ASSISTENTE
INTERVENÇÃO ESPONTÂNEA
SÓCIO
ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário

I – Não deixa de ser “titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido” (artigo 326º, nº 2 do CPC), o sócio da sociedade demandada, que pretende intervir como assistente,  numa acção de anulação de deliberação social, que foi instaurada pelo gerente a impugnar a deliberação da sua destituição como gerente, sendo certo que o requerente havia votado favoravelmente aquela deliberação.
II – A omissão da tramitação processual prevista no artigo 327º, nº 3 do CPC, resulta em nulidade de todo o processado posterior ao requerimento em que se pedia a intervenção como assistente, concomitantemente, do saneador sentença, uma vez que a omissão de um acto que a lei prescreve gera nulidade processual “quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” (artigo 195º, nº 1 do CPC).
(Sumário do relator – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. Na pendência da acção comum declarativa que AM, intentou contra AIR …, S.A., pessoa coletiva n.º …, com sede na Rua … Lisboa, a pedir que fossem declaradas nulas ou anuladas as deliberações tomadas na assembleia da Ré de 17.03.2023, que determinaram a sua destituição do cargo de gerente e a instauração de ação judicial com vista à sua exclusão da qualidade de sócio, veio TM, requerer a sua intervenção como ASSISTENTE, para os efeitos do disposto no artigo 326.º do CPC, alegando, em síntese, que é sócio da sociedade Ré e que, tendo votado favoravelmente as deliberações impugnadas por via da presente acção, tem interesse em que a decisão do pleito seja favorável à Ré.
Após audiência prévia, foi proferido despacho a apreciar o referido requerimento, que terminou pelo indeferimento liminar do pedido de intervenção como assistente do Requerente (cf. despacho de 17/03/2024, com a refª 433162737). Na mesma data e conclusão, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e anulou a deliberação tomada na assembleia geral da Ré de 17/03/2023, que determinou a destituição do sócio AM do cargo de gerente.
Inconformado com a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de intervenção como assistente, dela interpôs recurso o Requerente, bem como arguiu a nulidade da sentença, nos termos do artigo 195º do CPC.
Termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
A. A Sentença ora em crise está inquinada de um erro de direito, na parte em que indeferiu ilicitamente o requerimento de intervenção como assistente do ora Recorrente.
B. Nos termos do artigo 326.º do CPC, “estando pendente uma causa entre duas ou mais pessoas, pode intervir nela como assistente, para auxiliar qualquer das partes, quem tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a essa parte”.
C. O Recorrente, que é sócio na sociedade Ré, foi quem requereu a convocação da assembleia geral de 17 de março de 2023, que propôs a respetiva ordem de trabalhos e que votou favoravelmente ambas as deliberações que foram aprovadas.
D. Nestes termos, o Recorrente tem um interesse direto – enquanto sócio da sociedade Ré que votou favoravelmente ambas as deliberações – na manutenção da validade destas deliberações.
E. Pelo que se deve considerar que o Recorrente é titular de uma relação jurídica – nomeadamente, a sua posição de sócio – cuja consistência prática ou económica depende da sua pretensão.
F. Com efeito, reveste grande relevância económica para os sócios de qualquer empresa a possibilidade de destituir determinado gerente, que se tenha revelado inapto para o desempenho das suas funções.
G. Interesse esse que se revela, neste caso, particularmente relevante e atendível, na medida em que a sociedade Ré foi representada por curador ad litem.
H. O que significa que, na ausência de intervenção do ora Recorrente como assistente, não houve, no processo, nenhum sujeito processual capaz de trazer aos autos a perspetiva dos sócios que votaram a destituição de gerente do Autor, AM.
I. O Tribunal a quo errou na medida em que considerou que “o requerente não invoca qualquer direito ou relação jurídica próprio que possa ser afetada pela decisão desfavorável à sociedade, para além da simples qualidade de sócio”, e que “a decisão que venha a ser tomada na ação apenas poderá determinar, caso seja procedente, a manutenção do autor como gerente e como sócio da ré, sendo que dessa circunstância não decorre nenhuma consequência direta para a consistência da relação que o requerente tem com a ré, enquanto sócio desta”.
J. E mais errou quando daí extraiu a seguinte conclusão: “não se pode dizer que o requerente tenha um interesse próprio enquanto sócio que a sociedade não seja gerida pelo autor”.
K. Em suma, assiste ao sócio que votou no sentido do vencimento a faculdade – amplamente suportada na doutrina e jurisprudência – de intervir na causa como assistente da sociedade ré, tal como o ora Recorrente requereu ao Tribunal a quo.
L. É inegável que o ora Recorrente tem um interesse relevante nesta contenda, nos termos do artigo 326.º do CPC: o Recorrente é titular de uma relação jurídica – a sua posição de sócio que votou no sentido da deliberação impugnada – cuja consistência prática ou económica depende da sua pretensão.
M. O Tribunal a quo não apresenta qualquer fundamento capaz de afastar esta realidade. O único argumento exposto pelo Tribunal a quo é o seguinte: “não se pode dizer que o requerente tenha um interesse próprio enquanto sócio que a sociedade não seja gerida pelo autor”.
N. O que é, evidentemente, falso. Como resulta claro, os sócios têm um enorme interesse na identidade do gerente de determinada sociedade. É, aliás, por esse motivo que a destituição do gerente depende de deliberação dos sócios, nos termos do artigo 246.º do CSC. Nos gerentes é depositada a confiança dos sócios para fazerem face aos assuntos correntes da sociedade. Pelo que cada um dos sócios tem um interesse material direto na escolha do gerente (que se tem tradução, afinal de contas, no seu direito de voto).
O. E esse interesse tem, também, um valor económico, uma vez que a nomeação de um gerente mais ou menos competente tem repercussões evidentes no desempenho económico da empresa.
P. No presente caso, o interesse do sócio ora Recorrente encontrava-se numa situação de particular carência de proteção, na medida em que a ação de anulação de deliberações em causa foi instaurada pelo gerente destituído contra a sociedade por ele gerida.
Q. Em suma: caso se mantenha a decisão do Tribunal a quo quanto à inadmissibilidade da intervenção do ora Recorrente como assistente, ficará processualmente vedado aos sócios que votaram a favor da destituição do gerente AM apresentarem a sua versão dos factos ou manifestarem a sua visão sobre o direito aplicável.
R. A decisão do Tribunal a quo impede que os sócios que efetivamente tiveram um interesse na destituição do gerente possam carrear para os autos os fundamentos, factuais e jurídicos, que os levaram a tomar essa decisão.
S. Ao impedir a intervenção de um sócio que votou a destituição, o Tribunal a quo permitiu a existência de um processo saneado de quaisquer intervenientes com interesses conflituantes – tendo, apenas, apreciado os elementos trazidos aos autos pelo Autor (o gerente destituído) e a Ré (a sociedade dirigida pelo gerente destituído).
T. É, por isso, evidente que a boa decisão do processo teria beneficiado da intervenção do Recorrente, que tem um evidente interesse material e económico na improcedência da ação.
U. Conclui-se, por isso, que o Tribunal a quo errou quando decidiu indeferir o pedido de intervenção como assistente do ora Recorrente.
V. Deve essa decisão ser revogada pelo Venerando Tribunal ad quem, e substituída por outra que defira a intervenção do ora Recorrente como assistente nos presentes autos.
W. Nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão a causa”.
X. Neste processo, é límpido que a omissão, por parte do Tribunal a quo, da admissão da intervenção do Recorrente como assistente constitui nulidade processual, nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC.
Y. O Tribunal a quo omitiu a prática de um ato prescrito pelo artigo 326.º do CPC – a admissão do Recorrente a intervir nos autos como assistente.
Z. E essa omissão constitui uma grave infração do direito ao contraditório do ora Recorrente, enquanto sócio titular de um relevante interesse material e económico; bem como do seu direito de ação e de participação processual.
AA. E a omissão deste ato influiu na decisão em causa, uma vez que devido a ela o Tribunal a quo não teve em consideração as alegações de facto e de direito que foram carreadas para os autos pelo ora Recorrente.
BB. Neste caso, a nulidade processual teve consequências particularmente gravosas, na medida em que, conforme foi expressamente admitido pelo Tribunal a quo, “por lapso da signatária, o requerimento em causa não foi, oportunamente, apreciado, tendo o processo prosseguido com a audiência prévia sem que tenha sido estabilizada a instância quanto os sujeitos.”
CC. Ora, este lapso teve consequências graves para a marcha processual, pois levou a que o Tribunal a quo cometesse uma nulidade processual – a omissão do deferimento da intervenção do ora Recorrente – à qual se seguiu, de imediato (e sem interregno que permitisse ao ora Recorrente reagir a essa nulidade) a sentença de mérito ora em crise.
DD. Ora, nos termos do n.º 2 do artigo 195.º do CPC, a consequência perante esta concatenação de atos processuais é evidente. Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
EE. A prolação de decisão de mérito ocorrida após a omissão ilícita do deferimento da intervenção do ora Recorrente como assistente importa, necessariamente, a nulidade da sentença que venha a ser proferida.
FF. O erro de julgamento do Tribunal a quo, que impediu a intervenção do ora Recorrente como assistente, em contravenção do disposto no artigo 326.º do CPC, gerou uma nulidade processual nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC; e essa nulidade inquina os atos subsequentes que dele dependem absolutamente, nos termos do n.º 2 da mesma disposição.
GG. Pelo que deve ser a decisão de mérito, e a Sentença na qual ela se encontra lavrada, proferida pelo Tribunal a quo, são nulas, nos termos do n.º 2 do artigo 195.º do CPC.
HH. Nestes termos e por estes fundamentos, deve a Sentença proferida nestes autos em 18 de março de 2024 ser revogada, por ser nula, e devem os autos baixar ao Tribunal a quo para que, após admitida a intervenção do ora Recorrente como assistente, nos termos do artigo 326.º do CPC, o processo siga a sua tramitação até decisão em primeira instância.
O Autor deduziu contra-alegações, cujas conclusões ora se reproduzem:
A. O Tribunal a quo, determinou a anulação da deliberação para a destituição do sócio AM, ora Recorrido, tomada na Assembleia Geral da Ré, AIR…, S.A., em 17.03.2023.
B. Fundamentando-se na doutrina e jurisprudência aplicável, o douto Tribunal a quo considerou que a ilegalidade do ato do presidente da mesa não poderia ter outro desfecho que não a anulabilidade da deliberação subsequente, dado que esta foi realizada em desrespeito à lei.
C. No entanto, considera o Recorrente que o Tribunal a quo decidiu mal.
D. Por sua vez, o Recorrido subscreve integralmente os argumentos e a fundamentação apresentados pelo Tribunal a quo.
E. O objeto da causa é a anulabilidade das deliberações tomadas em virtude da decisão do Presidente da Mesa da Assembleia Geral, que, ao contrário do que prescreve o artigo 387.º do Código das Sociedades Comerciais, rejeitou submeter a suspensão da Assembleia a votação dos sócios.
F. Norma cuja finalidade impende sobre o Presidente da Mesa o dever de dispor à votação a pretensão do pedido de suspensão da Assembleia e não unilateralmente avaliar a sua justificativa.
G. Mais, diga-se desde já que o recurso, tal como configurado pelo Recorrente, se mostra inadmissível pelo facto de o próprio não ter legitimidade para interpor o presente recurso de apelação.
H. O Recorrente não foi diretamente nem efetivamente prejudicado pela decisão que ora recorre, restringindo-se o seu interesse à manutenção do resultado de uma votação na qual participou.
I. Não se pode confundir a relação material controvertida com os efeitos que possa, reflexamente, ter produzido na esfera de terceiros. O que está em causa nos autos não é a eficácia reflexa da invalidade da deliberação, mas a própria invalidade em si, que pertence apenas à esfera de interesse da própria sociedade Ré.
J. O Recorrente já demonstrou de forma clara, que a única pretensão e preocupação que o mesmo detém é o facto da sua votação favorável ter sido anulada, não revelando sequer apreensão pela violação das formalidades que sucederam na Assembleia Geral.
K. Tentado colocar a questão nestes termos, o Recorrente continua sem explicar de que forma é que a deliberação ter sido anulada lhe causa tamanho prejuízo diretamente.
L. Revelando, deste modo, que nunca teve interesse direito para intervir nos autos como assistente, não tendo em momento algum invocado um direito ou relação jurídica próprios que o afetassem pela decisão desfavorável da ação.
M. Atente-se, aliás, que, como já referimos, a impugnação da deliberação social tem um caráter objetivo, no qual se analisa a validade ou invalidade das deliberações, pelo que a representação do curador ad litem, por terceiro alheio à sociedade, é mecanismo mais que suficiente e garante da posição da Ré.
N. O Recorrente considera ainda que a não admissão da sua intervenção como assistente pelo tribunal a quo constitui uma nulidade processual.
O. Contudo, é crucial destacar que a análise cuidadosa do despacho que indeferiu liminarmente o pedido de intervenção não revela a existência de qualquer vício que sustente tal alegação.
P. Contudo, por uma questão de cautela, convém elucidar o seguinte aspeto.
Q. Em função da tese defendida pelo Recorrente, estamos diante de uma alegada nulidade processual, e não de uma nulidade de sentença por omissão de pronúncia.
R. A legislação processual civil prevê que a arguição de nulidades processuais, conforme estabelecido no art.º 195.º, n.º 1 do CPC, deve ser feita na própria instância em que são cometidas, imediatamente ou no prazo geral de 10 dias.
S. No caso em apreço, esse prazo já foi excedido, o que impede a consideração desta alegação.
T. Assim, a tese navegada pelo Recorrente, sustentada numa suposta nulidade processual por não ter sido admitido como assistente nos presentes autos sempre cairia, seja pelo decurso do prazo para sua arguição quanto pela falta de competência funcional do tribunal ad quem para conhecer desta questão.

Foi proferido despacho a admitir o recurso como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo. Simultaneamente, nos termos do artigo 617º, nº 1 do CPC, o tribunal pronunciou-se sobre a nulidade da sentença arguida pelo Recorrente, concluindo o Sr. Juiz que não padece de nulidade, nada havendo, a suprir.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pelo Recorrente, a questão fundamental deste recurso é a de saber se numa acção de anulação de deliberação social, proposta, nos termos do nº 1 do artº 60º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), contra a sociedade, é admissível a intervenção de um sócio da própria sociedade, como assistente, que, por ter votado favoravelmente a deliberação impugnada, alega ter interesse em que a decisão final seja favorável à Ré.
Caso se conclua pela admissibilidade daquela intervenção, importa ainda apurar se, ao ter proferido sentença que decidiu pela anulação da deliberação, sem a intervenção do ora Recorrente como assistente, o tribunal cometeu uma nulidade processual nos termos do nº 1 do artigo 195º do CPC, da qual resultou a nulidade da sentença.

3. Para além da factualidade que resulta do exposto no relatório supra, que aqui se dá por integralmente reproduzida, da tramitação dos autos e da documentação neles junta, resultaram assentes os seguintes factos:
a) A Ré AIR …, LDA. é uma sociedade por quotas que tem como objeto social “a indústria de transportes por ar de passageiros, correio e carga por meio de serviços regulares ou por afretamento, assim como as respetivas peças e acessórios, o arrendamento de aeronaves a outras companhias em regime de casco nú ou em qualquer outra modalidade, a prestação de serviços de assistência técnica e planificação económica no ramo aéreo a terceiros incluindo, nomeadamente, companhias aéreas, e quaisquer atividades que, direta ou indiretamente, se relacionem com o transporte aéreo. Conceção, edificação e exploração de empreendimentos turísticos e imobiliários, a exploração de estabelecimentos hoteleiros, a compra e venda de imóveis e a revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento, gestão e administração imobiliária.” – cf. certidão permanente da ré junta como documento n.º 1, com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
b) Aquando da sua constituição o capital social da ré ficou detido pelos seguintes sócios:
a. AM, titular de uma quota com o valor nominal de € 19.500,00, representativa de 78% do capital social;
b. TM, titular de uma quota com o valor nominal de € 5.000, representativa de 20% do capital social;
c. EF, titular de uma quota com o valor nominal de € 500,00, representativa de 2% do capital social – cf. certidão permanente da ré junta como documento n.º 1, junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
c) No dia 17/03/2023 realizou-se na sua sede, uma assembleia geral da ré, convocada judicialmente a solicitação do sócio TM, por decisão proferida no processo n.º 4247/22.8T8LSB do Juiz 1, deste Juízo do Comércio, com a seguinte ordem de trabalhos:
“Ponto um: deliberar sobre a destituição do Gerente AM, com justa causa, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 257.º, n.º 1 e 6, do C.S.C.
Ponto dois: deliberar sobre a propositura de ação judicial para exclusão do sócio AM, nos termos do n.º 1 do artigo 242.º do C.S.C., com fundamento no seu comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade.”
d) No início da referida assembleia, o autor requereu que fosse votada a suspensão da assembleia alegando para tanto que as deliberações tomadas nas assembleias de 12.08.2022 e 02.09.2022, já se mostravam plenamente eficazes e exequíveis, na medida em que as providências requeridas com vista à suspensão da sua execução já haviam sido decididas e julgadas improcedentes – cf. Ata n.º 28, documento n.º 2 junto com a p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
e) O presidente da mesa, depois de dar a palavra ao representante do sócio TM, recusou levar a votação o pedido de suspensão – cf. Ata n.º 28, documento n.º 2 junto com a p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
f) Na referida assembleia foi indicado como fundamento para a destituição do requerente do cargo de gerente a seguinte matéria:
“O Gerente da Sociedade é cidadão (…), com domicílio habitual no [estrangeiro] (…).
O Gerente apenas se desloca a Portugal ocasionalmente e sempre com base num visto Schengen destinado a estadas de curta duração – até 90 (noventa) dias em cada período de 180 (cento e oitenta) dias.
O Gerente não fala, nem entende, a língua portuguesa, sendo-lhe difícil entender e expressar-se em língua inglesa.
O Gerente desconhece a realidade de Portugal e o modo de funcionamento do mercado nacional.
O Gerente, pelo desconhecimento da língua portuguesa e objetivas dificuldades de expressão e compreensão da língua inglesa, revela incapacidade para o estabelecimento de relações com entidades fulcrais para a prossecução e o desenvolvimento do objeto da Sociedade, nomeadamente, mas não em exclusivo, entidades bancárias e autarquias locais, as quais são determinantes para concluir as operações societárias em curso.
Com base no exposto nos Pontos supra, o Gerente não tem disponibilidade para ocupar este cargo.
O Gerente assumiu, em sede de Assembleia Geral da Sociedade realizada no passado dia 29.10.2021, as limitações de disponibilidade e incapacidade de compreensão, tendo declarado que precisaria de intérpretes para possibilitar o diálogo referente aos assuntos da Sociedade, bem como de advogados, expressando que iria nomear um gerente local para a Sociedade.
Dispõe o art. 257º, n.º 6 do CSC, que “Constituem justa causa de destituição, designadamente (…) a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções”, o que se verifica no caso em concreto e já confirmado pelo próprio nos termos acima expostos” – cf. Ata n.º 28, documento n.º 2 junto com a p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
g) As deliberações foram aprovadas pelos votos dos sócios TM e EF, que representavam à data da deliberação 0,54% do capital social da ré – cf. Ata n.º 28, documento n.º 2 junto com a p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
h) Em assembleia de 18/04/2023, foi deliberada a nomeação como gerentes de TM e ET, encontrando-se a sua nomeação registada pela AP.127 de 2023.05.15 – cf. certidão permanente da ré junta como documento n.º 1, junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
i) Foi requerida a suspensão da referida deliberação mediante providência cautelar intentada pelo requerente – cf. certidão permanente da ré junta como documento n.º 1, junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. A assistência é um incidente de intervenção de terceiro no processo, para auxiliar um dos litigantes, cuja regulamentação está actualmente prevista nos artigos 326º a 332º do CPC. Distingue-se das demais formas de intervenção de terceiros, na medida em que o assistente não pretende fazer valer uma pretensão própria. Como já dizia RODRIGUES BASTOS, “o assistente, para ser admitido, tem de demonstrar interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável à parte que se propõe auxiliar, isto é, interesse tutelado pelo direito”, excluindo-se, portanto, “o interesse puramente afectivo, do familiar ou do amigo, que, por razões de pura amizade, desejem os triunfo de um dos litigantes, ou o do doutrinário que visa apenas a satisfação de ver consagrada uma tese que defendeu no campo da ciência.”[1]
Assim, o terceiro que pretenda intervir numa acção já pendente, com o intuito de auxiliar uma das partes, terá de explicitar no requerimento do incidente que é “titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido” (artigo 326º, nº 2 do CPC). Admitida a sua intervenção como assistente, poderá então praticar, dentro de certos limites, actos e intervir processualmente, de forma a contribuir para o desfecho da lide num certo sentido, permitindo, assim, a manutenção da sua própria situação jurídica.[2]
4.1. No caso dos autos, feita uma primeira apreciação do requerimento do ora Recorrente, o tribunal a quo decidiu indeferir liminarmente o pedido de intervenção como assistente, em resultado de “o requerente não invoca[r] qualquer direito ou relação jurídica própria que possa ser afetada pela decisão desfavorável à sociedade, para além da simples qualidade de sócio”.
Contrariamente, entende o Recorrente que pelo facto de ser sócio da Ré e, nessa qualidade, ter requerido a convocação da assembleia geral de 17/03/2023, tendo proposto a respectiva ordem de trabalhos e de ter votado favoravelmente ambas as deliberações que foram aprovadas, tem um interesse directo na manutenção da validade destas deliberações, sendo, por isso, titular de uma relação jurídica, cuja consistência prática ou económica depende da sua pretensão, interesse esse que se revela como particularmente relevante e atendível, na medida em que a sociedade Ré foi representada por curador ad litem.
Cremos que assiste razão ao Recorrente, precisamente, porque o Requerente é sócio da sociedade Ré. Nessa qualidade, mantém com ela uma “relação especial”, da qual resultam exigências de lealdade, pese embora sejam menos intensas do que a “lealdade qualificada” que incumbe ao administrador. Mas, tanto os deveres de lealdade do administrador, como os deveres de lealdade do sócio têm o seu fundamento no princípio da boa fé.[3]
Por isso, não acompanhamos a sentença recorrida quando afirma que “o requerente não invoca qualquer direito ou relação jurídica própria que possa ser afetado pela decisão favorável à sociedade, para além da simples qualidade de sócio”. É certo que a sua qualidade de sócio não se altera, mas também é verdade que não é indiferente aos sócios que o gerente da sociedade seja qualquer um. Por isso, é que ou são designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios, isto caso não esteja prevista no contrato outra forma de designação (artigo 252º, nº 2 do CSC). Aliás, compete aos sócios “estabelecer requisitos ou qualidades pessoais (condições especiais de elegibilidade ou de “manutenção”/caducidade do cargo/vínculo) para assumir a condição de gerente (qualidade de sócio, idade, nacionalidade, idade, qualificações académicas, formação profissional específica, currículo, experiência de trabalho e funções em determinada actividade económica-empresarial, antiguidade, domicílio, limite de designações, incompatibilidades com outras actividades, cargos sociais ou relações de parentesco, etc. – desde que a escolha por via estatutária de tais qualidades e situações não seja arbitrária e desprovida de fundamentos naquela sociedade em concreto)”.[4] Por os sócios estarem também vinculados ao dever de “prossecução do fim ou do interesse social”, não deixam de ter interesse na identidade e qualidades do gerente de determinada sociedade. Daí que, quer a nomeação (artigo 252º, nº 2 do CSC), quer a destituição (artigo 246º, nº 1, alínea d) do CSC) do gerente dependa da vontade dos sócios, manifestada no contrato ou em deliberação.
No caso dos autos, parece-nos que o ora requerente é “titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido”, na medida em que a acção de anulação de deliberação, em que pretende intervir como assistente, foi instaurada, precisamente, pelo gerente destituído contra a sociedade por ele gerida, sendo certo que o requerente havia votado favoravelmente a deliberação ora impugnada.
Acresce que quer a doutrina, quer a jurisprudência que se têm pronunciado sobre a questão da legitimidade processual passiva nas acções de declaração de nulidade ou de anulação das deliberações sociais, aceitam a possibilidade de os sócios que votaram no sentido que fez vencimento de intervirem na causa como assistentes da Ré.[5]
Em suma, cremos que o Requerente logrou demonstrar um interesse jurídico (interesse tutelado pelo direito) em que decisão daquela acção anulatória seja favorável à Ré, parte que se propõe auxiliar.
Face ao exposto, procedem as conclusões A. a V. das alegações de recurso.
4.2. Uma vez que o tribunal recorrido decidiu, em simultâneo, indeferir liminarmente o pedido de intervenção como assistente do Recorrente e proferir sentença, cujo dispositivo julgou a acção procedente, anulando a deliberação de destituição do Autor como gerente da Ré, é agora altura de avaliar as consequências decorrentes da revogação daquele primeiro despacho para a marcha do processo. Ou seja, a sentença proferida será nula?
Segundo o Recorrente, ao impedir a sua intervenção como assistente, em contravenção ao disposto no artigo 326º do CPC, o tribunal a quo gerou uma nulidade processual nos termos do artigo 195º, nº 1 do CPC, nulidade essa que inquina os actos subsequentes que dele dependem absolutamente, nos termos do nº 2 da mesma disposição, pelo que, tanto a decisão de indeferimento liminar do pedido de intervenção como assistente, como a sentença, são nulas nos termos daquela norma.
Por sua vez, sustenta o Recorrido que, a ter sido cometida uma nulidade processual – o que refuta –, teria sido arguida fora do prazo legal de 10 dias, o que impede a respectiva apreciação.
Vejamos.
Na verdade, como determina o artigo 195º, nº 1 do CPC, “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva” pode resultar numa nulidade processual, “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. Só que, “sem embargo dos casos em que são de conhecimento oficioso, tais nulidades devem ser arguidas perante o juiz (arts. 196º e 197º) e é a decisão que for proferida que poderá ser impugnada pela via recursória, agora com a séria limitação constante do nº 2 do artigo 630º (…)”.[6]
Não se tratando, no caso, de nulidade de conhecimento oficioso (artigo 196º do CPC), e não a tendo o Recorrente arguido perante o juiz da 1ª instância (artigo 197º do CPC), estaria, em princípio, vedado a esta Relação apreciá-la.
No entanto, tem-se entendido que a omissão de determinada formalidade obrigatória (v.g. cumprimento do contraditório antes de apreciar ex officio uma determinada questão) pode traduzir-se numa nulidade da própria decisão, ajustando-se, então, a interposição de recurso no âmbito do qual essa nulidade seja suscitada.[7] Por outras palavras, “quando juiz se abstenha de apreciar uma situação irregular directamente detetável ou omita uma formalidade de cumprimento obrigatório, com repercussão na decisão proferida, o interessado (parte vencida) deve reagir mediante interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) [do CPC].”[8]
Ora, é, precisamente, pela omissão de um acto processual que o Recorrente apoda a sentença de nula, na medida em que, segundo sustenta, o tribunal a quo “omitiu a prática de um ato prescrito pelo artigo 326º do CPC – a admissão do Recorrente a intervir nos autos como assistente”.
Com efeito, como resulta dos autos, o “requerimento especial” que o Recorrente deduziu (artigo 327º, nº 2 do CPC) foi indeferido liminarmente por o tribunal a quo ter concluído que não tinham sido alegados factos susceptíveis de revelar que a manutenção das deliberações sociais dependia da consistência de qualquer outro direito do requerente, que não apenas o de ser sócio da sociedade demandada. Como vimos antes, não é este o entendimento desta Relação, pelo que deveria ter sido notificada a parte contrária à que o assistente se propõe auxiliar (no caso, o Autor), decidindo-se de imediato, ou logo que fosse possível, se a assistência era ou não legítima (artigo 327º, nº 3 do CPC).
Ora, o facto de o tribunal ter omitido aquela tramitação processual, resulta em nulidade de todo o processado posterior àquele requerimento, concomitantemente, do saneador sentença, uma vez que a omissão de um acto que a lei prescreve gera nulidade processual “quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” (artigo 195º, nº 1 do CPC). E, na verdade, a não notificação da parte contrária à que o assistente se propunha auxiliar (o Autor) e a não admissão da assistência requerida, impediu o Recorrente de exercer nos autos os poderes que, enquanto assistente, lhe são reconhecidos pelo artigo 328º do CPC. Essa omissão do juiz, legitima o ora Recorrente a reagir mediante interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC.
No caso em apreço, tendo a sentença sido proferida simultaneamente ao despacho de indeferimento liminar do pedido de assistência, pode considerar-se uma decisão-surpresa para o ora Recorrente, que nem sequer pôde arguir a nulidade processual correspondente à omissão do acto. Sendo assim, como defende ABRANTES GERALDES, “o recurso constitui a via ajustada a recompor a situação, integrando-se no seu objecto a arguição daquela nulidade” [da sentença, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC].[9]
Em suma, conclui-se que a sentença impugnada é nula por violação do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a presente apelação, e, consequentemente:
a) revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, nos termos do artigo 327º, nº 3 do CPC, ordene a notificação do Autor (Recorrido) para, querendo, no prazo de 10 (dez) dias, se opor, seguindo-se, depois, os demais termos processuais.
b) declarar a nulidade de todo o processado posterior à apresentação do requerimento, que não possa ser aproveitado, incluindo a realização de audiência prévia e a sentença proferida, devendo os autos prosseguir conforme determinado na alínea a).
Custas da apelação a cargo do Recorrido.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2024
Nuno Teixeira
Paula Cardoso
Fátima Reis Silva
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[1] Cf. Notas ao Código de Processo Civil, 3ª Edição, Lisboa, 2000, pág. 121-122.

[2] Cf. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 400.

[3] Cf. neste sentido, ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Lições e Casos de Direito das Sociedades, Lisboa, 2023, pp.241-243. Para esta autora os deveres de lealdade têm um conteúdo negativo e um conteúdo activo, correspondendo o segundo ao “dever de prossecução do fim ou do interesse social (…) componente inalienável do estado  de sócio”, pese embora “na maior parte dos casos a posição do sócio não lhe exigirá comportamentos ativos em virtude da vinculação a deveres de lealdade” (Cf. Ob. Cit., pág. 244).

[4] Cf. RICARGO COSTA/CAROLINA CUNHA, Anotação ao artigo 252º, Código das Sociedades Comerciais em Comentário [coord. COUTINHO DE ABREU], volume IV, 2ª Edição Coimbra, 2017, pág. 80.

[5] Para COUTINHO DE ABREU o facto de as acções de declaração de nulidade ou de anulação das deliberações sociais deverem ser propostas contra a sociedade, tal como determina o nº 1 do artigo 60º do CSC, “não impede os sócios que votaram favoravelmente no sentido que fez vencimento de intervirem na causa como assistentes da ré (artigos 326º e ss. do CPC.” (cfr. Anotação ao artigo 60º, Código das Sociedades Comerciais em Comentário [coord. COUTINHO DE ABREU], volume I, 2ª Edição Coimbra, 2017, pág. 730).
Também o TRE, no Ac. de 09/09/2011 (proc. 885/09.TBENT-A), disponível em www.direitoemdia.pt, apesar de não admitir a intervenção principal de terceiros numa acção de anulação de deliberação social, dirigida, nos termos do nº 1 do artº 60º do CSC, contra a sociedade – designadamente de um sócio da própria sociedade para sustentar a legalidade da deliberação impugnada – , aceitou a possibilidade de os sócios que votaram uma deliberação no sentido que fez vencimento de intervirem na causa como assistentes. Esta posição foi seguida pelo TRG, no Ac. de 20/01/2022 (proc. 114/20.0T8VNF-A.G1), também disponível em www.direitoemdia.pt, que, citando aquele aresto do TRE, também admitiu a possibilidade de tanto o órgão de fiscalização como um sócio se constituir assistente numa acção de declaração de nulidade ou de anulação de deliberação social, o que deduz do disposto no artigo 61º, nº 1 do CSC quando aí se alude à eficácia da sentença nas relações internas (“contra e a favor de todos os sócios e órgãos da sociedade”), “mesmo que (…) não tenham intervindo na acção”.

[6] Cf. ABRANTES GRALDES, Recursos em Processo Civil, 6ª Edição Actualizada, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 24.

[7] Cf. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 776.

[8] Cf. ABRANTES GERALDES, Ob. Cit., pág. 28.

[9] Cf. Recursos em Processo Civil, pág. 26.