I - A admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante está dependente da indiciação nos autos de factos objectivos que nos permitam concluir que a devedora pautou o seu comportamento, anterior ou actual, pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé, designadamente no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, de entre os quais está o dever de colaboração e de fornecer informações relevantes para o processo (art. 83º do CIRE).
II - Se numa fase incipiente do processo, prévia ao despacho liminar de concessão da exoneração do passivo restante, a devedora/insolvente omite já ter sido anteriormente declarada insolvente, omite a indicação do seu principal credor já reconhecido no processo de insolvência anterior, presta informações erradas quanto aos demais credores, e omite que no referido processo havia sido cessada a concessão da exoneração por violação de deveres de informação, é de concluir que resultam dos autos dados objectivos de que a insolvente omitiu informações relevantes, agindo com culpa grave, contrariando tal comportamento a lisura e transparência que se lhe impunha, circunstâncias que conduzem ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante com base no art. 238º nº 1 al. g) do CIRE.
Como acima afloramos, a alteração pretendida quanto à transição da matéria de facto vertida no ponto 15 dos factos provados para os factos não provados é desnecessária, porque irrelevante e inconsequente para a alteração da decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, porquanto, ainda que se alterasse a matéria de facto tal qual pretendido pelo Apelante isso em nada alteraria a decisão no segmento sob recurso.
Tal é bastante para desatender a impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto à pretendida inclusão nos factos não provados da matéria de facto dada como provada no ponto 15.
De todo o modo, sempre se diga que o Apelante não terá percepcionado que o que foi dado como provado não foi que a insolvente tinha aquelas despesas, mas apenas e só que “a devedora na petição inicial refere que tem as seguintes despesas”e isso está correcto pois que a devedora alegou ter aquelas despesas no requerimento inicial.
ii. Pontos de facto não provados:
“- Os créditos reconhecidos nesses autos anteriores de insolvência e os reconhecidos no presente processo de insolvência são exatamente os mesmos.
- A devedora violou, com dolo ou culpa grave, os seus deveres de informação e colaboração, omitindo ao Tribunal o seu anterior processo de insolvência ou que ali tenha requerido a exoneração, e que vira cessado antecipadamente e tendo omitido deliberadamente credores.”
Pretende o Apelante que se dê tais factos como provados, defendendo que quanto ao primeiro existe prova documental de que todos os créditos reconhecidos no presente processo de insolvência são exactamente os mesmos que haviam sido reconhecidos no anterior processo de insolvência da devedora, só os credores reclamantes são distintos por entretanto terem existido cessões de créditos, socorrendo-se para o efeito do Relatório do art. 155º do CIRE apresentado pelo Administrador de Insolvência.
Quanto ao segundo ponto dos factos dados como não provados o Apelante sustenta que com os documentos juntos com a petição inicial a devedora assinou, pelo seu próprio punho, um documento onde afirma expressamente não ter conhecimento de nenhuma injunção/execução contra si, o que é falso, bem como não fez qualquer referência ao anterior processo de insolvência no anexo três também junto com aquele articulado.
Vejamos a motivação do tribunal a quo exarada na decisão recorrida quanto aos factos por si considerados não provados:
“Quanto aos factos dados como não provados, o Tribunal deu-os como tal, por falta de prova bastante. Designadamente, o Tribunal dera como não provado a alegada violação dos deveres de informação e colaboração, com dolo ou culpa grave, porquanto a devedora juntou à petição inicial o seu assento de nascimento e ali constam aqueles atos de registo, pelo que não se pode considerar que a devedora tenha violado o dever de informação ou mesmo que tenha omitido tal facto ao Tribunal. Ademais, quando solicitando esclarecimentos à devedora pelo Tribunal, a devedora prestou esclarecimentos, prestando a sua colaboração.
Também não ficara provada a identidade total dos créditos, desde logo porque neste processo há créditos da Autoridade Tributária que se venceram em data posterior.”
Cremos que relativamente ao primeiro ponto dos factos não provados não podemos acompanhar a argumentação do Apelante porquanto o próprio relatório apresentado pelo AI de que o Apelante se socorre para impugnar este ponto de facto (documento que o tribunal a quo atendeu para dar como provados outros factos) menciona que os créditos reconhecidos na presente insolvência não são exactamente os mesmos que foram reconhecidos no anterior processo de insolvência da devedora, e essa diferença não radica na falta de identidade de credores quanto ao crédito aqui reclamado por B..., SA porque esta veio substituir o credor Banco 1..., SA (ponto 9 dos factos provados) por força da cessão de créditos, sendo nesse caso o crédito o mesmo, mas radica nos créditos da AT, porquanto, como resulta da certidão por esta junta aos autos e a que o AI fez referência no referido relatório, aqui foram reclamados e reconhecidos tributos e coimas que se venceram entre 31.08.2012 e 12.01.2017, pelo que os mais recentes venceram-se necessariamente em momento posterior ao reconhecimento de créditos na insolvência anterior (cuja declaração data de junho de 2015), tendo sido com base nesse fundamento que o tribunal a quo motivou a decisão de dar como não provado esse facto, o que se mostra correcto.
Quanto ao segundo ponto dado como não provado afigura-se-nos desde logo que é conclusivo e como tal não deve constar nem do elenco dos factos provados, nem dos factos não provados, sendo apenas importante que os factos concretos demonstrativos da omissão de informações pela devedora estejam vertidos na factualidade considerada na decisão recorrida e dos autos se possa inferir se a alegada omissão pode ser imputada à insolvente a título de culpa grave ou de dolo.
E parece-nos que para tal basta a factualidade dada como provada sob os pontos 3 a 6 e 8 a 12 devidamente articulada entre si, conjugada com a análise do requerimento inicial apresentado pela devedora em contraposição com o Relatório emanado do AI para efeitos do art. 155º do CIRE, materialidade essa que devidamente ponderada à luz das regras da experiência comum será suficiente para retirarmos uma conclusão em sede de mérito.
Deste modo elimina-se do elenco dos factos o segundo ponto dos factos considerados como não provados pelo tribunal a quo.
Procede, em parte, este segmento recursivo.
Se o pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferido.
O regime da exoneração do passivo restante, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, tributário do direito americano (e recebido no direito alemão) e da ideia de fresh start, ou novo arranque, que tem o propósito de libertar o devedor das suas obrigações, conferindo-lhe a oportunidade de (re) começar do zero.
A exoneração do passivo restante constitui, para o devedor insolvente, uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente a que aludem os referidos arts. 235º e ss do C.I.R.E.[3]
Assim o passivo restante não é mais do que o conjunto dos créditos sobre a insolvência não integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento (neste sentido, Carvalho Fernandes, João Labareda, C.I.R.E. Anotado, Quid Iuris, 2008, pág. 778, anotação 3 e Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 559).
Resulta incontroverso que aos devedores basta formular o pedido de exoneração do passivo restante e declarar expressamente que preenchem os requisitos que permitem essa exoneração e se dispõem a observar todas as condições exigidas nos arts.237º ss do CIRE, tal como o fez a aqui insolvente.
Como perfilha a maioria da Doutrina e Jurisprudência[4], consubstanciando os fundamentos de indeferimento liminar contidos no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, por força do art. 342.º do CC a respetiva alegação e prova compete aos credores ou ao Administrador da Insolvência que a ele se oponham.
Assim defende Luís Menezes Leitão, “a decisão de indeferimento liminar pelo Tribunal deve ser tomada após audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa desta, no prazo de 10 dias após o decurso do prazo de 60 dias após a prolação da sentença que declara a insolvência, a menos que o pedido seja apresentado fora de prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos que constituem fundamento de indeferimento (art. 238º, nº 2). Não ocorrendo nenhuma dessas situações, compete a quem pretenda que não seja concedida a exoneração do passivo restante efectuar a prova dos fundamentos de indeferimento liminar, atenta a sua natureza de factos impeditivos da pretensão do devedor (art. 342º, nº 2, CC).”[5]
No mesmo sentido, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, fazendo alusão a jurisprudência abundante no sentido de considerar os factos constantes das várias alíneas do nº 1 do art. 238º do CIRE como matéria de excepção, cujo ónus de prova recai sobre os credores e o administrador da insolvência.[6]
Conforme consta da decisão recorrida, o tribunal a quo admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que havia sido formulado pela insolvente, pese embora, quer o Administrador de Insolvência, quer o aqui Apelante (credor), terem pugnado pelo seu indeferimento liminar, mediante a invocação dos fundamentos previstos no art. 238º nº 1 al. c), d), e) e g) do CIRE.
Apesar de o Administrador de Insolvência ter pugnado pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante pelas várias razões explanadas no relatório apresentado para efeitos do art. 155º do CIRE, certo é que se conformou com a decisão de admissão proferida pelo tribunal a quo.
O mesmo não aconteceu com o credor aqui Apelante, que na oposição a tal pedido havia acompanhado os fundamentos invocados pelo AI e acrescentara o fundamento previsto na al. c) do art. 238º do CIRE, o qual não se conformou com a decisão de admissão liminar do pedido de exoneração e dela interpôs o presente recurso, reiterando basicamente os argumentos que já havia apresentado.
Deste modo, centraremos a análise do objecto do recurso, tal como o Apelante o fez, na apreciação da verificação ou não no caso em apreço dos fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante consagrados nas alíneas c), d), e), g) do art. 238º do CIRE.
Segundo o supra citado preceito legal, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
c) o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º;
g) o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
Comecemos então pela apreciação do fundamento de indeferimento previsto no art. 238º nº 1 al. c) do CIRE.
O art. 238º nº 1 al. c) do CIRE diz expressamente o seguinte:
O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
Tal como o tribunal a quo consignou na decisão recorrida, não resta qualquer dúvida que, embora a aqui insolvente tenha já sido declarada insolvente em Junho de 2015 e nesse processo de insolvência lhe tenha sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante, no final foi-lhe recusada a exoneração do passivo restante.
Deste modo, é insofismável que a aqui insolvente não beneficiou da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do presente processo de insolvência, estando, pois, em condições de formular esse pedido e de o mesmo lhe ser liminarmente deferido, caso não se verifique nenhum dos demais fundamentos de indeferimento previstos no art. 238º do CIRE.
Faz sentido que um devedor, que se apresenta no período de 10 anos, a pedir mais do que uma vez a sua declaração de insolvência e pretenda das duas vezes alcançar a extinção das suas dívidas com a exoneração do passivo restante, não possa beneficiar dessa exoneração mais do que uma vez, sob pena de se estar a premiar quem não aprendeu com os seus erros e se endividou novamente apesar da oportunidade que lhe fora dada de poder recomeçar do zero, prejudicando assim os interesses legítimos dos credores de conseguirem recuperar, pelo menos em parte, os seus créditos (objectivo que se pensa ter presidido ao fundamento previsto no art. 238º nº 1 al. c) do CIRE).
Porém, salvo o devido respeito, já não fará sentido impedir que recorra a tal benefício da exoneração do passivo restante quem lhe viu ser anteriormente recusado esse mesmo benefício, independentemente de ter dado causa de forma culposa à recusa do anterior pedido de exoneração do passivo restante formulado no primeiro processo de insolvência.
Isto porque a decisão de recusa da exoneração tem inevitavelmente sempre na base uma violação culposa pela insolvente das suas obrigações, como decorre da articulação do art. 244º nº 2 e 243º nº 1 al. a) a c) e nº 3 do CIRE e o legislador ciente disso mesmo não incluiu nos fundamentos de indeferimento liminar do pedido de exoneração a anterior recusa desse mesmo pedido.
Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, escrevem em anotação a esse preceito legal que, “(…) uma pessoa não pode, portanto, beneficiar de duas exonerações do passivo restante no prazo de dez anos. Compreende-se a razão de ser desta limitação. A exoneração do passivo restante constitui uma forma de proteger o devedor e de permitir que este comece uma nova vida, sem estar condicionado pela sua situação financeira anterior. Colocando-se em nova situação de insolvência, num prazo relativamente curto, pressupõe-se que não agiu de forma adequada, com o conhecimento que já tinha, pela experiência, de que a sua situação financeira se poderia agravar.”[7]
Também Alexandre Soveral Martins refere que “desta forma, impede-se que a exoneração do passivo restante seja utilizada com frequência pelo mesmo devedor, repelindo-se o surgimento de «profissionais da exoneração».[8]
Como diz Catarina Serra, trata-se de estabelecer uma «espécie de “quarentena” entre exonerações»[9].
Salienta-se, no entanto, que todos os referidos Autores partem naturalmente do princípio de que a al. c) do nº 1 do art. 238º do CIRE considera fundamento de indeferimento liminar o facto de o devedor já ter beneficiado, nos dez anos anteriores ao início do processo de insolvência, de outra exoneração do passivo restante.
Neste caso a insolvente não beneficiou de qualquer exoneração do passivo restante, já sofreu as consequências decorrentes da sua conduta, pois que tendo dado azo à recusa do anterior pedido de exoneração do passivo restante não beneficiou da extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistiam naquela data (2018- data da decisão de recusa).
Se foi permitido à aqui devedora recorrer novamente a processo de insolvência, como o fez, tendo sido pela segunda vez declarada insolvente nestes mesmos autos por sentença transitada em julgado (assim como foi já declarado encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente), não se tendo insurgido os credores contra tal decisão, e se no anterior processo de insolvência a insolvente não beneficiou da exoneração do passivo restante, afigura-se-nos que não se verifica o impedimento previsto na alínea c) do art. 238º do CIRE que determine o indeferimento liminar de tal pedido[10].
Reitera-se que à devedora bastava formular aquele pedido e declarar expressamente que preenchia os requisitos que permitem a exoneração do passivo restante e se dispunha a observar todas as condições exigidas nos arts.237º ss do CIRE, como o fez a aqui insolvente, incumbindo ao credor que se opôs a tal pedido alegar e provar o fundamento em que alicerça a pronúncia de indeferimento, não se verificando manifestamente no caso em apreço o fundamento que o aqui Apelante/credor alicerçou no art. 238º nº 1 al. c) do CIRE.
Prosseguindo.
Para a verificação do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto na alínea d) do art. 238º do CIRE, necessário se tornaria a demonstração nestes autos do seguinte:
1. que a devedora se tivesse apresentado à insolvência para lá dos seis meses em que se verificou a sua situação de insolvência;
2. que, a ter ocorrido a apresentação para lá desse prazo, isso tenha causado prejuízo efectivo para os credores (não prejuízo presumido);
3. que, a devedora soubesse ou não pudesse ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua condição económica.
Sendo aqueles requisitos cumulativos[11], não bastará, pois, que esteja provado que todos os créditos reclamados e reconhecidos já estivessem vencidos desde 2017.
É certo que, estando dado como provado que o vencimento dos créditos reconhecidos neste processo de insolvência ocorreu mais de seis meses antes da apresentação da devedora à presente insolvência, tendo-se vencido os créditos de B... e de BB em data anterior ao Processo de insolvência n.º 1481/15.3T8STS e que os tributos e coimas reclamados pela Autoridade Tributária venceram-se entre 31.08.2012 e 12.01.2017 (ponto 10 dos factos provados) afigura-se-nos que se poderá concluir com suficiente segurança que em 2017 a devedora estaria impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas- art. 3º nº 1 do CIRE e, como tal, apresentou-se à insolvência para lá dos seis meses em que se verificou a sua situação de insolvência.
Porém, ainda que se admita que o tenha feito para lá dos seis meses em que se verificou a sua situação de insolvência, não nos parece que estejam demonstrados nos autos os demais requisitos exigidos pela alínea d) do art. 238º do CIRE.
Resulta pacífico na maioria da Doutrina e Jurisprudência que se debruçou sobre este tema, que não basta o mero decurso do prazo dos seis meses para que se possa afirmar que essa inobservância do prazo causou prejuízos aos credores, não podendo a eventual apresentação tardia à insolvência constituir presunção de prejuízo para os credores, não sendo a mera contabilização de juros de mora associados ao atraso no pagamento das dívidas suficiente para o efeito, uma vez que se assim fosse, haveria sempre prejuízo, o que acabaria por reconduzir aquela exigência legal a uma mera redundância inconsequente e inútil.
Será, pelo contrário, de exigir uma concreta conduta de agravamento do passivo, designadamente com contração injustificada de novas dívidas ou injustificado extravio ou dissipação de património por forma a reduzir de forma significativa a garantia patrimonial dos credores.
Neste sentido, citamos, entre outros: Ac RP de 5.11.2024, Proc. Nº 8024/23.3T8VNG.P1 subscrito pela aqui Relatora; Ac RP de 22/2/2022, Proc. Nº 3219/14.3TBMTS.P1; Ac STJ de 14/2/2013, Proc. Nº 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1; Ac STJ de 21/3/2013, Proc. Nº 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1 e Ac STJ de 27/3/2014, Proc. Nº 331/13.0T2STC.E1.S1, todos in www.dgsi.pt; Luís Menezes Leitão, A Recuperação Económica dos Devedores, 2ª edição, pág. 139;Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pág. 566/567 e Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, pág. 535/536.
Este último Autor (Alexandre de Soveral Martins), esclareceu que (…) “deve entender-se que o prejuízo para os credores tem que ser provado, não bastando o mero decurso do tempo. A lei exige uma relação causal entre o comportamento do devedor e o prejuízo para os credores. Para que se possa concluir pela existência desse prejuízo, será necessário comparar com o que seria a sua previsível situação se o devedor tivesse cumprido o dever de apresentação ou, não existindo esse dever, se tivesse apresentado nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.”
Tal como referem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[12], “No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Janeiro de 2012 (processo nº 152/10.1TBBRG-E.G1.S1), relator Fonseca Ramos, pode ler-se que “a ratio legis do instituto da exoneração é evitar o colapso financeiro do insolvente pessoa singular, implicando uma moderada transigência com a apresentação intempestiva, ligando-a, apenas reflexamente, ao facto dessa omissão poder ser causadora de prejuízo para os credores”, que “o conceito de prejuízo deve ser interpretado como patente agravamento da situação dos credores que assim ficariam mais onerados pela atitude culposa do insolvente” e que “a apresentação tardia do insolvente/requerente da exoneração do passivo restante, não constitui, por si só, presunção de prejuízo para os credores […] pelo facto de, entretanto, se terem acumulado juros de mora-competindo aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus de prova desse efectivo prejuízo, que se não presume.” No mesmo sentido, v. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de março de 2011 (processo nº 570/10.5TBMGR-B.C1.S1), relator Martins de Sousa, e de 21 de outubro de 2010 (processo nº 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1) relator Oliveira Vasconcelos, havendo ainda numerosíssima jurisprudência das relações no mesmo sentido.
No acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de janeiro de 2010 (processo nº 135/09.4TBSJM.P1), relator Pedro Lima Costa, decidiu-se que “o prejuízo para os credores de que trata[…] [esta alínea] é o que resulta do capital de dívidas contraídas pelo devedor em período posterior ao momento em que a sua insolvência está consolidada e/ou que resulta de dissipação de património pelo devedor nesse mesmo período, reduzindo a garantia patrimonial de todos os credores, ou a garantia patrimonial de alguns credores que não está autorizado a preterir nessa dissipação”.
Da factualidade apurada nos autos não resulta qualquer extravio ou dissipação de património por parte da devedora por forma a reduzir de forma significativa a garantia patrimonial dos credores, nem qualquer concreta conduta de agravamento do passivo, mantendo-se na generalidade os mesmos credores desde 2015 ainda que certamente com acumulação de juros.
Exigia-se ainda a verificação de um elemento subjectivo- a culpa da devedora, traduzida no facto de saber ou não puder ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, não estando demonstrada nos autos factualidade que revele este requisito cumulativo do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Quanto à verificação do circunstancialismo previsto no art. 238º al. e) do CIRE, convém precisar que não estamos no âmbito da utilização das presunções de culpa estabelecidas no art. 186º nº 2 do CIRE, as quais são de aplicar no âmbito do incidente da qualificação da insolvência como culposa, porquanto no âmbito do indeferimento liminar do passivo, mesmo na hipótese mencionada na alínea e) funcionam as mesmas premissas das demais, incumbindo a quem se oponha à admissão liminar do pedido de exoneração a prova do fundamento previsto naquela alínea, isto é, a prova de elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.
Entendemos que a remissão feita para o art. 186º do CIRE restringe-se ao seu nº1, sendo comum na alínea e) do art. 238º e no art 186º nº 1 a menção à “situação de insolvência ter sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
Não obstante, da factualidade apurada não consideramos indiciada com toda a probabilidade a existência de culpa da devedora, na modalidade de dolo ou culpa grave, na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º, conforme exigido pela alínea e) do art. 238º do CIRE.
E tanto assim é que ninguém requereu a abertura do incidente da qualificação da insolvência como culposa.
Finalmente cumpre-nos apreciar da existência ou não do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração previsto no art. 238º nº 1 al g) do CIRE.
Tal como se lê da sentença recorrida, citando Assunção Cristas, na apreciação liminar do pedido de exoneração a conduta do devedor deve ser analisada através da “ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta”. [13]
A admissão liminar daquele pedido estará dependente da indiciação nos autos de factos objectivos que nos permitam concluir se a devedora pautou o seu comportamento, anterior ou actual, pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé, designadamente no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, de entre os quais está o dever de colaboração e de fornecer informações relevantes para o processo (art. 83º do CIRE).
E neste ponto afigura-se-nos que tem razão o Apelante, porquanto resultam dos autos dados objectivos de que a insolvente quando se apresentou à insolvência nos presentes autos e formulou o pedido de exoneração do passivo restante omitiu informações relevantes quer para o processo de insolvência, quer para a decisão a proferir sobre o pedido de exoneração do passivo, informações que eram do seu conhecimento e que podia e devia ter prestado, agindo com culpa grave ao não as ter prestado, contrariando tal comportamento a lisura e transparência que se lhe impunha, circunstâncias que desaconselham a admissão liminar de novo pedido de exoneração.
Tal como já advertia o AI no relatório apresentado para efeitos do art. 155º do CIRE as omissões e discrepâncias entre o declarado pela insolvente e aquilo que se veio a apurar documentalmente é considerável e relevante para o processo, porquanto a insolvente omitiu totalmente que já havia sido declarada insolvente em 1.06.2015 no âmbito do Proc. nº 1481/15.3T8STS (ponto 3 dos factos provados), que naquele processo de insolvência também requerera a exoneração do passivo restante, e que veio a ser proferida decisão de cessação antecipada da exoneração em 14.06.2018 (pontos 4 e 5 dos factos assentes) com fundamento no “art.º 243º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do CIRE- O devedor violou a obrigação que lhe era imposta pelo art.º 239º, n.º 4, al. d) do CIRE.”(violação de deveres de informação).
Para além disso, resulta expresso no referido relatório, e está vertido nos pontos 8 a 11 dos factos provados, que a Insolvente relacionou como credores nos presentes autos a Autoridade Tributária, com crédito indicado de €121,45 e a A..., SA. com crédito indicado de €5.507,29 no entanto, a A..., SA não reclamou qualquer crédito e o valor reclamado pela Autoridade Tributária (€5.769,60) é bastante superior ao indicado pela Insolvente, mas mais grave é que o Apelante já constava da Lista Definitiva de Credores elaborada nos termos do artigo 129º CIRE no âmbito daquele outro processo de insolvência (Processo n.º 1481/15.3T8STS) tendo nele sido reconhecido e a insolvente omitiu este credor na relação por si obrigatoriamente apresentada (violando o art. 24º nº 1 al. a) do CIRE), credor esse que curiosamente é o seu maior credor (o crédito ascende a €21.642,60) e que como não foi indicado como tal só por uma ocasional consulta de edital tomou conhecimento desta insolvência, não tendo sido citado nos termos do art. 37º nº 3 do CIRE como seria se tivesse sido indicado no requerimento inicial.
Tal como expressivamente escreve o AI no seu relatório “salvo melhor opinião, atento o exposto afigura-se evidente que a Insolvente não poderia ignorar quer o valor dos créditos, as datas de vencimento, ou os seus titulares. Na verdade, não só as discrepâncias são significativas (tanto quantitativa, como temporalmente), como já decorriam da situação insolvencial em apreço em 2015”.
“Não poderá deixar de considerar-se que incumpre os deveres de informação e colaboração estabelecidos no C.I.R.E. (cfr. art. 238º, nº 1, g) do C.I.R.E.) o devedor que no âmbito do processo de insolvência (…) presta erradas informações sobre os seus débitos.”[14]
É certo que foram solicitados esclarecimentos à devedora pelo tribunal a quo e que esta informou o que consta do ponto 12 dos factos provados, admitindo as falhas que lhe foram apontadas mas aligeirando a sua responsabilidade ao tentar transferi-la para a patrona que lhe fora nomeada, bem sabendo que a responsabilidade por tais omissões não deixa apesar de tudo de ser sua até porque os anexos à petição inicial foram assinados pelo seu punho tendo pleno conhecimento das apontadas omissões e das inverdades neles apostos, mormente quanto aos credores e à inexistência de injunções/execuções que posteriormente veio a admitir existirem.
Nem a mera junção da certidão do registo civil contendo o averbamento do registo da declaração anterior de insolvência, encerramento desse processo, início e cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo nele processado (ponto 6 dos factos provados) - documento exigido com a petição inicial nos termos do art. 23º al. d) do CIRE- permite considerar colmatada parte das omissões acima mencionadas, porquanto a junção de documentos não tem o condão de suprir a omissão de alegação dos correspondentes factos.
Ainda que assim não fosse, afigura-se-nos preponderante salientar que o comportamento da aqui insolvente de omissão de informações relevantes para o processo de insolvência e por inerência para a apreciação da oportunidade a conceder relativamente à admissão da exoneração do passivo, não é um comportamento novo, pelo contrário, foi também um comportamento violador de obrigações de informação que determinou a cessação da exoneração do passivo no anterior processo de insolvência, inferindo-se desse seu historial que, como a insolvente já evidenciou no início dos presentes autos, continua a não pautar a sua conduta por padrões de lisura, probidade e transparência para que seja merecedora de um juízo de concessão de nova oportunidade de admissão liminar de exoneração do passivo restante.
A insolvente nestes autos adoptou uma postura violadora de deveres de informação que para ela resultam do CIRE e fê-lo com culpa grave pois que as informações eram do seu total conhecimento e como tal podia e devia tê-las prestado quando se apresentou à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante, não o tendo feito, como resulta evidente quer do requerimento inicial quer sobretudo dos anexos que ela própria assinou.
Neste sentido, escreve Assunção Cristas, “ O indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável.
(…) Para que o juiz profira despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos de ordem substantiva. A saber:
- tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência (als. b), d), f) e g) do n.º 1 do artigo 238º);[15]
Com efeito, se numa fase incipiente do processo, prévia ao despacho liminar de concessão da exoneração do passivo restante, a devedora/insolvente não adoptou uma conduta pautada pela lisura e transparência quanto à sua situação económica anterior e à identificação correcta dos seus principais credores, nem o seu comportamento anterior foi cumpridor dos deveres associados à exoneração do passivo, afigura-se-nos não ser admissível um juízo positivo quanto ao merecimento de nova oportunidade de concessão, ainda que liminar, do pedido de exoneração do passivo restante.
“Considerando o princípio fundamental do ressarcimento dos credores – que deve ser conjugado e compatibilizado com o princípio do ‘fresh start’ só poderá ser –, justifica-se que o devedor só possa beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante quando haja adoptado condutas rectas, lícitas, honestas e transparentes.
Sendo assim, é de elementar evidência recusar um tal benefício ao devedor que, (…)com dolo ou culpa grave, viola os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do processo de insolvência.”[16]
Em suma, consideramos verificado o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante consagrado no art. 238º nº 1 al. g), do CIRE e, deste modo, em função da procedência do apontado fundamento recursivo, impõe-se a revogação da decisão recorrida, indeferindo-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Tal desfecho prejudica o conhecimento da questão colocada pelo Apelante, a título subsidiário, quanto ao pedido de que a exoneração não abrangesse os créditos já reconhecidos no anterior processo de insolvência da devedora (art.608º nº 2 do CPC).