EXCEÇÃO DO CASO JULGADO
LITISPENDÊNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
BOA FÉ
INCONSTITUCIONALIDADES
Sumário

I – Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal julgue duas vezes a mesma causa, seja em sentidos diferentes ou no mesmo sentido, pelo que ambas pressupõem a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
II – A suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial e a autoridade do caso julgado material têm por fim evitar que a decisão a proferir numa acção contradiga a decisão a proferir ou já proferida noutra, quando o objecto desta se apresenta como condição de apreciação do objecto daquela, o que não pressupõe a tríplice identidade acima referida.
III – A causa de pedir da acção de prestação de contas não é o facto jurídico que legitima a administração de bens alheios – seja ele um contrato de mandato, uma procuração e/ou a qualidade de cabeça-de-casal, factos que podem naturalmente coexistir – mas a própria administração de bens alheios.
IV – Para justificar a prestação de contas, a administração de bens alheios tem de ser susceptível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas; será do apuramento e da aprovação dessas receitas e despesas que resultará a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
V – O processo especial de prestação de contas não é o meio adequado para obter a condenação do administrador de bens alheios na restituição da coisa de que se apropriou ilicitamente ou no pagamento de uma indemnização com fundamento nessa apropriação ilícita.
VI – O exercício de um direito revelar-se-á abusivo quando exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; a proibição do venire contra factum proprium e da suppressio constituem “hipóteses típicas” ou “figuras sintomáticas” concretizadoras da cláusula geral da boa fé, enquanto princípio geral de actuação, nos termos do qual as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
VII – Não há sentenças inconstitucionais; o que pode haver é a aplicação de normas inconstitucionais ou interpretadas de forma a violar a constituição. Por conseguinte, não suscita a inconstitucionalidade de modo processualmente adequado a parte que discorda da decisão por esta alegadamente violar princípios constitucionais, sem questionar a conformidade constitucional e pedir a desaplicação de normas concretas, ou sem questionar a aplicação de normas concretas com uma determinada interpretação supostamente violadora da Constituição.

Texto Integral

PROC. N.º 2934/20.7T8VFR.P2




Acordam no Tribunal da Relação do Porto



I. Relatório

1. AA, casada, residente na Rua ..., ..., ... ..., intentou a presente acção especial de prestação de contas contra BB, residente na Rua ..., ..., ... ..., alegando o seguinte: no dia 04.06.2001 CC e mulher DD outorgaram procuração constituindo seu bastante procurador o seu filho, aqui requerido, a quem concederam os poderes aí descritos; os outorgantes faleceram em 20.04.2017 e em 31.05.2019; nos termos do artigo 1161.º, al. d), do Código Civil (CC), o mandatário encontra-se obrigado a prestar contas no fim do mandato; a requerente é neta dos referidos outorgantes, filha do pré-falecido EE. Concluiu pedindo a citação do réu para, em 30 dias, apresentar contas ou contestar a acção, nos termos estabelecidos nos artigos 942.º e seguintes do CC.
2. O réu apresentou contestação, alegando, em síntese, que nunca foi encarregado de celebrar negócios ou praticar quaisquer actos com repercussão patrimonial entres as partes, maxime actos geradores de uma relação de créditos e débitos recíprocos, nem tal é alegado na petição inicial, esclarecendo que a procuração aí referida foi outorgada com o único propósito de evitar deslocações dos representados a repartições públicas, bancos, entidades públicas ou privadas, tendo estes mantido o poder de decisão, o domínio e o conhecimento de todos os actos de disposição, locação ou oneração do seu património, bem como das respectivas despesas e rendimentos, e tendo o réu entregado aos mesmos tudo quanto lhes foi entregue, nomeadamente preços de vendas, rendas e rendimentos, e dado a verificar os movimentos bancários, de acordo com o definido pelos representados, não havendo, deste modo, obrigação de prestar contas, por ter inexistido mandato, nem quaisquer contas a prestar. Concluiu pugnando pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
3. Em sede de resposta, a autora afirmou que o réu, munido da referida procuração, em representação dos mandantes, interveio em permuta, venda e aquisição de bens imobiliários com a sociedade A..., Lda. mencionada naquela procuração, tendo efectuado o pagamento do respectivo preço, como se constata das certidões notariais. Reitera, assim, a pretensão de que o réu preste contas do mandato que lhe foi conferido.
4. Considerando que a questão da obrigação de prestar contas podia ser sumariamente decidida, o tribunal a quo designou data para a inquirição das testemunhas arroladas, após o que proferiu decisão, que condenou o réu a prestar contas à autora relativas aos negócios de compra e venda e arrendamento efectuados no período compreendido entre 4 de Junho de 2001 e 31 de Maio de 2019.
5. Esta sentença veio a ser anulada por acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, no qual se determinou que, «depois produzida a prova que eventualmente seja considerada pertinente, o Tribunal recorrido profira nova decisão, apreciando todos os factos relevantes para a decisão da causa, nos termos acima explicitados, e suprindo as deficiências da fundamentação supra apontadas».
6. Em cumprimento deste acórdão, tendo julgado pertinente a prestação de esclarecimentos por parte do réu, o tribunal a quo designou data para essa diligência, na qual também ouviu a autora em declarações de parte.
7. Foi proferida sentença, que termina com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, o Tribunal decide:
a) – Condenar o Réu a prestar contas à Autora relativos aos negócios de compra e venda e arrendamento efectuados desde o período compreendido entre 4 de Junho de 2001 até 31 de Maio de 2019 e, em consequência, ordeno a respectiva notificação para as apresentar dentro de 20 dias, contados a partir do trânsito em julgado da presente decisão, sob pena de lhe não ser permitido contestar as que a Autora apresente, prosseguindo ulteriormente os autos com vista ao julgamento das mesmas.

*
Inconformado, o réu apelou desta sentença, apresentando a respectiva alegação, que termina com as conclusões a seguir transcritas (expurgadas dos sublinhados, negritos e das transcrições da prova gravada, mantendo-se o resumo aí feito destas transcrições):
«1ª- Conforme consta dos autos e da prova produzida e da audiência de julgamento de 15.12.2023, ficheiro 20231215141626_4021863_2870310, ao minuto 00.08, o sr. Juiz alude a inventário por óbito de CC e é interrompido pela Mandatária da Autora a dizer que “sabe que existe uma prestação de contas na sequência do inventário pela morte do primeiro, desde 2017”, por estar demonstrado nos autos o falecimento do CC em 20.04.2017.
2ª- Resulta disso que a partir dessa data passou a existir um património autónomo constituído pela herança ilíquida e indivisa por óbito do referido CC, uma administração dessa herança pelo cabeça de casal cujas contas são prestadas no âmbito da partilha e correndo processo de inventário, as mesmas são prestadas por apenso em processo especial de prestação de contas.
3ª- Logo, nesta ação de prestação de contas por causa de procuração passada pelos “de cujus” não pode ser determinado prestar contas relativamente ao período de 2017 a 2019, atento o óbito da DD, falecida em 31.05.2019.
4ª- E estando pendente ação especial de prestação de contas por apenso ao inventário cumulado, pelo qual se partilhou o acervo hereditário dos “de cujus” CC e DD, ele falecido em 20.04.2017 permanecendo a herança indivisa quando ocorreu o decesso da mulher em 31.05.2019, é em tal processo que são prestadas contas relativas ao hiato temporal de 2017 a 2019, contas da administração da herança.
5ª- Ora, na decisão de que se recorre não se podia conhecer de relação jurídica estranha a estes autos abrangendo na sentença período que está fora do âmbito de ação de prestação de contas fundada na procuração junta com a P.I. pelo que, trata-se de pronuncia indevida e ilegal que vicia a sentença nos termos do art.615, nº1, d), 2ªparte, do CPC, cominada com NULIDADE DE SENTENÇA a ser previamente conhecida, o que se requer e invoca.
6ª- No Relatório da Sentença omite-se que o Réu respondeu no exercício do contraditório á junção de documentos pela Autora com a sua Resposta, articulado que carreou matéria de facto e questões relevantes para a boa decisão da causa, tais como os anos decorridos desde a data da procuração e permanecendo os “de cujus” com a sua vontade e capacidade perfeitas até ao decesso, durante mais de vinte anos e que por força dos réditos obtidos deixaram avultado património do qual a Autora beneficiou por igual com o Réu.
7ª- Acresce que é invocado pelo Réu e mormente nos seus depoimentos, a inexigibilidade de prova por se tratar de prova praticamente impossível, sendo a chamada prova diabólica, referindo o Réu estarem-lhe a perguntar factos de há mais de 18 anos, 20 anos, quando nem sequer existe a obrigação de conservação de documentos ou registo por parte de instituições, (prazo geral de 10 anos).
8ª- E nada sobre esta questão própria que se conjuga entre o ónus da prova e sua inversão e o princípio da boa-fé e do abuso de direito, é referido na sentença, pelo que, trata-se de omissão de pronuncia que vicia a sentença nos termos do art.615, nº1, d), 1ªparte, do CPC, cominada com NULIDADE DE SENTENÇA a ser previamente conhecida, o que se requer e invoca.
9ª-Dos factos resulta que foram recebidas rendas em numerário.
10ª-Mas resulta sobretudo que a maioria das rendas eram pagas por transferência bancária, ou por cheque, para a conta do Sr. CC.
11ª- É um facto adquirido processualmente que o Sr. CC tinha conta bancária, só, como único titular.
12ª- Não tinha o Réu acesso aos movimentos de tal conta.
13ª- Não pode ser o marginal pagamento de rendas em numerário, entregues a familiar, atenta esta circunstância, que pode qualificar como representativos de uma relação de gestão e mandato.
14ª- Assim, assentar uma interpretação dos factos, que não se aceita, de que o Réu geria interesses patrimoniais por via de entregas avulsas de rendas em numerário em sua casa, á sua filha, para além de insuficiente e inócuo para significar mais do que a mera atuação material e deixar de se pronunciar quanto ao que resulta dos factos de que o Réu não tinha o domínio quanto aos valores pagos por transferência bancária, por cheque, por depósito na conta, tal representa uma contradição insanável e uma omissão de pronúncia sobre essa incongruência.
15ª- Não pode haver “mandato” quanto a umas quantias recebidas como mero executante material quando quanto ao substancial da gestão dos contratos era o seu dono quem tinha o domínio dos factos, quem recebia as rendas, quem recebia valores na sua conta por meio de transferências bancárias, por cheques ou por depósitos em conta.
16ª-E representa uma contradição insanável referindo-se na produção de prova, abundantemente, a esses modos de pagamento, e, na venda de imóvel o cheque bancário como meio de pagamento, e na decisão da matéria de facto não se falar sequer nesses factos decisivos para a sorte da ação que a tona NULA a sentença ex vi art.615, nº1 al.b),c) e d) do CPC, nulidade que se invoca e argui expressamente.
17ª- Na audiência de julgamento de 15.12.2023, por determinação do Sr. Juiz, foi de novo ouvido o Réu em declarações e após a termo do depoimento do Réu a Autora requereu prestar declarações conforme consta da Ata, tendo o Réu, deduzido oposição pelos fundamentos constantes do requerimento gravado no sistema de gravação digital Habilus Media Studio no ficheiro 2023121510553_4021863_2870310.
18ª- O Réu a impugnou a admissão e eventual valoração de tal depoimento no essencial porquanto:
1. a Autora assistiu desde o início do primeiro julgamento destes autos, sentada na bancada ao lado da sua MD mandatária, a todos os depoimentos das testemunhas e às declarações de parte do Réu;
2. quer aquando do primeiro julgamento quer nesta sessão de julgamento,
3. tomou notas e fez observações á sua mandatária sobre depoimentos,
4. pelo que, depois de todo este conhecimento do que foi dito, requerer a prestação de suas declarações de parte representa uma atuação inadmissível, atentatória dos ditames da boa-fé, beneficiando da instrução que pôde fazer ao assistir a toda a prova, visando, no termo da instrução do julgamento, com tais conhecimentos que adquiriu, contestar, de forma viciada, os depoimentos genuínos e aduzir versão falaciosa, especulativa e destilando o seu ódio em relação ao tio, aqui Réu, significa que todo o seu depoimento não pode ser tido em conta e aproveitar a favor da Autora.
19ª Contudo, o mesmo foi admitido e foi valorizado indevidamente pelo Sr. Juiz “a quo” contribuindo para uma decisão errada sobre os factos, por indução do depoimento solerte da Autora que, tendo formação superior, estava bem ciente disso.
20ª- Pelo que, impugna-se a consideração pelo Tribunal “a quo” das declarações de parte da Autora por violar o fundamento substantivo da norma do art.466º do CPC, violar o princípio da igualdade das partes e da boa-fé processual, arts.4º e 8º ambos do CPC, permitindo um depoimento especulativo e com alegações falsas que induziram uma interpretação errada dos factos.
21ª-Das escrituras juntas com a Resposta á Contestação, resulta logo que uma das escrituras, doc.1, foi assinada pelo Sr. CC, pelo ano de 2002, depois de outorgada a procuração dos autos, e tal evidencia que ora ia a uma escritura, ora não ia conforme lhe aprouvesse.
22ª- Contudo, tal prova, junta até pela Autora, foi completamente omitido na apreciação dos factos quando o seu cotejo só podia relevar para a interpretação dos factos tal como aduzidos pelo Réu.
23ª- Representa também esta falta de atentar nesta prova ostensiva um erro grave na apreciação dos factos e com relevo para a decisão da matéria de facto vício que afeta a decisão da matéria de facto como infra se impugna.
24ª- Da prova produzida e infra discriminada, art.640 do CPC, resulta que pontos 3º, 4º, 5º e 6º dos Factos Provados, estão indevidamente dados como provados e a matéria dada como Não Provada, em a), b) e c) está erradamente assim considerada e deve ser eliminada.
25ª- No depoimento da testemunha FF, cujo depoimento consta do sistema de gravação dos Tribunais, sob o ficheiro-registo 202 204 011 00712_4021863_2870310, de 00m:00s até 20,00s, disse a testemunha no seu depoimento, cujo gravação teve lugar no dia 01.04.2022, cuja sessão de julgamento teve início pelas 09,30 10.58.33h, cfr. Ata, foi por ela dito
(…)
26ª- Sendo a testemunha assertiva dizendo:
(…)
27ª- E mais adiante no seu depoimento,
(…)
28ª- E ainda mais adiante no seu depoimento diz a testemunha FF,
(…)
29ª- E o depoimento da testemunha GG, cujo consta do sistema de gravação dos Tribunais, sob o ficheiro-registo 202 204 011 02804_4021863_2870310, de 00m:00s até 30,50s, cuja gravação do julgamento teve lugar no dia 01.04.2022, com início pelas 09,30 10.58.33h, cfr.Ata, a qual disse que
(…);
30ª- E mais adiante diz a mesma testemunha GG,
(…)
31ª- E ainda mais adiante diz a mesma testemunha GG,
(…)
32ª- E finalmente diz a mesma testemunha GG,
(…)
33ª- Na audiência de 01.04.20220, prestou declarações de parte o Réu BB, cujo depoimento consta do sistema de gravação dos Tribunais, sob o ficheiro-registo 20220401105954_4021863_2870310, de 00m:00s até 51,46s, cujo gravação teve lugar no dia 01.04.2022, cuja sessão de julgamento teve início pelas 09,30 10.58.33h, cfr.Ata, começando por responder ao Sr. Juiz
(…)
34ª- E nas suas declarações de parte disse,
(…)
35ª- E mais adiante nas suas declarações de parte disse,
(…)
36ª- E ainda o depoente disse,
(…)
37ª- E continuando o seu depoimento disse,
(…)
38ª- E concluiu as suas declarações de parte respondendo que,
(…)
39ª- Na sequência da douta decisão do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que determinou fossem supridas omissões e deficiências, foi determinado pelo Sr. Juiz do tribunal “a quo” uma sessão de julgamento para ouvir de novo o Réu em declarações de parte designando o dia 15.12.2023 pelas 14h para audiência de julgamento.
40ª- O Réu, BB ouvido de novo pelo Sr. Juiz no seu depoimento gravado no dia 15.12.20023, pelas 14h, Gravação no sistema Habilus Media Studio, com início pelas 14:16 e fim pelas 14.22, gravação sob o Ficheiro 2023121514224_4021863_2870310 disse, repetindo basicamente o que já tinha dito, conforme resulta do seu depoimento supratranscrito mas reiterando no essencial que
(…)
41ª- - E continuando o seu depoimento disse,
(…)
42ª- E prosseguindo o seu depoimento disse,
(…)
43º - E continuando o seu depoimento disse,
(…)
44ª- Por força dos depoimentos transcritos supra, não podiam ser dados como provados e não provados os factos como o foram pois resulta claro do depoimento da Testemunha FF que,
-Os negócios foram sempre feitos pelo meu falecido avô- m.02.10;
-Sim, era o meu avô, sempre, sempre foi o meu avô porque o meu avô esteve sempre lucido até à sua morte. Inclusive teve carta de condução até dezembro de 2016 e faleceu em abril de 2017.-m.02.39;
- As contas eram sempre com ele, as contas bancárias, inclusive tinhas as contas sozinho- m.02.60;
-O meu pai simplesmente era funcionário dele, quando ele lhe por algum motivo que ele não se quisesse deslocar a umas finanças, a uma escritura ou alguma coisa, pedia ao filho e o filho então substituía-o simplesmente para assinar. Só para assinar. Os recebimentos, os pagamentos era tudo com ele.m.-03.08;
-Quem estabelecia as condições- Era o meu avô, tudo ele, ele não permitia que mais ninguém interferisse- m.03.35;
- Os negócios, reuniões, sua celebração e condições, recebimentos, pagamentos,
- era sempre o meu avô. Sempre.m.04.50; era o único titular das contas, m.05.03; e assinar escrituras, só se ele não pudesse ir, senão ele até ia, m.05.40; As rendas pagas, por transferência bancária para a conta do meu avô, m. 11.48; Algumas eram em dinheiro que eu entregava ao meu avô,m.11.56, Emitir os recibos, Era eu, emitia m.12.05 a 12.09; o meu avô sabia ler e escrever muito bem, m. 15.32.
45ª- E resulta claro do depoimento da Testemunha GG que,
- Estive a tomar conta deles, era empregada deles, cuidadora do Sr. CC, trabalhei lá 10 anos, m.00.58 a 0.28;
-o sr. CC é que geria a conta dele, geria tudo, esse património, o que recebia- Sim, enquanto lá andei, m.06.34;
- Era ele que ia ao banco ver a conta, ver como é que estava- Sim, eu fui lá com ele, fiquei da parte de fora e o sr. CC entrou, tinha mais de 80 anos- já, m.06.41 a 06.58;
- Era ele que recebia as rendas todas em dinheiro-m.17.30;
-Ele pagava tudo em dinheiro, mas levantava dinheiro do banco, m.19.34;”
46ª- E finalmente resulta das declarações de parte do Réu que,
- Com base nesta procuração, Que negócios é que fiz? Os negócios eram todos feitos com o meu pai e eu presente muitas vezes, muitas vezes não estava, m.05.36;
- Ele nunca quis ninguém nas contas, inclusivamente a minha mãe, m.07.20;
-Geralmente todos os caseiros pagavam por transferência ou cheques, iam para a conta dele, se pagassem em dinheiro a minha filha chega ao avô e está aqui, todos os meses ia fazer contas com ele.m.08.80;
- Em dinheiro poucas vezes pagavam em dinheiro, pagavam em dinheiro, a minha filha recebia e entregava ao avô, m.09.02;
-Ele passava os cheques para a minha filha pagar o condomínio, m.19.14;
- Quem fazia os negócios, quem vendeu foi o meu pai.m.35.22;
- A minha filha tratava de tudo dos meus pais, levar contratos, falava com eles se podia assinar se não podia, m.44.21;
-Ele não ia porque não queria ir, m.46.16-
- O meu pai lia tudo, m.48.26;
- Eu tinha uma procuração, mas nunca usei para movimentar contas bancárias, m.50.56.”
E no segundo depoimento, supratranscrito,
03.41- Sr. Juiz- E onde eram pagas as rendas?
03.54-R- Sr.Dr. é assim, muitas por transferências bancárias.
04.00 Sr.Juiz- E para que conta?
04.02 R- Para as contas do meu pai, eu não tinha contas bancárias com o meu pai.”
47ª- Ora, não se descortina qualquer razão para que estes depoimentos possam ser desmerecidos como é feito na sentença, basta proceder à sua audição e cotejo com documentos e a não infirmação dos factos aduzidos por contraprova como cabia à Autora fazer.
48ª- Assim, os factos que pelos seus depoimentos foram carreados para os autos permitem-nos asseverar que quer a Matéria de Facto Provada quer a Não Provada está errada e terá de ser alterada face ao teor destes depoimentos.
50ª- As declarações de parte do Réu, nas duas sessões de julgamento, sendo que nesta de 15-12-2023 foi assertivo e confirmou a sua versão dos factos, falou com verdade e explicou a função que a procuração teve e que foi meramente um instrumento para substituir na assinatura de documentos os seus pais quando estes não pudessem estar presentes ou não quisessem estar.
51ª- Os negócios eram todos feitos pelo pai, com o pai, que era quem estabelecia as condições, lia tudo, sabia ler e escrever bem.
52ª- O pai tratava de gerir toda a sua fazenda, tinha conta bancária só em seu nome, a qual geria indo ao banco pessoalmente apesar da sua provecta idade, recebia toda a informação por extratos expedidos para a sua casa, não deixava ninguém interferir nos seus negócios.
53ª- O Sr. CC tinha conta bancária da qual era o único titular.
54ª- O Sr. CC Recebia as rendas todas, quer por transferência ou depósito de cheques quer por depósito das recebidas em dinheiro que depositava na sua conta.
55ª- As rendas eram pagas maioritariamente por transferência bancária para a conta do Sr. CC, o senhorio.
56ª- E outras rendas eram pagas em cheque que era depositado pelo referido sr. CC na sua conta.
57ª- E algumas que eram pagas em dinheiro era o mesmo depositado pelo sr. CC na sua conta bancária.
58ª- O Réu limitava-se a assinar escrituras ou contratos de arrendamento em substituição dos pais.
59ª- O Réu jamais negociou um contrato, jamais foi a sua vontade que levou a concluir um contrato ou um negócio, não tinha qualquer conta bancária com o pai, nem sequer tinha acesso à conta do pai.
60º- Ergo, o Réu não tinha qualquer domínio dos factos relativos aos contratos de arrendamento porquanto o pagamento das rendas era feito nos moldes supra pelo que não tinha o Réu qualquer controle, conhecimento ou decisão sobre a essencialidade de tais contratos, sendo ininteligível que o Réu pudesse ser considerado que administrava os arrendamentos só pelo facto de algumas rendas em dinheiro, materialmente serem entregues na sua casa, á sua filha, pelas razões indicadas nos testemunhos e nas declarações do Réu e que são plausíveis.
61ª- Finalmente, ressalta das declarações da Autor depoimento gravado no Ficheiro 20231215150930_4021863_2870310,
Ao m.03.03- disse a Autora referindo-se ao avô - “deu-me em 2003 um apartamento e uma loja”
05.39 Sr. Juiz- Relativamente aos seus avós tinha algumas informações no sentido de que eles se queixavam que o seu tio não lhe entregava?
05.41- Autora- Queixavam-se que não dava lucro, isto é só despesas e vai tudo para o Estado, não dá lucro nenhum, isto é uma confusão muito grande e não dá lucro.
12.30- Adv.da A.- A sua avó queixava-se muito que não havia dinheiro?
12-34- Autora- Não, nunca se queixou que não havia dinheiro,
Mais adiante, referindo-se á avó que esta lhe dissera que – “os apartamentos não eram tão rentáveis”
27.04 ..disse a Autora, referindo-se aos avós que – “tendencialmente eram pessoas que queriam saber das suas contas”
27.20- Adv. A.- Eles acreditavam naquilo que lhes era transmitido?
27.24 Autora- Há muitos anos tenho a certeza que não. Mais recentemente não sei. Pelo menos o meu avô tenho a certeza que não.
27.29 -Adv,A.- Muitos anos, quantos?
27.30 - Autora- Alguns atrás tenho a certeza que não. Exigiam muitas explicações sobre as contas.
Referindo-se aos negócios de compra e venda dos apartamentos referidos nos autos, disse a
36.05- Autora- O meu avô não pagou nada nem recebeu nada. “
62ª- Logo, se não houve dinheiro nas compras e vendas segundo diz a Autora então não há sequer contas a prestar e tal mostra que sendo o objeto do processo de prestação de contas cumprir um dever de informação, inexiste tal porquanto a Autora revela saber que inexistiu dinheiros nas operações que refere e por isso inexiste um dever de prestar contas por parte do Réu por inexistência de objeto do processo.
63ª- Mas mais, revela a Autora que os seus avós, “tendencialmente eram pessoas que queriam saber das suas contas”, “Exigiam muitas explicações sobre as contas.” e que dizia a sua avó “os apartamentos não eram tão rentáveis”, referindo ainda que não eram pessoas que se deixavam enganar como resulta do depoimento transcrito supra.
64ª- Ora, tal reconhecimento por parte da Autora espelha que os seus avós e pais do Réu tinham conhecimento das contas dos arrendamentos, sabiam quanto recebiam e não eram pessoas de se deixarem enganar, sempre tiveram dinheiro e sobretudo resulta que inexiste fundamento para a presente ação pois todos os bens relacionados no inventário não sofreram reclamação da Autora, a qual recebeu bens e valores avultados porquanto tudo foi conservado ao longo da vida dos avós.
65ª- Pelo que por este depoimento da Autora foi prestada prova da inexistência de fundamento para ação porquanto os avós receberam todas as contas dos arrendamentos, sabiam de tudo e tudo lhes foi explicado por serem pessoas exigentes.
66ª- E nas compras e vendas feitas pelo Sr. CC referidas nos autos, segundo a Autora, não houve dinheiros pelo que, sabendo assim dessas contas e da inexistência de dinheiros a conferir nada há a prestar e carece de objeto a ação.
67ª- Aliás, na sentença é descurado o facto de uma das escrituras juntas pela Autora na Resposta á Contestação, doc.1, trata-se de escritura na qual foi outorgante, em 2002, já depois da procuração que foi em 2001, o sr. CC, o qual assinou tal contrato.
68ª- Tal mostra que o Réu só iria a uma escritura ou assinar um documento quando o sr. CC não quisesse ir ou não pudesse. Apenas se tratava de uma mera representação formal.
69ª- E ficou claro que sendo os avós da Autora pessoas exigentes, que exteriorizaram que as rendas, tirado o que se pagava de impostos e aludindo a encargos, não davam lucro, filtrando isto com o senso comum da subjetividade de pessoas idosas e de um meio rural que recebe rendimentos ter tendência para menorizar o ganho, sobressai dos factos, s.d.r., evidente que todas as rendas foram recebidas, tudo foi prestado há anos, que não houve qualquer mandato do Réu, não há lugar a prestação de contas.
70ª- Assim, a matéria dada como PROVADA deve ser alterada e adicionada nos termos seguintes:
3.
O Réu assinou, com base na procuração referida em 1., passada pelos seus pais, as escrituras de compra e venda celebradas com a firma “Construções A..., Lda.” realizadas nos dias 9 de Janeiro de 2003, 3 de Julho de 2003 e 19 de Setembro de 2003, agindo em substituição dos seus pais nesses atos jurídicos.

O Réu, por solicitação dos seus pais por ter a procuração, assinou contratos de arrendamento de imóveis propriedade destes, agindo em substituição deles em cada um desses atos.

Tendo sido entregues em mão em casa do Réus rendas em numerário relativas a arrendamentos feitos pelos seus pais, foram todas essas rendas entregues aos pais.

O Réu, com base nessa procuração, assinou a venda da fracção “BS” correspondente a uma habitação número ... e ..., no terceiro andar, lugar de garagem na cave, com entrada pelo arruamento sul, que havia sido adquirida através da escritura pública de compra e venda datada de 16 de Outubro de 2002, por CC à firma “Construções A..., Lda”, agindo em substituição dos vendedores e por solicitação destes.
71ª- Quanto á matéria dos FACTOS NÃO PROVADOS e pelas razões e fundamentos supra de igual modo deve ser alterada a resposta aos Factos não provados, eliminando os Factos Não Provados, e passando a constar dos Factos Provados mais o seguinte:

Desde a data da procuração até o decesso dos representados o Réu nunca foi encarregue de celebrar negócios.

O sr. CC, pai do Réu, tinha conta bancária da qual era único titular, recebia os extratos em sua casa, analisava os movimentos da conta, depositava cheques passava cheques e levantava dinheiro.

Os pagamentos das rendas eram maioritariamente feitos por transferência bancária ou por cheque para a conta dos pais do Réu.
10º
O Réu sempre entreg0u aos pais tudo quanto lhe foi entregue quer eventuais valores de preços de vendas, quer eventuais rendas em dinheiro, quer eventuais rendimentos.
11º
Os pais do Réu eram pessoas exigentes, pediam explicações de tudo e sempre foram senhores de tudo até á morte, sempre geriram tudo e sempre souberam de todos os contratos, pagamentos e recebimentos.
12º
As rendas em dinheiro eram entregues á FF, neta dos CC e DD, e filha do Réu, a qual morava na casa do pai que dista cerca de 50 metros da casa dos avôs.
13º
A referida FF sempre fez a entrega desses valores aos avós, em mão, conferindo com eles todos os pagamentos de rendas.
14º
A FF, neta dos CC e DD, era quem os ajudava na documentação formal dos arrendamentos, nos recibos de renda e nas declarações fiscais.
72ª- Consequentemente devem ser alterados os FACTOS PROVADOS passando a ter a redação supra proposta.
73ª- E também em consequência da alteração da decisão da matéria de facto devem ser eliminados dos FACTOS NÃO PROVADOS os assim considerados na sentença, alíneas a), b) e c).
74ª- Atenta a impugnação da matéria de facto e a pugnada alteração dos FACTOS PROVADOS e dos FACTOS NÃO PROVADOS, carece de fundamento a presente ação porquanto inexiste um contrato de mandato e uma obrigação de prestar contas pois não ficou provado qualquer acordo de vontades entre outorgantes da procuração e o procurador no sentido de este ficar de celebrar negócios por conta dos representados.
75ª- Resulta que foi outorgada pelos pais do Réu a procuração junta com a P.I. como mero instrumento formal passada com o único fim de evitar deslocações dos representados em tal procuração a repartições públicas, bancos, entidades públicas ou privadas, sendo um mero instrumento para facilitar a outorga ou celebração de negócios ou movimentar contas bancárias ou fazer requerimentos ou pedidos junto de quaisquer entidades.
76ª-Contudo, sempre os representados em tal procuração tiveram a administração e a decisão sobre todos os negócios, sobre a disposição, oneração, locação e gestão de todos e quaisquer bens do seu património, tendo o domínio dos factos relativamente à sorte de cada um dos bens, o domínio, conhecimento e decisão sobre as movimentações de dinheiro nos bancos e em quaisquer entidades, bem como a aplicação de todos e quaisquer rendimentos, o que sucedeu até á data da morte dos representados, nada ficando por lhes entregar, conferir ou por explicitar.
77ª- Nos actos em que o Réu usou a procuração, a sua vontade quanto ao concreto negócio celebrado foi sempre irrelevante, limitou-se a emitir, em substituição dos representados, as declarações de vontade dos mesmos, sem qualquer alteração quanto a todo o conteúdo dos negócios, mormente valores, prazos e condições, feitos e concluídos pelos representados, agindo como mero núncio.
78ª-Finalmente, caso prevalecesse a decisão prolatada tal seria exigir uma prestação de contas relativamente a uma generalização, por isso vaga e imprecisa, de eventuais atos passados há mais de dez anos e até vinte anos, num meio familiar, informal, rural, e de confiança e boa-fé nas relações pessoais, mormente entre pais e filho nas quais não é exigível documentos formais sobre tratos entre as partes.
79ª- E agravado com o facto da impossibilidade prática de recurso a documentos representando um autêntico Abuso de Direito porquanto excede manifestamente o princípio da boa-fé exigir, quanto a relações pessoais, familiares e informais, ocorridas há muitos anos, exigir a prova de entregas de dinheiros, de contas prestadas quanto ao que terá sido entregue ao Réu.
80ª- Ora, o decidido representa uma interpretação da lei que viola a constituição e o direito fundamental à defesa, consubstanciando uma situação de impossibilidade prática de provar os factos que importam para o Réu se defender com igualdade, uma prova diabólica, a qual é proibida em direito tal como sucede com a prova de facto negativo.
81ª- E tal contende com o princípio da proibição da indefesa que emana do direito constitucional ao acesso ao direito e aos tribunais e ao princípio constitucional da igualdade, arts. 20 º e 202º, nº2 e 13º todos da CRP.
82ª- Ora, a interpretação feita nos autos que não teve em conta tal impossibilidade de defesa representa uma violação constitucional na aplicação concreta da lei o que invoca e argui para efeitos de declaração de inconstitucionalidade.
Termos em que,
I- Deve conhecer-se das nulidades invocadas com as consequências legais;
II- Deve o presente recurso ser julgado procedente, alterando-se a decisão sobre a Matéria de Facto quanto aos Factos Provados e aos Não Provados, conforme indicado com base nos depoimentos transcritos supra e, em consequência, ser revogada a decisão sobre a matéria de facto, decorrendo disso ter de ser proferida decisão a absolver o Réu declarando que inexiste obrigação de prestar contas;
III- Caso assim não se entenda, deve conhecer-se do Abuso de Direito invocado e ainda da violação do preceito constitucional da proibição da indefesa, declarando-se impedido o alegado direito da Autora por violação do princípio da boa-fé e representar um Abuso de Direito bem como representa uma decisão inconstitucional na aplicação concreta da lei;
IV- Julgando improcedente a ação, fazendo-se como sempre justiça».
A recorrida respondeu à alegação do recorrente, pugnando pela total improcedência da apelação e pela consequente confirmação da sentença recorrida.
A Sra. Juíza a quo pronunciou-se sobre a alegada nulidade da sentença, nos termos previstos nos artigos 617.º, n.º 1, e 641.º, n.º 1, do CPC, pugnando pela improcedência dos argumentos invocados nesse sentido.
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Recebidos os autos neste Tribunal de recurso, face à alegação do recorrente, foi solicitado o acompanhamento do processo de prestação de contas n.º 2565/21.4T8VFR-A, tendo em vista habilitar o Tribunal a verificar a eventual ocorrência da excepção de litispendência.
Consultado esse processo, por se afigurar ocorrer uma situação de litispendência parcial ou, pelo menos, de prejudicialidade parcial, impeditiva do conhecimento de parte do objecto do recurso ou, pelo menos, a suspensão da instância até que seja proferida decisão definitiva na primeira acção, foi dada cumprimento ao disposto no artigo 655.º do CPC.
Apenas se pronunciou o recorrente, afirmando ser correcto que se verifica «uma situação de litispendência parcial ou, pelo menos, de prejudicialidade parcial entre a anterior e esta acção», pugnando pela suspensão da instância até que seja proferida decisão definitiva na acção de prestação de contas n.º 2565/21.4T8VFR-A.
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II. Objecto do Recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:
1. A litispendência, no que concerne ao período compreendido entre 20.04.2017 e 2019.
3. A nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC;
4. O erro do julgamento quanto à matéria de facto e a consequente alteração da matéria de facto provada e não provada;
5. A inexistência da obrigação de prestar contas e a inexistência de contas a prestar;
6. O abuso de direito;
7. A inconstitucionalidade da interpretação da lei feita pelo Tribunal recorrido.
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III. Fundamentação

A. Excepção de litispendência / Pendência de causa prejudicial
Ao arguir a nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia (nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC), o réu/recorrente aludiu à pendência de uma acção especial de prestação de contas, apensa ao processo de inventário instaurado para partilha das heranças abertas por óbito de CC e DD, no qual são prestadas contas relativas ao hiato temporal de 2017 a 2019, parcialmente correspondente ao período em causa na presente acção especial de prestação de contas (04.06.2001 a 31.05.2019), e invocou o dever do tribunal a quo de consultar os referidos processos de inventário e de prestação de contas, «para verificar a pendência desse processo e evitar um conflito de litispendência».
Como ficou dito no despacho de 07.10.2024, depois de pedido o acompanhamento do referido processo de prestação de contas (processo n.º 2565/21.4T8VFR-A, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira, Juiz 2) e de analisado o seu teor, verificou-se que as contas aí prestadas pelo réu BB, a pedido da autora AA, julgadas por sentença ainda não transitada em julgado, dizem respeito à administração, por parte do primeiro, de todo o património dos seus pais, CC e mulher DD, no período compreendido entre 20.04.2017 (data do óbito do seu pai) e 31.10.2021 (data do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha das heranças abertas por óbito de ambos os progenitores), inclusivamente dos rendimentos (rendas) provenientes dos imóveis que integravam o património dos inventariados (cfr. pontos 1, 3 a 7 dos factos julgados provados na sentença proferida pela primeira instância, ainda não transitada em julgado).
Nos presentes autos está em causa a obrigação, invocada pela autora AA, do réu BB prestar contas pela administração que fez do património dos seus pais durante o período compreendido entre 04.06.2001 (data em que foi outorgada a procuração que lhe conferiu poderes para os actos compreendidos nessa administração) e 31.05.2019 (data do falecimento da sua mãe), onde se incluem os contratos de compra e venda de 16.10.2002, 09.01.2003 e 19.09.2003 e diversos contratos de arrendamento, que o réu celebrou munido da referida procuração, bem como as rendas que recebeu munido da mesma procuração.
E embora na primeira acção se invoque, como fundamento da administração que o réu fez de todos os bens dos seus pais entre 20.04.2017 e 31.10.2021, o cargo de cabeça-de-casal por este exercido desde o falecimento do seu pai, e nesta segunda acção se invoque, como fundamento da administração de bens desse mesmo património entre 04.06.2011 e 31.05.2019, um mandato com representação, é manifesto que as contas prestadas e ainda em apreciação na primeira acção, no que respeita ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019, e as contas que a autora pretende ver prestadas nesta acção, no que respeita ao mesmo período, se referem aos mesmos actos de administração de bens.
Nestes termos, embora no despacho que determinou a audição das partes ao abrigo do disposto no artigo 655.º do CPC, que vimos citando, se equacione a alternativa de estarmos perante uma situação de litispendência parcial, impeditiva do conhecimento de parte do objecto do recurso, ou perante uma situação de prejudicialidade, justificadora da suspensão da instância, entendemos que a situação concreta se enquadra na primeira destas hipóteses, o que, de resto, não mereceu a oposição de nenhuma das partes (ainda que, como vimos, a recorrida se tenha remetido ao silêncio e o recorrente tenha pugnado pela suspensão da instância).
Analisemos os pressupostos de cada uma destas figuras.
A litispendência configura uma excepção dilatória, cuja verificação obsta ao conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição do réu da instância – cfr. artigos 576.º, n.º 2, e 577.º, al. i), do CPC.
Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 580.º, n.º 2, do CPC), ou seja, têm por fim evitar que o tribunal julgue duas vezes a mesma causa. Subjacente a estes institutos estão, pois, necessidades de certeza e segurança jurídica. Como escreve Miguel Teixeira de Sousa (O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, p. 176), «[a] excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal)». Subjacente a estes institutos estão, pois, necessidades de certeza e segurança jurídica.
Assim, ambas as excepções pressupõem a repetição da causa; mas enquanto a excepção de litispendência pressupõe que a causa se repete estando a anterior pendente, a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário (artigo 580.º, n.º 1, do CPC).
E a causa repete-se «quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir» (art. 581.º, n.º 1, CPC).
De acordo com o n.º 2 deste artigo 581.º haverá identidade de sujeitos quando as partes forem as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, isto é, quando se apresentem com as mesmas vestes jurídicas, com o mesmo interesse substancial, independentemente da sua identidade física e da posição processual que ocupam, no lado activo ou passivo da lide.
«O pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 127). Assim, haverá identidade de pedidos se houver identidade na forma de tutela pretendida e no conteúdo e objecto do direito a tutelar.
Ocorrerá identidade de causa de pedir quando for o mesmo o facto ou acto jurídico de onde deriva o direito que a parte se arroga. «Quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, p. 123).
Vejamos agora os pressupostos da prejudicialidade.
Nos termos do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC, «[o] tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado».
Segundo Lebre de Freitas, é causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 501).
Como ensina Alberto dos Reis, «[o] nexo de prejudicialidade ou de dependência define-se assim: estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão duma poder afectar o julgamento a proferir na outra. Aquela acção terá o carácter e prejudicial em relação a esta» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª ed., p. 384). Acrescenta o mesmo autor que «uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou razão de ser da segunda», esclarecendo que tal ocorre quando «na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental». Admitindo que possa verificar-se um nexo de prejudicialidade entre uma acção em que se discute a título incidental uma dada questão discutida noutra a título principal, este autor dá como exemplo a coexistência de «uma acção de dívida e acção pauliana proposta pelo autor daquela» (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, p. 268 a 270).
Também a jurisprudência vem afirmando que uma causa depende do julgamento de outra quando a decisão da acção prejudicial pode contender ou destruir o fundamento ou razão de ser de outra já proposta ou quando na acção prejudicial se discute uma questão cuja resolução, por si só, pode modificar a situação jurídica subjacente ao outro pleito (cfr. ac. STJ de 26.05.94, CJ STJ, T. II, p. 116 e ss; ac. RC de 06.10.93, CJ 1993, T. IV, p. 51 e ss).
Isso mesmo é corroborado pelo artigo 276.°, n.º 2, do CPC, quando preceitua que se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente.
Esta relação de dependência ou prejudicialidade só ocorrerá quando a força do caso julgado na acção principal se impuser às partes da acção subsequente. A autoridade do caso julgado material está para a prejudicialidade como a excepção dilatória do caso julgado está para a litispendência.
Tal não pressupõe, naturalmente, a tríplice identidade (de sujeitos, de causa de pedir e de pedido) em que assentam as excepções da litispendência e do caso julgado, casos em que não podemos equacionar a suspensão da instância por pendência de causa prejudicial, mas antes a sua extinção em virtude da procedência de uma daquelas excepções dilatórias – cfr. artigos 576.º, n.º 2, 577, al. i), 580.º e 581.º, todos do CPC. Mas pressupõe a autoridade do caso julgado, na vertente que Miguel Teixeira de Sousa denomina de consumpção objetiva não recíproca prejudicial e que define nos seguintes moldes (O Objecto da Setença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325-47):
«Das relações de inclusão entre objectos processuais nascem as situações de consumpção objectiva; a consumpção objectiva pode ser recíproca, se os objectos processuais possuem idêntica extensão, e não recíproca, se os objectos processuais têm distinta extensão; a consumpção não recíproca pode ser inclusiva, se o objecto antecedente engloba o objecto subsequente, e prejudicial, se o objecto subsequente abrange o objecto antecedente.
Assim, a consumpção recíproca e a consumpção não recíproca inclusiva firmam-se na repetição de um objecto antecedente num objecto subsequente e a consumpção não recíproca prejudicial apoia-se na condição de um objecto anterior para um objecto posterior.
Esta repartição nas formas de consumpção objectiva, acrescida de identidades de partes adjectivas, é determinante para a qualidade da relevância em processo subsequente da autoridade de caso julgado material ou da excepção de caso julgado: quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior. Ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre objectos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, excepção de caso julgado.» (p. 171)
Assim, como afirma o mesmo autor, «a prejudicialidade, refere-se a hipóteses de objectos processuais que são antecedentes da apreciação de um outro objecto que os inclui como premissas de uma decisão mais extensa» (Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, p. 306).
Do que ficou exposto decorre que tanto a suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial como a autoridade do caso julgado material têm por fim evitar que a decisão a proferir numa acção contradiga a decisão a proferir ou já proferida noutra, quando o objecto desta se apresenta como condição do objecto daquela.
Feito este excurso teórico, facilmente concluímos que, no caso concreto, estão verificados os pressupostos do binómio litispendência/caso julgado e não os pressupostos do binómio prejudicialidade/autoridade do caso julgado material.
Em primeiro lugar, constata-se que a autora e o réu são os mesmos nas duas acções em confronto, inclusivamente no que concerne à sua identidade física e à sua posição na lide.
Do mesmo modo, parte do pedido deduzido nesta acção repete parte do pedido deduzido na acção anterior. Como vimos, nesta acção a autora pretende que o réu preste contas da administração que fez do património dos seus pais no período compreendido entre 04.06.2001 (data em que foi outorgada a procuração que lhe conferiu poderes para os actos compreendidos nessa administração) e 31.05.2019 (data do falecimento da sua mãe); na acção n.º 2565/21.4T8VFR-A, a mesma autora pediu que o mesmo réu prestasse contas da administração que fez de todo o património dos seus pais no período compreendido entre 20.04.2017 (data do óbito do seu pai) e 31.10.2021 (data do trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha das heranças abertas por óbito de ambos os progenitores); assim, no que respeita ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019 é a mesma a forma de tutela pretendida, tal como é o mesmo conteúdo e o objecto do direito a tutelar.
Por fim, no que concerne ao referido período, é também a mesma a causa de pedir. É certo, como também ficou dito no despacho proferido em 07.10.2024, que na primeira acção se invoca, como fundamento da administração que o réu fez de todos os bens dos seus pais entre 20.04.2017 e 31.10.2021, o cargo de cabeça-de-casal por este exercido desde o falecimento do seu pai, ao passo que nesta acção se invoca, como fundamento da administração dos mesmos bens entre 04.06.2011 e 31.05.2019, um mandato com representação. Mas é igualmente certo, como ficou dito no mesmo despacho, que as contas cuja prestação foi solicitada na primeira acção, no que respeita ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019, e as contas que a autora pretende ver prestadas nesta acção, no que respeita ao mesmo período, se referem aos mesmos actos de administração de bens. Ora, como se explicou no acórdão anteriormente proferido nestes autos, a causa de pedir da acção de prestação de contas não é o facto jurídico que legitima a administração de bens alheios – seja ele um contrato de mandato, uma procuração e/ou a qualidade de cabeça-de-casal, factos que podem naturalmente coexistir – mas a própria administração de bens alheios. Como escreve Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2018, p. 834, citado no ac. do TRG, de 26.05.2022, proc. n.º 3676/14.8T8GMR.G2, rel. Alcides Rodrigues), a causa de pedir da «ação de prestação de contas provocada é o facto da aquisição da titularidade do direito (i.e., ser-se titular dos bens, em regra) perante quem esteja em condições de prestar as informações necessárias (i.e., o administrador dos bens)», enquanto que na «ação de prestação de contas espontânea é o facto constitutivo da obrigação de prestar contas, i.e., ser-se quem está em condições de prestar as informações necessárias». Por conseguinte, estando em causa a administração dos mesmos bens, é manifesta a identidade da causa de pedir.
Nestes termos, o objecto da presente acção, no que respeita ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019, é idêntico ao objecto da acção anterior, repete-o, não se limitando a ser uma condição da apreciação deste, o que determina o efeito impeditivo da excepção de litispendência e não apenas o efeito vinculativo da prejudicialidade.
Em suma, verificada a tríplice identidade de que depende a excepção dilatória de litispendência, resta concluir pela sua verificação no que concerne à prestação de contas relativo ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019 e absolver o réu da instância quanto a essa parte do pedido.
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B. Nulidade da sentença

1. O recorrente arguiu a nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC, alegando, em essência, que as contas da administração da herança pelo cabeça de casal são prestadas no âmbito da partilha, por apenso ao processo de inventário, se este tiver sido instaurado, não podendo sê-lo nesta acção de prestação de contas que tem por causa a procuração outorgada pelos de cujus (cfr. conclusões 1.ª a 5.ª).
O conhecimento desta questão está prejudicado pela verificação da excepção dilatória de litispendência, pelo que nada mais importa apreciar relativamente às contas relativas ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019, importando apenas apreciar a obrigação de prestar contas relativamente ao período compreendido entre 04.06.2001 e 19.04.2017.
2. O recorrente arguiu também a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, alegando que a sentença não se pronunciou sobre os factos por si alegados no articulado em que exerceu o contraditório sobre os documentos juntos pela autora no articulado de resposta à contestação, relevantes para a decisão da causa, «tais como os anos decorridos desde a data da procuração e permanecendo os “de cujus” com a sua vontade e capacidade perfeitas até ao decesso, durante mais de vinte anos e que por força dos réditos obtidos deixaram avultado património do qual a Autora beneficiou por igual com o Réu» (cfr. conclusão 6.ª).
Mas não tem razão.
Desde logo porque o requerimento em que se pronunciou sobre os documentos apresentados pela autora não configura um articulado, no seu sentido estrito de peça processual destinada a alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (cfr. artigo 5.º do CPC), não podendo servir para o réu aditar novos factos à sua defesa, possibilidade que está sujeita às restrições impostas pelos artigos 573.º e 588.º do CPC (naturalmente sem prejuízo do exercício do contraditório previsto no artigo 3.º do CPC, designadamente da faculdade prevista no n.º 4 desse artigo). Tal requerimento serve, apenas, para o réu deduzir algum dos incidentes previstos nos artigos 444.º e seguintes do CPC e/ou – de acordo com a prática generalizada, mas cuja sustentação legal é pelo menos discutível – para se pronunciar sobre a relevância probatória dos documentos apresentados. Dito de outro modo, o referido requerimento não é legalmente admissível, na parte em que adita novos factos à defesa, pelo que o tribunal não tinha de se pronunciar sobre os mesmos, a não ser que o devesse fazer oficiosamente ou se tais factos se enquadrassem nalguma das situações previstas no artigo 5.º, n.º 2, do CPC, o que claramente não sucede: com excepção do número de anos decorridos desde a data da procuração, que não chega a configurar um facto, mas uma mera conclusão a extrair da data em que a mesma foi outorgada, os demais factos alegados pelo réu não configuram factos instrumentais, nem são complemento ou concretização dos que as partes alegaram nos articulados, tal como não são factos notórios ou de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Por outro lado, afigura-se claro que aqueles factos não têm qualquer relevância para a decisão da causa, ou seja, para além de não serem constitutivos do direito que a autora pretende exercer, não se vislumbra – nem o recorrente esclareceu – em que medida impedem, modificam ou extinguem esse direito.
De resto, este Tribunal já se pronunciou anteriormente a respeito da omissão de pronúncia sobre os factos relevantes para a decisão da causa, tendo anulado a primeira decisão e determinado o apuramento dos factos omitidos, não tendo incluído aqui os factos que o recorrente vem agora invocar.
Para fundamentar a mesma nulidade, o recorrente alegou ainda que «é invocado pelo Réu e mormente nos seus depoimentos, a inexigibilidade de prova por se tratar de prova praticamente impossível, sendo a chamada prova diabólica, referindo o Réu estarem-lhe a perguntar factos de há mais de 18 anos, 20 anos, quando nem sequer existe a obrigação de conservação de documentos ou registo por parte de instituições, (prazo geral de 10 anos)» (cfr. conclusão 7.ª), acrescentando que «nada sobre esta questão própria que se conjuga entre o ónus da prova e sua inversão e o princípio da boa-fé e do abuso de direito, é referido na sentença, pelo que, trata-se de omissão de pronuncia que vicia a sentença».
Mais uma vez, não assiste razão ao recorrente.
Como dissemos no acórdão anteriormente proferido nestes autos, da norma do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, decorre que o juiz não pode deixar de apreciar alguma questão cuja resolução a lei lhe imponha, ou seja, não pode deixar de conhecer as questões, de facto ou de direito, suscitadas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, que se mostrem relevantes para o resultado da lide.
Esta imposição legal não se reporta a cada um dos argumentos esgrimidos pelas partes, exigindo apenas que o tribunal não deixe de apreciar a questão essencial. Em consonância com o exposto, escreve-se no ac. do STJ, de 05.05.2021 (proc. n.º 64/19.3T9EVR.S1.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da respectiva fonte) que a omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença «[o]corre quando o tribunal deixa de apreciar e julgar questões de facto e/ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários».
Em causa está, agora, a falta de pronúncia sobre a circunstância de a prestação de contas depender da produção de prova praticamente impossível e, por isso inexigível, e das consequências dessa circunstância para o ónus da prova e para o princípio da boa-fé e do abuso de direito.
Mas estas questões não foram oportunamente alegadas pelas partes, como tal não se podendo considerar as opiniões jurídicas emitidas pelo réu quando inquirido sobre os factos sujeitos a prova.
É certo que as questões relativas à distribuição do ónus da prova e ao abuso de direito são de conhecimento oficioso. Mas o dever de conhecimento oficioso destas ou doutras questões só existe na medida em que se revele útil e necessário à decisão da causa, tendo em conta a questão colocada ao tribunal e os factos apurados, nada impondo nem justificando que o tribunal esgote todas as questões que, em termos abstractos, são de conhecimento oficioso, ainda que não se revelem pertinentes para a solução a dar ao caso, sob pena de se transformar a decisão judicial num exercício académico desmesurado e, em grande medida, inútil.
Ora, como veremos melhor infra, nada nos factos oportunamente alegados e julgados provados, analisados à luz da questão colocada ao tribunal a quo, maxime a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas da administração que o réu fez dos bens dos seus pais a partir do ano de 2001, impunha ou, sequer, aconselhava que aquele tribunal apreciasse oficiosamente a eventual violação do princípio da boa-fé e do abuso de direito, muito menos com fundamento na dificuldade da prova.
Recorde-se que a nulidade de omissão de pronúncia, como as demais nulidades da sentença previstas no artigo 615.º do CPC, configuram meros erros de procedimento, que afectam apenas a regularidade formal da sentença, não se confundindo com erros de julgamento, que afectam o próprio mérito da decisão (de facto e/ou de direito). Como se escreve no acórdão do STJ, de 03.03.2021 (proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, rel. Leonor Cruz Rodrigues), «[h]á que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma».
No caso concreto, é manifesto que o não conhecimento das questões agora suscitadas pelo recorrente não afectam a regularidade formal da sentença recorrida, independentemente do acerto da decisão aí proferida, tanto no que respeito aos factos provados como ao seu enquadramento legal.
Pelo exposto, improcede a alegada nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.
3. O recorrente arguiu ainda a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC, alegando o seguinte: resultando dos factos que foram recebidas rendas em numerário, mas que a maioria das rendas eram pagas por transferência bancária ou por cheque para a conta do Sr. CC, à qual o réu não tinha acesso, não pode o marginal pagamento de rendas em numerário ser qualificado como uma relação de gestão e mandato, reapresentando tal interpretação uma contradição insanável e uma omissão de pronúncia sobre essa incongruência (cfr. conclusões 9.ª a 14.ª).
Também esta argumentação carece de sustentação, revelando-se mesmo difícil de compreender.
Em primeiro lugar, em parte alguma dos factos julgados provados na sentença recorrida se diz que a maioria das rendas era paga por transferência bancária ou por cheque para a conta do Sr. CC. Não pode, assim, falar-se de uma contradição (entre os fundamentos e a decisão, pois só essa pode gerar a nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do CPC) que tenha como premissa esse facto, pois não pode haver contradição entre um fundamento de facto inexistente e a decisão. Em todo caso, ainda que o referido facto constasse do elenco dos factos provados, saber se o “pagamento marginal de rendas em numerário” corresponde ou não a uma “relação de gestão e mandato” remeter-nos-ia para a apreciação do mérito da causa e não para a sua regularidade formal. Como se escreve no ac. do STJ, de 30.05.2013 (proc. n.º 660/1999.P1.S1, rel. Álvaro Rodrigues), «I- A contradição a que a lei impõe o efeito inquinatório da sentença como nulidade, é a oposição entre os fundamentos e a decisão – art.º 668º, nº 1, al. d) do CPC. II- Porém, para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (A. Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56). III- A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do art.º 668º, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente». No mesmo sentido vide, a título de mero exemplo, os acórdãos do STJ, de 14.04.2021 (proc. n.º 3167/17.5T8LSB.L1.S1, rel. Leonor Cruz Rodrigues) e de 25.05.2023 (proc. n.º 1864/21.0T8AGD-A.P1.S1, rel. Sousa Pinto).
Do mesmo modo, também não pode falar-se de omissão de pronúncia sobre a apontada contradição ou incongruência (cfr. conclusão 14.ª), o que nem sequer faria qualquer sentido.
Por fim, a própria omissão do facto acima aludido – de que a maioria das rendas era paga por transferência bancária ou por cheque para a conta do Sr. CC – é insusceptível de gerar a nulidade da sentença, seja por força da al. b) e ou da al. d) (cfr. conclusão 16.ª).
Quanto à al. b), a jurisprudência e a doutrina nacionais vêm insistentemente alertando para a necessidade de distinguir entre falta de fundamentação, fundamentação insuficiente e fundamentação errada ou divergente da pretendida. E vêm defendendo uniformemente que a norma do artigo 615.º, n.º 1, al. b), inclui apenas a falta de fundamentação, não se aplicando às situações de insuficiência da fundamentação ou erro de julgamento, que, deste modo, não geram a nulidade da decisão. Só a absoluta falta de fundamentação de facto e/ou de direito, à qual se deverá equiparar a sua ininteligibilidade, pode gerar a nulidade da sentença, na medida em que, por se traduzir na inobservância das regras de elaboração da sentença, configura um vício formal, um error in procedendo que afecta a validade da sentença. Neste sentido, a título de mero exemplo, vide, na doutrina, Alberto os Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra 1981, Vol. V, p. 140; A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, p. 687; Tomé Gomes, Da Sentença Cível, in O novo processo civil, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jan. 2014, pág. 370; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, pp. 736 a 738; Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Coimbra 2014, pp. 602 e s.
No caso em análise, independentemente da suficiência ou insuficiência da matéria de facto apreciada na sentença recorrida, é manifesto que esta especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, pelo que não ocorre uma falta absoluta de fundamentação.
Quanto à al. d), o facto em causa não foi oportunamente alegado pelas partes e não é, evidentemente, de conhecimento oficioso, pelo que a sua omissão dos factos provados ou não provados não é passível de configurar uma nulidade por omissão de pronúncia, de acordo com o já exposto supra.
Ainda que se entenda que este facto poderá configurar uma resposta restritiva e explicativa do oportunamente alegado recebimento de rendas, é evidente que o tribunal não estava obrigado a pronunciar-se sobre essa restrição ou explicação, a não ser na medida em que se tivesse convencido da mesma. Mas, mesmo nesse caso, não o fazendo, nunca estaríamos perante uma omissão de pronúncia, ou seja, perante um error in procedendo, mas sim perante um erro de julgamento da matéria de facto.
Em suma, improcede na totalidade a alegada nulidade da sentença.
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C. Os Factos

1. Factos julgados provados pelo Tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. No dia 04 de Junho de 2001, no ... Cartório Notarial ..., foi outorgada procuração por CC contribuinte nº ...60 e mulher DD contribuinte nº ...45, casados no regime de comunhão geral, residentes no lugar ..., em ..., constituíram seu bastante procurador o seu filho, aqui requerido, BB, a quem “...com a faculdade de substabelecer, concedem poderes forenses em geral e em direito permitidos, e ainda poderes para comprar, vender, arrendar e hipotecar quaisquer bens imóveis, nas condições que entender convenientes, movimentar quaisquer contas bancárias, outorgar contratos promessas de compra e venda, representá-los em tudo o que diga respeito ao contrato-promessa de permuta celebrado com “A..., Lda.”, concedendo-lhe também poderes para os representar junto de quaisquer Repartições Públicas, nomeadamente Repartições de Finanças, Conservatória do Registo Predial, podendo aí requerer quaisquer registos, provisórios ou definitivos, cancelamentos e averbamentos e prestar declarações complementares, praticando e assinando tudo quanto se mostre necessários aos indicados fins.”
2. Os outorgantes deste acto notarial faleceram 20.04.2017 e em 31.05.2019, respectivamente.
3. O réu, munido de procuração, interveio, em representação dos mandantes, na outorga das escrituras de compra e venda celebradas com a firma “Construções A..., Lda.” realizadas nos dias 9 de Janeiro de 2003, 3 de Julho de 2003 e 19 de Setembro de 2003.
4. O réu, munido da procuração, interveio em diversos contratos de arrendamento de imóveis propriedade dos mandantes, estipulando os termos que entendeu convenientes.
5. O réu, ao abrigo da procuração mencionada em 1, recebeu rendas em numerário.
6. O réu, munido da procuração, interveio na venda da fracção “BS”, correspondente a uma habitação número ... e ..., no terceiro andar, lugar de garagem na cave, com entrada pelo arruamento sul, que havia sido adquirida, através da escritura pública de compra e venda datada do dia 16 de Outubro de 2002, por CC à firma “Construções A..., Lda.”.
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
a) - O R. sempre entregou aos representados tudo quanto lhe foi entregue quer eventuais valores de preços de vendas, quer rendas, quer rendimentos.
b) - E sempre deu a verificar movimentos bancários, valor dos depósitos e aplicações de acordo com o definido pelos representados.
c) - Tudo sempre foi gerido, decidido e verificado pelos representados que sempre foram senhores de tudo até à sua morte, sempre souberam quem eram contrapartes, o valor dos preços, das rendas, os rendimentos e dos movimentos de dinheiros e sua disposição.
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3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
3.1. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
No caso vertente, o cumprimento destes ónus não suscita dúvidas: o recorrente indicou de forma expressa e discriminada, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os pontos de facto que considera incorretamente julgados (os pontos 3 a 6 dos factos provados e a) a c) dos factos não provados), indicou igualmente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre esses factos (cfr. conclusões 70.º e 71.º) e fundamentou a sua discordância na prova que descreve e analisa na referida alegação (as declarações de parte da autora e do réu, os depoimentos das testemunhas FF e GG e o documento n.º 1 da resposta à contestação).
Acresce que a recorrente transcreveu a parte das declarações de parte e dos depoimentos testemunhais em que se baseia, mais indicando o minuto e o segundo do início de cada um desses excertos.
Nestes termos, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.2. Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Cit., p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, como vimos, a recorrente principal pugnou pela alteração da decisão no que respeita à factualidade descrita nos pontos 3 a 6 dos factos provados e a) a c) dos factos não provados. Vejamos se lhe assiste razão.
3.3. Como questão prévia à análise crítica da prova produzida, o recorrente veio alegar que a consideração, pelo Tribunal a quo, das declarações de parte da autora viola o fundamento substantivo da norma do artigo 466.º do CPC, o princípio da igualdade das partes e a boa-fé processual, previstos nos artigos 4.º e 8.º do mesmo código, «permitindo um depoimento especulativo e com alegações falsas que induziram uma interpretação errada dos factos», tendo em conta que a autora assistiu a todos os depoimentos das testemunhas e às declarações de parte do réu.
Desta alegação parece poder extrair-se, antes de mais, que no entendimento do recorrente esta prova não era legalmente admissível e, por isso, não devia ter sido admitida. Porém, o despacho que a admitiu já não pode ser sindicado por este tribunal, por ter transitado em julgado antes da interposição do presente recurso.
Como resulta da acta da audiência realizada em 15.12.2023, a mandatária da autora requereu que esta prestasse declarações de parte, ao abrigo do disposto no artigo 466.º do CPC, o mandatário do réu opôs-se, por considerar tal pedido manifestamente insubsistente, tendo o tribunal a quo deferido tal meio de prova, por considerar que as declarações se revelam pertinentes para a discussão da matéria em causa. Este despacho foi de imediato notificado a todos os presentes.
Nos temos do artigo 628.º do CPC, a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação. Assim, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Cit., p. 751), «[q]uando a decisão é susceptível de recurso ordinário, tal efeito consuma-se no momento em que se encontram esgotadas as possibilidades de interposição de recurso. Nas demais situações, ocorre no fim do prazo (que é o geral, de 10 dias – art. 149.º) para a eventual arguição de nulidades ou da reforma da sentença, nos termos dos artigos 615.º, n.º 4, e 616.º, n.º 3» do CPC.
No caso concreto, a decisão que admitiu as declarações de parte da autora era susceptível de recurso, nos termos previstos no artigo 629.º, n.º 1, do CPC, atento o valor da acção. Acresce que aquela decisão admitia apelação autónoma, ao abrigo do artigo 644.º, n.º 2, al. d), do CPC, onde se preceitua que cabe recurso de apelação do despacho de admissão ou rejeição de algum meio de prova. Tal significa que aquela decisão podia ser imediata e isoladamente impugnada por via de apelação – que, por essa razão, a lei adjectiva qualifica como autónoma –, não tendo essa impugnação de aguardar a prolação da decisão final, como sucede com as decisões a que se referem os n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo 644.º. O prazo para interpor recurso desse despacho era de 15 dias, contados desde a sua notificação, nos termos previstos no artigo 638.º do CPC, o qual se esgotou ainda antes da interposição do presente recurso de apelação e da própria prolação da sentença recorrida.
Não tendo sido interposto recurso do despacho em causa, o mesmo transitou em julgado, com os efeitos previstos no artigo 620.º, n.º 1, do CPC, nos termos do qual as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Nestes termos, como começámos por dizer, a admissão das declarações de parte da autora já foi definitivamente decidida, não podendo essa decisão ser sindicada por este Tribunal ad quem, ainda que por via dos seus poderes de apreciação da sentença final. Por conseguinte, nada obsta a que se apreciem as declarações em causa, concatenando-os com a demais prova produzida.
3.4. À semelhança do que já ficou dito no acórdão por nós proferido nestes autos em 08.11.2022, as alterações que o recorrente pretende ver introduzidas nos pontos 3 e 6 dos factos provados revelam-se totalmente inócuas, pelo que devem soçobrar. Na verdade, como ali também ficou dito, para o efeito da obrigação de prestar contas, afirmar que o réu interveio em determinados contratos “em substituição dos seus pais” não é diferente de afirmar que o fez “em representação dos mandantes” e/ou “munido da procuração”.
Pelo exposto, julga-se improcedente, nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.5. No referido acórdão de 08.11.2022 também já ficou dito que a factualidade que o recorrente pretendia ver aditada como ponto 7 dos factos provados – e que corresponde à factualidade que agora pretende ver aditada com o mesmo número – não respeita a repartição do ónus da prova aplicável ao caso concreto, na medida em que não é o réu que tem de demonstrar que não foi incumbido pelos seus pais de celebrar negócios; é a autora que tem de provar que o réu efectivamente administrou bens dos pais deste, seja na sequência da incumbência que lhe foi atribuída, seja por qualquer outra razão.
3.6. Quanto à factualidade que o recorrente agora pretende ver aditada como ponto 8 dos factos provados, é manifesta a sua irrelevância, pois a circunstância de o pai do réu ter sido o único titular de uma conta bancária (que em sequer está claramente identificada como sendo a conta para onde eram feitas as transferências bancárias relativas ao pagamento das rendas, à qual o recorrente se refere como a conta dos pais do réu, assim sugerindo que tinha dois titulares), de receber e analisar os respectivos movimentos, de aí depositar cheques e de levantar dinheiro da mesma, nada nos diz sobre a administração imputada ao réu, inclusivamente sobre o recebimento de rendas, nem configura um facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito de que a autora se arroga à prestação de contas.
O mesmo sucede com o facto que o recorrente pretende ver aditado como ponto 14 dos factos provados, pois a circunstância de a neta dos titulares dos bens alegadamente administrados pelo réu ajudar os seus os avós no tratamento da documentação relativa aos arrendamentos nada nos diz sobre a administração que o réu fazia ou não desses bens.
E ainda que se considere que aqueles factos têm natureza instrumental, ou seja, que o seu apuramento pode levar o tribunal a julgar provados ou não provados factos essenciais para a decisão da causa, mas não podem servir, eles próprios, de fundamento da decisão, os mesmos terão a sua sede própria na motivação da decisão sobre a matéria de facto e não no elenco dos fundamentos de facto da decisão. Note-se que o contrário não resulta do artigo 5.º, n.º 2, al. a), do CPC. Neste sentido, escrevem o seguinte Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Cit., p. 29): «Quanto aos factos instrumentais (aqueles que permitem a afirmação, por indução, de factos cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da excepção), não se mostra imprescindível a sua alegação, isto é, não há ónus de alegação quanto aos mesmos, não havendo também qualquer tipo de preclusão, pelo que poderão ser livremente averiguados e discutidos na audiência final em torno da produção e valoração dos meios de prova e em face dos temas da prova enunciados. Sobre os mesmos não tem de existir necessariamente uma pronúncia judicial, na medida em que sirvam apenas de apoio à formação da convicção acerca da restante factualidade, maxime quando, a partir deles, se possam inferir outros factos mediante presunções judiciais (arts. 607.º, n.º 4, 5.º, n.º 2, al. a)), situações em que basta que sejam enunciados na motivação da sentença (cf. anot. aos arts. 186.º, 552.º e 607.º)».
Pelo exposto, julga-se improcedente, também nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.7. Resta apreciar a impugnação dos pontos 4 e 5 dos factos provados e das alíenas a), b) e c) dos factos não provados.
Tal impugnação traduz-se, em essência, em ver eliminado do elenco dos factos provados que o réu estipulou, nos contratos de arrendamento em que interveio, os termos que entendeu convenientes (cfr. ponto 4 sugerido pelo recorrente), e em ver acrescentado ao mesmo elenco:
- Que as rendas em numerário recebidas pelo réu correspondem a uma minoria dos pagamentos efectuados pelos arrendatários (na medida em que esses pagamentos eram maioritariamente feitos por transferência bancária ou por cheque para a conta dos pais do réu – cfr. ponto 9 sugerido pelo recorrente);
- Que aquelas rendas em numerário, tal como outros rendimentos eventualmente recebidos pelo réu, foram entregues aos pais deste (ainda que este singelo facto seja desdobrado e repetido, na decisão proposta pelo recorrente, nos pontos 5, 10, 12 e 13, a par da eliminação da al. a) dos factos não provados);
- Que foram sempre os pais do réu que administraram o seu património, cingindo-se a intervenção deste a actos de representação sem poderes de administração daquele património, e que os representados sempre souberam dos todos actos praticados pelo réu (sendo esse o alcance da proposta de eliminação das alíneas b) e c) dos factos não provados e do aditamento do ponto 11.º dos factos provados).
3.7.1. No que concerne ao ponto 4, a afirmação de que o réu estipulou, nos contratos de arrendamento em que interveio, os termos que entendeu convenientes, é desde logo corroborada pelo teor da procuração que o réu usou para celebrar esses contratos, referida no ponto 1 dos factos provados. Nos termos dessa procuração, os pais do réu concederam-lhe, entre outros, poderes para «comprar, vender, arrendar e hipotecar quaisquer bens imóveis, nas condições que entender convenientes». Tal significa, como se afirma na decisão recorrida, «que depositaram nele uma confiança, pelo menos, tão ampla quanto o âmbito da procuração outorgada», aí se incluindo poderes para definir as condições dos contratos a celebrar em representação daqueles. E se é verdade, como afirmaram repetidamente o réu e a sua filha, a testemunha FF, que os representados eram muito ciosos do seu património e que o pai do réu se manteve sempre lúcido e activo até pouco tempo antes da sua morte, isso apenas vem corroborar que não foi inadvertidamente ou de ânimo leve que concederam aqueles poderes ao seu filho e os mantiveram até à sua morte, nunca revogando a procuração.
É certo que é réu, secundado pela sua filha, procurou veicular a ideia de que era sempre o seu pai quem definia as condições de todos os contratos de arrendamento e que este apenas o substituía na assinatura de alguns desses contratos. Porém, nas declarações que prestou em 01.04.2022, o próprio réu descreveu assim procedimento que adoptava: dizia ao seu pai que havia um apartamento vazia (o que logo pressupõe que este não estava a par da cessação dos contratos de arrendamento), que ia ser arrendado, que a renda era “x” (o que pressupunha que a negociação dos termos do novo contrato de arrendamento era levada a cabo pelo réu ou, pelo menos, que não o era pelo seu pai) e perguntava-lhe “o que é que o pai diz?”, respondendo este “tratai disso!”. Daqui decorre que o réu exercia, efectivamente, os poderes de iniciativa e conformação negociais que lhe foram concedidos, sem prejuízo de manter o seu pai informado a respeito dos contratos que celebrava.
Por fim, esta autonomia negocial é ainda corroborada pelo facto de os pagamentos das rendas em dinheiro ou cheque serem feitos ao réu ou à sua filha, mas em todo o caso na residência do réu, e não na residência dos senhorios, situada a escassos metros.
Nestes termos, concordamos com a apreciação feita pelo tribunal a quo, mantendo-se inalterada a decisão relativa ao ponto 4 dos factos provados.
3.7.2. Por via da alteração do ponto 5 dos factos provados, da eliminação do ponto a) dos factos não provados e do aditamento dos pontos 10, 12 e 13 aos factos provados, o recorrente pretende que se julgue provado que as rendas em numerário por si recebidas foram todas entregues aos pais deste, o mesmo sucedendo com outros eventuais recebimentos de preços ou outros rendimentos.
No que concerne às rendas, a prova produzida não demonstra que aquelas que foram pagas em numerário (tal como as que foram pagas em cheque) na casa do réu tivessem sido todas entregues ao pai deste. Nas declarações que prestou, tanto em 01.04.2022 como em 15.12.2023, o réu admitiu que parte das rendas era paga em numerário (e em cheque), em sua casa, o que foi corroborado pelas declarações prestadas pela autora nesta segunda data, que afirmou ter visto algumas dessas entregas à porta da casa do réu, sendo certo que era vizinha deste. Mais acrescentou o réu que, nestes casos, era a sua filha quem recebia os pagamentos (o que não foi confirmado pela autora, que afirmou ter presenciado entregas tanto ao réu como à sua filha) e que era esta quem entregava esses valores ao seu pai, admitindo apenas poder ter, ele próprio, depositado algum cheque, razão pela qual nunca esteve muito a par destes pagamentos, chegando mesmo a afirmar que nem conhecia os inquilinos.
Mas estas declarações não foram explicitamente confirmadas pelo depoimento da testemunha FF: esta começou por afirmar que todas as rendas eram pagas por transferência bancária, para as contas do seu avô; de seguida acrescentou que algumas eras pagas em dinheiro, que era entregue ao seu avô, não esclarecendo – nem tal lhe tendo sido perguntado – se essa entrega era feita directamente pelos inquilinos ou se era feita por seu intermédio ou por intermédio do seu pai e nunca se referindo a pagamentos por cheques.
Em suma, o réu não confirmou ter entregue aos seus pais as rendas que eram pagas em sua casa, o que também não foi claramente assumido pela testemunha FF.
Por outro lado, para além da parcialidade evidenciada pelo réu e pela sua filha, decorrentes do seu interesse na causa (à semelhança, de resto, do que sucedeu com a autora), as declarações do réu revelaram-se, em grande medida, inverosímeis. Desde logo a respeito do seu desconhecimento dos inquilinos. Mas também a respeito da circunstância de nunca ter usado a procuração para movimentar as contas do seu pai em virtude de a sua filha ter autorização para o fazer, sem que esta autorização tivesse sido confirmada pela própria ou por qualquer documento, revelando-se mesmo pouco consentânea com o que o réu e sua filha descreveram sobre a postura dos proprietários relativamente aos seus bens. Acresce que as declarações em análise ficaram marcadas por contradições, de que é exemplo o facto de o réu ter começado por afirmar de forma peremptória que nunca representou o seu pai em escrituras de venda de bens, mas apenas em escrituras de compra, admitindo mais adiante que interveio na venda da fracção “BS”, referida no ponto dos factos provados.
Tudo ponderado, tal como o tribunal a quo, concluímos pela falta de prova das entregas em discussão, aqui se inclui a entrega do preço da venda da fracção “BS”, que o réu afirmou ter sido recebido directamente pelo seu pai, por cheque, mas sem apresentar qualquer prova desse facto, para além das suas declarações.
Nestes termos, improcede também nesta parte a impugnação em apreço.
3.7.3. Pretende ainda o recorrente se adite aos factos provados que o pagamento das rendas era maioritariamente feito por transferência bancária ou por cheque para a conta dos pais do Réu.
Porém, já vimos que apenas o réu confirmou pagamentos por cheque, acrescentando que a sua filha os entregava ao seu pai (admitindo apenas que ele próprio possa ter depositado algum), mas sem que a sua filha tenha confirmado estes factos.
Diferentemente, tanto o réu como a sua filha deste confirmaram que a maior parte das rendas era paga por transferência bancária para uma conta titulada pelo pai do réu, o que foi parcialmente corroborado pela autora, a qual, logo após ter referido que viu muitas rendas a serem pagas ao seu tio ou à sua prima, junto ao portão da casa deles, acrescentou que grande parte das rendas caía numa conta do seu tio, do banco Banco 1..., esclarecendo que este nunca relacionou essa conta no inventário. Este facto não é contrariado pelo ponto 5 dos factos provados, pois aí apenas se diz que o réu recebeu rendas em numerário, não abarcando todas as rendas, nem excluindo outras formas de pagamento.
Mas porque nenhuma das pessoas ouvidas a este respeito soube quantificar, ainda que aproximadamente, o volume de rendas pagas em numerário e o volume de renas pagas por transferência ou depósito bancário, afigura-se que apenas podemos afirmar que parte não concretamente apurada das rendas era paga por esta via.
Em suma, na procedência parcial da impugnação, importa aditar aos factos provados o seguinte facto: Uma parte não concretamente apurada das rendas era paga por transferência bancária para uma conta do pai do réu.
3.7.4. Por fim, pretende o recorre que se eliminem os pontos b) e c) dos factos não provados e se adite aos factos provados que os pais do réu eram pessoas exigentes, pediam explicações de tudo e sempre foram senhores de tudo até á morte, sempre geriram tudo e sempre souberam de todos os contratos, pagamentos e recebimentos.
A primeira parte da redacção sugerida pelo recorrente tem uma natureza manifestamente instrumental, pelo que, nos termos já antes referidos, não tem a sua sede no elenco dos factos provados ou não provados, mas sim na motivação da decisão sobre a matéria de facto. Quanto à parte restante, o que o recorrente pretende é, como já dissemos, que se julgue provado que foram sempre os representados que administraram o seu património (o que tem implícito que a intervenção do réu se cingiu a actos de representação sem poderes de administração) e que sempre souberam de todos os actos praticados pelo réu.
Porém, está já implícito na exposição antecedente que, tal como o tribunal a quo, entendemos que a prova produzida não permite afirmar esta factualidade.
Por um lado, por via da procuração outorgada em 04.06.2001 e nunca revogada, os pais do réu concederam-lhe amplos poderes para celebrar um leque muito amplo de actos jurídicos em seu nome, nomeadamente actos de administração do seu património, poderes que o réu efectivamente exerceu nos moldes descritos nos factos julgados provados. E o contrário não resulta do facto de o pai do réu ter celebrado ele próprio a escritura pública de 16.10.2002, já depois de ter outorgado a procuração que conferiu aos réus poderes de representação, pois a circunstância de o representado continuar a praticar actos de administração dos seus bens não invalida que o réu o tivesse feito concomitantemente, como se apurou.
Por outro lado, se alguma informação terá sido fornecida aos pais do réu sobre esta administração, nada nos permite afirmar que a mesma foi completa e cabal, em termos de dispensar a prestação de contas.
Acrescente-se, para terminar, que embora o recorrente invoque o depoimento da testemunha GG, concordamos inteiramente com o Tribunal a quo quando afirma que nada de relevante se poder extrair do mesmo para efeitos probatórios. Na verdade, este depoimento revelou-se confuso e pouco espontâneo (tendo a testemunha insistido, diversas vezes, na afirmação de que o pai do réu “é que mandava”, que era este “geria tudo” e que via o réu a entregar-lhe o dinheiro das rendas), por vezes inteiramente inverosímil, revelando um conhecimento inusitado dos negócios do seu patrão e do filho deste, ao ponto de afirmar que muitas das rendas dos apartamentos do seu patrão eram pagas por transferência bancária, sem que a sua razão de ciência – as conversas que ia ouvindo na casa – se revele consentânea com as certezas que procurou demonstrar a respeito de quem geria, quem mandava e como eram pagas as rendas.
Nestes termos, improcede também nesta parte a impugnação em análise.
Em suma, na procedência parcial da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, adita-se aos factos provados um ponto 7, com a seguinte redacção:
7. Uma parte não concretamente apurada das rendas era paga por transferência bancária para a conta do pai do réu.
*

D. O Direito

1. No acórdão antes proferido já analisámos os pressupostos da obrigação de prestação de contas. Recordemos o que então dissemos.
Nos termos do disposto no artigo 941.º do CPC, «a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».
Ao definir, por um lado, a legitimidade processual activa e passiva para a acção especial de prestação de contas e, por outro lado, o respectivo objecto, esta norma tem pressuposto que está obrigado a prestar contas quem administra bens alheios. Isso mesmo nos diz Alberto dos Reis (Processos Especiais, vol. I, Coimbra 1982, p. 303) a respeito do CPC de 1939, mas cuja doutrina mantém inteira actualidade: «Como se vê pelos arts. 1013º e 1017º, o processo de prestação relaciona-se com a obrigação a que alguém esteja sujeito de prestar a outrem contas dos seus actos. Pode formular-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. O Cód. Civil, o Cód. Comercial e o Cód. Proc. Civil oferecem-nos exemplos da aplicação deste princípio».
Não tem suscitado dúvidas na doutrina e na jurisprudência nacionais que aqui se inclui não apenas a administração de bens ou negócios alheios, mas também a administração de bens ou negócios simultaneamente próprios e alheios. Neste sentido, a título meramente exemplificativo, vide o ac. do STJ de 16.10.1984 (BMJ, 340, 400), o ac. do TRG de 17.12.2013 (proc. n.º 473/10.3TBFLG-A.G1) e o ac. desta secção do TRP de 08.03.2022 (proc. n.º 2736/19.3T8VFR.P1, rel. João Proença).
É igualmente pacífico que para se aferir «da existência ou não da obrigação de prestar contas não releva a fonte da administração que gera a obrigação, mas o facto de ter havido administração de bens alheios» – como se escreve no referido acórdão do TRP de 08.03.2022, no qual se cita Vaz Serra (Scientia Iuridica, vol. XVIII, 115), Alberto dos Reis (loc. cit.) e diversa jurisprudência no mesmo sentido; ainda no mesmo sentido vide os acórdãos do STJ de 09.02.2006 (proc. n.º05B4061) e de 16.06.2011 (proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1) e o ac. do TRP de 02.12.2021 (proc. n.º 2318/18.7T8AGD.P1) – ainda que se trate de mera administração de facto – neste sentido vide o ac. do STJ, de 16.06.2011 (proc. n.º 3717/05.0TVLSB.L1), e o ac. do TRG, de 23.04.2020 (proc. n.º 2629/18.1T8VNF.G1). Como se escreve no ac. do TRG de 17.12.2013, já antes citado, «[a] obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens ou interesses em causa, mas a que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação».
Acresce que, destinando-se a acção de prestação de contas ao «apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios», sendo as contas prestadas em forma de conta-corrente e nelas se especificando a proveniência das receitas, a aplicação das despesas e o respectivo saldo (cfr. artigos 941.º e 944.º, n.º 1, do CPC), tal acção só será aplicável quando tenha havido uma efectiva administração de bens geradora de créditos e débitos recíprocos entre as partes. Por isso, como se afirma no já citado ac. do STJ de 09.02.2006, «[n]ão é o fim para que a procuração é emitida nem o conteúdo dos poderes que dela constam como conferidos ao procurador, mas apenas os actos realizados, que justificam a prestação de contas».
O contrato de mandato é, sem dúvida, uma das fontes da obrigação de prestar contas, como expressamente preceitua o artigo 1161.º, al. d), do CC. Mas, sendo o mandato legalmente definido como «o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra» (artigo 1157.º do CC), da sua celebração não decorre, sem mais, aquela obrigação. Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao referido artigo 1161.º (Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., Coimbra 1986, p. 716, «[a] obrigação de prestação de contas (alínea d)) só tem interesse para o mandante quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos». Prestar contas não significa, no nosso ordenamento jurídico, «fornecer ao mandante o pleno conhecimento de quanto aconteceu na actuação da relação», o que apenas poderá estar compreendido nas obrigações consagradas nas alíneas b) e c) do mesmo artigo 1161.º.
Em face do que ficou exposto, para poder exigir a prestação de contas, à autora incumbia a prova dos factos que evidenciam que o réu efectivamente exerceu a administração de bens ou interesses dos seus pais, geradora de créditos e débitos recíprocos (cfr. ac. do STJ de 16.10.1984, BMJ, 340, 400, e acórdãos do TRG de 23.09.2021, proc. n.º 759/19.1T8PTL.G1, e de 26.05.2022, proc. n.º 3676/14.8T8GMR.G2). Para se opor a tal pretensão, ao réu incumbia, para além do ónus da impugnação especificada daqueles factos constitutivos do direito da autora, a prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação de prestar contas, designadamente que as mesmas já foram prestadas, visto que o cumprimento é, por excelência, uma causa de extinção das obrigações (cfr. artigos 762.º e seguintes do CC).
Não obstante a escassez dos factos alegados e, por conseguinte, dos factos apurados, cremos que os mesmos são suficientes para afirmar que o réu administrou bens dos seus pais.
Na verdade, a autora logrou demonstrar que o réu, no uso dos poderes que lhe foram conferidos pelos seus pais mediante a procuração referida no ponto 1 dos factos provados, praticou em nome destes actos jurídicos que configuram verdadeiros actos de gestão ou administração de bens alheios, com reflexos patrimoniais nas relações entre os representados e o representado.
Como se escreve no ac. do STJ, de 09.02.2006 (proc. n.º 05B4061, rel. Araújo de Barros), para justificar a prestação de contas, a «administração terá necessariamente de ser susceptível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas; e do apuramento dessas duas realidades, resultará ou não um saldo que o administrador terá de pagar».
Ora, no caso concreto, a autora demonstrou não apenas que o réu celebrou diversos contratos de arrendamento de imóveis pertencentes aos seus pais, estipulando os termos que entendeu convenientes (cfr. ponto 4 dos factos provados), como recebeu rendas em numerário (cfr. ponto 5 dos factos provados), não tendo o réu feito prova, conforme alegou, que entregou aos seus pais todos os valores assim recebidos (cfr. al. a) dos factos não provados).
E não se diga, como faz o recorrente, que o marginal pagamento de rendas em numerário, entregues a familiar, não permite qualificar estes actos «como representativos de uma relação de gestão e mandato» (cfr. conclusão 13). Desde logo porque o réu não logrou demonstrar que esse recebimento tenha sido meramente “marginal” (cfr. ponto 7 dos factos provados). Em todo o caso, a obrigação da prestação de contas depende apenas, como dissemos, da administração de bens alheios, não se exigindo que esta assuma uma determinada dimensão, absoluta ou relativa.
A autora logrou, igualmente, demonstrar que o réu interveio, em representação dos seus pais, na venda de uma fracção autónoma pertencente a estes, denominada pelas letras “BS” (cfr. ponto 6 dos factos provados). É certo que não se esclarece na matéria de facto apurada a identidade do comprador, o preço acordado ou a forma do respectivo pagamento, nem consta dos autos o respectivo título. Mas é igualmente certo que a compra e venda impõe, por definição, a obrigação de pagar um preço e que o réu não logrou demonstrar que esse preço tenha sido entregue por si ao seu pai, como alegou por escrito de forma genérica relativamente a todos os valores que possa ter recebido (cfr. al. a) dos factos não provados), ou directamente pelo comprador, como afirmou nas declarações que prestou em audiência de julgamento.
Recorde-se que a dúvida quanto a este facto, tal como as dúvidas quanto ao valor das rendas recebidas pelo réu e quanto ao valor eventualmente entregue aos senhorios, não afecta a obrigação de prestar contas. Como se escreve no ac. do STJ de 09.02.2006, antes citado, «[a] obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (art. 573º do Código Civil) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito».
Acresce que, apesar de ter alegado que apenas interveio nos negócios e no recebimento de valores acima referidos na qualidade de mero funcionário ou núncio do seu pai, e não como administrador dos bens deste e da sua mãe, não logrou provar essa alegação (cfr. al. c) dos factos provados).
Por fim, provou-se que o réu, munido da mesma procuração, interveio na outorga de três escrituras públicas de compra e venda de diversas fracções autónomas à sociedade “Construções A..., Lda.” (cfr. ponto 3 dos factos provados), as quais se encontram juntas as aos autos e nas quais a vendedora declarou já ter recebido os respectivos preços, no valor global de 454.180,00 €.
Nada foi alegado pelas partes a respeito da forma como estes pagamentos foram efectuados, designadamente se o réu suportou alguma despesa relativa aos mesmos, pelo que os factos provados (bem como os não provados) não contêm qualquer alusão a esta questão.
Curiosamente, da prova produzida, designadamente das declarações prestadas por ambas as partes, resulta que estas escrituras não traduzem verdadeiras compras e vendas das fracções em causa e que não foram feitos os pagamentos nelas mencionados, correspondendo aquelas escrituras, a par da escritura pública de datada de 6.10.2002, celebrada pelo próprio CC, ao recebimento, por parte deste, da contraprestação que lhe era devida pela alienação do terreno onde os respectivos prédios urbanos foram construídos. Da mesma prova resulta, igualmente, que as fracções assim adquiridas pelo pai do réu e avô da autora integraram o património deste e da sua mulher.
Das declarações prestadas pelo réu decorre que, no entender deste, com a celebração destas escrituras ficou saldado o crédito dos seus pais. Diferentemente, das declarações prestadas pela autora decorre que, no entender desta, para além das fracções autónomas e do dinheiro cuja propriedade ingressou no património dos avós, outras fracções eram devidas como contraprestação da cedência do terreno, mas que acabaram por ser “escrituradas” a favor do réu.
Sucede que, por um lado, nenhum destes factos foi oportunamente alegado pelas partes e, por conseguinte, não foi apreciado na sentença recorrida. Por outro lado, é manifesto que qualquer pretensão que a autora possa ter, enquanto herdeira dos seus avós, sobre fracções autónomas que o réu afirma ter adquirido em seu nome, e não como representante ou mandatário dos seus pais, não poderia ser discutida numa acção especial de prestação de contas, atentas as finalidades específicas deste tipo de acções, por não estar ali em causa a eventual reciprocidade de créditos e débitos que justificam o recurso a tal processo. Como se afirma no já citado ac. do TRG, de 26.05.2022, parafraseando Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, «[o] processo especial de prestação de contas, além de não ser o adequado com vista à indagação da má administração da pessoa obrigada à prestação de contas, também não se ajusta à condenação do réu no pagamento de determinada quantia com fundamento na sua apropriação ilícita», o mesmo se aplicando à restituição in natura ou por equivalente pecuniário de outra coisa alvo de apropriação ilícita.
Em todo o caso, porque os factos provados não reflectem esta discussão, não podendo o Tribunal descartar a hipótese de a intervenção do réu nas escrituras públicas mencionadas no ponto 3 dos factos provados ter gerado alguma despesa ou receita que deva integrar as contas em causa, não vemos qualquer razão para, nesta fase, excluir esses negócios da prestação de contas solicitada pela autora.
Em suma, resultando dos factos provados que o réu administrou bens do seus pais, intervindo em nome destes em contratos de compra e venda de imóveis e em contratos de arrendamento, tendo pelo menos recebido partes das rendas devidas por força destes últimos, desconhecendo-se se recebeu outros valores ou se teve despesas com esta administração, impõe-se concluir, como fez o tribunal a quo, que está obrigado a prestar contas dessa administração à autora.
Mas, diversamente do que decidiu o Tribunal a quo, essa obrigação apenas diz respeito ao período compreendido entre 04.06.2001 e 19.04.2017.
2. Alega, porém, o recorrente que a exigência de prestação de contas de actos ocorridos há mais de 10 ou 20 anos, num meio familiar, informal, rural e baseado na confiança, onde não são exigíveis documentos, representa um abuso de direito, porquanto excede manifestamente o princípio da boa-fé.
Mais alega que a decisão recorrida representa uma interpretação da lei que viola a constituição e o direito fundamental à defesa, dada a impossibilidade prática de provar os factos que importam para o réu se defender com igualdade, assim contendendo com o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais e com o princípio constitucional da igualdade, previstos nos artigos 13.º, 20.º e 202.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Mas não lhe assiste razão, pelas razões que passamos a exor.
a. Nos termos do disposto no artigo 334.º do CC, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito».
Decorre desta norma que os direitos subjectivos e o respectivo exercício não são garantidos sem limites. Desde logo porque os valores, finalidades e objectivos que justificam tais direitos também condicionam a sua invocação e exercício. Existe, portanto, uma vinculação imanente aos direitos subjectivos (que pode revestir formas e intensidades diferentes, sem nunca ir ao ponto de contrariar a sua finalidade normativa, ou seja, sem esvaziar o direito subjectivo do seu conteúdo específico). Mas os direitos subjectivos conhecem também vinculações sociais, derivadas da existência de outros direitos, de particulares ou da comunidade em geral. É, precisamente, neste contexto que se situam institutos como a colisão de direitos (cfr. art. 335.º do CC) e o abuso de direito (cfr. Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1992, p. 270-280).
Decorre também do preceito em análise que só haverá exercício abusivo do direito quando os limites impostos «[ou] pela boa fé, [ou] pelos bons costumes [ou] pelo fim social e económico desse direito» sejam excedidos de forma manifesta.
A doutrina, secundada pela jurisprudência, vem descrevendo este instituto em torno de uma ideia fundamental: quem age em abuso de direito invoca um poder que formal ou aparentemente lhe pertence, mas que não tem fundamento material (Castanheira Neves, Questão de facto – Questão de direito, Coimbra, 1967, p. 513 e seguintes; Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 282).
Em complemento desta ideia, a doutrina que julgamos dominante em Portugal acrescenta que esta complexa figura surge, no nosso como noutros ordenamentos jurídicos, como uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o julgador pode obtemperar à injustiça clamorosa, gravemente chocante, de proporções intoleráveis, reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, em que redundaria o exercício de um direito conferido por lei. A título meramente exemplificativo, citamos a seguinte doutrina: Almeida Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2001, 9.ª ed., p. 70 ss.; João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, Coimbra, Almedina, 1989, 6.ª ed., n.º 142 (p. 514-518); Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, I, Coimbra, 1958, p. 63 ss.; Manuel de Andrade, Sobre a validade das cláusulas de liquidação de partes sociais pelo último balanço, in Rev. de Leg. e de Jur., ano 87º, p. 307; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, 4ª ed., p. 298 ss.; Vaz Serra, Abuso do Direito, BMJ, 85 (1959), p. 253.
Neste alinhamento, Antunes Varela afirma que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo e esclarece que se designa por abuso de direito o exercício desse poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em absoluta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu conhecimento (Revista de Legislação e Jurisprudência, Anotação ao Ac. do STJ, de 26.03.1980, ano 114, p. 75), salientando ainda que a condenação do abuso de direito, a ajuizar pelos termos do referido artigo 334.º, «aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo» (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Anotação ao Ac. do STJ, de 07.12.1989, ano 128, p. 241).
Menezes Cordeiro adverte que a expressão “manifestamente” se liga «aos superlativos usados por alguma doutrina, anterior ao Código Civil. Na época, lidava-se com uma construção sem base legal, de fundamentação doutrinária insegura e ainda desconhecida na jurisprudência. O uso de uma linguagem empolada visava captar o intérprete-aplicador, apresentando-se, além disso, como uma criptojustificação da proibição do abuso. Perante institutos modernos, a adjectivação enérgica não faz sentido» (Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=45582&ida=45614).
Para Orlando de Carvalho «o que é típico do controle do abuso de direito é a desconformidade entre a imagem estruturalmente correcta (ou corrigida) do direito subjectivo e a missão que a este último funcionalmente se assinou» (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Centelha, 1981, p. 57). Por isso, «nenhum escândalo se exige para que o abuso de direito releve. O abuso de direito é (…) mais uma contradição lógica do que axiológica (…). O abuso de direito não é (…) um extremum nem no sentido de ser algo que força a legalidade reinante, coagindo-a, digamos, a uma inflexão ética insólita, nem no sentido de ser como que um remédio de excepção para pôr cobro a consequências clamorosas do jus strictum. (…) a “correcção” que ele permite não é uma “correcção” do sistema, mas uma “correcção” pelo sistema» (Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 71-73). Para este autor haverá, assim, abuso de direito (1) quando o titular do direito o utilizar sem interesse ou de forma gratuita, desde que haja lesão de interesses de outrem, (2) quando exista uma dessincronia entre o interesse abstracto que a vantagem decorrente do exercício do direito representa e o interesse concreto que o titular do direito visa prosseguir (aqui se incluindo os típicos actos emulativos – nos quais, apesar de advir uma vantagem do exercício do direito, o seu titular visa apenas negar o interesse de outrem –, mas também situações em que não se verifique este intuito exclusivo de prejudicar outrem) e, (3) não podendo abstractamente dizer-se que o exercício do direito constitui uma vantagem, que só resultará, quando muito, das circunstâncias concretas, quando se infira do exame das referidas circunstâncias que não existe concretamente interesse (ou é praticamente desprezível), resultando porém desse exercício um prejuízo (querido ou não) para outrem» (Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Coimbra, Almedina, 1999, p. 29-32).
Coutinho de Abreu enquadra-se na mesma linha doutrinal, definindo assim o abuso de direito: «Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem» (Do Abuso de Direito, cit., p. 43).
Esta corrente tem, a nosso ver, o mérito de chamar a atenção para necessidade de situar o abuso de direito no plano jurídico, afastando-o do plano estritamente ético, desta forma arredando a tentação de recorrer, na sua aplicação prática, a qualquer moral subjectiva ou de carácter transcendente (filosófico ou religioso).
Há ainda que ter presente que o actual Código Civil consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não sendo necessária a consciência de que se está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que estejam excedidos esses limites, muito embora factores subjectivos, como a intenção com que o titular do direito tenha agido, não deixem de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, cit., p. 298; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, cit., p. 515; Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 282; Almeida Costa, loc. cit.).
Feita esta explanação geral, aproximando-nos um pouco mais do caso em apreço, é incontroversa a ligação que o instituto do abuso de direito – em especial nas modalidades do venire contra factum proprium e suppressio – tem com a tutela da confiança.
Menezes Cordeiro (Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, cit., p. 50-52) dá-nos conta que para explicar as especiais circunstâncias em que o venire é proibido surgiram duas grandes fundamentações dogmáticas: doutrinas da confiança (Canaris) e doutrinas negociais (Wieling). Para as primeiras «o venire seria proibido quando viesse defrontar inadmissivelmente uma situação de confiança legítima gerada pelo factum proprium. Para as negociais, o agente ficaria vinculado, em termos negociais, pelo factum proprium em causa; ao perpetrar o venire, estaria a violar a vinculação daí derivada». Acrescenta o mesmo autor que, face às dificuldades práticas das teorias negociais, prevalecem hoje as doutrinas da confiança, inclusivamente entre os autores portugueses.
Assim, o exercício de um direito revelar-se-á abusivo quando, apesar de não exceder os bons costumes nem o fim social ou económico do referido direito, exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, enquanto princípio (normativo e/ou geral de direito) de actuação, nos termos do qual as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros (Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, cit., p. 55-63). A proibição do venire contra factum proprium e da suppressio constituem, portanto, “hipóteses típicas” ou “figuras sintomáticas” concretizadoras da cláusula geral da boa fé.
O ac. do STJ, de 11.12.2013 (proc. n.º 629/10.9TTBRG.P2.S1), ao mesmo tempo que descreve com clareza a proximidade conceptual entre o venire e a suppressio, enumera os requisitos de cada uma delas:
«Na elaboração dogmática à volta do instituto do abuso do direito, o ‘venire contra factum proprium’ assume, como é consabido, uma das suas manifestações mais características, cuja estrutura pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o ‘factum proprium’, seguido, em contradição, do ‘venire’.
(…) A inacção, inércia ou omissão do exercício de um direito por parte do seu titular, durante um mais ou menos longo lapso de tempo, constitui um dos elementos da modalidade do abuso do direito na vertente da proibição do ‘venire contra factum proprium’, apelidada pela doutrina, na expressão original alemã, de ‘Verwirkung’ (apud Baptista Machado, ‘Tutela da Confiança’…in ‘Obra Dispersa’, I, pg. 421/ss., também referido no Acórdão da Relação do Porto de 10.4.2003, C.J., tomo II/2003, pg. 197) ou de supressio, na terminologia introduzida por Menezes Cordeiro.
(…) [b]uscando a afinação do conceito à luz do vector tempo, consigna o insigne autor que … a supressio não pode ser, apenas, uma questão de decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição.
Além disso, remata, traduzindo-se a supressio numa omissão – a que falta, por isso, a precisão do positivo factum proprium – a sua caracterização demanda a verificação de outros elementos complementares (circunstâncias colaterais, ibidem, pg. 323) que, para além do não-exercício prolongado do direito, melhor alicercem a confiança do beneficiário, a saber: uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança (baseada na conduta circunstancial do titular do direito, a contraparte convence-se, justificadamente, que o direito já não será exercido); um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente (a contraparte, convicta e movida por essa confiança, tomou medidas ou passou a actuar em conformidade, causando-lhe ora o exercício tardio do direito maiores desvantagens do que o seu exercício atempado».
No caso concreto, como vimos, o recorrente alicerça a arguição do abuso de direito apenas na distância temporal dos actos em causa e na dificuldade de produzir prova sobre os mesmos.
Mas destas circunstâncias não se pode extrair que houvesse uma justificação, baseada na conduta da autora recorrida, para o réu recorrente confiar que aquela não iria exigir, na qualidade de herdeira dos interesses patrimoniais administrados, a prestação de contas, o mesmo se aplicando aos próprios pais do réu, até porque, como este repetidamente afirmou, eram muito ciosos do seu património.
De resto, como se decidiu no ac. do TRP, de 16.10.2003 (proc. n.º 0334044, rel. Saleiro de Abreu), «[m]esmo que se tenha provado num processo de prestação de contas que o réu tenha confiado em que o autor não exigiria a prestação das mesmas, não existe abuso de direito por parte deste quando se não prove que o réu, com base na confiança e por causa dela, tenha tomado medidas ou desenvolvido uma qualquer actividade que agora, em consequência do exercício do direito por parte do autor, sejam destruídas ou se vejam prejudicadas».
Pelo exposto, não estão verificados os pressupostos que a jurisprudência vem exigindo para que possa operar o abuso de direito, designadamente na modalidade de suppressio, nem se vislumbra em que termos o comportamento da autora possa exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por defraudar a legítima confiança ou expectativa do réu no não exercício do direito à prestação de contas.
De forma mais genérica, nada na matéria de facto apurada permite afirmar que o exercício deste direito redunde numa “injustiça clamorosa, gravemente chocante, de proporções intoleráveis, reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social” ou que se traduza numa “desconformidade entre a imagem estruturalmente correcta (ou corrigida) do direito subjectivo e a missão que a este último funcionalmente se assinou”, seja porque a titular daquele direito o utilize sem interesse ou de forma gratuita, seja porque exista uma dessincronia entre o interesse abstracto que a vantagem decorrente do exercício do direito representa e o interesse concreto que a titular do mesmo visam prosseguir.
Nestes termos, improcede a invocada excepção de abuso de direito.
b. Passando agora à análise da alegada violação dos princípios e normas constitucionais indicados pelo recorrente, importa começar por referir que não suscita adequadamente a inconstitucionalidade a parte que discorda da decisão por esta alegadamente violar princípios constitucionais, sem questionar a conformidade constitucional e pedir a desaplicação de normas concretas, ou sem questionar a aplicação de normas concretas com uma determinada interpretação, supostamente violadora da Constituição – cfr. ac. do TRG, de 07.10.2021 (proc. n.º 1782/20.9T8BRG.G1, rel. Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso). Compreende que assim seja, pois não há sentenças inconstitucionais; o que pode haver é a aplicação de normas inconstitucionais ou interpretadas de forma a violar a constituição.
Neste sentido, escreve-se o seguinte na Decisão Sumária n.º 178/2024, de 13.04.2024, do TC (proc. n.º 686/2023, rel. Rui Guerra Fonseca):
«O sistema português de controlo da constitucionalidade é de natureza estritamente normativa (cfr. o n.º 1 do artigo 71.º da LTC e artigo 280.º da Constituição), contrariamente a outros sistemas que consagram a possibilidade de um controlo jurisdicional imediatamente dirigido às decisões dos restantes tribunais. No caso específico do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o legislador exige, i) a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa, “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (cfr. artigo 72.º, n.º 2 da LTC), e ii) a aplicação, na decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma tida por inconstitucional pelo recorrente, na concreta interpretação correspondente à dimensão normativa delimitada no requerimento de recurso, pois “[...] só assim um eventual juizo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão” (cfr. Acórdão n.° 372/2015)»
Ora, no caso concreto, o recorrente limita-se a afirmar que o decidido «representa uma interpretação da lei que viola a constituição e o direito fundamental à defesa», sem esclarecer qual a norma aplicada e qual a concreta interpretação adoptada pelo Tribunal a quo correspondente à dimensão normativa que considera violadora dos preceitos constitucionais por si invocados.
Deste modo, a arguição da inconstitucionalidade não foi feita de modo processualmente adequado, em termos de obrigar este Tribunal a dela conhecer.
Mas sempre se dirá, com necessária brevidade, não se vislumbrar em que medida a decisão recorrida possa violar o direito do recorrente à defesa e, muito menos, os princípios constitucionais do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade.
O princípio da igualdade é definido no artigo 13.º da CRP nos seguintes termos:
«1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual».
Não estando, naturalmente, em causa nenhuma das situações de discriminação previstas no n.º 2 deste preceito, designadamente qualquer privação de direitos por algum dos motivos aí aludidos, também não conseguimos compreender em que medida o recorrente possa considerar que está comprometida a igualdade das partes desta acção perante a lei, em violação do disposto no n.º 1 do mesmo preceito legal. Designadamente no que concerne às dificuldades probatórias por si invocadas, parece-nos claro que as mesmas serão comuns a ambas. A admitir que possa haver alguma diferença a priori, afigura-se mais plausível ser a autora quem poderá enfrentar maiores dificuldades na apresentação de prova, visto não ter uma noção tão próxima dos actos de administração em causa e, por conseguinte, dos documentos ou outros meios de prova existentes.
Por sua vez, o acesso a direito e tutela jurisdicional efectiva está consagrado no artigo 20.º da CRP, nos seguintes termos:
«1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos».
Por fim, dispõe assim o artigo 202.º, da CRP:
«Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados».
Como se refere no ac. do TC n.º 771/2017 (proc. n.º 225/17, rel. Maria de Fátima Mata Mouros), de acordo com a jurisprudência do TC, «“o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas” (cfr. Acórdão n.º 839/2013)».
No caso concreto, não está comprometida nenhuma destas vertentes do direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional, nem tal foi alegado pelo recorrente. A solução preconizada por este – o indeferimento do pedido de prestação de contas fundado apenas na antiguidade dos actos de administração e nas dificuldades de prova – é que poderiam traduzir um verdadeiro impedimento de acesso ao direito.
O que o recorrente afirma é que está comprometido o princípio da proibição da indefesa, ínsito no mesmo comando constitucional.
Ora, como se refere no ac. do TC antes citado, «“o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correto funcionamento das regras do contraditório (Acórdão n.º 86/88 […]. Como concretização prática do princípio do processo equitativo e corolário do princípio da igualdade, o direito ao contraditório, por seu lado, traduz-se essencialmente na possibilidade concedida a uma das partes de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras” (entre muitos outros, o Acórdão n.º 1193/96)» (cfr. Acórdão n.º 186/2010, ponto 2)».
Acrescenta-se no mesmo acórdão que o princípio da proibição da defesa, enquanto «dimensão do direito à tutela jurisdicional efetiva, (…) afirma uma proibição da limitação intolerável do direito de defesa perante o tribunal». Citando outros arestos do mesmo tribunal, afirma-se ali ainda que o princípio da proibição da indefesa «tem sido caracterizado pelo Tribunal Constitucional como a proibição da “privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito”».
Sem prejuízos dos limites que o próprio TC reconhece a este princípio, cremos já decorrer do exposto que o recorrente não está impedido de impugnar os fundamentos da acção, nem da possibilidade de ver apreciados todos os argumentos em que baseia a sua defesa, o contrário não decorrendo da antiguidade dos actos sob escrutínio ou das alegadas dificuldades de prova, circunstâncias que são, naturalmente, sopesadas pelo tribunal, nomeadamente quando aprecia e decide as questões de facto.
Nestes termos, improcede também a invocada violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, maxime na sua dimensão de proibição da indefesa.
3. Por tudo quanto ficou exposto, importa confirmar a sentença recorrida, excepto no que respeita ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019, relativamente ao qual se impõe absolver o réu da instância, nos termos acima expendidos.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão

Pelo exposto, na procedência parcial da apelação, os juízes desta 2.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
- Absolvem o réu da instância no que concerne à obrigação de prestar contas relativamente ao período compreendido entre 20.04.2017 e 31.05.2019;
- Mantêm a decisão recorrida no que concerne à obrigação de prestar contas relativamente ao período compreendido entre 04.06.2001 e 19.04.2017.

Custas por ambas as partes, na proporção de 90% para o apelante e 10% para a apelada.

Registe e notifique.



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Porto, 11 de Dezembro de 2024

Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Maria Eiró
João Proença