, o seguinte: a autora não juntou qualquer fatura respeitante ao serviço do referido aparcamento, nem procedeu a qualquer pagamento; no seguimento da inquirição de um dos sócios da autora relativamente aos pagamentos a efetuar à entidade B... foi ordenada a extração de uma certidão com cópia da gravação do depoimento dessa testemunha, para que a mesma fosse remetida à Autoridade Tributária (AT) para investigação de eventual infração tributária.
Independentemente de considerar que este facto traduz ou não um dano indemnizável – o que configura uma questão de direito, e apreciar na sede própria, e não uma questão de facto – afigura-se manifesto que nenhum dos argumentos expendidos contradiz a factualidade impugnada.
Na verdade, é de meridiana clareza que a não apresentação de qualquer factura respeitante ao serviço de aparcamento e a falta de pagamento do respectivo preço não contradizem nem, de forma alguma, tornam inverosímil que a oficina B... tenha exigido à autora o valor de 20,00 € mais IVA por cada dia de aparcamento do veículo nas suas instalações. Pelo contrário, estando definitivamente julgado provado que o veículo da autora esteve aparcado naquela oficina desde 02.09.2019 (cfr. ponto 22 dos factos provados, não impugnando), as regras da experiência e da normalidade do acontecer mostram ser inteiramente verosímil a exigência do respectivo preço.
Também não se consegue vislumbrar em que medida a comunicação à AT referida pelo recorrente possa infirmar o facto em análise. Independentemente dos ilícitos tributários que a referida entidade possa ter cometido – o que o Tribunal a quo não apurou nem afirmou – a sua prática não impede, do ponto de vista lógico ou ontológico, a realidade daquele facto, inclusivamente no que respeita à exigência de pagamento do IVA.
Acresce que, de acordo com a motivação vertida na sentença recorrida, o referido facto «foi afirmado, de forma coerente e transversalmente, em depoimento de parte do próprio autor e da generalidade das testemunhas inquiridas», sem que o recorrente tenha posto em causa esta análise da prova, até porque não baseou a sua impugnação na mesma e, por conseguinte, não cumpriu o estipulado no artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.
Nestes termos, improcedem as conclusões 25) a 28) da alegação de recurso.
Subsidiariamente, o recorrente considera que a redacção do ponto 23 dos factos provados deve ser alterada, expurgando-se da mesma a referência à exigência do IVA, remetendo para a argumentação antes exposta.
O que dissemos a respeito da demonstração da factualidade descrita no ponto 23 aplica-se, naturalmente, à demonstração do segmento desse mesmo ponto relativo à exigência de pagamento do IVA. As circunstâncias invocadas pelo recorrente – de não ter sido emitida a factura, de não ter sido feito o pagamento ou de podermos estar perante um ilícito tributário –, não tornam mais ou menos inverosímil, do ponto de vista factual, aquela exigência, nada permitindo contrariar a análise probatória do Tribunal a quo.
Saber se esse IVA deve ser considerado na indemnização dos danos sofridos é uma questão de direito, a apreciar em sede própria.
Assim, improcedem também as conclusões 28) a 30) da alegação de recurso.
Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto, mantendo-se esta inalterada.
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B. O Direito 1. Da ilegitimidade processual passiva do réu FGA
O recorrente entende que deve ser absolvido da instância, com fundamento na sua ilegitimidade processual, decorrente de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Alega, para o efeito, que o proprietário do veículo com a matrícula ..-..-ZD, na data em que ocorreu o sinistro aqui em causa, não era o réu AA, mas antes CC, como decorre do documento junto aos autos em 09.08.2023, de onde se conclui que a autora não demandou conjuntamente o FGA e os responsáveis civis – o condutor e o proprietário do referido veículo – cfr. conclusões 1) a 6) da alegação de recurso.
Apesar desta ser uma questão nova, não está este Tribunal impedido de a apreciar, por se tratar de uma questão de conhecimento oficioso, nos termos do disposto nos artigos 577.º, al. e), e 578.º do CPC. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, 2020, p. 139), «os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando (…) estes sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis».
O mesmo autor acrescenta que se compreendem «perfeitamente as razões que levaram a que o sistema tenha sido assim desenhado. A diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os Tribunais Superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios. Quando respeitem à matéria de facto, mais se impõe o escrupuloso respeito de tal regra, a fim de obviar a que, numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas».
Mas, no caso concreto, foi a própria autora que, logo na petição inicial, veio alegar que o veículo tinha sido alienado a pessoa diversa do tomador do seguro, tendo o tribunal ordenado, por despacho de 24.07.2023, a junção aos autos de certidão contendo todas as inscrições em vigor relativas ao veículo ligeiro de matrícula ..-..-ZD, da qual resulta que o proprietário inscrito na data do sinistro é pessoa diversa do réu AA.
Não pode, assim, afirmar-se que esta questão não pôde ser convenientemente discutida ou apreciada, apenas não o tendo sido por inércia das partes e do próprio tribunal a quo.
Acresce que, embora o recorrente não tenha cumprido os ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC, no que respeita ao aditamento da aludida inscrição da propriedade no registo aos fundamentos de facto da decisão, é inquestionável a possibilidade de actuação oficiosa da Relação em matéria de reapreciação da matéria de facto, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, mediante a aplicação de regras vinculativas de direito material probatória que tenham sido ignoradas ou desrespeitadas pela decisão recorrida, situações em que o poder de cognição da segunda instância não está dependente do cumprimento, pelo impugnando, do triplo ónus previsto no artigo 640.º do CPC (ao contrário do que sucede nas situações em que a alteração da matéria de facto está dependente da reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal), podendo nem sequer depender da própria impugnação da decisão da matéria de facto, desde que a atuação da Relação se contenha «no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente nos limites objectivo e subjectivo do recurso» (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Cicvil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, pp. 795-796).
Ao contrário do que afirma a recorrente, a certidão do registo automóvel junta aos autos em 09.08.2023 não demonstra que, na data do sinistro, o proprietário do veículo com a matrícula ..-..-ZD fosse CC. O que resulta dessa certidão é que, no dia 23.11.218, foi inscrita no registo a transmissão do direito de propriedade desse veículo do aqui ré AA para a J... e, no mesmo dia, a transmissão do mesmo direito para CC, mas com reserva de propriedade a favor da alienante J..., situação que se mantinha em 07.08.2023, data em que foi requisitada a certidão que vimos analisando.
A cláusula de reserva de propriedade está prevista no artigo 409.º do CC nos seguintes termos:
«1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros».
Esta cláusula integra-se nas excepções previstas na parte final do n.º 1, do artigo 408.º, à regra geral consagrada na primeira parte dessa norma, nos termos da qual a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato (e que corresponde à regra geral consagrada no artigo 879.º, al. a), do CC, para o contrato de compra e venda, de harmonia com a qual a transmissão da propriedade opera automaticamente, por mero efeito do contrato, sem dependência da entrega da coisa ou do pagamento do preço).
Como escreve Pedro Romano Martinez (Contratos em Especial, Universidade Católica Editora, 2.ª ed., Lisboa, 1996, pp. 32-34), «[p]or via de regra, o efeito real (transmissão da propriedade ou de outro direito real) está associado com a celebração do contrato, sendo de produção imediata, mas pode estar igualmente relacionado com outros factores, por força dos quais diferida no tempo.
(…) Por via convencional, a transmissão do direito real pode ficar diferida para momento posterior à celebração do contrato, dependendo do facto futuro, certo ou incerto (p. ex., condição ou termo, arts. 270.º ss. CC).
É frequente que o efeito translativo fique na dependência do facto futuro e incerto, que é o pagamento do preço; tal ocorre, por exemplo, na compra e venda com reserva de propriedade (art. 409° CC). (…)
Em todas estas situações, a transferência do direito real funciona sempre de modo automático; continua a ser efeito do contrato, mas completado por outro facto. Por isso, nestes casos, a transmissão ou constituição dos direitos reais não se dá no momento da celebração do contrato, mas posteriormente, sem carecer de subsequente negócio jurídico. Dito de outro modo, a transferência da propriedade pode não ser efeito imediato do contrato, mas será sempre efeito directo do contrato».
Assim, como é tradicionalmente entendido pela doutrina, a cláusula de reserva de propriedade apresenta-se como uma condição ou um termo suspensivo quanto à transferência da propriedade ou outro direito real – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987, p. 376, e Pedro Romano Martinez, cit., p. 34 – embora mais recentemente alguns autores a qualifiquem como uma venda com efeito translativo diferido (v.g. Menezes Leitão) ou como uma garantia real (v.g. Pinto Duarte) – cfr. Isabel Menéres Campos, Comentário Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2018, pp. 73-77.
Ao adquirente com reserva de propriedade cabe uma expectativa real de aquisição da coisa, igualmente oponível a terceiros, sendo maioritariamente aceite que o risco de perecimento ou deterioração da coisa se transfere para este a partir do momento em que a mesma lhe é entregue, não obstante o vendedor se manter o seu proprietário (loc. cit.).
No caso concreto, estando a cláusula de reserva da propriedade inscrita no registo, podemos concluir que, na data do sinistro, a J... continuava a ser titular da propriedade reservada, cabendo ao adquirente um direito ou expectativa real de aquisição do veículo, mas igualmente oponível a terceiros.
Feito este enquadramento legal, resta apurar se a legitimidade passiva do FGA estava dependente da demanda dos titulares inscritos no registo ou de algum deles.
A este respeito rege o artigo 62.º, n.º 1, do SORCA, nos termos do qual as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido e eficaz, são propostas contra o Fundo de Garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade. O busílis da questão está, portanto, em saber quem se inclui, para este efeito, no conceito de “responsável civil”.
Alguma jurisprudência parece defender que no conceito de responsável civil utilizado no artigo 62.º, n.º 1, do SORCA, se inclui sempre o proprietário do veículo, enquanto sujeito passivo da obrigação de segurar, e ainda o condutor e o detentor do mesmo veículo, quando não coincidam com aquele. Baseia-se este entendimento na circunstância de a consagração do litisconsórcio necessário passivo visar assegurar a efectividade do direito de regresso do FGA e no disposto no artigo 54.º do SORCA, maxime nos seus n.ºs 1 e 3 (que preceituam assim: «1. Satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado (…). 3. São solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro»). Neste sentido parece pronunciar-se o ac. do TRC, de 28.01.2015 (proc. n.º 895/12.5TAGRD.C1, rel. Vasques Osório), embora este aresto não cheque a apreciar se foi alegada/demonstrada a perda da direcção efectiva do veículo, para os efeitos do disposto do artigo 503.º do CC. No mesmo sentido se pronuncia o ac. do TRL, de 07.11.2019 (proc. n.º 726/16.7T8CSC.L1-6, rel. Eduardo Petersen Silva), que cita abundantemente e adere à argumentação do acórdão anteriormente referido, embora acabe por admitir que o proprietário possa eximir-se da responsabilidade alegando o provando a utilização abusiva da viatura. Com efeito, citando o ac. do TRP, de 27.06.2018, afirma-se ali o seguinte: «Consideramos que o Fundo de Garantia Automóvel, face ao que flui dos arts. 47º e 54º do Dec. Lei nº 291/2007, está autorizado a demandar a pessoa obrigada à celebração do contrato de seguro automóvel com fundamento, apenas, na não celebração desse contrato. Com efeito, a nosso ver, nesta situação, prescinde-se quanto a tal pessoa do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, quer por factos ilícitos, quer pelo risco. Por conseguinte, o Fundo de Garantia Automóvel pode obter o seu reembolso não apenas à custa do lesante, mas também do próprio sujeito que omitiu a obrigação de segurar, mesmo que a este não possa ser atribuída responsabilidade pelas consequências danosas do acidente. Nesta hipótese, o proprietário para se eximir à responsabilidade que para ele adviria da ausência do seguro teria que alegar e provar a utilização abusiva da viatura».
Para outros, no conceito de responsável civil, para efeitos da legitimidade plural prevista no artigo 62.º, n.º 1, do SORCA, incluem-se todos os que, de acordo com a lei civil, possam responder, no caso concreto, pela obrigação de indemnizar os danos com fundamento na responsabilidade civil por factos ilícitos ou pelo risco.
A recorrida parece fazer uma leitura ainda mais restritiva da norma do artigo 62.º, n.º 1, do SORCA, afirmando que o litisconsórcio necessário passivo aí consagrado fica assegurado com a intervenção na acção do Fundo de Garantia Automóvel e de um dos responsáveis civis, ainda que existam outros.
Não cremos que esta solução tenha apoio na letra ou no espírito da norma, não sendo, sequer, preconizada com este alcance na jurisprudência citada pela recorrida. Na verdade, embora no ac. do TRG, de 04.05.2023 (proc. n.º 1954/20.6T8GMR-A.G1, rel. José Cravo), tal como no ac. do TRL, de 29.03.2006 (proc. n.º 7519/2003-3, rel. Varges Gomes, proferido ainda à luz do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro), se afirme que «a legitimidade passiva em acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidentes de viacção, prevista no artigo 62º/1 do DL 291/2007 de 21 de Agosto, fica assegurada com a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel e de um dos responsáveis civis», a verdade é que, em ambos os arestos, esta concussão assentou na circunstância de o proprietário do veículo – não demandado – não ser, no momento do acidente, o condutor do mesmo, nem ter a sua direcção efectiva, razão pela qual não era civilmente responsável pelo ressarcimentos dos danos, cabendo essa responsabilidade apenas ao condutor demandado.
Julgamos ser a segunda das teses acima enunciadas a dominante na jurisprudência dos tribunais superiores e a mais consentânea com o regime legal.
Para além dos dois acórdãos antes citados, este entendimento está igualmente subjacente na argumentação expendida no ac. do TRP, de 20.12.2011 (proc. n.º 471/05.9TBLMG.P1, rel. Maria José Simões, também proferido à luz do regime legal pregresso).
Mesmo o já citado ac. do TRL de 07.11.2019, embora preconizando um entendimento diverso, acaba por concluir que «[e]m última análise, responsável será sempre o responsável civil, que o for nos termos que resultarem da aplicação da lei civil e dos factos», acrescentando o seguinte: «Mas o que importa é acautelar o direito de regresso, e para tanto – tal como se facilitou ao lesado ser indemnizado através do Fundo – facilita-se ao Fundo ser pago pelo responsável civil ou pelos responsáveis civis. No fim, como é claro, o responsável civil que pagar ao Fundo terá direito de regresso se não for ele o “último” ou “verdadeiro” responsável, contra este». Não há, assim, como se escreve no mesmo acórdão, «uma dicção final sobre a responsabilidade, excludente de vias posteriores de definição jurisdicional da responsabilidade (acção de regresso), mas apenas a activação do máximo de garantia de pagamento de indemnização ao lesado não culpado, no caso de inexistir seguro válido».
Julgamos que a argumentação assim desenvolvida é mais consentânea com o entendimento por nós preconizado. Assentando a legitimidade plural passiva decorrente do artigo 62.º, n.º 1, do SORCA, na responsabilidade civil dos demandados, não cremos que desta norma se possa extrair a possibilidade ou, muito menos, a imperatividade da demanda de quem não pode ser condenado com base na responsabilidade civil por factos ilícitos ou pelo risco, ainda que o objectivo final da norma seja a obtenção do máximo de garantia do pagamento da indemnização ao lesado.
Em abono deste entendimento, diz-se o seguinte no ac. do TRP, de 20-12-2011:
«A intervenção do responsável civil ao lado do Fundo de Garantia Automóvel tem em vista três objectivos:
a) tornar acessível ao Fundo, pela via mais autêntica do próprio interveniente do acidente, a versão deste e todo o material probatório a que de outro modo não acederia;
b) facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, permitindo-lhe optar entre o património do lesante faltoso e a indemnização meramente substitutiva do Fundo;
c) definir, logo na medida do possível e sem mais dispêndio processual, os pressupostos fácticos e jurídicos em que se há-de basear o direito de sub-rogação do Fundo estabelecido no art. 25 do Dec. Lei nº 522/85, o que não seria possível sem a presença desse responsável civil.
(…) O Fundo intervém, pois, na relação controvertida tão só como mero garante de uma obrigação de terceiro e, por este motivo, o litisconsórcio necessário passivo entre ele e o responsável civil configura-se como um verdadeiro litisconsórcio unitário.
Ora, o litisconsórcio unitário é aquele em que a decisão tem de ser uniforme para todos os litisconsortes. Este litisconsórcio corresponde a situações em que o objecto do processo é um interesse indivisível, pelo que sobre ele não podem ser proferidas decisões divergentes.
Neste contexto, as razões que impõem o litisconsórcio necessário passivo na presente acção terão, naturalmente, que conduzir à necessidade não apenas da condenação do Fundo de Garantia Automóvel no pagamento da indemnização arbitrada, mas sim à necessidade da condenação solidária deste com os responsáveis civis, nos termos do art. 524º do Cód. Civil, sob pena de ter de concluir-se, contra os ditames da boa interpretação, que o legislador ao traçar o regime processual deste tipo de acções, mais não fez do que fazer aqui aportar a inútil contribuição do obrigado ao seguro.
Solidariedade, porém, imprópria ou imperfeita, atendendo a que no plano das relações externas (relação entre os responsáveis), a responsabilidade dos obrigados é solidária, uma vez que o lesado pode exigir a qualquer dos responsáveis (lesante ou Fundo) a satisfação do seu crédito, mas já nas relações internas, só o Fundo é que fica sub-rogado, dada a sua posição de garante, pois o obrigado principal será sempre o responsável civil».
Aqui chegados, resta saber se, em face dos elementos carreados para os autos, o titular da propriedade reservada e/ou o adquirente do veículo com reserva de propriedade poderiam ser civilmente responsabilizados pela indemnização dos danos reclamados pela autora.
É inquestionável que nada na matéria de facto carreada para os autos permitiria considerar preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil com base na culpa, provada ou presumida, desde logo porque não lhes foi imputada a prática de qualquer acto ilícito (cfr. artigo 483.º do CC). Também não foi alegada qualquer de relação de comissão entre alguma daquelas pessoas e o condutor do veículo, que pudesse levar-nos a equacionar a responsabilidade pelo risco do comitente (cfr. artigo 500.º do CC).
Em contrapartida, tendo sido carreados para os autos elementos que nos permitem constatar que o condutor do veículo não era, na data do acidente, o seu proprietário e tendo, entretanto, sido junto aos autos certidão dos direitos e ónus inscritos no respectivo registo automóvel, estava ao alcance do tribunal apurar a eventual responsabilidade pelo risco dos titulares inscritos, nos termos previstos no artigo 503.º do CC.
Nos termos do n.º 1, do referido artigo 503.º, são três os elementos necessários para que se verifique a responsabilidade pelo risco: a direcção efectiva do veículo, a sua utilização no próprio interesse e a ocorrência de danos provenientes dos riscos próprios do veículo.
É pacífico o entendimento de que a propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo proprietário, visto que este é, por regra, a pessoa que aproveita das vantagens dessa utilização e que, por isso, deve suportar os riscos próprios da mesma. Por conseguinte, a simples alegação da propriedade do veículo, sem a invocação expressa de quem tem a sua direcção efectiva e interessada, é suficiente para sustentar o pedido de condenação do proprietário do veículo na indemnização dos danos causados a terceiros com a sua utilização, cabendo àquele o ónus de demonstrar que não detinha a sua direcção efectiva e/ou que o mesmo não era utilizado no seu interesse.
Neste sentido, vide o já referido ac. do TRL, de 07.11.2019, e o ac. do STJ, de 29.01.2014 (proc. n.º 249/04.7TBOBR.C1.S1, rel. Azevedo Ramos), bem como a doutrina e demais jurisprudência aí citadas.
Como se esclarece no segundo destes arestos, «[a] direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo», pelo que «[t]em a direcção efectiva do veículo aquele que, de facto, goza ou frui as vantagens dele, e quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento». Quanto ao segundo requisito (utilização no próprio interesse), esclarece-se no mesmo acórdão que «visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outro». Nestes termos, conclui-se ali que «[t]em correntemente a direcção efectiva do veículo o proprietário, o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade, o comodatário, o locatário, o que o furtou, o condutor abusivo e, de um modo geral, qualquer possuidor em nome próprio».
Em face do exposto, é fácil concluir que a presunção em questão não se aplica ao titular da propriedade reservada, ou seja, àquele que alienou o veículo com reserva de propriedade, relativamente ao qual não é possível afirmar ser a pessoa que, por regra, tem o poder de facto sobre o veículo, que beneficia das vantagens da sua utilização e à qual cabe controlar o seu funcionamento. De resto, como decorre do artigo 6.º, n.º 1, do SORCA, sobre ela não impende, sequer, a obrigação de segurar.
Nestes termos, nada nos permite afirmar que a J..., enquanto mera titular inscrita do direito de propriedade reservada do veículo ZD, possa integrar a qualidade de responsável civil pelos danos sofridos pela autora, pelo que o facto de não ter sido demandada não traduz uma preterição do litisconsórcio necessário passivo consagrado no artigo 62.º, n.º 1, do SORCA.
O mesmo não podemos concluir a respeito do facto de o FGA não estar acompanhado pelo adquirente do veículo com reserva de propriedade. Ainda que não seja titular do direito de propriedade, este é, por regra, o detentor real do veículo e o beneficiário da sua utilização, cabe-lhe zelar pelo seu funcionamento e é o sujeito da obrigação de segurar, conforme expressamente preceituado no já citado artigo 6.º, n.º 1, do SORCA. Nestes termos, é-lhe aplicável a presunção de direcção efectiva e interessada do veículo, pelo que é sobre ele que impende o ónus de ilidir essa presunção.
Significa isto que a mera alegação e posterior demonstração da qualidade de adquirente com reserva de propriedade permitia equacionar a sua responsabilidade objectiva. Dito de outro modo, permitia considerá-lo responsável civil.
Por conseguinte, a circunstância de não ter sido demandado juntamente com o FGA e o condutor do veículo configura uma preterição do litisconsórcio necessário passivo previsto no artigo 62.º, n.º do SORCA, o que determina a falta de legitimidade dos réus demandados, e não apenas do réu FGA, nos termos previstos no artigo 33.º, n.º 1, do CPC.
A falta de legitimidade constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso e determina a absolvição dos réus da instância, nos termos previstos nos artigos 278.º, n.º 1, al. d), 577.º. al. e), e 578.º, todos do CPC.
Pelas razões expostas, a apelação procede, ficando prejudicado o conhecimento dos demais argumentos expendidos pelo recorrente.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, os Juízes desta 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto revogam a sentença recorrida e absolvem os réus da instância.
Custas da acção e da apelação pela autora recorrida (artigo 527.º do CPC).
Registe e notifique.
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Porto, 11 de Dezembro de 2024
Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Ramos Lopes
João Proença