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ANULAÇÃO DE SENTENÇA ARBITRAL
PRINCÍPIOS DA IGUALDADE DE TRATAMENTO E DA IMPARCIALIDADE
Sumário
I - Os princípios da igualdade de tratamento e de imparcialidade impõem que se permita a ambas as partes o exercício dos seus direitos no processo e, em especial, de audição, de argumentação e de produção de prova, sem interferir na liberdade de julgamento do tribunal relativo à procedência dos argumentos de uma parte e à improcedência das razões da outra. II - Não cabe na acção de anulação de sentença arbitral, em regra, a apreciação do mérito da decisão, seja quanto à fundamentação jurídica, seja a respeito da convicção sobre a matéria de facto.
Texto Integral
Anulação Decisão Arbitral 294/24.6YRPRT
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):
Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca
2.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva
RELATÓRIO.
A..., LDA., com o NIPC ...26 e sede na Rua ..., no Porto, intentou a presente acção de anulação de sentença arbitral, nos termos do artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, contra AA e BB, ambos residentes na Urbanização ..., Edifício ..., em ..., ....
Versou a decisão do Tribunal Arbitral do Consumo - CICAP – Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, proferida em 12 de agosto de 2024, que condenou a agora autora a pagar aos ora réus, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia global de 503,11 Euros, e a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 150,00 Euros.
Para o efeito e em síntese, afirmou que a sentença proferida é violadora de princípios fundamentais que determinam a sua anulação, pois apenas deu voz a uma versão dos factos, a versão dos réus, apesar dessa versão ter várias incongruências e omissões, o que evidencia uma manifesta desigualdade no tratamento das partes e na forma como as provas foram analisadas e valoradas, bem como uma ausência de independência e imparcialidade do arbitro ao longo de todo o processo, infringindo o disposto no artigo 30.º, n.º 1 da LAV, ao não serem as partes tratadas com igualdade e imparcialidade.
Por outro lado, pela omissão de pronúncia sobre questões que deveriam ser objeto de produção de prova: variedade de alimentos consumidos, causa de produção dos hipotéticos danos e da responsabilidade da Autora na sua produção.
Neste conspecto, segundo defende, o tribunal arbitral sustentou a sua decisão através da invocação da presunção judicial, quanto ao nexo de causalidade entre um facto e um dano, mas em momento algum descreve qual o facto que deu origem ao dano, apenas referido que a intoxicação alimentar sucede pela ingestão de marisco. Porém, a simples ingestão de marisco não é causa bastante para provocar uma intoxicação alimentar, não resultando da sentença a razão para o marisco ser a origem de uma intoxicação alimentar, e a prova produzida que sustentasse esse facto.
Juntou, quanto ao essencial, cópia certificada da decisão arbitral e o relatório clínico referente aos réus datado de 8/7/2024.
Devidamente citados, os réus não deduziram contestação.
Estão verificados todos os pressupostos de regularidade da instância.
Dispensados os vistos, ao abrigo do disposto no art. 657.º/4 do CPC, cumpre proferir decisão sobre o mérito do pedido.
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QUESTÕES A APRECIAR.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, este Tribunal deve apreciar se a decisão arbitral violou o dever de imparcialidade e de igualdade no tratamento das partes e na valoração das provas e, bem assim, o dever de pronúncia e da devida fundamentação relativamente a factos essenciais para a decisão da causa.
Na afirmativa, se essas infracções ou alguma delas é causa de anulação da referida decisão.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Considerando a alegação da autora, na parte que assume natureza factual, e os documentos que apresentou, cujo teor e autenticidade não suscita dúvidas, nem foram impugnados, são os seguintes os factos que estão provados e cumpre considerar, que textualmente se extraem daquela alegação e prova documental, com potencial relevância para a decisão da causa: 1. Em 19 de fevereiro de 2024, pelos réus foi apresentada reclamação junto do Tribunal Arbitral do Consumo - CICAP – Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto. 2. Pediram que a ora autora fosse condenada a:
a) Devolver-lhes a quantia paga pela ceia, 112,24 Euros,
b) Pagar-lhes as despesas hospitalares no valor de 390,87 Euros.
c) Pagar-lhes uma indemnização por danos não patrimoniais, radicando estes na dor, no mau estar, no desconforto e na ineptidão para o trabalho, no valor de 1000,00 Euros para cada um. 3. Para tanto e em síntese, alegaram que encomendaram uma ceia para a noite de Natal de 2023, destinada a duas pessoas, no estabelecimento da autora, de que faziam parte camarões tigre, combinado de mar (sapateira recheada, gambas e mexilhões) e ostras, levantada naquele estabelecimento no dia 24 de dezembro de 2023, pelas 15:54:02, e que depois da ingestão, apresentaram vómitos, náuseas e disenteria, com tal gravidade que tiveram de se dirigir ao Hospital, onde foram assistidos, tendo ficado algumas horas a soro e tendo-lhes sido ministrados medicamentos. 4. Frustrada a via da mediação, as partes foram notificadas da data para a realização do julgamento, bem como, da possibilidade de apresentarem prova testemunhal e, ainda, no caso da autora, da possibilidade de apresentação de contestação. 5. Na sequência, a autora apresentou contestação à reclamação apresentada, defendendo, entre o mais, que não foi o marisco que comercializou [e em relação ao qual os Reclamantes fazem referência] que foi a origem ou causa adequada da indisposição de saúde dos réus, tanto mais que atendendo à época festiva, vendeu vários produtos do mesmo lote, conforme as encomendas, e não recebeu de parte dos seus clientes e consumidores, muitos deles habituais, reclamação quanto à qualidade dos produtos, que levantada a encomenda, o produto e o controlo saíram da sua esfera e, por fim, que são inúmeros os alimentos que podem provocar as indisposições sofridas. 6. Em 12 de agosto de 2024, pelo identificado tribunal arbitral, foi proferida sentença arbitral que condenou a autora a pagar aos réus, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia global de 503,11 Euros, e a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 150,00 Euros. 7. A decisão arbitral julgou provados os seguintes factos:
A. Em 23/12/2023, a Reclamante adquiriu à Reclamada, no exercício da actividade económica desta, uma ceia para a noite de Natal, composta por Camarões tigre, um combinado de mar (sapateira recheada, gambas e mexilhões) e ostras. B. A ceia referida no item anterior destinou-se a ser consumida por duas pessoas — os Reclamantes. C. O negócio provado no item "A" foi celebrado no estabelecimento da Reclamada, designado de Marisqueira ...; D. Pela ceia provada em "A" a Reclamante pagou à Reclamada a quantia de 112,24€ E. A ceia mencionada em "A" foi entregue pela Reclamada à Reclamante, no supra referido estabelecimento daquela, no dia 24 de Dezembro, às 15:54horas. F. Imediatamente após ter recebido a aludida ceia de Natal, nas circunstâncias de tempo e lugar provadas no item anterior, a Reclamante dirigiu-se para a sua residência, onde colocou, de imediato, a dita refeição no frigorifico. G. Os Reclamantes ingeriram a referida ceia nessa noite de 24 para 25 de Dezembro de 2023. H. Algumas horas após a ingestão da referida ceia, os Reclamantes sofreram vómitos, náuseas e disenteria. I. Em consequência do provado no item anterior, os Reclamantes sentiram, também, mal-estar, dor e desconforto. J. Em virtude da agressividade dos sintomas referidos nos dois itensanteriores, os Reclamantes tiveram necessidade de serem examinados clinicamente, tendo, para isso, no dia 26/12/2023, recorrido ao Hospital, ..., em virtude da greve que estava a decorrer no Sistema Nacional de Saúde. K. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no item anterior, os Reclamantes foram diagnosticados com uma intoxicação alimentar L. A intoxicação alimentar provada no item anterior foi causada por alimentos que faziam parte da referida ceia de natal adquirida à Reclamante. M. Ainda nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em "J" e devido ao provado nos dois itens anterior, os Reclamantes foram submetidos a exames médicos, analises clínicas e tomaram soro e medicação. N. Pela assistência e cuidados médicos provados no iten anterior, prestados pela unidade de saúde identificada em "J" os Reclamantes pagaram a essa unidade de saúde 390,87€. A saber: A Reclamante pagou 118,44€ e o Reclamante pagou 272.43€. O. Em consequência do provados nos itens "H', "I", "K", "L" e "M", a Reclamante exarou no livro de reclamações eletrónico da Reclamada uma reclamação. P. A Reclamada não respondeu à reclamação referida no item anterior. Q. A Reclamada é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de restaurante tipo tradicional. 8. Os restantes factos foram julgados não provados. 9. Na fundamentação da matéria de facto, nessa decisão, consta: decisivo para a prova dos factos acima dados como provados e para a formação da convicção do tribunal foram, desde logo, as declarações da Reclamante e os documentos a seguir indicados (…): a) O documento — Fatura Recibo — com o no FR 1/11210, datado de 24/12/2023, do qual resulta alimentos que compuseram a ceia identificada em "A" e o preço provado em D. b) os documentos - Faturas - com os n.os FT 2023/147974; FT 1--PG 2023/147975; FT 1--PG 2023/147979 e FT HPG 2023/147980, e o documento, intitulado "Medicação Ativa", todos datados de 26/12/2023, dos quais resulta que os Reclamantes. nesse dia, foram examinados clinicamente no Hospital, ..., tendo aí recebido assistência e cuidados médicos (…) c) Os documentos — Informação Clínica — com o nºs V....69 e V....98, ambos datados de 26/12/2023 dos quais resultam as queixas, sintomas e exames de diagnóstico apresentados pelos Reclamantes quando, nesse dia, foram examinados clinicamente naquele Hospital, ... (...). d) O documento — Relatório Clínico — datado de 0807/2024, do qual resulta que os Reclamantes foram observado na urgência daquela unidade de saúde (...), em 26/12/2023, com as queixas e sintomas provadas em "H" e "I"; que tais sintomas indicavam a existência de uma intoxicação alimentar com origem nas 24 a 48 horas prévias ao início dos sintomas - 'l da manha do dia 26 de Dezembro —, hiato temporal esse que compreende o momento em que a ceia de natal — noite de 24 para 25 de Dezembro — ocorreu. e) O Documento — Reclamação — com o no ROR0)...87, datada de 2023-12-27, apresentado pela Reclamante no livro de reclamações da Reclamada. 10. Consta ainda: “No que às declarações da Reclamante diz respeito, o seu depoimento foi esclarecedor e objectivo, tendo a Reclamante esclarecido ao tribunal os factos acima considerados como provados. Assim, da análise conjugada das declarações da Reclamante com o teor dos documentos acima referidos e da ausência de elementos probatórios que os infirmem, não teve dúvidas este tribunal em considerar provados e não provados os factos que acima considerou como tal”. 11. Bem como: “Apesar de nos documentos juntos aos autos não constar expressamente qual o alimento que causou a intoxicação alimentar aos Reclamantes, da análise ponderada e conjugada das declarações da Reclamante com o teor dos documentos acima mencionados, associado, ainda, ao facto de ambos os Reclamantes terem consumido, juntos, a mesma ceia adquirida à Reclamante e ambos terem sentidos os mesmos sintomas, no mesmo dia, à mesma hora, não tem dúvidas este tribunal que os Reclamantes sofreram efectivamente uma intoxicação alimentar causada por algum dos alimentos (mariscos) que compunham a mencionada ceia, tendo tal intoxicação causado nos Reclamantes os sintomas provados em "H" e "I", e levado a que tivessem de recorrer a cuidados médicos e tomar medicação. De qualquer forma, a esta convicção sempre chegaria o tribunal por via, também, de uma presunção judicial, na esteira do douto AC. do TRL de 30-09-2014, proferido no proc. no 1415/07.9TCLRS.L1-1, acessível em (…). 12. Finalmente, refere ainda a sentença arbitral que “a Reclamada nenhuma prova produziu que infirmasse os factos acima considerados como tal. Das declarações prestadas em audiência pelo gerente da Reclamada e pela testemunha, CC, trabalhador da Reclamada, nada resultou no sentido de informar os factos acima considerados provados. Apesar da testemunha CC ter referido no seu depoimento que, até serem vendidos, os mariscos ficam no frigorifico, a própria testemunha acabou, também, por admitir que no Natal se tinham de adaptar, dando, por isso, a entender que no natal (dada a quantidade de pedidos que recebem) os mariscos poderão ter que sair do frigorífico mais cedo. Por outro lado, tal afirmação de que "até serem vendidos, os mariscos ficam no frigorifico" foi negado pela Reclamante que afirmou que esta mesma testemunha, a quando da negociação e compra da mencionada ceia, lhe mostrou mariscos que não estavam congelados. Por tudo isto, não nos mereceu credibilidade o depoimento da referida testemunha.
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Não existem factos não provados e este Tribunal não se pronuncia nesta sede, relativa à matéria de facto, sobre a restante alegação da autora, por constituir matéria de enquadramento jurídico ou assumir natureza conclusiva.
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O DIREITO.
Dispõe o art. 46.º/1 da Lei da Arbitragem Voluntária, consagrada na Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, que salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 39.º, a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação, nos termos do disposto no presente artigo.
Por outro lado, segundo o art. 46.º/3, al. a), ponto ii), a sentença arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual competente, para além de outros motivos, se a parte que faz o pedido demonstrar que houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio.
Entre os princípios fundamentais estabelecidos no art. 30.º/1, conta-se o contraditório, pois o demandado tem de ser citado para se defender, nos termos da alínea a), e porque em todas as fases do processo tem de ser garantida a observância desse princípio, salvas as excepções previstas na presente lei, de acordo com a alínea c).
Tal como está incluído o essencial princípio do igual tratamento, visto que as partes devem ser tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final (al. b) do art. 30.º/1 da LAJ).
Para além disso, importa sublinhar a natureza taxativa dos fundamentos da anulação da decisão arbitral, como resulta, desde logo, do emprego pelo legislador do adjectivo só no art. 46.º/3 da LAV: a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se (…).
O que, aliás, encontra-se definido em inteira sintonia, como reconhece a jurisprudência, com “o carácter profundamente restritivo dos fundamentos legais que habilitam a pedir ao tribunal estadual que anule a decisão proferida pelo tribunal arbitral” e que “constitui precisamente a afirmação da própria independência e autonomia da jurisdição arbitral” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/9/2020, tirado no processo nº661/18.4YRLSB.S1, relatado por Ilídio Sacarrão Martins e disponível em texto integral na base de dados da DGSI em linha).
Finalmente, destaca-se ainda, em concordância com a referida jurisprudência, a característica da simplicidade, visto que “o processo arbitral deve por natureza ser simples, directo à sua finalidade e o menos formal possível, ou dito de outro modo, apenas suficientemente formal até ao ponto em que o cumprimento dos princípios fundamentais do processo arbitral o exijam e o escopo final do processo e a vontade das partes, expressa no momento e no local próprios – a convenção de arbitragem -, o requeiram” (cfr. citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/9/2020).
É à luz destas regras essenciais que cumpre determinar, em primeiro lugar, se a decisão arbitral violou os deveres de imparcialidade e de igualdade no tratamento das partes.
Na perspectiva da autora, a sentença proferida é violadora de princípios fundamentais que determinam a sua anulação, pois apenas deu voz a uma versão dos factos, a versão dos réus, apesar dessa versão ter várias incongruências e omissões, o que evidencia uma manifesta desigualdade no tratamento das partes e na forma como as provas foram analisadas e valoradas, bem como uma ausência de independência e imparcialidade do arbitro ao longo de todo o processo.
Vistos os factos provados, porém, não se vislumbra qualquer ofensa ao princípio da igualdade das partes e da imparcialidade.
Assim, os factos apurados e o teor da sentença demonstram que, para além de ter procurado a mediação, o que necessariamente implica o contacto com ambas as partes, o tribunal arbitral notificou a autora, na qualidade de reclamada, para o oferecimento de contestação, o que ela fez, tal como a informou devidamente para apresentar prova, o que também foi feito.
Da mesma forma, a autora/reclamada participou no julgamento e nele teve oportunidade de produzir a prova que requereu, desde logo, através da prestação de declarações do seu gerente e do depoimento da testemunha que indicou, funcionário da empresa.
Por fim, verifica-se que os fundamentos da contestação e os meios de prova produzidos pela autora/reclamada foram analisados e tratados detalhadamente pelo tribunal arbitral na sentença, identicamente ao que fez com a parte contrária.
Ora, é sobretudo em face destas circunstâncias que têm de ser vistos os princípios da igualdade de tratamento e de imparcialidade, com o sentido, portanto, de impor ao tribunal arbitral que trate o que é igual de forma idêntica e de o impedir que intervenha arbitrariamente em favor de uma parte e em detrimento da outra.
Para significar, pois, que as partes “são iguais em direitos, deveres, poderes e ónus, estando colocadas em perfeita paridade de condições e gozando de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2003, da autoria de Azevedo Ramos no âmbito do processo 04A1417 e disponível na citada base de dados).
Mas já não significando que, na decisão final, o tribunal esteja vinculado a decidir igualitariamente em benefício de ambas as partes ou fique impedido de dar razão a uma das partes, em desfavor da outra.
Seja quanto aos factos, de acordo com a sua prudente convicção ou segundo regras específicas de direito probatório, seja quanto ao direito, contanto que através de decisão fundamentada, é inerente à actividade do tribunal, arbitral ou estadual, a possibilidade de decidir pela procedência dos argumentos de uma parte e pela improcedência das razões da outra.
Em consequência, tem de concluir-se, atentos os factos apurados, que o tribunal arbitral assegurou, ao longo de todo o processo, um estatuto de total igualdade entre partes no exercício dos seus direitos e, em especial, de audição, de argumentação e de produção de prova em julgamento, sem prejuízo de, no momento da decisão, ter proferido sentença, como lhe era perfeitamente lícito, que no caso foi de sentido mais favorável aos interesses dos reclamantes.
Improcede, pois, a imputação de violação do dever de imparcialidade e de igualdade no tratamento das partes e na valoração das provas.
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Em segundo lugar, a autora critica a decisão arbitral com fundamento em omissão de pronúncia sobre questões que considera essenciais (variedade de alimentos consumidos, causa de produção dos hipotéticos danos e da responsabilidade da Autora na sua produção).
E porquanto, segundo entende, o tribunal se sustentou na invocação da presunção judicial, quanto ao nexo de causalidade entre um facto e um dano, mas em momento algum descreve qual o facto que deu origem ao dano, apenas referido que a intoxicação alimentar sucede pela ingestão de marisco. Porém a simples ingestão de marisco não é causa bastante para provocar uma intoxicação alimentar, não resultando da sentença a razão para o marisco ser a origem de uma intoxicação alimentar, e a prova produzida que sustentasse esse facto.
Todavia, não nos é possível concordar com a ideia de que a decisão arbitral tenha incorrido em omissão de pronúncia ou que, nos termos do art. 46.º/3, ponto v), da LAV, tenha deixado de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar.
Tal como sucede no processo civil comum, face às disposições equivalentes previstas sobre o dever e a omissão de pronúncia nos arts. 608.º/2 e 615.º/1, al. d), do CPC, as questões cuja falta de apreciação é susceptível de gerar nulidade, identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Está em causa, pois, noutra terminologia, mas com idêntico significado, a necessidade de conhecimento pelo tribunal das questões temáticas centrais, as quais importa não confundir com factos, argumentos, razões ou considerações (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/5/2024, relativo ao processo nº3489/22.3T8VFR e acessível no mesmo sítio).
Ora, as questões que a autora suscita nestes autos, relativas à variedade de alimentos consumidos, à causa de produção dos danos e à responsabilidade na sua produção, assumem a natureza de factos e argumentos que invocou em sede de contraprova (art. 346.º do CC).
Ou seja, matéria que foi trazida ao processo com o objectivo de tornar duvidosos os factos, esses sim essenciais, em que se baseou a reclamação dos agora réus e, sobretudo, o facto verdadeiramente decisivo de os alimentos servidos pela autora terem provocado os vómitos, náuseas e demais afectações de saúde aos réus que justificaram o seu tratamento hospitalar.
Por isso, a matéria invocada pela autora no processo arbitral, destinada a desmentir os factos essenciais da pretensão dos réus, não constitui questão central cuja falta de apreciação específica traduza omissão de pronúncia.
Tal como essa falta de apreciação específica de factos e argumentos da autora não é susceptível de inquinar, por nulidade, a fundamentação da decisão arbitral.
Justifica-se, pois, neste plano e com total cabimento para estes autos, citar o Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 5/3/2024, segundo o qual, “não obstante a amplitude do dever de fundamentação das decisões arbitrais não possa ser definida por decalque do dever sinónimo aplicável às sentenças dos tribunais estaduais, devendo ter em conta as especificidades do processo arbitral e os seus objetivos de celeridade, simplicidade e informalidade, ainda assim a fundamentação deve, em qualquer caso, ter o conteúdo mínimo exigível que permita apreender o sentido, as razões e o percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova”.
Todavia, “o vício de nulidade por falta de fundamentação [art.º 46º, nº 3, al. a), vi) da LAV] da sentença arbitral-invocável através da ação de anulação, só pode ser declarado nos casos em que exista a falta absoluta de motivação”, pois “sempre que a motivação seja deficiente deve essa deficiência ser suprida através de recurso”.
Concluindo estar “suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respetivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando percetível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio” (aresto relatado por Manuel D. Fernandes, no âmbito do processo 319/23.3YRPRT e disponível na citada base de dados).
É, precisamente, segundo pensamos, o que ocorre no caso em apreço, atentos os factos apurados nos pontos 6 e seguintes.
Por outro lado, relativamente ao recurso, pelo tribunal arbitral, a presunções judiciais no apuramento dos factos, dois motivos concorrem, se bem pensamos, no sentido da improcedência da pretensão da autora.
Por um lado, considerando o facto nº11, não acompanhamos a tese da autora de que ocorreu recurso a presunção judicial quanto ao nexo de causalidade entre um facto e um dano, sem em momento algum se descrever qual o facto que deu origem ao dano, apenas referido que a intoxicação alimentar sucede pela ingestão de marisco.
Em atenção à fundamentação reproduzida naquele ponto, entendemos que, estando assente ou demonstrado, por prova directa, que os réus ingeriram os alimentos servidos pela autora e que, após a ingestão, padeceram de maleitas que os obrigaram a intervenção hospitalar, o único facto que resultou de presunção judicial é que foram aqueles alimentos que determinaram as maleitas.
Na construção da autora, não há prova directa nem do facto nem do nexo causal, mas a nosso ver foi apenas este nexo que resultou de presunção judicial, ou seja, de ilação que o julgador extraiu de um facto conhecido (objecto de prova directa) para firmar um facto que sem ela seria desconhecido (art. 349.º do CC).
E em segundo lugar, decisivamente, porque a argumentação da autora no sentido de que a simples ingestão de marisco não é causa bastante para provocar uma intoxicação alimentar, não resultando da sentença a razão para o marisco ser a origem de uma intoxicação alimentar, e a prova produzida que sustentasse esse facto, já representa, a nosso ver, apreciação de mérito sobre os factos provados.
No fundo, a autora discorda que a prova tenha sido suficiente para concluir que, de facto, as afectações de saúde sentidas pelos réus/reclamantes tenham resultado dos alimentos que lhes serviu.
A verdade, porém, é que, como resulta do art. 46.º da LAV, a discordância de mérito da decisão arbitral não é fundamento idóneo para a sua anulação.
Neste sentido, salienta a jurisprudência que “não cabe assim na Ação de Anulação da Sentença Arbitral a impugnação do mérito da decisão – nem quanto à matéria de facto, nem quanto à matéria jurídica”.
Por isso, se às partes está vedada, por qualquer motivo, a “possibilidade de recurso da decisão arbitral, têm de sujeitar-se à decisão dos árbitros em tudo quanto exceda as meras questões formais - violação de princípios e regras procedimentais, taxativamente previstas na LAV” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/11/2023, da autoria de Maria Amália Santos, relativo ao processo 122/23.0YRGMR e acessível no referido sítio em linha).
Tal como, aliás, resulta coerente com o artigo V da Convenção de Nova Iorque, relativa ao reconhecimento e execução de decisões arbitrais no plano internacional e a sua regra essencial “da não revisão de mérito, ou seja, a regra de que está vedado ao tribunal ao qual é dirigido o pedido de reconhecimento, fazer uma nova apreciação do litígio” (cfr. Maria Inês Araújo, O recurso à arbitragem no comércio internacional: o caso das empresas portuguesas, p. 42) e sendo certo que “a NLAV (Nova Lei de Arbitragem Voluntária, emergente da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro) é aplicada não só às arbitragens domésticas, internas, nacionais ou comuns, como também às internacionais” (cfr. Armindo Ribeiro Mendes, A nova lei de arbitragem voluntária e as formas de impugnação, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. II, p. 712).
Em qualquer caso, pois, a nova apreciação do litígio está arredada sobretudo por respeito à autonomia da jurisdição arbitral, levando a “afirmar que a tramitação adotada também visa – como no recurso extraordinário – a anulação de uma decisão transitada em julgado, levando a cabo um controlo formal da convenção de arbitragem e de todo o processo arbitral”, de modo que “só quanto a um dos fundamentos da anulação, a violação da ordem pública internacional do Estado português, poderá ocorrer um limitado controlo de mérito da decisão” (A. Ribeiro Mendes, Ob. cit., p. 743).
No mesmo sentido e igualmente por respeito à autonomia da jurisdição arbitral, dispõe o art. 46.º/9 da LAV que o tribunal estadual, mesmo anulando a sentença arbitral, não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas
Em consequência, argumentos como a falta de prova suficiente ou de errónea demonstração de certos factos não têm cabimento legal, a nosso ver, para justificar a acção de anulação da decisão arbitral.
Improcedendo igualmente, assim, a segunda questão suscitada pela autora, relativa à afirmada, e não demonstrada, violação, pela decisão arbitral, do dever de pronúncia e da devida fundamentação relativa a factos essenciais para a causa.
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DECISÃO: Com os fundamentos expostos, julga-se improcedente a presente acção de anulação e, em consequência, confirma-se a decisão arbitral. Custas pela autora, atento o seu decaimento, fixando-se o valor da acção em € 653,11, que a decisão arbitral fixou a favor dos réus (arts. 297.º e 306.º do CPC).