SERVIDÃO PREDIAL
CAMINHO PEDONAL
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
Sumário

I – A especificação dos pontos de facto que o recorrente considera terem sido incorrectamente julgados mostra-se absolutamente necessária para delimitar o objecto do recurso na parte em que este visa impugnar a decisão da matéria de facto e, logo, face ao disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, carece de ser feita nas conclusões da alegação.
II – Para efeitos do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, não se mostra relevante que os sinais reveladores da existência de uma serventia de um prédio para com outro tenham sido postos ou não com a intenção de assegurar essa serventia, nem se os mesmos foram ou não mantidos ao longo do tempo com essa mesma intenção, importando, sim, que eles possuam a visibilidade e a estabilidade necessária para, por si só, evidenciarem a existência da faculdade do dono de um desses prédios usufruir ou aproveitar vantagens ou utilidades do prédio alheio.
III – O facto de estar provado que um caminho pedonal se encontra parcialmente coberto de ervas e não é utilizado há cerca de 30 anos não obsta ao reconhecimento da constituição da servidão por destinação do pai de família, pois essas realidades não eliminam o facto objectivo da existência de sinais (visíveis e permanentes) que revelam a relação de sujeição de um dos prédios relativamente ao outro.
IV – Apesar de não resultarem de uma declaração negocial, as servidões por destinação do pai de família, diferentemente do que acontece com as servidões legais (cf. artigos 1550.º a 1563.º do Código Civil), podem ter na sua base simples motivos de conveniência ou, até, de mero alvedrio de quem criou ou autorizou a serventia, o que faz com que, tal como as servidões de origem contratual ou testamentária, a sua constituição não dependa da existência de qualquer necessidade do dono do prédio dominante.

Texto Integral

Processo n.º 288/22.6T8ESP.P1
(Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Espinho – Juiz 2)




Relator: José Nuno Duarte.
1.ª Adjunta: Fernanda Almeida.
2.ª Adjunta: Fátima Andrade




Acordam os juízes signatários da quinta secção judicial (3.ª secção cível) do Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO

AA intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB, alegando, em síntese, que:
- no âmbito de um processo de inventário aberto por óbito dos pais da A. e R. foram adjudicadas à A. os prédios aí correspondentes às verbas n.º 2 e n.º 6, e à R. os prédios aí correspondentes às verbas n.º 1 e n.º 4;
- as verbas n.ºs 1 e 6 encontram-se prolongadas num só espaço físico no qual existia e existe apenas um caminho definido para aceder ao terreno correspondente à verba n.º 6, cujo trajecto se desenvolve ao longo de terreno integrante da verba n.º 1;
- as verbas n.ºs 2 e 4 são adjacentes uma à outra, encontrando-se a verba n.º 2 servida por um caminho pedonal, cimentado, que se encontra implantado em terreno integrante da verba n.º 4, precisamente como já acontecia antes da partilha; este caminho pedonal tem como única e específica utilidade o acesso e trajecto a pé desde a habitação do lado Sul da verba n.º2 até à via pública;
- estão reunidos os pressupostos necessários para a constituição de duas servidões prediais por destinação de pai de família, correspondentes a cada um dos caminhos atrás referidos.
Conclui a A. com um pedido que, após aperfeiçoamento, ficou assim formulado:
(…) requer-se a V. Exa. que declare constituídas as servidões por destinação do pai de família a favor dos imóveis da aqui Autora, cujos prédios servientes se consubstanciam nos imóveis propriedade da Ré, nos termos legais e todas as demais consequências; nomeadamente:
a) que declare constituída servidão com largura de 2,40 metros e 30 metros de comprimento, que beneficie a verba n.º 6, propriedade da Autora, correspondente a terreno, sito no Lugar ..., com uma área de 700 m2, impondo esse encargo à verba n.º 1, propriedade da Ré, correspondente ao prédio constituído por r/c e 1.º andar com logradouro, sito na Rua ..., da União de Freguesias ... e ...;
b) que declare constituída servidão, com largura de 50 centímetros e 20 metros de comprimento, que beneficie a verba n.º 2, propriedade da Autora, correspondente a imóvel constituído por r/c e logradouro, duas habitações, sito na Rua ..., ... e na Rua ..., ..., da União de Freguesias ... e ..., impondo esse encargo à verba n.º 4, correspondente a terreno para construção, sito na Rua ..., lado Norte.
A R. apresentou contestação, impugnando a factualidade constante da petição inicial e arguindo excepções que, em sede de despacho saneador, vieram a ser indeferidas.
O processo seguiu os seus regulares termos até à realização da audiência de julgamento. Finda esta, foi proferida sentença cujo dispositivo foi o seguinte:
«Pelo exposto, decide o Tribunal julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo- se a R. do peticionado.
Custas da ação pela A.»
Desta sentença veio a A. interpor recurso, tendo, na após a respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões:
1. Veio o Tribunal a quo decidir pela não verificação, in casu, de “uma relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação)”, considerando demonstrados todos os outros requisitos cumulativos dos quais dependem a constituição de servidão por destinação de pai de família;
2. Sucede que, a aqui Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, na medida em que, atendendo à prova produzida, tanto documental como testemunhal, constante dos autos, se evidenciam reunidos todos os requisitos cumulativos previstos no artigo 1549.º do Código Civil e, concretamente, sinais visíveis e permanentes que revelam serventia de uns prédios em relação a outros, dos quais depende a constituição de servidão por destinação de pai de família;
3. Na realidade, a douta Sentença recorrida fez uma interpretação errónea dos factos provados, bem como fez uma incorreta subsunção dos factos ao Direito, na medida em que considerou que, in casu, não se encontra devidamente provada a existência de sinais visíveis e permanentes que revelam as serventias em causa, o que não corresponde à verdade.
4. Atenta a base instrutória da Sentença recorrida, é possível concluir que o Tribunal a quo desconsiderou por completo a prova documental junta aos autos ao longo de todo o processo, tendo levado em consideração única e exclusivamente a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento;
5. Da Sentença proferida é possível concluir que o Tribunal a quo, ao invés de subsumir as conclusões retiradas da matéria de facto constante dos autos aos requisitos elencados no art. 1549.º do Código Civil, verificando o preenchimento, ou não, dos mesmos, foi mais além, tendo justificado a improcedência da ação e a consequente não constituição das servidões por destinação do pai de família com base na falta de verificação do requisito da necessidade, confundindo o conceito de necessidade com o conceito de serventia e de sinais visíveis e permanentes;
6. No que concerne às verbas números 2 e 4, melhor descritas supra, resultou da inspeção judicial realizada ao local “a existência de uma faixa cimentada, com 18,10 m. (dezoito metros e dez centímetros) de extensão e de 0,65 cm (sessenta e cinco centímetros) de largura, desde o portão existente, que limita no local o terreno contíguo à casa e que se estende com a mesma largura até ao 1º pilar do prédio contíguo junto à Rua ...”;
7. Da prova testemunhal produzida, decorre que o referido caminho cimentado, foi construído há, aproximadamente, 53 (cinquenta e três) anos, pela Sra. CC, residente na Rua ..., arrendatária de uma das frações do imóvel correspondente à verba n.º 2, que lhe foi dado de arrendamento pela Recorrente;
8. Ao contrário do que refere a Sentença recorrida, há aproximadamente 53 (cinquenta e três) anos, a arrendatária da fração solicitou à mãe da Recorrente autorização para construir um caminho que liga a Rua ... à fração onde habita na qualidade de arrendatária, na medida em que o caminho que utiliza atualmente para aceder à fração não existia, tratando-se à data de um campo de milho, enlameado, que não permitia entrar no imóvel propriedade da Recorrente;
9. Mais, a rua pela qual se entra atualmente na fração trata-se de uma rua relativamente recente, motivo pelo qual se revelou necessário construir o caminho cimentado em questão, por forma a ser possível fazer a entrada pedonal na fração;
10. Contrariamente ao entendimento plasmado na Sentença recorrida, não é possível concluir que o caminho em questão tivesse sido utilizado pela arrendatária de uma das frações do imóvel com o intuito único e exclusivo de por ele passar com os carrinhos de bebés das suas filhas;
11. Tal é manifestamente impossível, atendendo ao número de anos durante os quais foi utilizado o caminho cimentado, i.e., cerca de 25 (vinte e cinco) anos, e considerando que os filhos da arrendatária nasceram, respetivamente, em 1970 e 1976;
12. Ora, o caminho cimentado terá sido utilizado durante cerca de 25 (vinte e cinco) anos, pela arrendatária do imóvel e demais pessoas que por ali passavam, nomeadamente, família, amigos e conhecidos, carteiro e todos aqueles que pretendessem entrar na fração arrendada, na medida em que aquele foi, durante o referido hiato temporal, o único acesso possível ao imóvel, atendendo à ausência de uma alternativa de acesso;
13. Apesar de a arrendatária referir por diversas vezes que não utiliza o caminho há, aproximadamente, 30 (trinta) anos e que ninguém por ali passa nos dias de hoje, a verdade é que o contrário resulta da prova documental constante dos presentes autos;
14. O caminho pedonal, cimentado, ainda que construído a pedido da arrendatária, tenha sido construído com o propósito e objetivo de assegurar o acesso ao imóvel da Recorrente, sendo indiferente se aos dias de hoje se verifica ou não uma necessidade de utilização do mesmo, ao contrário do que sustentou erradamente a Sentença recorrida, ou ainda se o caminho em questão se trata, agora, do único acesso à via pública;
15. Incompreende-se, portanto, a fundamentação do Tribunal a quo, primeiro, porque para um caminho, que está junto a um terreno, ficar parcialmente coberto por vegetação desse terreno, é apenas necessário que passe meia dúzia de meses, visto que, com a chuva e com o sol, a vegetação cresce e o caminho fica, naturalmente, parcialmente coberto e, em segundo lugar, porque é indiferente, para a servidão aqui em causa (servidão por destinação do pai de família) que o caminho já não seja utilizado;
16. Atenta a prova produzida nos autos, tanto documental como testemunhal, e com o devido respeito pelo Tribunal a quo, é evidente que o referido imóvel adjudicado à Recorrida, demonstra claros sinais de serventia em relação ao imóvel adjudicado à aqui Recorrente, sendo claramente visível e permanente o caminho de acesso histórico construído no terreno adjudicado à Recorrida, servindo o imóvel adjudicado à Recorrente, para efeitos de acesso pedonal à via pública;
17. Já no que respeita às verbas números 1 e 6, em sede de inspeção judicial, o Tribunal deslocou-se ao local onde se localizam as referidas verbas, sito na Rua ..., verificando que “uma vez entrados no portão à esquerda, procedeu-se à medição da zona que delimita a zona coberta da zona descoberta, onde se inicia a rampa existente para a área descoberta, tendo essa abertura a largura de 2,90 m (dois metros e noventa centímetros)”;
18. Note-se que o Tribunal a quo fundou a sua convicção no que tange às verbas números 1 e 6, exclusivamente, na necessidade de utilização e utilidade do acesso no qual se pretende ver constituída a servidão por destinação de pai de família, bem sabendo que a lei, no seu art. 1549.º do Código Civil, tal não exige;
19. A verdade é que os documentos números 8 e 10, juntos com a Petição Inicial, demonstram a existência de um caminho em calçada empedrada, bem definido, que demonstra claros sinais de serventia em relação ao terreno adjudicado à Recorrente;
20. Resultou do depoimento da testemunha DD, irmão das partes, que cresceu e viveu no referido imóvel, que, desde sempre, a entrada no imóvel se fez através do portão que dá acesso ao caminho empedrado, portão esse visível no documento número 10 junto com a Petição Inicial;
21. A entrada que a Recorrida alega em sede de Contestação ser a verdadeira entrada por onde se acedia e acede ao terreno, entrada essa referida como estando localizada na “parte de cima” do terreno, cuja entrada é feita pela Rua ..., patente nos documentos número 1 a 5 juntos com a Contestação, integrava o terreno de terceiros, só sendo possível fazer a entrada no imóvel - à data propriedade dos pais da Recorrente e Recorrida - com a anuência desses mesmos terceiros;
22. Resulta, da prova produzida, que existe uma portaria no imóvel da Recorrida, isto é, um portão que servia ou serve a entrada de máquinas, que existe um terreno que, noutros tempos, pertenceu ao mesmo dono do imóvel onde se encontra a casa, que esse terreno servia o imóvel onde se localizava a casa de família, que esse terreno não tem acesso direto à via pública, que o acesso a esse terreno fazia-se pelo interior do referido imóvel, e que vezes existiram, em que o acesso a esse terreno se fazia por terrenos de amigos e vizinhos da família;
23. Assim, é evidente que o referido imóvel adjudicado à Recorrida, demonstra claros sinais de serventia em relação ao imóvel adjudicado à aqui Recorrente, encontrando-se totalmente demonstrada a existência do caminho de acesso histórico presente no imóvel adjudicado à Recorrida, servindo o terreno adjudicado à Recorrente, para efeitos de acesso à via pública;
24. Dispõe o artigo 1549.º do Código Civil que “se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento;
25. A verdade é que à Recorrente e à Recorrida, irmãs, em virtude do óbito dos seus progenitores, lhes foram adjudicadas certas e determinadas verbas à Recorrente a verba n.º 2 e n.º 6 e à Recorrida a verba n.º 1 e n.º 2 -, verbas estas que pertenciam anteriormente aos progenitores de ambas e que se separaram quanto ao seu domínio após a partilha;
26. Atendendo à nova situação jurídica emergente da separação dos prédios, isto é, atendendo a que os prédios que outrora pertenceram ao mesmo proprietário, passaram, posteriormente, a pertencer a duas pessoas distintas, esta alteração acarreta um significado jurídico na medida em que se verifique que existia já uma relação de serventia entre os prédios que se vieram a separar;
27. Existindo uma relação de serventia entre dois prédios pertencentes ao mesmo dono, com a separação destes prédios, e, note-se, passando os prédios a pertencer a proprietários diferentes, a mera serventia (situação de facto), transmutar-se-á na constituição de um direito servidão em proveito de um desses prédios (situação jurídica) - a serventia de facto aparente converte-se num direito de servidão, automaticamente, na medida em que passam a existir dois prédios distintos, com dois proprietários diferentes;
28. Ora, para que se mostre constituída a servidão por destinação do pai de família, é igualmente, necessária a existência de sinais visíveis e permanentes, que revelem uma relação ou situação estável de serventia de um prédio para com outro;
29. Donde se conclui que basta, tão-só, provar a existência de uma relação de serventia entre os prédios, serventia essa refletida em sinais visíveis e permanentes, que permitam demonstrar a concreta situação de facto e jurídica que se pretende provar;
30. A mera circunstância de os prédios em questão terem ou não acesso direto à via pública não impede, de todo, a constituição de uma servidão por destinação do pai de família, sendo irrelevante a situação de isolamento do prédio; e não resultando, aliás, essa necessidade da lei;
31. No que tange às verbas n.º 2 e 4, o caminho que dá acesso, em exclusivo, ao imóvel adjudicado à Recorrente em sede de partilha, pelo simples facto de ser um caminho cimentado, é, por si só, ele próprio, pela sua configuração, um sinal visível e permanente da existência de uma passagem de um espaço para outro, estabelecendo um percurso bem definido de acesso da Rua ... ao imóvel propriedade da Recorrente, independentemente de, à data da Inspeção Judicial levada a cabo pelo Tribunal recorrido, se encontrar parcialmente coberto de ervas;
32. Pouco importa o motivo pelo qual o caminho foi construído, mas sim a concreta utilidade que se pretendeu com a construção do mesmo;
33. Parece-nos, simultaneamente, conclusivo, alegar que “um arrendatário sem filhos não sentiria, muito provavelmente, aquela específica necessidade.”, quando, na verdade, a arrendatária em questão uitilizou o caminho de cimento largos anos após os seus filhos terem deixado de utilizar carrinho de bebé e, para além disso, informou o Tribunal a quo, por diversas vezes, que a sua casa estava cercada de terra e campos de milho;
34. Considera-se, de todo o modo, inadmissível que o Tribunal a quo desconsidere a existência de um caminho, visível e permanente, entre a Rua ... e o imóvel da Recorrente, desembocando num portão que serve de entrada ao referido imóvel, apenas pelo facto de este se encontrar parcialmente coberto por ervas e, bem assim, pelo facto de a arrendatária do imóvel, por sua opção, não utilizar ou não utilizar em exclusivo aquele caminho para aceder à via pública, desconhecendo a aqui Recorrente o que considera o tribunal a quo ser uma “altura considerável”;
35. Em suma, relativamente às verbas n.ºs 2 e 4, se encontram preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 1549.º do Código Civil para a constituição, por destinação do pai de família, de uma servidão de passagem através desse corredor, a favor do prédio da Recorrente, sobre o prédio da Recorrida (prédio serviente);
36. Já no que respeita à serventia existente entre as verbas n.º 1 e 6, Resulta da prova documental e testemunhal constante dos autos que, efetivamente, existe uma portaria no imóvel da Recorrida, isto é, um portão que servia ou serve a entrada de máquinas e, também, que existe um terreno que, noutros tempos, pertenceu ao mesmo dono do imóvel onde se encontra a casa, concluindo-se que o acesso a esse terreno se fazia pelo interior do referido imóvel;
37. Demonstrou-se, através da prova produzida nos autos, a existência de um caminho em calçada empedrada, localizado no imóvel adjudicado à Recorrida, bem definido, que revela claros sinais de serventia em relação ao terreno adjudicado à Recorrente;
38. Na mesma medida, se logrou provar, atenta a prova constante dos autos, que a entrada no imóvel se fez através do portão que dá acesso ao caminho empedrado, sendo, portanto, indiferente, se a entrada era feita através desse portão de forma única e exclusiva ou, se ao invés, existia um caminho alternativo (neste caso, através de um caminho propriedade de terceiros) que permitia fazer a entrada no terreno que anteriormente constituía a casa de família;
39. Não é, de todo, relevante, saber quando e por que razão o acesso era feito através de terrenos de amigos e/ou vizinhos, pelo que o que importa para o presente processo é que o acesso ao terreno da ora Recorrente era realizado através do imóvel da aqui Recorrida, através de um caminho em calçada empedrada, revelador de sinais visíveis e distintos e que consubstancia uma verdadeira serventia;
40. O que nos leva a crer, em suma, que, relativamente às verbas n.ºs 1 e 6, se encontram de igual modo preenchidos todos os requisitos exigidos pelo artigo 1549.º do Código Civil para a constituição, por destinação do pai de família, de uma servidão de passagem, a favor do prédio da Recorrente, sobre o prédio da Recorrida (prédio serviente).

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. Muito doutamente suprirá, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença ora posta em crise, alterando-se a matéria de facto provada e, por
consequência:
a) declarada constituída servidão com largura de 2,40 metros e 30 metros de comprimento, que beneficie a verba n.º 6, propriedade da Recorrente, correspondente a terreno, sito no Lugar ..., com uma área de 700 m2, impondo esse encargo à verba n.º 1, propriedade da Recorrida, correspondente ao prédio constituído por r/c e 1.º andar com logradouro, sito na Rua ..., da União de Freguesias ... e ...;
b) declarada constituída servidão, com largura de 50 centímetros e 20 metros de comprimento, que beneficie a verba n.º 2, propriedade da Recorrente, correspondente a imóvel constituído por r/c e logradouro, duas habitações, sito na Rua ..., ... e na Rua ..., ..., da União de Freguesias ... e ..., impondo esse encargo à verba n.º 4, correspondente a terreno para construção, sito na Rua ..., lado Norte.

Fazendo, assim, V. Exas. a devida justiça.
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A R. apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação total da sentença recorrida, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1.ª A Recorrente não cumpre os ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 2, al. a) do CPC, na medida em que, por um lado, não indica, nem no corpo das alegações nem nas conclusões, os concretos pontos de facto cuja alteração pretende e o sentido e termos da mesma; e, por outro, não indica nas conclusões sequer o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico, o que obsta a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, atendendo a que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, não podendo o Tribunal “ad quem” conhecer de questão que delas não conste.
2.ª A falta de indicação, quer nas conclusões, quer no corpo do Recurso, dos concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados e da decisão que deve ser proferida sobre os mesmos, bem como a não indicação nas conclusões dos depoimentos e das passagens da gravação em que se funda o seu recurso implicam a rejeição imediata do Recurso na parte da impugnação de facto efetuada (artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1 e 2 e 640.º todos do Código de Processo Civil).
3.ª No que se prende com as verbas n.ºs 2 e 4, decorre do depoimento da testemunha CC (encontra-se nas gravações, das 10:41 às 11:09, do dia 11/03/2024) que tal caminho/passeio foi construído por si, enquanto arrendatária do imóvel propriedade da Recorrente, apenas para que tal caminho lhe facilitasse a entrada no prédio arrendado quando conduzia um carrinho de bebé; que tal acesso não é utilizado há pelo menos 30 anos e que nunca foi utilizado para mais nenhuma outra finalidade a não ser aquela, afirmando ser mentira se alguém disser que ainda utiliza aquele caminho (dos minutos 01:51 aos 02:16; 04:49 aos 05:41; 05:57 aos 06:50; 13:29 aos 14:00; 15:55 aos 16:05; 21:22 aos 22:29; 23:11 aos 23:45; 24:23 aos 24:32).
4.ª Não há por parte do Tribunal “a quo” qualquer confusão entre o conceito de “necessidade” e o de “serventia” e de “sinais visíveis e permanentes”, uma vez que o que a sentença recorrida conclui é que aquele caminho, atendendo àquelas circunstâncias, nunca poderá ser interpretado como «um sinal revelador de serventia». Ou seja, aquele caminho nunca poderá ser considerado um sinal visível e permanente, que revele inequivocamente a relação de serventia entre os prédios.
5.ª Do depoimento da arrendatária, articulado com a demais prova, o que resulta é que aquele caminho foi feito (e a sua edificação foi autorizada) para facilitar a passagem do carrinho de bebé, pelo que até aí nunca tinha a arrendatária ou o dono do prédio sentido qualquer necessidade em tal edificação, e se não fosse esse acontecimento tal acesso, atendendo à prova produzida, certamente nunca viria a ser edificado. A afirmação da Recorrente de que, durante 25 anos, o «único acesso possível ao imóvel» seria aquele caminho não tem sustentação em qualquer prova produzida, limitando-se a alegar sem concretizar de onde retira tal conclusão.
6.ª Quanto às verbas n.ºs 1 e 6, a Recorrente sustenta a sua tese (de que o imóvel adjudicado à Recorrida demonstra claros sinais de serventia em relação ao imóvel a si adjudicado) no depoimento prestado pela testemunha DD, a quem o Tribunal “a quo” não atribuiu especial credibilidade, em virtude das discrepâncias e imprecisões patentes no seu depoimento e pela animosidade que manifestou face à Recorrida BB (sua irmã), como quem deixou de falar desde o processo de inventário.
7.ª A testemunha EE (o seu depoimento encontra-se nas gravações, das 14:17 às 14:28, do dia 11/03/2024), tratorista que há mais de 10 anos trabalha para a família de Recorrente e Recorrida, esclareceu que sempre acedeu ao terreno através da Rua ..., uma vez que a “portaria” não lhe permitia entrar com um trator (minutos 01:28 aos 01:55; 03:19 aos 04:49; 05:03 aos 05:58; 08:56 aos 09:49).
8.ª Já a testemunha FF (o seu depoimento encontra-se nas gravações, das 12:16 às 12:36, do dia 11/03/2024) referiu que o acesso à verba n.º 6 era feito pelo meio das culturas e que sempre viu os tratores entrarem pela parte de cima (minutos 03:04 aos 03:45; 10:05 aos 10:43; 12:21 aos 14:20).
9.ª Quanto à testemunha GG (o seu depoimento encontra-se nas gravações, das 14:30 às 14:40 do dia 11/03/2024), irmã da Recorrente e da Recorrida, deixou claro que o acesso à verba n.º 60 era sempre feito pela “Rua ...”, mas que o acesso para os terrenos era feito pela Rua ..., porque a Rua ... não tinha condições (minutos 02:30 aos 03:20).
10.ª Decorre, assim, da prova produzida que o trator que ia lavrar o terreno adjudicado à Recorrente (verba n.º 6) não efetuava a sua entrada através da portaria da verba n.º 1, uma vez que nem sequer conseguia passar na mesma.
11.ª Por outro lado, o próprio Tribunal, no local, conseguiu comprovar a inexistência de quaisquer sinais visíveis, isto é, um caminho, marcos, ou qualquer outro indício que preencha o conceito de “sinais visíveis”.
12.ª Mesmo aceitando-se que os prédios em discussão foram anteriormente de um mesmo dono, sempre seria necessário provar, e não se provou (cabia à Recorrente alegar e provar por se tratar de factos constitutivos do seu invocado direito - cfr. art. 342º nº1 do C.C.) a existência de sinais visíveis e permanentes postos ao serviço de um dos prédios, no momento da separação do domínio; sinais existentes quando era o mesmo o titular dos prédios e que demonstrem a passagem de uma parte para a outra do prédio.
13.ª Não existem, nem quanto às verbas n.ºs 2 e 4 nem quanto às verbas n.ºs 1 e 6, sinais alegados e provados que patenteiem a existência de passagem dos prédios da Recorrida para os da Recorrente. Ou seja, não se provou a existência de sinais que revelem a vontade ou consciência do proprietário de criar uma situação de facto estável e duradoura, uma situação que objetivamente corresponda à de uma servidão aparente.
14.ª Contrariamente ao que a Recorrente alega no seu recurso, a mera existência de um caminho cimentado não constitui, por si só, um sinal visível e permanente que revele inequivocamente uma relação estável de serventia de um prédio para com o outro, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2018, processo n.º 1021/15.4T8PTG.E1.S1, em situação muito semelhante à dos autos.
15.ª A decisão recorrida não coloca em causa a irrelevância da vontade do pai de família que presidiu à construção do referido corredor, contudo, deixa claro que o caminho cuja utilização remonta há, aproximadamente, 30 anos atrás, construído por uma particular arrendatária, para que a mesma passasse com os carrinhos de bebé das suas filhas, não permite concluir por um sinal inequívoco de uma relação estável de serventia de um prédio para com o outro.
16.ª E no que respeita à verba n.º 1, a Recorrente também não conseguiu fazer prova de qualquer sinal visível e permanente, não tendo o Tribunal no local verificado qualquer caminho, ou marcos ou outro indício que permitisse preencher um dos requisitos cumulativos do artigo 1549.º do C.C., para que pudesse declarar a constituição das servidões por destinação de pai de família.
17.ª Desta forma, sem a prova da existência de sinais caracterizadores da servidão, de sinais demonstrativos de serventia de um prédio para o outro à data da separação, cai um dos requisitos da constituição de servidão por destinação do pai de família. E sem a prova desses sinais, pouco importa a questão de os prédios terem sido do mesmo dono e/ou que se tenham separado quanto ao seu domínio.

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O recurso foi admitido nos termos que constam do despacho com a ref.ª electrónica 134633464, de 18/09/2024.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
É consabido que, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil).
No caso dos autos, compulsadas as conclusões da alegação que a recorrente apresentou, constata-se que a mesma, no fundamental, expõe as razões da sua discordância com a sentença recorrida e, após, peticiona que seja “[c]oncedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença ora posta em crise, alterando-se a matéria de facto provada e, por consequência: a) declarada constituída servidão (…); b) declarada constituída servidão (…)”. Todavia, apesar de neste último segmento a recorrente peticionar a alteração da matéria de facto provado, em local algum das conclusões são indicados quais os concretos pontos de facto que a recorrente considera terem sido incorrectamente julgados, especificação essa que, de acordo com o disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. a) do Código do Processo Civil, é obrigatória, “sob pena de rejeição”. Ora, ainda que, por motivos de proporcionalidade se possa aceitar que o recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto especifique apenas no corpo da motivação recursória os meios probatórios que, no seu entender, determinam decisão diversa quanto à matéria de facto, bem como qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essa matéria (assim cumprindo os ónus a seu cargo referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código do Processo Civil), o mesmo não acontece já com a indicação dos concretos pontos de facto que, segundo o recorrente, foram incorrectamente julgados, pois essa especificação mostra-se absolutamente necessária para delimitar o objecto do recurso na parte em que este diz respeito à matéria de facto e, logo, face ao disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do C.P.C., carece de ser feita nas conclusões da alegação [1].
Desta forma, e porque, em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto, não há lugar à prolação de despacho de aperfeiçoamento [2], rejeita-se o recurso apresentado nos autos na parte relativa à peticionada alteração da matéria de facto provado.
Não obstante, porque, analisados os factos dados como provados e não provados na primeira instância, se entende que existem algumas deficiências e insuficiências que, face ao disposto no artigo 662.º do Código do Processo Civil, podem ser apreciadas oficiosamente, considera-se pertinente tratar essa matéria no âmbito do presente recurso.
Consequentemente, considerando a delimitação decorrente das conclusões da alegação da recorrente e o disposto no artigo 662.º do Código do Processo Civil, as questões a tratar no âmbito do presente recurso são as seguintes:
a) aferir se a decisão proferida sobre a matéria de facto deve ser modificada;
b) averiguar se existe fundamento para que seja reconhecida a constituição, por destinação do pai de família, de alguma ou de ambas as servidões de passagem sobre prédios da R. que a A./recorrente invoca beneficiarem prédios seus.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

A) Dos factos

1. Para a decisão do presente recurso importa atentar, antes de mais, nos factos que o tribunal a quo considerou provados e não provados. Os factos provados foram os seguintes:
1) A e R. são irmãs, ambas filhas de HH e II.
2) Por óbito de ambos os progenitores, correu termos o processo de inventário n.º ...53/2017, no Cartório Notarial de JJ, sito na Rua ..., ..., ....
3) No âmbito do processo identificado em 2), foi celebrada, em sede de conferência de interessados, partilha dos bens pertencentes à herança.
4) Tendo o processo sido remetido para homologação para este Tribunal Juiz 1, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 66.º, n.º 1 do RJPI.
5) Por sentença datada de 05.04.2022 foi homologada a partilha realizada em sede de conferência de interessados.
6) No âmbito daquela, foram adjudicadas à aqui A. as seguintes verbas:
a. A verba n.º 2, correspondente a imóvel constituído por r/ch e logradouro, duas habitações, sito na Rua ..., ... e na Rua ..., ..., da União de Freguesias ... e ..., com a área coberta total de 428 m2 e a construção tem cerca de 80 anos, confrontando a Norte com a Rua ... para onde apresenta uma frente de cerca de 23m e a Nascente com caminho pedonal (Rua ...) para onde apresenta a frente de cerca de 18m, a que corresponde o artigo 61 da União de Freguesias ... e ... e a descrição ...09 da Conservatória do Registo Predial de Espinho.
b. A verba n.º 6, correspondente a terreno sito no Lugar ..., com uma área de 700m2, confrontando a Poente com a verba n.º1 (da propriedade da R.) e sem acesso direto à via pública, a que corresponde o artigo ...75 da União de Freguesias ... e ... e a descrição ...14 da Conservatória do Registo Predial de Espinho.
7) À R. foram adjudicadas as seguintes verbas:
a. A verba n.º1, correspondente ao prédio constituído por r/ch e 1.º andar com logradouro, sito na Rua ..., da União de Freguesias ... e ..., sendo constituído por uma habitação com 2 pisos e 6 divisões, anexos, eira e logradouro, com área coberta de 232m2, área de construção de 390,60m2, área privativa de 115,80m2 e a área dependente de 274,72m2, correspondente ao artigo 2976 da União de Freguesias ... e ... e a descrição ...08 da Conservatória do Registo Predial de Espinho.
b. A verba n.º 4, correspondente a terreno para construção, sito na Rua ..., lado Norte, com a área de 505,66m2, confrontando a Sul com a Rua ... para onde deita uma frente de cerca de 20m e a Nascente com caminho pedonal (Rua ...) para onde apresenta a frente de cerca de 25m e corresponde ao artigo ...77 da União de Freguesias ... e ... e à descrição ...12 da Conservatória do Registo Predial de Espinho.
8) Uma parte do logradouro da verba n.º 1 e a verba n.º 6 encontram-se prolongadas num só espaço físico, conforme já acontecia antes da partilha, e não existem vedações ou marcos que as delimitem com rigor.
9) Para aceder às parcelas referidas em 8) era utilizado um caminho que nascia a sul na Rua ....
10) O terreno adjudicado à A. na verba n.º 6 não dispõe de acesso à via pública.
11) Os imóveis que integram as verbas nºs 1 a 4 são adjacentes um ao outro.
12) A arrendatária do imóvel que consubstancia a verba n.º 2, adjudicada à A., construiu um caminho pedonal no terreno adjudicado à Ré (verba n.º 4), há, aproximadamente, cinquenta anos.
13) O caminho pedonal liga o imóvel à Rua ... e foi construído com o intuito de lhe facilitar a entrada, quando conduzia o carrinho de bebé das suas filhas.
14) O caminho pedonal referido em 12) e 13) encontra-se, parcialmente coberto de ervas e não é utilizado há cerca de 30 anos.
Ao invés, foi dado como não provado:
a) Que existam sinais que se mostrem permanentemente colocados e visíveis no imóvel da R. (verba n.º 1), tanto aos dias de hoje, como em momento anterior à partilha que consubstanciam um caminho bem visível que liga o imóvel da R. ao terreno da A. (verba n.º 6).
b) Que exista um caminho inserido no imóvel adjudicado à R. na verba n.º 1 que tenha como única e específica utilidade, o acesso e trajeto até ao terreno adjudicado à A. sob a verba n.º 6.
c) Que o equipamento pesado agrícola tenha sempre entrado pela denominada a A. se encontre, involuntariamente, em incumprimento das normais legais que impõem a limpeza e a manutenção de terrenos, como forma de prevenção de incêndios florestais.
d) Que o caminho construído na verba n.º 4, sirva o imóvel adjudicado à A. para efeitos de acesso pedonal à via pública.
e) Que tenham sido raras as vezes que se acedeu aos prédios mencionados e que o acesso fosse apenas para operações de limpeza.

2. A recorrente, conforme se explicou aquando da delimitação do objecto do recurso, não impugnou de forma válida a factualidade (provada e não provada) que acaba de ser referida.
De todo o modo, porque cumpre ao Tribunal da Relação velar para que a matéria de facto necessária para decidir sobre o mérito da causa seja, para além do mais, o mais completa possível, não se pode deixar de observar que o tribunal a quo, apesar de ter dado como provado (Factos 12, 13 e 14) que no terreno adjudicado à Ré (verba n.º 4) existe um caminho pedonal que liga o imóvel que consubstancia a verba n.º 2 (adjudicada à A.) à Rua ..., não se pronunciou sobre elementos de facto concretos relativos a esse caminho que haviam sido alegados pela A. nos artigos 17.º e 18.º da sua petição inicial aperfeiçoada e que, nos termos do despacho que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, integram a matéria controvertida relevante para a decisão da causa. Com efeito, considerando a alegação efectuada pela A. nesses artigos 17.º e 18.º da petição inicial aperfeiçoada, uma vez dada como assente a existência do referido caminho, mostra-se importante para a decisão a proferir fixar se esse caminho é ou não cimentado, se o mesmo possui 50 centímetros de largura e 20 metros de comprimento, se ele se situa do lado Poente do terreno da aqui Ré e se termina na entrada do terreno da aqui Autora, mais concretamente, no portão que sempre existiu e que serve uma das habitações aí existentes.
Concluindo-se ser necessário ampliar a matéria de facto, cumpre aferir se constam do processo todos os elementos de prova que permitam a este tribunal ad quem fixar com segurança os factos em falta, pois, caso tal não suceda, outra solução não restará do que anular a sentença recorrida em conformidade com o previsto no artigo 662.º, n.º 2, al. c) do Código do Processo Civil. Não será este, porém, o caso. Com efeito, aquando da realização da audiência de julgamento, o tribunal realizou, no dia 11-03-2003, uma inspecção ao local e, conforme consta da acta da diligência junta aos autos, verificou o seguinte: “[a] existência de uma faixa cimentada, com 18,10 m. (dezoito metros e dez centímetros) de extensão de 0, 65 cm (sessenta e cinco centímetros) de largura, desde o portão existente, que limita no local o terreno contíguo à casa e que se estende com a mesma largura até ao 1º pilar do prédio contíguo junto à Rua ...”. O resultado desta inspecção, por outro lado, mostra-se plenamente conforme com o teor do relatório de avaliação efectuada pelo sr. Perito KK que foi junta aos presentes autos em 9-06-2023 e que, entre o mais, assinala que “[e]existe um passeio em betonilha que atravessa a verba n.º 4, com cerca de 50 cm de largura e 20 m de comprimento, e que liga a Rua ... a uma das habitações da verba n.º 2, a qual possui um portão para o efeito, o que foi possível comprovar na visita ao local”. Para além disso, este relatório contém fotografias do caminho/passeio em causa que são claras e inequívocas quanto ao facto de o mesmo se encontrar implantado numa faixa de terreno que se desenvolve ao longo da estrema poente do prédio correspondente à verba n.º 4. Desta forma, os autos possuem elementos absolutamente sólidos que permitem estabelecer que:
i) o caminho pedonal referido nos Factos Provados 12), 13) e 14) apresenta um piso em betonilha de cimento;
ii) esse caminho tem uma extensão de 18,10 m. (dezoito metros e dez centímetros) e uma largura de 0,65 m. (sessenta e cinco centímetros);
iii) o mesmo desenvolve-se ao longo da estrema poente da verba n.º 4, estendendo-se desde o portão existente no limite do terreno contíguo a uma casa existente na verba n.º 2 até ao 1º pilar do prédio contíguo à verba n.º 4, junto à Rua ....
Desta forma, porque o processo contém elementos que autorizam este tribunal da Relação a fixar a matéria de facto acima referida [3] que, apesar de integrar os temas de prova e ser necessária para a boa decisão da causa, não foi objecto de pronúncia pelo tribunal a quo, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, ora se decide ampliar a matéria de facto dada como provada, acrescentando-se à mesma o seguinte facto:
15) o caminho referido nos Factos Provados 12), 13) e 14) tem uma extensão de 18,10 m. (dezoito metros e dez centímetros) e uma largura de 0,65 m. (sessenta e cinco centímetros), apresenta um piso em betonilha de cimento e desenvolve-se ao longo da estrema poente da verba n.º 4, desde o portão existente no limite sul da verba n.º 2 até ao 1º pilar do prédio contíguo à verba n.º 4, junto à Rua ....

3. Ao nível da sindicância da decisão proferida sobre a matéria de facto que lhe compete efectuar, este Tribunal da Relação deve assegurar ainda que a fundamentação de facto seja expurgada de deficiências, obscuridades ou contradições, o que pressupõe, entre o mais, que os factos provados e não provados sejam compatíveis entre si e que a forma como os mesmos se encontram descritos não gere dúvidas ou incertezas.
Devido a isso, no caso sub judice, não se pode deixar de apontar que o facto não provado d) não se mostra completamente claro – e, por isso, pode gerar equívocos –, pois, encontrando-se provado que se encontra implantado no prédio correspondente à verba n.º 4 um caminho que liga o imóvel correspondente à verba n.º 2 à Rua ..., afigura-se ser bastante impreciso dar como não provado “[q]ue o caminho construído na verba n.º4, sirva o imóvel adjudicado à A. para efeitos de acesso pedonal à via pública”. É certo que, lida a motivação da sentença, percebe-se que o tribunal a quo deu tal facto como não provado em virtude de o referido caminho não ser utilizado há cerca de trinta anos e se encontrar parcialmente coberto de ervas e, nessas circunstâncias, considerar que o mesmo já “não está a servir” o prédio correspondente à verba n.º 2 que foi adjudicado à A., tanto mais que este possui acesso à via pública através da entrada com o número de polícia ...89 da Rua .... Todavia, porque não há dúvidas de que existe uma passagem, através de um caminho com piso em betonilha de cimento, entre o prédio correspondente à verba n.º 2 e a Rua ..., entende-se que, independentemente do facto de este caminho não estar a ser utilizado já há bastantes anos e se encontrar parcialmente coberto com ervas, não é rigoroso afirmar que o mesmo não serve de ligação entre o prédio adjudicado à A. e a Rua ..., pois essa sua potencialidade não foi eliminada e – como é facilmente apreensível até pela simples observação das fotografias constantes do relatório de avaliação junto ao autos em 9-06-2023 – continua a existir. Consequentemente, para que a factualidade (provada e não provada) que deve suportar a decisão sobre o mérito da causa não seja equívoca, a redacção do facto que, sob a alínea d), foi dado como não provado deve ser alterada de forma a que fique claro apenas que, actualmente, o caminho implantado na verba n.º 4 não está a ser utilizado para efeitos de acesso pedonal desde o imóvel adjudicado à A. até à via pública.
Pelo exposto, face aos poderes oficiosos de que dispõe o Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, ora se decide alterar a redacção do Facto Não Provado d), dando-se, em substituição dessa redacção, como não provado:
d) que o caminho construído na verba n.º 4, actualmente, esteja a ser utilizado para efeitos de acesso pedonal desde o imóvel adjudicado à A. até à via pública.

B) Do direito
4. Estabilizada a factualidade em que se deve basear a decisão sobre o mérito da causa, resta enquadrar os factos provados em termos jurídicos para aferir se a apelação deve proceder ou não (assim se tratando da segunda ‘questão a decidir’ que foi enunciada quando se delimitou o objecto do recurso).
Na acção judicial em curso, a A., ora recorrente, pretende que seja declarada a constituição, por destinação do pai de família, de duas servidões de passagem a favor de prédios da sua propriedade que alega onerarem prédios pertencentes à R..
De acordo com a definição do artigo 1543.º do Código Civil, servidão predial é um encargo imposto num prédio (prédio serviente) em proveito exclusivo de outro prédio (prédio dominante) pertencente a dono diferente. Trata-se, conforme sintetizado no Ac. STJ de 2/05/2012 (proc. 1241/07.5TBFIG.C1.S1) [4], de “[u]m direito real de gozo sobre coisa alheia (ou direito real limitado), mediante o qual o dono de um prédio tem a faculdade de usufruir ou aproveitar de vantagens ou utilidades de prédio alheio (ius in re aliena) em benefício do seu, o que envolve correspondente restrição ao gozo efectivo do dono do prédio onerado, na medida em que este fica inibido de praticar actos susceptíveis de prejudicar o exercício da servidão”.
À luz da nossa Lei, as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (artigo 1547.º, n.º 1, do Código Civil). A constituição de servidões por destinação do pai de família verifica-se quando, conforme resulta do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, ocorre a separação de dois prédios sob o domínio do mesmo dono, ou de duas fracções de um só prédio, e existem sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento. De forma esquemática, pode-se dizer, pois, que os requisitos para a constituição de servidão predial por destinação de pai de família são os seguintes:
i) a pertença de dois ou mais prédios, ou de mais do que uma fracção do mesmo prédio, ao mesmo dono [5];
ii) a existência de sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em algum ou alguns desses prédios ou fracções, reveladores de serventia de um deles para com algum ou alguns dos outros;
iii) a separação quanto ao domínio dos prédios ou das fracções dominante(s) e serviente(s) [6];
iv) a inexistência no acto translativo da propriedade de uma declaração, devidamente documentada, que afaste a relação de serventia/servidão.
No caso sub judice, resulta dos factos provados que, por força da sentença de homologação da partilha aberta por óbito dos progenitores comuns da A. e da R. (que foi proferida em 5-04-2022 no âmbito do processo de inventário n.º ...53/2017), deixaram de pertencer aos mesmos donos os prédios aí descritos como verbas n.ºs 2 e 4, bem como os prédios aí descritos como verbas 6 e 1 (pois as verbas 2 e 6 foram adjudicadas à A. e as verbas 1 e 4 foram adjudicadas à R.). Face a tal, e uma vez que a A. peticiona que seja declarada a constituição de uma servidão a favor da verba n.º 6 que onera o prédio correspondente à verba n.º 1 e de uma outra servidão a favor da verba n.º 2 que onera o prédio correspondente à verba n.º 4, dúvidas não há de que se mostram reunidos os pressupostos necessários para a constituição das servidões prediais invocadas que acima foram referidos sob os pontos i) e iii).
Por outro lado, considera-se que in casu se mostra também preenchido o requisito enunciado no ponto iv), pois, em bom rigor, o facto (negativo) que aí se refere não é uma realidade constitutiva do direito de servidão, antes se apresentando, face à redacção do artigo 1549.º do Código Civil e à forma como se encontra formulado na parte final deste artigo (“salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”), como um elemento de facto que impede a constituição do direito que emerge da verificação de todos os pressupostos necessários para o surgimento de uma servidão predial por destinação de pai de família. Por isso, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, cumpriria à R. efectuar a prova da eventual existência de uma qualquer declaração, lavrada aquando da partilha dos bens dos seus falecidos pais, que houvesse afastado a constituição de uma ou de ambas as servidões cuja existência a A., sua irmã, surge a invocar. Tal, manifestamente, não aconteceu, pelo que, por esta via, nada impede também que as pretensões deduzidas pela A. possam vir a ser acolhidas.
A procedência dos pedidos da A., no entanto, depende ainda da verificação do requisito acima enunciado sob o ponto ii): a existência de sinal ou sinais visíveis e permanentes reveladores das serventias invocadas (uma, entre os prédios correspondentes às verbas 1 e 6; a outra, entre os prédios correspondentes às verbas 4 e 2).
Vista a matéria de facto provada, é manifesto que não se encontra demonstrada a existência de qualquer realidade que sinalize a existência de serventia do prédio correspondente à verba n.º 1 a favor do prédio correspondente às verba n.º 6. A factualidade que, quanto a tal, foi alegada não foi dada como provada e, como tal, sem necessidade de mais desenvolvimentos, pode-se já concluir no sentido da improcedência, nesta parte, do pedido que a A. formulou.
Algo de diferente se passa em relação à invocada servidão do prédio correspondente à verba n.º 4 a favor do prédio correspondente à verba n.º 2, pois, quanto a tal, está provado que:
- no prédio adjudicado à Ré como verba n.º 4, existe um caminho, em betonilha de cimento, que liga o imóvel que consubstancia a verba n.º 2 (adjudicada à A.) à Rua ...;
- esse caminho foi construído há, aproximadamente, cinquenta anos pela arrendatária do prédio descrito no inventaria sob a verba n.º 2, com o intuito de lhe facilitar a entrada no imóvel, quando conduzia o carrinho de bebé das suas filhas;
- o caminho tem uma extensão de 18,10 m. (dezoito metros e dez centímetros) e uma largura de 0,65 m. (sessenta e cinco centímetros) e desenvolve-se ao longo da estrema poente da verba n.º 4, desde o portão existente no limite sul da verba n.º 2 até ao primeiro pilar do prédio contíguo à verba n.º 4, junto à Rua ...;
- tal caminho encontra-se parcialmente coberto de ervas e não é utilizado há cerca de 30 anos.
Face a estes factos, afigura-se indiscutível que no prédio adjudicado à R. como verba n.º 4 existem sinais materiais, traduzidos no corredor/passeio com piso em betonilha de cimento que lá se encontra implantado junto à sua estrema poente, que indiciam a existência de uma serventia desse prédio para com o prédio que foi adjudicado à R. como verba n.º 2, pois tal passeio estabelece a ligação entre este último prédio e a Rua .... Para além disso, é também indiscutível que esses sinais, tal como exige o artigo 1549.º do Código Civil, são visíveis e permanentes, já que os mesmos podem ser percepcionados por qualquer observador externo e, tratando-se de uma obra construída em betonilha de cimento implantada no solo, possuem carácter duradouro, não sendo, pois, nem uma realidade encoberta ou clandestina, nem o resultado de um acto praticado a título precário.
Desta forma, e porque está provado que esses sinais visíveis e permanentes já existiam ao tempo da separação do domínio dos prédios (pois é esse o momento relevante para a constituição da servidão por destinação do pai de família [7]), resta determinar se os mesmos, mais do que indiciadores, são reveladores de uma efectiva relação de serventia do prédio (serviente) correspondente à verba n.º 4 que foi adjudicada à R. para com o prédio (dominante) correspondente à verba n.º 2 que foi adjudicada à A..
A propósito da questão de saber quando é que os sinais revelam a serventia de um prédio para com o outro, ainda se encontram decisões nos nossos tribunais que, mesmo reconhecendo ser irrelevante que os sinais tenham sido colocados por um proprietário, por um usufrutuário ou, até, por um locatário, não dispensam a prova de que os mesmos tenham sido postos ou deixados no local com a intenção de assegurar certa utilidade a um prédio, à custa ou por intermédio do outro, ou seja, de que os sinais revelem “a vontade ou consciência de criar uma situação de facto estável e duradoura, uma situação que objectivamente corresponda à de uma servidão aparente” [8]. Todavia, como, após cuidada análise da evolução no nosso sistema jurídico da constituição de servidões prediais por destinação do pai de família, se mostra bem explicado no Ac. STJ de 10-03-2022 (proc. 310/18.0T8PNI.C1.S1) [9], esta perspectiva de cariz voluntarista radica na visão tradicional que encarava este modo de constituição do direito de servidão como o resultado da vontade do pai de família, a qual se mostra superada por uma perspectiva objectivista que considera que a relação de cooperação fundiária própria deste direito de servidão se revela pela situação de facto decorrente da existência, ao tempo da separação dos prédios, de sinais visíveis e permanentes de uma serventia, sem que, portanto, seja relevante saber qual foi a intenção subjacente à colocação ou à manutenção dos sinais, ou qual foi a vontade do alienante e do adquirente que intervieram no acto da separação (salvo se, ao tempo da declaração, outra coisa se houver declarado no próprio documento da separação do domínio dos prédios). Esta é uma posição absolutamente consolidada na nossa doutrina mais autorizada [10] e que também vem sendo acolhida desde há bastante tempo pelos nossos tribunais superiores, nomeadamente no Supremo Tribunal de Justiça [11], e que ora merece também a nossa adesão, tanto mais que, como observa Júlio Gomes “[h]á que reconhecer que a construção puramente objetivista não só é a mais próxima da letra da lei, como é também a mais coerente com a função do instituto que parece ser a tutela da aparência: ao adquirente de um prédio ou fração o que interessa é a existência dos sinais e não propriamente quem os criou. O que está em jogo, é a tutela da aparência (e não o respeito pela vontade unilateral do antigo proprietário), pelo que o que importa não é indagar o que é que o antigo proprietário pretendeu com as obras, mas sim o sentido objetivo das mesmas[12].
Desta forma, em casos como o presente, em que é indiscutível a existência de sinais visíveis e permanentes, anteriores à separação dominial, que assinalam a sujeição do prédio que foi adjudicado em inventário à R. como verba n.º 4 ao trânsito de peões que pretendam deslocar-se, através de um percurso bem definido, desde o prédio que foi adjudicado à A. como verba n.º 2 até à Rua ... (ou desde esta estrada pública até ao prédio da A.), está devidamente caracterizada uma situação estável de serventia predial que autoriza a constituição da servidão por destinação do pai de família que a A. surge a invocar nos autos. É que – como decorre da posição, expressa no parágrafo anterior, que se perfilha – não se mostra relevante para efeitos do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, se os sinais em causa (traduzidos no caminho/passeio com piso em betonilha de cimento que existe no local) foram postos ou não com a intenção de assegurar a serventia de um dos prédios para com o outro, nem se os mesmos foram ou não mantidos ao longo do tempo com essa mesma intenção, importando sim que eles possuam a visibilidade e a estabilidade necessária para, por si só, revelarem a existência da faculdade do dono de um desses prédios usufruir ou aproveitar vantagens ou utilidades do prédio alheio (ou seja, que existe efectivamente uma relação de serventia de um prédio para com o outro).
Ademais, deve-se ainda observar que o facto de estar provado que o caminho pedonal acima referido se encontra parcialmente coberto de ervas e não é utilizado há cerca de 30 anos não obsta ao reconhecimento da constituição da servidão por destinação do pai de família, pois a verdade é que a não utilização do caminho e a circunstância de existirem ervas que cobrem parte do mesmo não eliminam o facto objectivo da existência dos sinais (visíveis e permanentes) que evidenciam ou revelam a relação de sujeição de um dos prédios relativamente ao outro. Por isso, não tendo o afastamento desta relação sido clausulado no acto translativo de propriedade, não pode a mesma deixar de ser reconhecida.
Do mesmo modo, não obsta à constituição da servidão o facto de, actualmente, o imóvel correspondente à verba n.º 2 que foi adjudicado à A. dispor de frentes para a Rua ... e para a Rua ... e, por isso, o caminho já não ser necessário para que o prédio disponha de acesso para a via pública, pois, como foi expresso em caso semelhante no Ac. STJ de 10-03-2022 (proc. 310/18.0T8PNI.C1.S1) já atrás referido, a servidão por destinação de pai de família “[n]ão se constitui por necessidade, mas sim porque ao tempo da aquisição do prédio dominante já existia a correspondente serventia, a qual só não tinha reconhecimento jurídico, porque os prédios dominantes e o prédio serviente pertenciam ao mesmo dono, pelo que, nada tendo sido dito em contrário no ato de separação da titularidade, confere-se eficácia jurídica a essa situação de facto”. Com efeito, apesar de não resultarem propriamente de uma declaração negocial (como é o caso das servidões constituídas por contrato ou por testamento), as servidões por destinação do pai de família, diferentemente do que acontece com as servidões legais (cf. artigos 1550.º a 1563.º do Código Civil), podem ter na sua base simples motivos de conveniência ou, até, de mero alvedrio de quem criou ou autorizou a serventia [13], o que faz com que, tal como as servidões de origem contratual ou testamentária, a sua constituição não dependa da existência de qualquer necessidade do dono do prédio dominante (requisito que, aliás, não se encontra presente no artigo 1549.º do Código Civil) [14].

5. Concluindo-se pela procedência do pedido deduzido pela A. relativo à constituição de uma servidão de passagem a favor do imóvel correspondente à verba n.º 2 (adjudicada em inventário à A.) e que onera o prédio correspondente à verba n.º 4 que foi adjudicada à R., deve haver lugar à revogação da sentença recorrida.
De qualquer forma, em termos de custas judiciais (tanto da acção como da apelação) como a A. não obteve vencimento relativamente à totalidade daquilo que peticionou (pois não deve ser reconhecida a constituição da outra servidão que invocada na petição inicial), não pode deixar de haver uma repartição das responsabilidades tributárias entre ela e a R. em função dos respectivos decaimentos (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil).
Quanto ao valor económico desses decaimentos, considerando-se que no relatório de avaliação junto aos autos em 9-06-2023 sr. perito atribuiu à servidão sobre a verba n.º 1 o valor de 12.150,00 € e à servidão sobre a verba n.º 4 de 5.400,00€, fixar-se-ão os mesmos em 70% para a A. e em 30% para a R. do valor total da acção.
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III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso e, revogando-se a decisão recorrida, julga-se parcialmente procedente a acção e, em consequência:
1.º) declara-se estar constituída, por destinação do pai de família, uma servidão de passagem sobre o prédio da Ré, BB, descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho com o n.º ...12 e inscrito na matriz urbana da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...77 [com a implantação referida no Facto Provado 15)] a favor do prédio da Autora, AA, descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho com o n.º ...09 e inscrito na matriz urbana da União de Freguesias ... e ... sob o artigo ...1.
2.º) absolve-se a Ré do demais que foi peticionado contra si pela Autora;
3.º) condena-se A. e R. no pagamento das custas da acção, de acordo com a proporção de 70% para a A. e de 30% para a R..
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Custas da apelação a cargo de A. e R., segundo a proporção, igualmente, de 2/3 para a primeira e 1/3 para a segunda.
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Notifique.
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SUMÁRIO
(da exclusiva responsabilidade do relator - artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)

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Acórdão datado e assinado electronicamente
(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)




Porto, 11/12/2024.
José Nuno Duarte.
Fernanda Almeida.
Fátima Andrade

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[1] Cf., neste sentido, A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, Almedina, 2022, pp. 197 – 208, bem como, na nossa jurisprudência, entre muitos outros acórdãos: Ac. RP 21-03-2022 (Pr. 556/19.4T8PNF.P1, rel. Fátima Andrade); Ac. STJ 9-06-2021 (pr. 10300/18.8T8SNT.L1.S1, rel. Ricardo Costa) <URL: http://www.dgsi.pt/>.
[2] Cf. A. Abrantes Geraldes, Cit., pp. 199-200; Ac. STJ 6-02-2024 (pr. 18321/21.7T8PRT.P1.S1, rel. Nélson Borges Carneiro) <URL: http://www.dgsi.pt/>.
[3] Como esclarece A. Abrantes Geraldes (cit., p. 337-338), suportado também pelo estudo de Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, pp. 605 ss., a Relação, assumindo-se como um verdadeiro tribunal de instância, pode expressar, com total autonomia, a sua convicção sobre os meios de prova fornecidos pelo processo, fazendo incidir sobre estes “[o]s deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º)” para responder às questões de facto em discussão “(…) e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo”.
[4] Rel. Joaquim Piçarra <URL: http://www.dgsi.pt/>.
[5] Relativamente a este requisito, Pires de Lima e Antunes Varela esclarecem que “[t]anto faz que os prédios sejam rústicos ou sejam urbanos, que um seja rústico e o outro urbano; e nenhum obstáculo constitui também à solução a diferente aplicação dada a cada um dos prédios (habitação, instalação dum estabelecimento comercial, etc.). / É também irrelevante que os prédios sejam contíguos ou que entre eles se situem outros prédios, uma via pública ou um terreno baldio… (Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1984, p. 632.
[6] “A separação de domínios pode dar-se por qualquer título negocial (compra e venda, doação, troca, partilha, testamento, etc.) ou por outro título de transmissão (expropriação, usucapião, etc.)” - Pires de Lima e Antunes Varela, cit., p. 635.
[7] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, cit., p. 634.
[8] Cf. Ac. STJ de 13-09-2018, proc. 1021/15.4T8PTG.E1.S1, rel. Maria da Graça Trigo <URL: http://www.dgsi.pt/>.
[9] Rel. João Cura Mariano <URL: http://www.dgsi.pt/>.
[10] Cf., entre outros: Menezes Cordeiro, «Servidão Legal de Passagem e Direito de Preferência», Revista da Ordem dos Advogados, Ano 50 (1990), vol. III, pp. 564 – 567 (“A ‘destinação de pai de família’ é um facto jurídico em sentido estrito. O Direito associa a um certo circunstancialismo a automática constituição da servidão, independentemente de haver uma vontade humana específica e válida, a tanto destinada.”, p. 566); Henrique Mesquita, «Anotação ao Acórdão do STJ de 20.01.2005», Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 135.º, n.º 3936, pp. 145 - 156 (“Sempre que se verifiquem os pressupostos indicados no artigo 1549.º do Código Civil, a servidão constitui-se por força da lei, independentemente de saber se o alienante e o adquirente quiseram que assim acontecesse. O alienante não pode vir alegar que não teve a vontade de que a servidão se constituísse. E os efeitos indicados no artigo 1549.º produzem-se mesmo que se prove que o adquirente não conhecia a existência dos sinais reveladores da relação de serventia — prova evidente de que não é necessário qualquer acordo de vontades, nem sequer um acordo tácito.”, pp. 151-152”).
[11] Vide, entre outros, os Acórdãos do STJ de 20.01.2005, proc. 04B3748 (Rel. Noronha de Nascimento) – no qual se pode ler “[a] constituição de servidão por destinação de pai de família não pressupõe qualquer manifestação de vontade nesse sentido bastando tão-só a verificação objectiva dos requisitos legais, mas a obstaculização à sua constituição (ou seja à eficácia ope legis da ocorrência objectiva dos requisitos) já a pressupõe, exigindo declaração de vontade nesse sentido como se constata da parte final do art.º 1549” <URL: http://www.dgsi.pt/> – e de 15.03.2005, proc. 05B287 (Rel. Ferreira de Almeida) – no qual, entre o mais, se refere: “[s]eja como for, sempre que se verifiquem os pressupostos do artº 1549º do C. Civil, a servidão por destinação do pai de família (por destinação do anterior proprietário) constitui-se, não por acto negocial, mas sim por força da lei, independentemente de saber se o alienante e o adquirente quiseram que assim acontecesse. / O alienante não pode vir alegar que não teve a vontade de que a servidão se constituísse, porque a sua vontade é pura e simplesmente irrelevante” <URL: diariodarepublica.pt/>.
[12] «Da servidão por destinação do pai de família», Cadernos de Direito Privado, n.º 73 (janeiro – março, 2021), p. 7-8.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela (cit., p.635) depois de observarem também que “a servidão resultante da verificação dos pressupostos indicados no artigo 1549.º não é uma servidão legal” classificam a mesma como “uma servidão voluntária, que se constitui no preciso momento em que os prédios ou as fracções de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes”, esclarecendo, todavia, que com isso não consideram que ela resulte de uma declaração negocial, mas sim que “assenta num facto voluntário (a colocação do sinal ou sinais aparentes e permanentes)” cujos efeitos ou relevância são determinados pela lei.
[14] Por idêntica ordem de razões, tem sido defendido na nossa jurisprudência, ainda que relativamente a questão distinta daquela que ora nos ocupa, que a servidão por destinação do pai de família, devido à sua natureza, não se pode extinguir por desnecessidade (cf. Ac. RL 10-12-2009, proc. 10894/06.0TMSNT.L1-6, rel: Granja da Fonseca; Ac. RP 12-07-2017, proc. 3546/15.2T8LOU.P1, rel: Rui Moreira; Ac. RP 23-05-2024, proc. 836/21.9T8AGD.P1, rel: Ana Vieira.